Nós, os Ciganos e os Outros, Etnicidade e Exclusão Social
Maria Manuela Ferreira Mendes,Nós, os Ciganos e os Outros, Etnicidade e
Exclusão Social, Lisboa, Livros Horizonte, 2005, 205 páginas.
O conceito de identidade cigana é, por assim dizer, uma self-fulfilling
prophecy: existe um consenso alargado, tanto do ponto de vista émico como
ético, sobre o que é «ser cigano», e portanto não se discute; opta-se, em
alternativa, por folclorizá-lo (exotizando-o) ou por denunciar tentativas e
estratégias hegemónicas de combate a essa identidade e tradição «diferente». Do
ponto de vista histórico, os estudos sobre ciganos denunciam um processo
marcante: o da transformação da «ciganidade» de uma «raça» nas últimas
décadas do século xx numa «minoria étnica». Esta transformação é concomitante
com a mudança de paradigma, nos projectos científicos, que foi rejeitando
retratos culturalistas homogéneos e primitivistas em favor de uma
complexificação do social através da consciência do pluralismo que, em última
instância, o define. Ambos os processos redundaram numa opção «política», na
literatura recente sobre os ciganos em Portugal, de denúncia de lógicas de
exclusão e marginalização dos mesmos, frequentemente sem o necessário esforço
de questionamento epistemológico dos conceitos empregues nessa denúncia.
O livro de Maria Manuela Ferreira Mendes tem, neste contexto, dois méritos: em
primeiro lugar, porque aborda esta problemática de um modo frontal assumindo-
a como a questão central da obra e, em segundo, porque, ao fazê-lo, assume-se
como uma das raras monografias publicadas nos últimos anos sobre os ciganos
portugueses, a partir de uma investigação de terreno qualitativa e
quantitativa, desenvolvida pela autora em bairros sociais da região do Porto.
Neste sentido, a autora adopta também ela um objectivo «político», isto é, o de
combate ao desconhecimento tradicional que persiste na sociedade (neste caso
concreto, a sociedade portuguesa) em relação aos ciganos e que é, segundo
Mendes, a principal causa para a «exclusão social» dos mesmos (pp. 18-19). Aqui
a noção-chave será precisamente a de «conhecimento»: através da investigação
das dinâmicas de «interconhecimento» tanto entre os próprios ciganos como
entre estes e «os outros» e, eventualmente, entre ambos e os investigadores do
social (daí, parece-nos, o título proposto: Nós, os Ciganos e os Outros)
poder-se-á combater o tal «desconhecimento» dos «outros» em relação aos
ciganos, desconhecimento que se estende do senso comum à própria academia. A
autora alerta, e com razão, para a escassez de conhecimento científico em
relação aos ciganos (p. 190), o que em si também constitui uma forma de
marginalização.
Seguindo um estilo argumentativo directo e pragmático, oferecendo capítulos de
reflexão teórica e bibliográfica como complemento a capítulos de apresentação e
sistematização de dados empíricos, a autora manifesta uma preocupação inicial
na situação da problemática, tanto do ponto de vista teórico nomeadamente
através de um dos conceitos-chave da ciência social contemporânea, a
«etnicidade» (capítulo 1) como do ponto de vista histórico recuperando os
eixos da presença e movimento dos ciganos no continente europeu (capítulo 2).
Assim, no capítulo 1 a autora invoca a teoria sociológica acerca dos conceitos
de «raça», «grupo social», «etnicidade», «identidade» e «classe»,
problematizando as suas hipóteses, para depois procurar particularizá-la no
contexto cigano. O exercício poderia ser resumido nas seguintes questões: quais
as «autopercepções» dos ciganos enquanto grupo étnico? Quais os mecanismos
afectivos (sentidos de pertença), políticos (movimentos de reivindicação),
estruturais (sócio-económicos, demográficos), que fomentam a noção específica
de «etnicidade cigana»? Em que medida é que esta se constrói como diferença,
alteridade em oposição a outra(s) etnicidade(s), ou em relação à «sociedade
dominante»? Em resposta, a autora recorre a um conceito omnipresente nas
investigações sobre ciganos nas últimas décadas: o de «exclusão social».
Associando a pobreza, a segregação espacial e cultural e o défice de
escolarização como factores mutuamente alimentados e reproduzidos, denuncia-os
como alvos fáceis de discriminação e rejeição social ou, numa lógica
simmeliana, «estrangeirização» (p. 46). Nesta linha, o capítulo 2 da obra
revisita a história da presença cigana no continente europeu e, em particular,
no território português. Reproduzindo as principais linhas historiográficas e
temáticas acerca da presença secular dos ciganos no «ocidente» e as principais
narrativas e debates sobre a sua origem, a autora procura demonstrar como a
«marginalização cigana» é o resultado de uma longue durée (p. 47) que
cristalizou uma imagem estereotipada e negativa do «cigano» como nómada e,
portanto, contrário à civilização.
