O Estado social ativo: Um novo paradigma legitimador das políticas públicas em
Portugal
O novo paradigma da ação pública centrado na ideia de Estado social ativo
consiste num novo modo de regulação estatal assente na centralidade das
políticas de ativação e surge na sequência daquilo que se designou por crise do
Estado-providência e como uma procura de resposta aos desafios da globalização
económica e financeira. As mutações no mercado internacional do trabalho, com
as suas exigências de "flexibilidade",
"competitividade" e "adaptabilidade", num contexto de
um capitalismo flexível e excludente com uma enorme capacidade de destruição
criativa (Schumpeter, 1942), senão mesmo de uma cada vez maior capacidade de
destruição, empurram para fora da sociedade salarial (Castel, 1998) uma massa
enorme de indivíduos, colocando-os em situação de vulnerabilidade social e com
muitas dificuldades em reentrar no mercado de trabalho. Gera-se desta forma um
conjunto de novos "problemas sociais" associados à gestão pública e
política da nova questão social (Rosanvallon, 1995), com destaque para o
tratamento das situações de pobreza e de "exclusão social" (Paugam,
1996), do desemprego estrutural de massas e da precarização estrutural do
trabalho; problemas estes com que os poderes públicos estatais estão obrigados
a lidar. Acresce a esta dificuldade de construção da ordem social um contexto
marcado pela hegemonia das políticas neoliberais (Jobert, 1994) que impõem na
sua ideologia a "necessidade" da retração do Estado em direção a um
Estado mínimo e fazem uma enorme pressão para políticas de contenção orçamental
em nome de uma determinada ideia de "sustentabilidade" da
"despesa pública" estatal. A proposta em torno da ideia de Estado
social ativo (Cassiers, 2005; Vrancken e Macquet, 2006) marca assim a sua
distinção em relação à ideia de um Estado social passivo, cujas políticas têm a
sua centralidade no assegurar de direitos sociais sobre a forma da assistência
e da indemnização, de modo a compensar os danos provocados pelo sistema
capitalista, num contexto de globalização da pobreza (Chossudovsky, 2003). Este
põe por sua vez a tónica na necessidade de ativar os indivíduos, torná-los
autores da sua vida (Dubet, 1996), responsabilizá-los pela sua própria
trajetória e pelo seu destino social, individualizar as respostas face aos
riscos sociais e promover, deste modo, a sua autonomia. Uma das marcas
diferenciadoras das políticas de ativação é a introdução de critérios de
condicionalidade para que os indivíduos possam beneficiar dos apoios públicos
estatais. Os indivíduos passam a ser portadores de direitos sociais com a
condição de cumprirem os deveres impostos pelo Estado. Eles são considerados
merecedores das alocações atribuídas pelo Estado, se e só se, aderirem
voluntariamente a este novo contrato social que lhes impõe um novo conjunto de
obrigações (Dubois, 2008). A grande questão sociológica que aqui colocamos
parte da hipótese de que nem todos os indivíduos se relacionam da mesma maneira
com estas propostas de ativação estatal, uma vez que alguns deles têm
disposições, recursos e suportes (Bourdieu, 1979; Martuccelli, 2002) que lhes
permitem uma melhor adaptação à ideologia da ativação que lhes é proposta do
que outros. É precisamente isso que permite chegar aos resultados parciais da
nossa investigação de doutoramento e que aqui pomos em discussão. Partindo da
análise do programa de política pública Iniciativa Novas Oportunidades nos seus
sentidos e modos de apropriação, questionamos os efeitos das políticas de
ativação mobilizando para isso as representações dos técnicos e formadores que
têm a seu cargo a implementação desta medida relativamente aos beneficiários
sobre e com os quais trabalham.
Ação pública, individuação e ação poiética: o enquadramento teórico da pesquisa
O olhar teórico que permite pensar a inteligibilidade dos dados empíricos em
torno do analisador Novas Oportunidades no que toca ao eixo das políticas
públicas de educação básica de adultos em Portugal foi enformado a partir de um
modelo tríptico que combinou uma sociologia política da ação pública
(Hassenteufel, 2008) com centralidade do conceito de ação pública, uma
sociologia da individuação (Martuccelli, 2006) com centralidade no conceito de
épreuvee uma sociologia da ação poiética tal como proposta por Soulet (2006a).
