Introdução
Introdução
As instituições híbridas. Reclusão e laços sociais
Este dossierresulta de um conjunto de análises suscitadas pela conferência «A
prisão, a psiquiatria e a rua», que teve lugar no Instituto de Ciências Sociais
(UL) entre 6 e 7 de Junho de 2005. Três tópicos funcionaram então como os
pontos focais de uma maior variedade de contribuições tratando de aspectos da
reclusão, de instituições, práticas e discursos terapêuticos, e ainda da «rua»
entendida aqui a «rua», latu sensu, como aquilo que está fora, para lá do
espaço físico das instituições. Este termo não foi pois necessariamente
utilizado como uma categoria específica de pobreza urbana, à maneira da rua que
tem informado alguma etnografia urbana recente
1
.
Há vários nexos históricos e conexões contemporâneas entre estes domínios, cuja
definição foi deixada à partida deliberadamente imprecisa. Não faremos aqui um
inventário sistemático dessas conexões. Começaremos antes por evocar algumas
delas a partir de um momento crítico nos anos 70 e do modo como o futuro era
então imaginado e antevisto por filósofos e cientistas sociais. Michel Foucault
(1975), para referir o mais saliente, sustentava que, da mesma maneira que a
prisão havia tornado obsoletas modalidades físicas, mais brutais, de punição,
assim ela própria acabaria por tornar-se não mais do que uma mera instância
periférica de controlo no quadro de uma «forma disciplinar» difusa, dispersa na
sociedade. O controlo social e a normalização operariam por todo o lado,
através das escolas, dos hospitais, dos técnicos de reinserção social, do
discurso psiquiátrico, entre outras vias. O argumento de Foucault influenciou
toda uma geração de análises sobre instituições, vigilância e controlo.
Pouco depois de Surveiller et punir surgiram outras formulações deste mesmo
diagnóstico, mais específicas e empiricamente sustentadas. Por muito diferentes
que fossem a outros títulos, coincidiam com o de Foucault num ponto importante:
o encarceramento seria uma forma em recuo, prestes a ser substituída por algo
de outro. Na sua versão penal este diagnóstico estava em sintonia com um forte
desencanto em relação às promessas de reabilitação que a prisão afinal não
cumprira (Allen, 1981)
2
. Porém este desencanto não era uma simples réplica da atmosfera pessimista que
um século antes tinha levado a que os ideais filantrópicos de regeneração
sofressem um recuo nas missões que a prisão então se atribuíra (Duprat, 1980).
Agora isto é, na década de 70 a decepção e o cepticismo quanto ao método da
prisão crescia a par de um optimismo penal confiante na maior eficácia, ou pelo
menos na menor nocividade, de medidas alternativas, não carcerais confiante
por conseguinte no inexorável declínio do encarceramento. À reclusão pensava-se
vir a recorrer apenas como medida excepcional. Regime probatório e penas a
executar em meio livre seriam algumas das opções penais constitutivas de uma
rede reguladora alternativa fora dos muros da prisão.
Pela mesma altura, o tratamento psiquiátrico passava por uma evolução de
sentido paralelo a esta. A crítica antipsiquiátrica, sobretudo a italiana e a
britânica, fazia o seu caminho, os hospitais psiquiátricos abriam-se ao
exterior e abandonavam algumas das características carcerárias das velhas
instituições asilares e, por fim, uma psicofarmacologia cada vez mais eficiente
tornava possível a desinstitucionalização de muitos doentes mentais. O avanço
dos medicamentos neurolépticos vinha viabilizar para os psicóticos crónicos uma
vida no exterior e a sofisticação dos ansiolíticos e antidepressivos veio
tornar dispensáveis muitos internamentos prolongados
3
. Consultas em centros de dia, apoio domiciliário, cuidados psiquiátricos
descentralizados em hospitais gerais mais próximos da comunidade, regimes
ambulatórios, entre outros, sustentariam o regresso destes doentes à sociedade.
Também aqui o fechamento, a clausura, era suposto tornarem-se ultrapassados e
serem usados unicamente como último recurso. E no que toca aos doentes
psiquiátricos a desinstitucionalização ocorreu, de facto, em grande parte4.
