O Regresso às Armas: Tendências das Indústrias da Defesa
José Manuel Rolo, O Regresso às Armas. Tendências das Indústrias da Defesa,
Lisboa, Edições Cosmos, 2006, 238 páginas.
O título do livro O Regresso às Armas é representativo da análise cativante e
fundamentada sobre a evolução da indústria de armamento, desenvolvida pelo
autor mediante uma linguagem simples e um raciocínio sintético e objectivo, ao
alcance de qualquer leitor curioso por saber quanto e como se gasta o dinheiro
na defesa, pese embora o desinteresse generalizado sobre o tema, sobretudo por
elementos da comunidade académica, profissionais e peritos directamente
relacionados com estas matérias. De resto, não se trata de algo específico à
opacidade característica do tema. Em Portugal faz-se pouca investigação sobre
políticas públicas, em geral, independentemente do sector.
Abstenho-me de fazer uma degustação dos vários capítulos, prática comum às
recensões, porque roubaria o prazer a quem se sentir disposto a aventurar-se na
leitura deste livro e a saborear o seu conteúdo. Penso ser mais oportuno
salientar alguns pontos transversais às várias metamorfoses da industrialização
da guerra, tratadas com perspicácia ao longo dos seis capítulos que compõem a
obra.
Em primeiro lugar, "a ordem mundial é um complexo sistema de acções e
reacções entre unidades atomizadas ". Não obstante o quotidiano das suas
relações se processar mediante regras e leis comummente reconhecidas e
respeitadas e de um modo estruturado, racional e previsível, a ausência de
governo mundial coloca os Estados num estado de natureza hobbesiano
caracterizado pelo medo, insegurança, violência, guerra e recurso à força:
"the nature of war consisteth not in actual fighting; but in the known
disposition thereto, during all the time there is no assurance to the contrary
[...] in all times, Kings, and persons of sovereign authority, because of their
independence, are in continual jealousies, and in the state and posture of
gladiators; having their weapons pointing, and their eyes fixed on one another;
that is, their forts, garrisons, and guns upon the frontiers of their kingdoms;
and continual spies upon their neighbours; which is a posture of war"
(Hobbes, Leviatã). Como salientou o autor, "a organização e estruturação
da indústria da guerra fez-se sempre de um modo mais célere sempre que uma
potência industrial se sentiu ameaçada pelos desenvolvimentos na produção de
armas dos seus vizinhos". No actual contexto internacional do pós- -11 de
Setembro, de globalização do terrorismo, em que a compra de equipamento militar
se faz com um simples clique num website, o conceito de "ameaça"
deixou de ter referência na contiguidade territorial.
"A evolução das armas tem alterado a natureza da guerra". Desde que
as armas deixaram de ser utensílios de caça e sobrevivência e passaram a ser
utilizadas como instrumentos de guerra, a sua evolução e impacto devastador não
tiveram fim. Álbio Tibulo (55-18 a. C.), poeta latino, autor de várias elegias
dedicadas ao amor, à vida campesina e à condenação da guerra, escrevia a esse
propósito o seguinte pranto: "Chi fu il primo ad inventare le spaventose
armi? […] Da allora sono nate le stragi per il genere umano, da allora i
combattimenti, ed è stata aperta una via più breve alla morte terribile. O
forse quel miserevole non ebbe nessuna colpa: noi abbiamo volto a nostro male
ciò che egli inventò contro le terribili bestie" (elegia Quis fuit
horrendos, livro iI, canto 10). Hoje um soldado não vê quem mata. Com o pulsar
de um botão ou o girar de uma chave de ignição arrasam-se cidades, eliminam-se
populações inteiras. "A guerra tecnológica dos nossos dias é cada vez
mais impessoal". A tecnologia distancia o acto do resultado. O horror da
morte não deixa rosto individual, mas é difuso e, portanto, torna-se apenas um
facto histórico de consciência colectiva, e não um peso na consciência
individual de cada interveniente. "O avanço tecnológico aumenta os níveis
de devastação e de morte, mas provoca também uma desmaterialização desta.