O conceito de ação pública permite pensar as reconfigurações do papel do Estado
nas sociedades ocidentais contemporâneas ao mesmo tempo que a análise das
políticas públicas deixa de ser pensada a partir de uma mera análise sequencial
através da qual, à maneira funcionalista, se procura perceber os efeitos das
políticas numa lógica top down. O reconhecimento de que o Estado vai perdendo a
sua hegemónica centralidade na promoção das políticas públicas e o rompimento
com uma visão estatocêntrica que se impunha meramente a partir de cima abre
espaço para um enfoque analítico que se desloca para a compreensão das ações
dos intervenientes, as interações entre atores públicos e privados e para o
surgimento de outras noções centrais na análise como redes de políticas
públicas (policy networks) ou de coligações de causa (advocacy coalitions).
Verifica-se que, à medida que as políticas públicas sofrem as suas mutações, o
modo de abordagem científica sobre as mesmas vai também sofrendo as suas
transformações. A atenção crescente sobre os atores responsáveis pela
implementação das políticas públicas nos territórios onde elas se concretizam
acontece em paralelo com a multiplicação dos seus intervenientes, da crescente
complexidade da divisão social do trabalho da ação pública, da interpenetração
cada vez mais complexa entre os níveis locais, nacionais e supranacionais da
decisão política, do esbatimento de fronteiras entre o público e o privado, das
mudanças nos modos de regulação estatal e do papel cada vez mais central da
procedimentalização das políticas públicas (De Munck e Verhoeven, 1997). A
expressão "ação pública" permite pensar o surgimento de políticas
públicas menos estatocêntricas a partir dos seus diferentes níveis de produção.
A evolução da análise das políticas públicas para uma sociologia
política da ação pública corresponde à passagem do conceito em termos
de produção estatal das políticas públicas ao conceito em termos de
construção coletiva da ação pública. A sociologia política da ação
pública assenta sobre a análise contextualizada das interações de
atores múltiplos e interligados a vários níveis, do local ao
internacional, passando pela União Europeia, permitindo desta forma
pensar as transformações dos Estados contemporâneos. (Hassenteufel,
2008: 23. Tradução do autor)
Um outro recurso teórico de enorme relevância a que recorremos em articulação
com a sociologia da ação pública foi a sociologia da individuação de Danilo
Martuccelli com centralidade do operador analítico prova. A sociologia da
individuação é uma macrossociologia que permite levar muito a sério as
existências individuais dos formadores de educação e formação de adultos e dos
técnicos de reconhecimento, validação e certificação de competências que
trabalham nos cursos EFA (Educação e Formação de Adultos) e nos Centros Novas
Oportunidades, simultaneamente não se detendo apenas no nível das meras
subjetividades individuais. A sociologia da individuação procura compreender a
forma como uma determinada singularidade sociohistórica produz determinado tipo
de indivíduos. Inserindo-se no movimento mais amplo de uma sociologia centrada
na compreensão dos indivíduos, esta é uma sociologia que permite a
ultrapassagem dos conhecidos falsos dualismos na análise sociológica; a
dissociação entre ator e sistema, estrutura e ação, objetivismo e subjetivismo
ou o dualismo entre micro- e macrossociologia. A sociologia centrada nos
indivíduos corresponde, assim, a um novo olhar sociológico que remete para uma
nova representação da constituição dos laços sociais. O social perdeu a sua
unidade e a sua consistência, ganhou terreno a fluidez, o risco, a ambivalência
(Bauman, 2007). O social não perdeu a sua capacidade de estruturação das
relações sociais nem as estruturas sociais deixaram de exercer constrangimento
sobre os indivíduos, mas estes últimos assumiram uma centralidade cada vez
maior na análise sociológica da realidade social (Martins, 2014: 91). É no
contexto de uma sociedade cada vez mais singularizada, de uma tendência como
assinala Martuccelli (2010), de uma subida estrutural das singularidades que o
olhar em torno dos modos de apropriação do trabalho de formar adultos no âmbito
da Iniciativa Novas Oportunidades adquire toda a sua pertinência a partir de
uma sociologia centrada nos indivíduos. Um operador analítico central nesta
abordagem teórica é o conceito de prova (épreuve). É este o conceito que
permite fazer a articulação entre a história coletiva, neste caso em estudo, na
forma das políticas públicas de educação básica de adultos e a experiência
existencial dos formadores na sua individualidade. As provas são os desafios
históricos, socialmente produzidos, desigualmente distribuídos, que os
indivíduos são desafiados a enfrentar. Trata-se de perceber como fazem eles