Mas algo de muito diferente estava prestes a suceder no domínio da reclusão
penal. O desencarceramento previsto não veio a ocorrer e, pelo contrário,
enquanto os hospitais psiquiátricos começavam a esvaziar-se, a demografia
prisional iria em breve explodir. Em vez de convergirem, como antevira Scull
(1977 e 1984), estas duas versões de enclausuramento iriam divergir. É verdade
que as penas extraprisionais se multiplicaram, alastrando por conseguinte no
meio livre a rede de controlo penal (Cohen, 1985). Mas o mesmo aconteceu com as
penas de prisão. Isto é, ambos os sistemas de controlo se expandiram5. Como
Loïc Wacquant (2002b) sugeriu a propósito do inaudito crescimento das
populações prisionais, o diagnóstico prospectivo de Foucault não podia ter
estado mais errado. Mesmo que outros sistemas de controlo e vigilância se
tenham desenvolvido e disseminado pelas esferas do quase invisível e íntimo, as
prisões não só não desapareceram, mas cresceram e multiplicaram-se. Wacquant
(no prelo) sugere também que a prisão não pode hoje ser entendida unicamente
com base na categoria demasiadamente estreita de repressão.A prisão está, para
este autor, no centro das mais importantes transformações do Estado ocorridas
nas últimas três décadas e no âmago da relação entre a gestão penal e a gestão
social da pobreza.
É a esta luz que Wacquant trata aqui da forma como nos aparece hoje a relação
entre as instituições penais e psiquiátricas a prisão e o hospital no
contexto dos EUA. O que ocorreu em termos de desinstitucionalização no sector
psiquiátrico veio na verdade a redundar no reforço do sector penal: muitas das
pessoas que eram tratadas como doentes psiquiátricos passaram a ser
reinstitucionalizadas na prisão. Com o encerramento das grandes instituições
públicas não foi proporcionado um sucedâneo adequado nos serviços de saúde e,
dada a depauperação de centros de dia, hospitais e serviços sociais, o
tratamento psiquiátrico atrás das grades passou a ser o único disponível para
alguns doentes (v. também a este propósito Herszberg, 2006). Em conjunto com
populações toxicodependentes e sem abrigo, os doentes psiquiátricos tornaram-se
um dos principais clientes de um sistema prisional inflacionado e multivalente.
Assim, Wacquant encara a sua situação como a demonstração viva de um actual
nexo causal entre a retracção do Estado social e a expansão do Estado penal.
Com o encarceramento maciço de pessoas com problemas psíquicos que não
encontraram tratamento a montante, ao acabar por assumir um papel terapêutico
que não fazia parte da sua missão e que era do foro de outras instituições, a
prisão tornou-se uma instituição híbrida
6
. E, se, nesta análise, a terapêutica aparece como subproduto da prisão, já no
artigo de Pat Carlen temos uma versão da prisão em que o tratamento passa a ser
quase a sua própria essência, sendo, em todo caso, já a sua forma. A prisão diz
ser uma instituição terapêutica. Contudo, esta pretensão decorre menos do
tratamento de doentes psiquiátricos reais, mas antes de uma redefinição dos
problemas sociais dos reclusos como problemas psicológicos. Reposicionados
desta forma, é possível presumir-se que tais problemas são susceptíveis de
serem superados através de programas psicológicos intraprisionais que se dão
por objectivo reduzir a reincidência.
O revivalismo das perspectivas psicológicas sobre o crime tem alimentado uma
nova retórica de reintegração que se alheia das circunstâncias sociais adversas
no que toca a alojamento, perspectivas de emprego, toxicodependências, relações
de abuso e violência doméstica, e põe antes a tónica na adaptação psicológica
através de uma espécie de reprogramação cognitiva trabalhando atitudes e
promovendo disposições na órbita do «pensamento positivo». Estes programas
estão agora a tornar-se os produtos penais mais vendáveis numa arena global
mercadorizada a que Pat Carlen chama aqui «indústria de reintegração».