"
de uma chave de ignição arrasam-se cidades, eliminam-se populações inteiras.
"A guerra tecnológica dos nossos dias é cada vez mais impessoal". A
tecnologia distancia o acto do resultado. O horror da morte não deixa rosto
individual, mas é difuso e, portanto, torna-se apenas um facto histórico de
consciência colectiva, e não um peso na consciência individual de cada
interveniente. "O avanço tecnológico aumenta os níveis de devastação e de
morte, mas provoca também uma desmaterialização desta. " Outro aspecto
que importa salientar nesta evolução é "o facto de as guerras
tecnológicas deixarem de ser, primariamente, uma conquista territorial".
O território continua a ser importante do ponto de vista do controlo e
exploração dos recursos naturais, mas a maioria das batalhas decisivas dá-se em
meios urbanos. Aqui importa realçar o impacto estruturante que a guerra de
guerrilha teve no modo de organização, na definição das estratégias, no tipo de
armas e apoio logístico a operar pelos exércitos convencionais. As guerrilhas
podem alimentar resistências que minam a solidez e a moral de um exército
estandardizado. Pouco a pouco, os exércitos convencionais foram incorporando
estes desafios no seu modo de funcionamento. A estratégia dos 3Ts (transportes,
tecnologia, telecomunicações), central às operações de guerrilha urbana, foi
gradualmente traduzida e adaptada por exércitos convencionais. Prova disso é o
esforço financeiro, sobre tudo a nível de I&D, que os EUA têm
disponibilizado para a concretização da sua nova doutrina militar, network-
centric warfare, "que procura explorar os avanços tecnológicos ocorridos
nas tecnologias da informação e da comunicação e nas tecnologias da integração
de sistemas com o objectivo de aperfeiçoar e tornar mais ágeis os processos de
reconhecimento dos teatros de operações e os processos de tomada de decisões
associados à coordenação das operações militares" (p. 196). "A
tendência para a utilização crescente nos confrontos armados das chamadas
‘armas do futuro’ que eliminem os sistemas de comunicação, a tecnologia do
inimigo, sem danificar materialmente as cidades, que passam a ser um espólio
(não necessariamente tangível) dos exércitos, e para ‘a generalização da guerra
electrónica’ [pp. 29-30] é exemplo da tentativa das grandes potências para
procurarem meios de intervenção mais adequados às ameaças e aos teatros de
operações do século XXI." Resta saber se alguns dos factores que no
passado compensavam o desequilíbrio tecnológico entre as partes beligerantes
(e. g., número, motivação, ideologia, etc.) continuarão a ter algum peso. Sobre
este ponto, o autor aconselha uma prudência clausewitziana: "Os soldados
são equipados com tecnologias cada vez mais complexas que podem tornar-se
facilmente inoperantes " (p. 197).
"Le nuove armi da fuoco cambiano le guerre, ma sono le guerre che
cambiano il mondo" (Pietro Aretino, 1492-1556). "Não só a guerra,
mas também o modo como os países industriais se preparam para a guerra provoca
profundas alterações na vida e organização das sociedades." A nível
político, assiste- se a um endurecimento da ordem interna e à adopção de um
conjunto de restrições aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Na
actual conjuntura internacional, em que a ameaça do terrorismo passou a ser uma
prioridade das políticas de defesa e segurança das democracias ocidentais, a
suspensão de direitos de cidadania não é apenas uma possibilidade, mas é já uma
realidade. A nível económico, alteram- -se os modos de produção, o tecido
industrial, e geram-se novas oportunidades de acumulação de riqueza. Assiste-se
também a uma tendência para a adopção de medidas de auto- -suficiência e o
desenvolvimento de modelos dirigistas da economia. A nível sócio-cultural, as
transformações são também profundas: surgem novas clivagens sociais e
extinguem- -se velhas ordens; mudam-se os gostos e as artes; alteram-se os usos
e costumes, os hábitos alimentares, a educação, a vida familiar, etc. A maioria
dos avanços tecnológicos directa ou indirectamente relacionados com a arte da
guerra — o teflon, os microprocessadores, a Internet, os sistemas GPS — acaba
por ter utilidade civil, melhorando a qualidade de vida dos cidadãos; contudo,
a reconversão da indústria de armamento não é um processo fácil nem consensual.