face às provações com que se deparam as suas existências quotidianas num
determinado contexto sociohistórico. Foi isso que se procurou fazer também com
a dimensão analítica que teve por objetivo perceber as representações dos
formadores sobre os beneficiários dos cursos de educação e formação de adultos
e dos Centros Novas Oportunidades. Por último, mas não menos importante,
mobilizou-se também o conceito de ação poiética (Soulet, 2006a), conceito este
que adquire extrema relevância na compreensão de contextos de ação
estruturalmente atravessados pela incerteza, como é o caso dos contextos de
ação em que trabalham os atores que têm a seu cargo a implementação do
dispositivo formativo aqui em análise. O agir poiético remete para uma
modalidade de ação em que esta se realiza durante o seu próprio
desenvolvimento.
Falar de uma acção orientada pela acção significa mobilizar uma
leitura da acção entendida como poeisis e realçar a designação do
fazer como produto da acção. Por outras palavras, a acção, num
contexto que torna difícil um agir finalizado (com vista a um fim), e
problemático um agir conforme, tem como principal característica a de
ser criadora das possibilidades da própria acção, isto é, criadora da
sua finalização e da sua legitimação. (Soulet, 2006a: 32)
Segundo Haenni-Emery e Soulet (2006: 5), os trabalhadores do social são
confrontados quotidianamente nos seus contextos de trabalho com a incerteza e a
inquietude. Uma característica central do seu trabalho remete para a capacidade
de lidar com a dupla injunção de terem, por um lado, de construir com os
destinatários das políticas públicas uma ideia de futuro, um projeto de vida e
uma redefinição da produção identitária assente no trabalho sobre o outro e, em
simultâneo, têm eles próprios que dar conta de dificuldades consideráveis
ligadas à incerteza do seu próprio contexto de ação. Acresce a estes diferentes
níveis de incerteza no caso português a inquietude resultante da
descontinuidade das próprias políticas de educação básica de adultos.
A metodologia de investigação
Do ponto de vista metodológico a investigação desenvolve-se numa lógica
qualitativa e inspira-se na sociologia compreensiva à maneira weberiana. A
escolha da construção de um objeto sociológico, a partir deste tipo de
abordagem, significa que recusámos as conceções mais burocráticas da pesquisa
empírica que privilegiam habitualmente um modelo científico de carácter
hipotético-dedutivo em que a ciência que se fez se sobrepõe à ciência que se
faz (Latour, 1989). Optámos, pelo contrário, por um modelo de carácter
topológico inspirado em De Bruyne, Herman e Schoutheete (1991), que defendem
uma conceção dinâmica da investigação em ciências sociais e a articulação entre
os diferentes polos da prática científica. Posicionamo-nos epistemologicamente
numa lógica indutiva na construção do objeto de estudo e privilegiamos uma
lógica da descoberta assente no paradigma indiciário (Soulet, 2006b). Trata-se,
portanto, de um estudo qualitativo que recorre a um modo de investigação que
parte de um estudo de caso múltiplo e que procura estudar de forma aprofundada
os sentidos, as lógicas de ação e os modos de apropriação desta medida a partir
das representações dos técnicos encarregados de a implementar nos terrenos da
prática social. Foram entrevistados trinta e oito formadores e técnicos de
reconhecimento, validação e certificação de competências em duas organizações
com características marcadamente distintas na região do Algarve. Uma Associação
de Desenvolvimento Local que atua primordialmente no chamado terceiro setor e
um Centro de Formação Profissional sob a tutela do Estado português. A
Associação de Desenvolvimento Local situada numa zona interior e marcada por
uma filosofia de intervenção no território local em que a formação é encarada
pelos elementos da sua direção como estando ao serviço da transformação social
da vida das populações que habitam o território. O Centro de Formação
Profissional tem como principal missão a qualificação jovem e adulta da sua
área de intervenção territorial com uma filosofia mais inspirada na gestão de
recursos humanos (Lima, 2005) e direcionada para a empregabilidade dos seus
destinatários. Em termos da delimitação espacial da pesquisa, a escolha recaiu
nestas duas organizações situadas no centro do território algarvio por uma
questão de economia de esforço (por ser a zona de residência e de trabalho do
investigador) e porque pensamos que a rede de relações do investigador
permitiria maior facilidade no acesso aos entrevistados a considerar. A amostra
de formadores e técnicos de educação de adultos entrevistados foi construída
tendo em conta o critério de heterogeneidade e a diversidade de trajetórias
formativas, as áreas de formação, o género, a idade, a experiência formativa.