O problema com este novo mercado é que a oferta está também, de certo modo, a
criar a procura. Isto é, se as prisões são (ou dizem ser) instituições tão
benéficas e eficazes logo imprescindíveis na superação dos problemas dos
reclusos, então não há razão para procurar preferir alternativas não prisionais
e é racional encarcerá-los, mesmo por crimes menores. Daí o crescimento do
«carceralismo» ou, como o coloca Pat Carlen, a emergência de uma síndrome em
que a aposta nos programas prisionais vai de mão dada com o aumento das
populações prisionais. Enquanto Loïc Wacquant põe em evidência os factores
externos implicados na explosão da demografia carceral, Pat Carlen acrescenta-
lhes a hipótese de um factor endógeno ao sistema judiciário e prisional
favorecendo esta mesma inflação.
Outro resultado da retórica terapêutica dos programas intramuros de
reintegração é a transferência de recursos da comunidade para a prisão, mesmo
quando o investimento no meio externo já provou ser crucial. Este movimento não
deixa de evocar um paralelo com aquele relatado aqui por Wacquant para os EUA,
onde é agora frequente que o orçamento do sector psiquiátrico em contextos
prisionais seja superior ao orçamento homólogo no contexto dos hospitais
públicos. Ambos os autores apresentam-nos assim duas versões de uma prisão
híbrida; no caso descrito por Carlen, apesar das pretensões terapêuticas que a
instituição ostenta, nem por isso deixa de ser uma instituição híbrida. A
prisão «terapunitiva» é apenas a mais recente mistura, mesmo se reciclada de
modo a ir ao encontro do zeitgeist gerencial e do marketing, de uma velha
injunção contraditória dirigida às instituições prisionais: tratar e punir.
Frise-se que esta injunção sempre foi mais acentuada no caso das prisões de
mulheres, que são aqui o objecto do artigo de Pat Carlen. As reclusas e as suas
circunstâncias sempre tenderam a ser mais patologizadas, por isso mais sujeitas
a um discurso psicologizante, do que os reclusos, cujos problemas e
trajectórias não padeceram nos estudos prisionais da mesma desatenção em
relação à intervenção de factores de outro tipo, como os sócio-económicos7. Mas
a lógica terapêutica intra-prisional não pode, uma vez mais, permanecer imune a
uma lógica carceral inevitavelmente omnipresente e que, por esta razão, sempre
acaba por prevalecer, como também há muito tem vindo a ser documentado neste
domínio de investigação. Para além dos efeitos perversos que a retórica
terapêutica pode ter no aumento do número de presos, esta é mais uma razão pela
qual este artigo insiste em lembrar que uma prisão é, antes de tudo e acima de
tudo, uma prisão.
E, no que toca a lógicas contraditórias no âmbito das instituições totais, o
panorama parece ainda mais problemático no centro educativo português um dos
ex-denominados institutos de reeducação de menores , que Tiago Neves traz à
discussão. Da legislação às práticas quotidianas, dos funcionários e técnicos
aos «clientes», como são conciliados o confinamento e a reintegração? Aqui
estas ambiguidades, que começam por estar inscritas no próprio modelo presente
do sistema de justiça de menores, assumem outro rosto ainda. Outras economias
institucionais mistas, bem como outras maneiras de psiquiatrizar a diferença
seja a diferença definida como desvio ou cultura, em termos de género, classe
ou etnicidade , foram discutidas no encontro «A prisão, a psiquiatria e a
rua». Ficamo-nos aqui por algumas delas.
Os dados etnográficos trazidos por Megan Comfort e Raquel Matos levam-nos a
interrogar mais de perto noções abstractas de reintegração e a desconstruir
ou pelo menos complexificar uma noção monolítica e apressada de reinserção.
