A Europa, o Desafio Demográfico e o Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça
A Europa, o Desafio Demográfico e o Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça,
debate no Centro Cultural de Belém, 18 de Outubro de 2002, publicação do
Gabinete em Portugal do Parlamento Europeu, Lisboa, Maio de 2003.
Esta publicação reúne as comunicações de especialistas e intervenções do
público durante o debate "A Europa, o desafio demográfico e o espaço de
liberdade, segurança e justiça ", realizado no CCB em Outubro de 2002,
por iniciativa do Gabinete em Portugal do Parlamento Europeu, em colaboração
com o ICS e o Centro de Estudos Geográficos. O objectivo do encontro é
apresentado como procurando oferecer uma visão alargada da problemática da
imigração em Portugal, para a qual contou com a participação de políticos,
académicos, associações patronais e sindicais, autarquias e ONGs.
As comunicações dividiram-se em quatro sessões temáticas dedicadas a:
1) "Os riscos de declínio demográfico e de envelhecimento das populações
europeias e a imigração";
2) "A regulação dos fluxos migratórios e o espaço de liberdade, segurança
e justiça";
3) "A imigração e as necessidades do mercado de trabalho: indiferenciados
e altamente qualificados";
4) "Imigração, relações internacionais e estratégias de desenvolvimento
das áreas de origem ".
A questão global da imigração é apresentada, na sessão de abertura, pelo porta-
voz do gabinete europeu — António Sobrinho — como sendo um elemento importante
na reflexão e discussão do "futuro da Europa". Neste primeiro
momento é sublinhada pelo representante do comissário António Vitorino a
necessidade de rever as ideias dominantes sobre a imigração na Europa,
nomeadamente a prevalência de uma "imigração humanitária " versus
uma "imigração de trabalho". Joaquim Nunes de Almeida explica os
resultados dessa discrepância entre as políticas de imigração e as realidades
migratórias, que acabam por pressionar os institutos humanitários e abusar dos
sistemas de asilo. Daí a ideia promovida pelo Gabinete em Portugal do
Parlamento Europeu de abertura à imigração legal para o mercado de trabalho
europeu. As políticas de integração sugeridas devem adaptar-se às realidades
locais, uma vez que são tanto mais eficazes quanto mais micro. O Gabinete do
Parlamento Europeu propõe, assim, uma política localizada que conte com a
participação activa de todos os cidadãos, adaptando às realidades concretas as
traves mestras da política de Bruxelas.
Na sessão de abertura teve ainda a palavra o ministro da Administração Interna
— António Figueiredo Lopes —, que focou a questão da imigração como factor de
desenvolvimento e de benefício tanto da Europa comunitária como dos cidadãos
exteriores que imigram para países da Comunidade. O aumento da população
imigrante (3,5% da população da CE) compensa o decréscimo demográfico na Europa
e absorve os fluxos migratórios pressionados pelas elevadas taxas da natalidade
dos países exportadores de mão-de-obra. Face a esta realidade, a política
migratória da CE tenta articular a necessidade de gestão dos fluxos migratórios
com uma abordagem global dos aspectos económicos, sociais e humanitários dos
mesmos, "sem esquecer a luta contra a imigração ilegal ". O
resultado desta política em Portugal, segundo o ministro, foi a duplicação do
número de estrangeiros em situação legal, mas que ainda não se adaptou ao
número real de entradas no país. À data do colóquio (2000), o governo vigente
estava a consagrar uma legislação promovendo a imigração legal "em
conformidade com as necessidades e possibilidades de acolhimento do país e a
efectiva integração dos imigrantes na sociedade portuguesa em igualdade de
circunstâncias de direitos e obrigações com os cidadãos portugueses ".
Para Figueiredo Lopes, tal regulamentação governamental deve coordenar-se com
as políticas europeias de imigração no novo contexto de alargamento da
Comunidade a quinze novos países membros.
O fim desta primeira sessão dá lugar a um debate com o público onde se destacam
as intervenções de membros de associações como a SOS Racismo, Associação Romena
e Povos Amigos, Associação Guineense de Solidariedade Social. Em contraponto às
comunicações, estas intervenções da assistência (como, aliás, todas ao longo do
debate) sublinham a outra realidade das associações sindicais de imigrantes e
autarquias que "não estão a ser ouvidas". Também afirmam que o
Ministério e o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras "trabalham
devagar", fazendo arrastar os processos de legalização. É ainda realçada
a não participação dos representantes das comunidades migrantes na mesa do
colóquio e a necessidade de estes se tornarem parceiros sociais na reformulação
da política de imigração.
O primeiro painel temático sobre riscos de declínio demográfico e de
envelhecimento das populações europeias reúne cinco comunicações de
especialistas nas áreas da demografia, estatística e acolhimento de refugiados.
Nele se analisa em detalhe a tendência demográfica para o envelhecimento da
população portuguesa e o contributo da imigração para o crescimento
populacional. É também indicada a necessidade de desenvolver políticas
familiares e redes de solidariedade, bem como de compreender a complexidade dos
fenómenos migratórios nos reequilíbrios territoriais: "Aparecimento de
novas áreas de recrutamento, novas motivações de partida, maior diversidade de
tempos de permanência nos locais de acolhimento ", etc.
