Trânsitos Coloniais: Diálogos Críticos Luso-Brasileiros
Cristiana Bastos, Miguel Vale de Almeida, Bela Feldman-Bianco (coords.),
Trânsitos Coloniais: Diálogos Críticos Luso-Brasileiros, Lisboa, Imprensa de
Ciências Sociais, 2002, 422 páginas.
Na génese desta colectânea estão dois encontros científicos: o workshop
"Nação e diáspora: diálogos cruzados luso-brasileiros", organizado
por Bela Feldman-Bianco em Outubro de 1998, na Universidade de Campinas
(Brasil), e o seminário "Tensões coloniais e reconfigurações pós-
coloniais: diálogos críticos luso-brasileiros", organizado pelos
coordenadores do presente livro, em Novembro de 1999, no Convento da Arrábida.
Em pano de fundo ecoam os recentes debates sobre colonialismo e pós-
colonialismo.
A obra é constituída por quatro secções, que se subdividem em capítulos,
assinados por diferentes investigadores: "Lusofonias críticas"
(textos de Miguel Vale de Almeida, Omar Ribeiro Thomaz e Ana Maria Galano
Linhart, recentemente falecida); "Poder e margens" (textos de João
de Pina Cabral, Nuno Porto, Cristiana Bastos e António Carlos de Souza Lima);
"Ideologia e etnicidade" (Silvia Hunold Lara, John M. Monteiro e
Giralda Seyferth); "Trânsitos e tráficos " (Jill Dias, João Fragoso
e Manolo Florentino, Gladys Sabina Ribeiro, Robert Rowland e Bela Feldman- -
Bianco). Dos dezassete autores que participam nesta obra, onze trabalham no
Brasil e seis em Portugal. Olhando para este conjunto em função do país e da
área científica, verifica-se que, entre os brasileiros, encontramos uma
socióloga, quatro antropólogos e seis historiadores (dois dos quais são co- -
autores de um único texto); entre os radicados em Portugal, encontramos cinco
antropólogos e só uma historiadora (professora num departamento de
antropologia).
Devido à enorme diversidade de temas tratados nesta colectânea, não nos
debruçamos sobre todos os capítulos. Optámos por destacar os textos que, por
estarem mais próximos das nossas áreas de interesse, convidam a um diálogo
crítico.
Depois da introdução propriamente dita, assinada pelos três antropólogos que
coordenam o livro, aparece- -nos o capítulo de Miguel Vale de Almeida ("O
Atlântico Pardo. Antropologia, pós-colonialismo e o caso lusófono"), que
pode ser lido como uma espécie de introdução teórica ao projecto. A partir da
experiência colonial portuguesa, é-nos proposta uma reflexão sobre a
antropologia e sobre o pós-colonial (isto é, os complexos de relações
transnacionais entre as ex-colónias e as ex-metrópoles depois do fim do
colonialismo) enquanto novo campo de pesquisa para aquela disciplina. Neste
texto, de certa forma programático e orientador de futuras pesquisas,
destacaríamos três aspectos. Primeiro, o autor salienta que os estudos pós-
coloniais não se devem concentrar exclusivamente nas representações e no
discurso, mas englobar também a economia e a política (p. 27); segundo,
reconhece que para estudar o colonialismo e o pós- -colonialismo é necessário
colocar a história em primeiro lugar (p. 29); terceiro, lembra que a análise da
especificidade do colonialismo português não deve significar a aceitação de um
suposto excepcionalismo moral e cultural (pp. 31-33). Da mesma forma,
acrescentamos nós, a crítica do luso- -tropicalismo também não pode conduzir à
negação das especificidades da experiência colonial lusa.
Parece-nos, porém, que nem sempre se escapa à armadilha de que se procura
fugir. Critica-se a componente emocional e ideológica do luso- -tropicalismo e
facilmente se resvala para a rejeição de tentativas de construção de uma
entidade ou fórum em que se reúnam os espaços que foram colonizados por
Portugal. A ideia de um passado comum é vista, à partida, como neocolonial e,
portanto, negativa. Ao enredarmo-nos nestes preconceitos, não nos arriscamos,
perversamente, a pôr em causa a validade e o interesse de fóruns intelectuais
de debate como os que deram origem a esta colectânea?