Recorremos à amostra em bola de neve e à amostra teórica e intencional como
critérios de acesso aos entrevistados. O material empírico foi recolhido a
partir da aplicação de entrevistas em profundidade com cada um dos técnicos e
foi sujeito a uma análise estrutural de conteúdos.
Trata-se de destacar, a partir de manifestações que estruturam nos
diversos materiais, cujo "conteúdo" formam,
"modelos culturais", quer dizer, sistemas de sentidos
típicos que orientam o comportamento dos sujeitos, que são
interiorizados e socialmente produzidos, reproduzidos ou
transformados. (Hiernaux, 1997: 161)
O estatuto do material empírico recolhido remete não para os conteúdos
explicitados no texto do corpus das entrevistas mas para os modelos culturais
que podem ser apreendidos a partir dos conteúdos manifestados nos textos. Os
princípios da análise estrutural de conteúdo partem da ideia de que o sentido,
a perceção, resulta de - e está nas - inter-relações dos elementos
que o material põe em ação (ibidem: 163). Os fundamentos destas relações
assentam, por um lado, na disjunção, que permite relacionar dentro de um mesmo
género oposições e contradefinições dos elementos constitutivos da realidade
social. Assentam ainda, por outro lado, na associação, que permite estabelecer
uma relação entre os elementos do real identificados pela disjunção, ligando
entre si, numa rede de atributos, esses mesmos elementos. É a partir dos
códigos disjuntivos e conjuntivos construídos a partir do material empírico que
se formam os sistemas de sentido que permitem compreender o modo como o social
se produz e reproduz. Este tipo de análise permitiu a construção de quatro
sistemas de sentidos distintos a partir da forma como os beneficiários das
Novas Oportunidades aparecem nas representações dos técnicos entrevistados.
As políticas de ativação à prova da sociologia: alguns resultados de
investigação empírica
Os dados empíricos que aqui mobilizamos para questionar os efeitos produzidos
por esta ideia de ativação estatal dos indivíduos resultam de uma investigação
sociológica sobre os modos de apropriação das políticas públicas de educação de
adultos, nomeadamente da medida de política educativa designada por Iniciativa
Novas Oportunidades. Esta medida teve num dos seus eixos estruturantes a
qualificação da população portuguesa adulta em idade dita ativa como um dos
seus objetivos principais, e foi suportada nos dispositivos de reconhecimento,
validação e certificação de competências de adultos e nos cursos de educação e
formação destinados a esta categoria social (Martins, 2014). Um primeiro modelo
cultural construído a partir do material empírico remete para o tipo-ideal dos
"oportunistas"; um segundo modelo cultural remete para o tipo-ideal
dos "clientes ideais"; um terceiro modelo cultural remete para o
tipo-ideal dos "forçados" e um quarto modelo cultural remete para o
tipo-ideal dos "encostados". A construção destes quatro modelos
teve em conta (i) as "motivações dominantes para a prática da
formação" dos destinatários das políticas públicas tal como apareciam nas
representações dos formadores; (ii) a perceção sobre o "modo de
racionalidade" que era predominantemente ativado pelos beneficiários da
formação; (iii) os "modos de designação da situação" que remetem
para a forma como os beneficiários aparecem nas representações estereotipadas
dos técnicos e ainda (iv) os "modos de posicionamento face à intenção
política de ativação" que por sua vez remete para os modos como os
beneficiários da formação a incorporam (ou não) nos seus projetos de vida
futuros.