A segunda sessão, dedicada ao tema da regulação dos fluxos migratórios, mostra
como o crescimento da população extracomunitária residente na UE (mais de 14
milhões de pessoas) tem exigido uma maior regulação dos movimentos e da
inserção dos imigrantes. Em Portugal, tal exigência deu origem a regularizações
das autorizações de permanência e da igualdade de direitos entre nacionais e
estrangeiros (no trabalho, habitação e política). Algumas comunicações
apresentam ilustrações dos dramas vividos pelos imigrantes que tentam entrar na
Europa ilegalmente. Este lado "vivo" das realidades migratórias
permite constatar os contrastes entre as experiências concretas dos imigrantes
e as políticas oficiais dos Estados e da União Europeia. Sobre a forma como os
europeus vivem e vêem as comunidades imigradas, a comunicação do psicólogo
social Jorge Vala sublinha a sustentação generalizada da ideia de diferença
entre "eles" e "nós" para os cidadãos da UE pela
predominância de representações sociais baseadas numa hierarquia cultural para
a qual contribuem os meios de comunicação social. Vala fala de "racismo
sem raça", mostrando que "a etnização das minorias, a sua
inferiorização cultural, se faz hoje de forma velada, através da simples
acentuação das diferenças culturais". A discriminação entre grupos
humanos permanece de acordo com novos eixos organizadores das representações
sociais. Os imigrantes são vistos como "invasores " que ameaçam uma
ordem demográfica estabelecida. Segundo o mesmo autor, a ideia de
"vaga" associada às entradas de imigrantes, também representa uma
ameaça de contaminação étnica que se confunde com uma ideologia racista
tradicional. Na mesma ordem de ideias, a comunicação do sociólogo Fernando Luís
Machado indica as situações de continuidade cultural entre grupos distintos via
de integração dos imigrantes: "Regular fluxos migratórios no sentido da
maior integração dos migrantes significa, portanto, procurar converter
contrastes em continuidades [...] e converter contrastes em continuidades
significa, basicamente, combater as formas de desigualdade social, muitas delas
territorializadas, que atingem diferentes populações migrantes no plano do
emprego, da educação ou da habitação." As dinâmicas de continuidade só
podem ser geradas pela "livre interacção entre autóctones e
migrantes" e devem ter em conta os efeitos perversos das políticas
multiculturais. Promover politicamente a diversidade cultural pode sublinhar as
diferenças, reforçando estereótipos e limitando as esferas de pertença dos
indivíduos a fronteiras culturais determinadas.
Na sessão dedicada ao tema da imigração e às necessidades do mercado de
trabalho são de destacar as informações sobre a atracção de imigrantes
qualificados e a expansão dos espaços (territoriais e de actividades) de
imigração. Estas novas realidades, segundo os especialistas, suscitam um outro
tipo de políticas de imigração centradas na selecção das entradas de imigrantes
com base nas qualificações dos mesmos. Estas são apontadas como medidas de
criação de igualdade de oportunidades para os cidadãos estrangeiros
qualificados. Quanto aos não qualificados, são sugeridas políticas de emprego e
formação técnico-profissional no sentido de elevar as suas qualificações no
país de acolhimento e de melhorar a qualidade do trabalho. No debate final
desta mesa é de salientar o comentário do embaixador de Cabo Verde em Portugal,
que remete para a origem histórica do seu país a fim de relembrar a necessidade
de pensar nas causas dos imigrantes cabo- -verdianos como sendo causas
portuguesas. O pedido de responsabilidade do embaixador pretende sublinhar a
complexidade das implicações da questão da integração dos imigrantes vindos de
Cabo Verde. Resta saber se também se pode falar (e como?) de uma
responsabilidade de futuro em relação a outras comunidades migrantes não
oriundas de países colonizados pelos portugueses.
A quarta mesa sobre relações internacionais e estratégias de desenvolvimento
das áreas de origem foca a articulação da questão das migrações com as
estratégias de desenvolvimento dos países de origem. Às contribuições de
especialistas nas áreas da geografia humana e planeamento regional juntam-se os
testemunhos de autarcas sobre experiências concretas de relações entre locais
de origem e zonas de residência dos imigrantes. O desenvolvimento de parcerias
entre cidades e o incremento de programas de cooperação descentralizada são
exemplos dessa articulação. Os municípios e as comunidades transnacionais
manifestam serem mais eficazes na promoção do desenvolvimento nas áreas de
origem e de acolhimento dos imigrantes do que organismos estatais
centralizados. As associações de imigrantes podem desempenhar um papel
fundamental nessa área, mas têm, em Portugal, uma actividade ainda limitada.
Por fim, na sessão de encerramento, o secretário de Estado dos Assuntos
Europeus teve a palavra, frisando a necessidade de a União Europeia receber
"sangue novo" e desenvolver novas políticas comunitárias de
imigração. As políticas a fomentar devem orientar-se no sentido de criarem um
sentimento de "cidadania europeia", onde todos os cidadãos, sem
excepção, se sintam num espaço de liberdade, segurança e justiça.
No conjunto, o debate sugere uma oscilação entre um optimismo dos
representantes políticos e o realismo desencantado dos associativistas ou
pessoas próximas da realidade dos imigrantes. As contribuições dos diversos
especialistas esclarecem a complexidade dos assuntos em causa, ilustrando novas
pistas de compreensão e de acção sobre as questões da imigração na Europa e em
Portugal.
Elsa Lechner