É aqui que detectamos a necessidade, a prioridade, a urgência da história, a
que Vale de Almeida alude. Sem conhecimentos de base desta disciplina, sem a
noção da sua enorme complexidade, das continuidades, das transformações e das
rupturas, das diferenças espaciais e temporais, é possível generalizar, negar
relações, fazer equivaler comunidades, regiões, momentos, situações, proferir
afirmações peremptórias sobre o passado baseadas em preconceitos ou na
observação do presente.
No texto "Tigres de papel: Gilberto Freyre, Portugal e os países
africanos de língua oficial portuguesa", Omar Ribeiro Thomaz analisa com
rigor o pensamento de Gilberto Freyre sobre a identidade entre os espaços
colonizados por Portugal e as posteriores apropriações/manipulações de que o
luso-tropicalismo foi alvo. Porém, na sequência da leitura crítica que faz da
acção da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e dos seus pressupostos
ideológicos, acaba por pôr em causa a existência de relação entre os espaços/
povos que fizeram parte do império português. Para este autor, a ideia de
"relação" e a frase feita "em português nos entendemos
" são demasiado equívocas, configurando, no mínimo, uma violência
retórica (cf. p. 57).
Jill Dias, mais à frente, acaba por responder a Omar Thomaz, quando aborda o
caso dos ambakistas ("Novas identidades africanas em Angola no contexto
do comércio atlântico"). Tal como outros "grupos de intermediários
comerciais, de descendência e cultura mista, europeia e africana, cujas
actividades estavam intimamente ligadas à manutenção e expansão do poder
português no interior ", os ambakistas, oriundos do interior leste de
Luanda, falavam português e identificavam-se como cristãos (p. 303). Até às
primeiras décadas do século XIX, os ambakistas foram mediadores entre a
administração colonial e as estruturas de poder africano, gozando de grande
prestígio político. Com "a ocupação militar e administrativa colonial
mais efectiva do hinterland de Luanda", do início do século XX, assistiu-
se à exclusão da burguesia africana que tinha adaptado e incorporado símbolos
culturais portugueses e cristãos para se impor junto das sociedades africanas
autónomas do interior. Correlativamente, deu-se um processo de depreciação dos
ambakistas.
A autora sublinha a complexidade das dinâmicas sociais e culturais geradas pela
abertura do tráfico transatlântico nas diferentes sociedades africanas da costa
e do interior angolano. O caso que apresenta, paradigmático das ambivalências e
paradoxos gerados historicamente por processos de sincretismo cultural,
demonstra que as tentativas de interpretação das relações coloniais portuguesas
em Angola (como em qualquer outro espaço do antigo império português) não podem
fundar-se na simples dicotomia entre colonizador e colonizado (p. 314). Houve,
de facto, relação entre determinados grupos, em determinadas áreas,
circunstâncias e épocas históricas. Assumi-lo não implica qualquer juízo de
valor ou de intensidade.
Quanto à língua, também convém esclarecer dois pontos. Embora nem todos falem
português nos espaços que foram colonizados por Portugal, o que é certo é que
sempre houve grupos que falaram português e a afirmação do nacionalismo nas ex-
-colónias portuguesas passou pela assunção do português como língua oficial.
Daí resultou o crescimento do número de falantes de português desde a
independência até aos nossos dias, sobretudo nos meios urbanos. O que não
invalida reconhecer que, sob pena de alienarem o seu vínculo às realidades
locais, os projectos de investigação ou de cooperação não poderão descurar as
línguas nacionais africanas, que são as línguas maternas da grande maioria das
populações (principalmente na Guiné-Bissau e em Moçambique).