Cada um destes modelos identificados remete para diferentes modos individuados
(Martuccelli, 2006) de relação com as propostas de ativação estatal inerentes a
este programa de políticas públicas. É muito evidente a desigualdade de
condições dos indivíduos face a este novo paradigma legitimador centrado na
ideia de Estado social ativo.
Os oportunistas: os beneficiários que se aproveitam do sistema
A análise estrutural ao material empírico no âmbito da nossa investigação
permitiu a construção de um modelo cultural que remete para a construção de um
primeiro tipo-ideal de beneficiários que integram o grupo que designámos por
"oportunistas". Os "oportunistas" aparecem no sistema
de sentidos construídos a partir das representações dos formadores em disjunção
com o modelo dos "não oportunistas". Os primeiros são percecionados
como tendo como principal móbil para a frequência e prática da formação
motivações de foro material, enquanto os segundos integrariam o grupo por outra
ordem de motivos que não os do foro material. Aos beneficiários perspetivados
como "oportunistas" aparecem associadas designações como
"papa-cursos", "aproveitadores", "subsídio-
dependentes" e "profissionais da formação". Estas
representações negativas por parte dos técnicos sobre alguns dos beneficiários
com quem diretamente trabalham remetem para a ideia de que estes são indivíduos
que se aproveitam das oportunidades que o sistema põe à sua disposição e que
verdadeiramente não são merecedores das mesmas. Utilizando a medida de forma
meramente instrumental, estes beneficiários mover-se-iam por um modo de
racionalidade predominantemente estratégica assente num cálculo racional custo-
benefício, procurando retirar a maior rendibilidade material da frequência
destes dispositivos de formação com o menor investimento nas práticas
educativas e sociais exigidas pelas situações de formação. Para muitos destes,
o benefício da frequência da Iniciativa Novas Oportunidades, sobretudo no que
toca à frequência dos cursos de educação e formação de adultos, é percebido
como associado a um modo de vida que funciona como uma almofada social
temporária que lhes permite durante um certo período de tempo na sua vida
alguma estabilidade na sua existência social. Uma categoria social que aparece
nas representações dos técnicos e que remete para esta ideia da existência de
beneficiários que se aproveitam das oportunidades que o sistema põe à sua
disposição é a categoria dos "papa-cursos". Estes são definidos
etnometodologicamente (Pais, 1993) pelos próprios como "as pessoas que
fazem curso atrás do outro sempre à procura de bolsa", que "vão
saltitando de curso em curso" e que só querem "estar integrados num
curso e receberem a bolsa enquanto estão ali" a frequentar a ação de
formação. Para evitar que os "papa-cursos" venham a ocupar o lugar
de outros indivíduos que efetivamente são percecionados como merecedores das
oportunidades que esta medida oferece, os técnicos tentam à entrada fazer a boa
seleção, procurando "separar o trigo do joio". Os "papa-
cursos" são assim vistos como aproveitadores de um sistema que não se
quer feito para eles. Selecioná-los à entrada do dispositivo é a estratégia a
que se recorre para evitar recrutar pessoas que se perceciona como não
"ativáveis" logo desde o primeiro contacto inicial. Noutros casos,
ainda dentro desta categoria dos "oportunistas", a bolsa que os
formandos recebem aparece na representação dos técnicos como um atrativo que
gera dependência e comodidade. A bolsa de formação, os subsídios de refeição,
de deslocação e de acolhimento, para quem tem filhos em idade infantil, pode
atingir valores muito superiores ao valor que estas pessoas esperariam auferir
num mercado de trabalho que não parece estar predisposto a pagar valores
idênticos a quem nele ingressa com o 9.º ano de escolaridade. Os beneficiários
teriam assim boas razões (Boudon, 2003) para prolongar a sua situação de
relativa estabilidade em detrimento de uma situação de possível instabilidade
num mercado de trabalho marcado pela precariedade estrutural e pelo desemprego
estrutural de massas. O sistema de sentidos oposto ao modelo cultural dos
"oportunistas" abre espaço para a caracterização sociológica de um
outro modelo cultural, os "clientes ideais", aqueles com quem os
técnicos verdadeiramente gostam de trabalhar.