Os que pensavam que o final da guerra fria representava o início de uma época
de desarmamento e de reconversão à escala mundial acabariam por ver frustradas
as suas expectativas. Após uma redução drástica de cerca de 30% desencadeada
pelas maiores potências mundiais no período imediato ao fim da guerra fria
seguiu-se uma estabilização dos orçamentos de defesa e, mais recentemente, uma
nova escalada dos gastos. Qual o impacto que isso provocará na economia e, em
particular, nos complexos militares industriais das principais potências? Que
novas potências se afiguram no horizonte? Que impacto (quantitativo e
qualitativo) poderá esse "regresso às armas" ter no domínio da
produção e da proliferação de armas? Estas são algumas das questões tratadas
pelo autor com grande acuidade.
Em todo este processo de reajustamento das indústrias de armamento, o autor
nota, com algum desalento, "a incapacidade da União Europeia de proceder
à criação de um mercado europeu de armamento e à reestruturação empresarial, de
base nacional, mediante estratégias de fusões e aquisições e das alianças
estratégicas à luz dos processos que tiveram lugar, com sucesso, nos
EUA". O actual orçamento plurianual da UE deveria dedicar um programa de
apoio à I&D militar de valor não inferior a 10% dos programas europeus de
I&D civil; contudo, o grande esforço financeiro desenvolvido neste domínio
continua a ser "um assunto da exclusiva competência dos países
membros" (p. 89). O processo de integração europeia, que teve início na
vontade comum dos Estados fundadores, com o apoio da comunidade empresarial do
sector extractivo, de governarem comummente duas matérias-primas de aplicação
bélica (o carvão e o aço), foi incapaz de superar a barreira hobbesiana do
medo, da suspeita, da inveja, que conduzisse "a uma indústria
verdadeiramente europeia baseada numa efectiva divisão do trabalho entre os
vários países europeus" (p. 143) e a um mercado único de defesa. Como
notou e bem o autor, "o artigo 223.º do Tratado de Roma, que transitou
integralmente para o artigo 296.º do Tratado de Amesterdão, ‘é um obstáculo
definitivo a qualquer tentativa de europeização das políticas de segurança e
defesa na Europa’ e ‘uma das mais importantes derrogações às regras do mercado
único europeu" (p. 144).
Por último, "o conceito de potência permaneceu, ao longo dos séculos,
associado ao equilíbrio conseguido entre a capacidade de produção de material
bélico e a capacidade de suster economicamente esse esforço". Também
sobre este ponto, os ensinamentos do passado são ainda pertinentes: "I
danari sono il verbo della guerra, più della politica" (Macchiavelli,
1469-1527). O autor destaca uma série de factores que determinam a execução das
despesas militares nos vários países, entre as quais: as estratégias
geopolíticas prosseguidas; o grau de coesão política interna no que respeita ao
prosseguimento dessas estratégias; o nível da riqueza nacional; a situação
económica, financeira e orçamental; o peso do aparelho produtivo militar no
conjunto das respectivas economias; os compromissos internacionais assumidos.
"É de salientar a combinação complexa entre a alegada ‘necessidade’,
manifestas ‘paixões’ e ‘interesses’ concorrenciais que se disputam pela
definição e condicionamento da aplicação dos recursos destinados a fins
militares."
O livro acaba com uma breve análise sobre as recentes transformações na
indústria militar portuguesa à luz dos vários desenvolvimentos internacionais,
sugerindo algumas "dicas" às partes interessadas nesse processo
(Estado e indústria) e desbravando terreno para mais estudos neste domínio.
Luís de Sousa