O texto de Pina Cabral salienta outro aspecto da relação heterogénea, múltipla,
ambígua e mutável, entre colonizador e colonizado: aquilo a que chama
incomunicação intercultural, ou seja, o desconhecimento do outro apesar da
convivência (p. 104). Em torno de um episódio de suposto canibalismo narrado
por Henrique Galvão, Pina Cabral mostra que o colonizador, sentindo- -se
ameaçado por populações com definições outras da realidade (ameaça simbólica) e
pela incapacidade de controlar o espaço (ameaça geográfica), constrói uma
fantasmagorização dos subalternos para legitimar as atitudes repressivas do
poder colonial (pp. 111 e 113). Vancela, uma mulher moçambicana, provavelmente
por pressão dos seus parentes e vizinhos que acreditavam que ela era a causa de
qualquer infortúnio e a acusavam de bruxaria, confessou às autoridades
coloniais ter "comido" o seu filho, acreditando que a
"confissão " acarretaria efeitos positivos. Por seu turno, o
administrador colonial entendeu essa "confissão" como prova da
animalidade daquele povo.
Os administradores coloniais, que alimentavam o equívoco, usando as
"confissões" de canibalismo como "prova" em processos
judiciais, eram agentes de primeira linha do império e estiveram entre os
principais obreiros do seu arquivo. Ao contrário do que Nuno Porto procura
fazer crer no texto "O museu e o arquivo do império: o terceiro império
português visto do Museu do Dundo, Companhia de Diamantes de Angola", a
colonização portuguesa produziu memória documental e arquivo, este entendido
tanto no sentido literal como no que Foucault lhe atribui. Não há nenhum
império que possa ser administrado sem produção e circulação de documentos com
vista à tomada de decisão. Tal como o autor refere, a cultura de arquivo,
enquanto dispositivo de conhecimento e de exercício do poder, teve um grande
incremento na viragem do século XIX para o XX, no início da colonização moderna
da África (p. 120). E a experiência colonial portuguesa não se eximiu à cultura
de arquivo.
De facto, a ideologia imperial do Estado Novo não se substituiu à produção de
um conhecimento sobre o território, a fauna, a flora, as populações (nas
vertentes antropométrica e etnográfica). O trabalho desenvolvido pela Junta de
Investigações Coloniais/ Junta de Investigações do Ultramar e pelas suas
missões sectoriais é demasiado volumoso para passar invisível,
independentemente da avaliação que hoje se faça da sua qualidade científica.
Por outro lado, a administração colonial portuguesa foi uma "máquina de
produção de papel" (documento/ informação/conhecimento). Quem consulta o
Arquivo Histórico Ultramarino ou os arquivos nacionais de Angola e Moçambique
sabe disso. Em todos os níveis da orgânica político- administrativa produzia-se
e acumulava-se documentação que circulava em sistemas de informação bem
definidos. Chegava-se à minúcia de exigir que os chefes de posto, os
administradores de concelho e de circunscrição e os governadores de distrito
das várias colónias portuguesas registassem diariamente as suas actividades em
livros próprios, chamados diários de serviço, que eram remetidos periodicamente
aos respectivos superiores hierárquicos.
Os argumentos de Nuno Porto, apesar de estimulantes em diversos aspectos e
apoiados num assinalável aparato teórico, nem sempre são rigorosos e claros. Se
a colonização efectiva da África portuguesa (e o respectivo aparato
burocrático) só teve início no final do século XIX, esperar a existência de um
arquivo com quinhentos anos é contraditório (p. 118). Por vezes, não se
distingue ou confunde-se intencionalmente dois conceitos distintos: museu e
arquivo. Não é exacto que "a situação vista do Dundo [deixe] adivinhar um
império sem arquivo, onde este é substituído pela ficção da historiografia
mitográfica na imaginação da nação ‘una do Minho até Timor’" (p. 130).
Também não é rigorosa a dicotomia estabelecida entre a Diamang (cuja eficiência
é associada, em grande medida, à existência de arquivo) e o Estado colonial
português (considerado inoperante e envolto em fantasia).