Os clientes ideais: aqueles que são talhados para as políticas de ativação
estatal
A categoria de "cliente ideal" procura designar os beneficiários
que se ajustam na perfeição aos objetivos da medida no sentido da ativação
estatal. Inspiramo-nos aqui no conceito de "cliente ideal" tal como
conceptualizado por Becker (1952), quando este constata na sua investigação um
modelo normativo de referência a partir do qual se julgam e classificam todos
os outros clientes com os quais se trabalha. É na construção interativa no
interior do espaço da formação que a fabricação deste tipo-ideal de cliente se
produz. As representações dos técnicos que trabalham neste programa de
políticas públicas de educação de adultos permitem pensar que este conceito é
perfeitamente adequado para dar conta do modo como os beneficiários agem em
conformidade em relação ao sentido das normatividades exigidas a quem frequenta
esta Iniciativa. Ao contrário do modelo dos "oportunistas" que se
orientam sobretudo por motivações de ordem material, os "clientes
ideais" movem-se primordialmente por motivações de carácter não material.
Predominam as motivações relacionadas com a valorização da escolaridade, com a
busca da melhoria das competências pessoais, sociais e profissionais e com uma
vontade de alterar a sua situação de vida nesse dado momento. A Iniciativa
Novas Oportunidades é perspetivada, de facto, como uma nova oportunidade de
vida. O modo de racionalidade dominante por parte destes beneficiários pode ser
caracterizado como uma racionalidade normativa orientada para uma forte adesão
às regras e às normas do jogo formativo. São rotulados como
"excelentes", são os beneficiários com "quem dá gosto
trabalhar" e é esta a franja de pessoas que "dá mais prazer
formar". Ao contrário do modelo dos "oportunistas" que são
percecionados de forma negativa, os "clientes ideais" são
representados de forma muito positiva e são estes beneficiários que mostram
vontade e predisposição para a ativação. São aqueles que se considera serem
verdadeiramente merecedores da oportunidade que o sistema põe à sua disposição.
Em alguns destes beneficiários são mesmo injetadas expectativas muito positivas
face aos seus destinos pessoais e sociais futuros. Não irem mais longe nas suas
trajetórias de escolarização no sentido de aproveitarem as capacidades
percebidas é considerado um "desperdício de talento". O ensino
universitário é colocado como uma aspiração de referência. Os clientes ideais
têm o céu como limite se para lá quiserem caminhar.
Os forçados: a recusa da ativação estatal
Um terceiro sistema de sentidos recortado do material empírico remete para o
tipo-ideal dos "forçados". Estes desafiam fortemente a ideia de
Estado social ativo. Sem qualquer tipo de motivação para a frequência da
Iniciativa Novas Oportunidades, assentam a sua ação num modo de racionalidade
contranormativa que rejeita claramente as propostas de ativação estatal.