De uma abordagem mais «macro», a autora parte à procura de contextos concretos
de construção e negociação de identidades colectivas, nomeadamente bairros
periféricos da cidade do Porto, a saber: o Bairro de São João de Deus, do
concelho do Porto o «bairro cigano problemático» por excelência, com presença
regular nos mediaportugueses devido aos conflitos resultantes dos processos de
demolição de barracas e realojamento , e as freguesias de Espinho, Anta e
Sivalde, do concelho de Espinho. Através de uma recolha empírica, que incluiu
observação participante e entrevistas biográficas, Mendes elabora uma
caracterização sociográfica dos distintos grupos e famílias aí residentes
através da reconstituição de trajectórias individuais em contextos de
identidades grupais. Assim, no capítulo 3 a autora recorre a testemunhos orais
para caracterizar os espaços residenciais do Bairro de São João de Deus e da
freguesia de Espinho através das percepções dos residentes acerca do mesmo,
indagando as percepções mútuas acerca de ambos os bairros e destrinçando os
tópicos que conferem uma «identidade territorial» (p. 55) específica a cada um,
tanto em termos «intra» como «interétnicos». No capítulo seguinte propõe-se uma
nova abordagem ao problema, desta vez orientada para a caracterização sócio-
demográfica dos ciganos residentes em ambos os concelhos, explicando os padrões
de residencialidade, trabalho, casamento, educação, etc., que marcam a tal
marginalidade defendida por Mendes: desde o abandono escolar precoce à prática
de economia informal, ausência de redes institucionais de assistência, etc.
Esta caracterização permitirá à autora problematizar aquela que consideramos
ser a questão central na obra em causa: as dinâmicas de construção de
«identidades colectivas» em oposição a «alteridades» ou, noutras palavras, as
dinâmicas de construção de uma «etnicidade cigana» em oposição à «sociedade
dominante» portuguesa (capítulo 5). Para tal proporá vários «marcadores» (p.
131) que servirão de eixos de abordagem e discussão dessa construção, a saber:
práticas matrimoniais (estratégias de aliança matrimonial), estatutos etários
(papel atribuído aos «mais velhos», autoridade e liderança), solidariedades
grupais (ajuda mútua), práticas linguísticas (o uso do romano), ritos
funerários (relação com os mortos) e comportamentos religiosos (catolicismo,
adesão ao movimento evangélico). Estes marcadores, que constituem elementos
tradicionalmente associados à «etnicidade cigana», serão analisados pela autora
através da sua aplicação aos contextos de Espinho e de São João de Deus, como
que testando a sua plausibilidade, ou melhor, a sua pertinência contemporânea.
Por último, Mendes fará uma última incursão na problemática da etnicidade
através de uma dinâmica inevitável nos identity studiesde hoje: a participação
cívica e política e a construção de visibilidades e canais discursivos
(capítulo 6). Para a autora, é neste campo que se percepcionam as clivagens
sociais em contextos de relação multicultural; daí que volte a incorporar a
questão do racismo como ilustrador dessa clivagem que, para a autora, é produto
dessa mesma relação multicultural (p. 190). Daí também que a autora verifique a
virtual ausência de associação e participação política dos ciganos portugueses
ao contrário do que sucede noutros países europeus , o que, em parte,
explica os processos de marginalização a que continuam a ser submetidos (p.
202).
Em suma, aprecia-se na obra de Mendes uma «novidade» no que diz respeito aos
«estudos ciganos» em Portugal: a sua vontade de enquadramento e problematização
teórica do conceito de «etnicidade cigana», propondo vários modelos e conceitos
de abordagem teórica e, sobretudo, oferecendo um levantamento empírico extenso
assente numa perspectiva local um esforço que acaba por ser incomum na
ciência social portuguesa relativa aos ciganos. Por outro lado, como referimos,
a própria existência do livro constitui em si um facto pouco comum na academia
portuguesa, o que já de si é de louvar. No entanto, o declarado «propósito
político» do livro, que propõe explicitamente estratégias de acção social no
contexto abordado, se bem que moralmente justificável, poderá eventualmente
toldar a maior complexificação de alguns dos conceitos aqui debatidos,
conceitos já de si self evident cada vez que se produz uma abordagem científica
ao contexto dos ciganos. Por exemplo, processos como o «racismo» e a
«discriminação» deverão ser apenas pensados numa perspectiva univocal,
unidireccional? Até que ponto é que a «exclusão social» corresponde apenas e só
a uma acção deliberada de uma hegemonia contra uma minoria? Em que medida é que
a «etnicidade» é colectivamente percepcionada e aceite consensualmente como
homogénea? São questões que o livro em causa, pela forma aberta e honesta com
que se apresenta, permite ao leitor colocar.
Ruy Blanes