O texto de Cristiana Bastos sobre a Escola Médica de Goa mostra como a
experiência colonial portuguesa gerou um centro subalterno na Índia portuguesa,
lugar de delegação por excelência, a partir do qual se distribuíram médicos
para as outras colónias a partir dos finais de Oitocentos, numa lógica de
"subalternidades sucessivas". A analogia que faz entre o estatuto
de pivot da Índia lusitana, no campo da saúde, e de Cabo Verde, no campo do
funcionalismo público, é muito certeira. De facto, tanto os médicos da Escola
Médica de Goa como os funcionários administrativos cabo-verdianos foram
utilizados enquanto mediadores dentro do império português (v. p. 147). Uns e
outros faziam parte das elites crioulas que, embora subordinadas ao poder
colonial português, foram agentes locais desse mesmo poder.
Giralda Seyferth revela que o nacionalismo brasileiro, apesar de se propalar
plural, assentava na apologia do passado colonial (luso-brasileiro) e não se
abria ao reconhecimento de outros grupos étnicos. No auge da segunda guerra
mundial, a imigração alemã foi vista por Gilberto Freyre como potencial ameaça
à formação social brasileira plural e mestiça (p. 286). A política de imigração
do Brasil deu, por isso, prioridade ao elemento português, visto como matriz da
brasilidade.
Esta prioridade parece não ter sido retribuída por Portugal no início da década
de 1990. Bela Feldman-Bianco analisa os conflitos diplomáticos que eclodiram em
1993 entre Lisboa e o Itamaraty a propósito da negação de entrada em Portugal a
um grupo de imigrantes brasileiros. Chama-lhe "drama familiar" e
narra-o em quatro cenas. A autora salienta a necessidade de examinar as
políticas de imigração do Estado português no âmbito da reconstrução do
nacionalismo português no quadro da integração europeia e da omnipresente
ênfase na unidade de sentimento e de cultura entre Portugal e as suas antigas
colónias. No seu entender, os "discursos de ‘irmandade luso-brasileira’
e, portanto, de descendência comum só ajudam a mascarar as actuais políticas
draconianas de imigração e as reconfigurações de dominação e subordinação entre
países entrelaçados por antigas relações coloniais" (p. 413).
Importa, contudo, esclarecer que uma coisa é a prioridade política de Portugal,
outra o referencial do imaginário nacional português. Se a partir dos anos 80 a
prioridade política de Portugal tem sido a Europa, o nacionalismo português,
baseado sobretudo no orgulho na história pátria e muito concretamente na
história dos Descobrimentos, continua a afirmar- se universalista. Em
contraponto aos "maus" nacionalismos, fechados, etnocêntricos e
xenófobos, o nacionalismo português reivindica-se integrador e ecuménico (logo,
benigno). O espaço de afirmação identitária supranacional de muitos portugueses
estende-se hoje à Europa, à África, ao Oriente, ao Brasil… ao mundo, como
outrora ao império. Como Bela Feldman-Bianco também refere, o discurso da
irmandade lusófona não é unilateral, sendo também usado pelos próprios
brasileiros e nacionais de antigas colónias portuguesas em África para
justificar o seu direito de permanência em Portugal. Nesse sentido,
dispositivos que serviram o colonialismo podem estar agora ao serviço de uma
lógica multicultural.
Em jeito de balanço, destaque-se a qualidade científica da generalidade das
investigações que este livro divulga e o facto de o mesmo ter nascido da
vontade de discutir ideias, cruzar experiências de pesquisa, aprender com as
investigações alheias e avançar no conhecimento de um objecto de estudo comum a
antropólogos e historiadores radicados em Portugal e no Brasil: o antigo
império português e as suas configurações pós-coloniais. Espera-se que estes
diálogos (críticos e abertos à crítica) prossigam e venham a integrar
investigadores de outras paragens que possam fornecer novos elementos de
comparação e reflexão.
Cláudia Castelo