Sentem-se institucionalmente coagidos a frequentar esta iniciativa, pelo que o
que os move é a "obrigação" e o facto de se sentirem
"ameaçados" pela perda do subsídio de desemprego e do rendimento
social de inserção. Aquilo que estes beneficiários verdadeiramente procuram é
um "trabalho", e o "trabalho da formação" não faz parte
dos seus projetos de vida. As políticas de ativação encontram neste tipo-ideal
de beneficiários um verdadeiro obstáculo à sua concretização. Como referem
alguns dos técnicos entrevistados, não se consegue ativar quem não quer ser
ativado. Nas representações dos técnicos aparece mesmo a ideia de que esta
ativação forçada em nada contribui para a credibilidade da Iniciativa. A
obrigatoriedade de inscrição no programa Novas Oportunidades derivada da
condição de desemprego gera, no seu entender, "problemas" difíceis
de ultrapassar. Surgem, assim, pessoas que frequentam o programa
"obrigadas", "que não querem saber disto para nada",
que "estão desmotivadas e estão contra a vontade", que
"atacam os profissionais e estragam os grupos de formação"; pessoas
que se tornam agressivas e ameaçam os profissionais, são
"empurradas" de um serviço para outro, incomodam os restantes
beneficiários e estorvam o seu trabalho e o dos técnicos. Se o tipo-ideal dos
"clientes ideais" é o modelo de beneficiários mais desejado pelos
técnicos, e estes beneficiários são aqueles que são percecionados como
ajustados à normatividade exigida pelas políticas de ativação estatal, o tipo-
ideal dos "forçados" está em total descoincidência com uma qualquer
ideia de ativação. Este tipo-ideal de beneficiário chega a ser percecionado
como um empecilho indesejado nos espaços onde se leva a cabo o trabalho de
formação. Os técnicos afirmam não saber o que fazer com alguns destes
beneficiários, percecionando-os como "sem perfil" para frequentar a
Iniciativa Novas Oportunidades e levar a cabo o trabalho de reconhecimento e
validação de competências com o sucesso que seria de esperar. Quanto aos
outros, que poderiam ser encaminhados para ofertas formativas complementares,
deixam de ter essa opção uma vez que, fruto da diminuição dos financiamentos
europeus e estatais na região, as formações deixaram de existir. As políticas
de ativação confrontam-‑se, no caso deste tipo de beneficiários, em todo o
seu esplendor, com a dupla face de Janus. Como fazer para ativar quem não quer
ser ativado? A ideologia estatal esbarra aqui com a empiria de forma crua e
brutal. A conceção de indivíduo pressuposta pela ativação é muito mais redutora
do que a complexidade do real social permite imaginar.
Os encostados: ativados por arrasto
O sistema de sentidos que remete para a categoria social dos
"encostados" permite-nos dizer que, à semelhança do modelo dos
"oportunistas", estamos perante um tipo de beneficiários que se
move predominantemente por motivações de ordem material e detém uma fraca
motivação para o exercício da prática formativa. Os "encostados"
são, não poucas vezes, ativados por "arrasto", sendo este processo
poiético (Soulet, 2006a) de arrastamento objeto de múltiplas estratégias a que
os técnicos recorrem para fazer caminhar o público com quem trabalham no
sentido da dependência em direção à autonomia individual. O modo de
racionalidade dominante inerente ao processo de ativação dos
"encostados" passa por uma atuação que cruza uma racionalidade
procedimental (De Munck e Verhoeven, 1997) e simultaneamente estratégica, que
se faz numa ação contínua marcada por uma contradição forte e permanente entre
a pressão dos profissionais sobre os beneficiários da iniciativa, no sentido de
estes realizarem as suas atividades e, em simultâneo, com a economia de esforço
do seu público que procura retirar o máximo de proveito dos benefícios que a
frequência da Iniciativa põe à sua disposição com o menor esforço face aquilo
que são as expectativas normativas dos formadores. As estratégias dos técnicos
na busca da ativação dos indivíduos percecionados como "encostados"
podem passar por modalidades diversas. Uma delas é a "ameaça" de
expulsão do curso. Os adultos em formação podem ser "apertados" no
sentido de não lhes serem reconhecidas e validadas as suas competências caso
não alterem o seu padrão de conduta social. Uma das beneficiárias, face aos
seus atrasos permanentes e sistemáticos à formação, "foi chamada várias
vezes à atenção", o que levou a que em determinado momento a ameaça de
expulsão da medida ficasse inscrita em ata: "ou você muda ou não vai
continuar na formação". Outra modalidade estratégica no sentido da
procura da ativação dos "encostados" passa pela reprimenda moral:
"digo-lhes muitas vezes, oiçam, é o meu dinheiro, estou a pagar uma parte
dos meus impostos, é para vos pagar, é um luxo". Para outros
beneficiários, ainda, o apertão dos técnicos na busca da ativação deve ser
feito com um certo cuidado, sob pena do efeito contraproducente do
"bloqueio" e da "desorganização mental" dos
destinatários com quem e sobre os quais trabalham. Os "encostados"
precisam por vezes de ser "arrastados", "empurrados um
bocadinho do lado direito e um bocadinho do lado esquerdo" para que a sua
autonomia se concretize. Ao modelo dos "encostados" opõe-se o
modelo dos "não encostados", que são de facto aqueles que se
percebe serem capazes de fazer um trabalho sobre si próprios assente na
produção da sua autonomia. São os autores de si, aqueles que são percecionados
como capazes de ser autores das suas próprias vidas (Dubet, 1996). A categoria
dos "encostados", por sua vez, coloca um desafio fundamental ao
trabalho sobre o outro (Dubet, 2002) e com o outro (Astier, 2003), produzido
socialmente pelos técnicos. A centralidade das preocupações destes técnicos
está na sua capacidade de levar os beneficiários com os quais trabalham a uma
passagem progressiva da dependência à autonomia.
A ideologia da ativação: um novo modo de legitimação das desigualdades sociais?
Os quatro tipos-ideais de beneficiários aqui identificados permitem-nos pensar
que a ideologia de ativação inerente à ideia de Estado social ativo, quando
confrontada com os terrenos da prática social, levanta desafios importantes que
devem ser tidos em conta e analisados. Uma das questões que os dados permitem
levantar tem que ver com a responsabilização individual dos beneficiários no
sucesso da sua própria ativação. Se a condição de vulnerabilidade dos próprios
é atribuída às suas (in)competências pessoais, e se a sua reintegração no
tecido social se faz depender do seu esforço individual, estão reunidas todas
as condições para o acionamento de um dos mais poderosos mecanismos de
legitimação das desigualdades sociais relacionados com as mutações do mundo
contemporâneo que consiste no processo de transformação da vítima em culpado.
Se o processo de individuação das sociedades de risco da modernidade reflexiva
(Beck, 1992) traz associada a si a individualização dos riscos sociais, e se em
simultâneo se assiste a uma afinidade eletiva com um processo de
descoletivização do social (Castel, 2009) em que a retirada do Estado social
leva a uma diminuição progressiva dos suportes sociais dos indivíduos, os seus
direitos de propriedade social (Castel e Haroche, 2001) ficam seriamente
ameaçados, o que dificulta de forma muito significativa o processo de mudança
na direção da passagem de indivíduos por defeito em indivíduos de corpo
inteiro, assumindo na plenitude a sua condição de cidadãos. O que os dados
empíricos da nossa investigação permitem dizer é que se a ativação for deixada
à boa capacidade individual de cada beneficiário, suportada esta, sobretudo, na
ideologia meritocrática, aqueles que não se ativam passam a ser objeto de uma
representação negativa estereotipada e deixados entregues à sua miserável
condição. Os "oportunistas" e os "forçados" não são
perspetivados como merecedores das oportunidades que o sistema põe à sua
disposição. Por seu lado, os "clientes ideais", aqueles que se
ativam na perfeição, são considerados os verdadeiros merecedores da sua nova
condição. Neste sentido vale a pena ter em atenção as palavras de Branco quando
nos recorda:
É de alguma forma neste registo que diversos autores assinalam o
paradoxo que constituiu converter défices de integração em
problemáticas individuais. Neste sentido as intervenções sociais
estarão ameaçadas pela preponderância do que Dubet (2004) designa de
norma de interioridade: a propensão a procurar no indivíduo tanto as
razões que dão conta da sua situação como os recursos a mobilizar
para que a possa ultrapassar, com o risco desta lógica se tornar
produtora da não integrabilidade, legitimando a ideia de traços
objectivos individuais de inexistência ou reduzida capacidade de se
integrar e por consequência ser integrado (cf. Soulet, 2005: 95).
(2009: 87)
Num contexto societal em que o neoliberalismo está fortemente entranhado nas
mentes e nos corpos, em que a sociedade portuguesa está sujeita a um brutal
programa de austeridade, a um processo de empobrecimento significativo, ao
aumento das desigualdades sociais entre o topo e a base da pirâmide social
(Carmo, 2013; Costa, 2012) e ao declínio das classes intermédias (Estanque,
2012), levantamos a hipótese de que a ideologia da ativação se pode constituir
como um poderoso mecanismo de legitimação das desigualdades sociais e da
reprodução da dominação social. Como insistiu Bourdieu (1989) de forma
persistente nos seus trabalhos, que melhor mecanismo de dominação do que aquele
em que os dominados desconhecem e reconhecem os modos legítimos de legitimação
da sua dominação?