Quando aplicada às relações de proximidade dos prisioneiros, especialmente
relações familiares e conjugais, o sentido habitualmente subentendido na noção
de reintegração é o da preservação, não o da ruptura, desses laços sociais. Em
consonância com esta ideia, é também usual caracterizar o impacto da reclusão
nas relações pessoais segundo o esquema binário de separação ou reatamento com
aqueles que ficaram no exterior. Em vez disso, e de maneira muito mais
elucidativa, Megan Comfort e Raquel Matos focam o modo como a prisão
recontextualiza estas relações. As duas autoras fazem-no a partir de ângulos
complementares, os quais também permitem captar os efeitos das diferenças de
género: Raquel Matos a partir da perspectiva de mulheres presas, Megan Comfort
a partir da perspectiva de mulheres em meio livre cujos companheiros estão
atrás das grades. Em ambos os casos, a distância interposta pela reclusão leva-
as a encarar tais relações a uma nova luz, mas com resultados opostos. No caso
apresentando mulheres presas, a prisão cria espaço para uma reavaliação que
«negativiza» os laços anteriores. A reclusão é então vista como uma
oportunidade para pôr termo a relações percebidas como danosas. No outro caso,
em contraste, relações destrutivas passam a ser encaradas como «positivas» não
só porque a distância proporciona às companheiras um novo ponto de vista, mais
favorável aos homens presos, mas também porque a prisão em si mesma providencia
um ambiente controlado e protegido onde se torna possível para as mulheres
lidar _ mesmo se apenas temporária e artificialmente com o comportamento
caótico, irresponsável e violento dos respectivos parceiros. Relacionamentos
que estas mesmas mulheres de outro modo tolerariam mal ou considerariam não
viáveis são assim perpetuados, quando não se dá o caso de florescerem, à sombra
protectora da cadeia.
Uma vez mais, como também o indicam os artigos de Loïc Wacquant e de Pat
Carlen, a instituição penal torna-se «uma agência social de primeiro recurso»
(Currie, 1998) para problemas não atendidos noutra sede. Mas, para além desta
faceta da prisão híbrida, as contribuições de Megan Comfort e
Raquel Matos levam-nos a repensar a noção de reintegração naquilo que ela
pressupõe acerca da renovação de relações prévias. Quer a prisão induza
rupturas, ou, pelo contrário, a perpetuação dos laços sociais, nem tudo é o que
aparenta ser.
Manuela Ivone Cunha
Cristiana Bastos
Notas
1
V. a este propósito, por exemplo, Wacquant (2002a).
2
V. em mais pormenor Cunha (2002).
3
Estas mudanças terão no entanto trazido por sua vez no reverso a tendência
para fazer evoluir para a cronicidade o tratamento psiquiátrico de muitas
afecções (v. a este propósito Lantéri-Laura, 1997).
4
É certo que este movimento não foi linear nem uniforme em todos os países, mas
complexo e com aspectos contraditórios, variando bastante a proporção ainda
ocupada pelos hospitais psiquiátricos públicos num leque de tipos de
assistência que se tornou mais aberto e diversificado. Para referir alguns
exemplos europeus, enquanto em Itália e no Reino Unido a desactivação dos
hospitais psiquiátricos foi bastante acentuada (correspondendo mesmo em parte
esta desospitalização a alguma despsiquiatrização da saúde mental e à afirmação
de outras terapias), em França e em Portugal o peso dos hospitais psiquiátricos
no sector da saúde mental é ainda bastante forte (Piel e Roelandt, 2001; AAVV,
2004). Em Portugal, na última década, tem sido especialmente flagrante o
contraste entre, por um lado, uma prática disponibilizando um alto número de
camas e concentrando profissionais nestas instituições e, por outro, o discurso
político e as directrizes legais que sublinham ano após ano a ideia da
desinstitucionalização dos doentes mentais, a psiquiatria de proximidade (Lei
da Saúde Mental Lei n.º 36/98 e Decreto-Lei n.º 35/99, AAVV, 2004-2006), e
anunciam o encerramento iminente dos maiores asilos psiquiátricos portugueses,
ainda não concretizado até à data.
5
Em Portugal esta expansão real (v. Cunha, 2002) não deixou nunca porém de se
acompanhar de declarações de responsáveis políticos e operadores judiciários
acerca da necessidade de descarcerizarão do sistema punitivo e de ampliação do
leque de penas alternativas, a mais recente das quais sendo a vigilância
electrónica.
6
Para este e outro tipo de papéis extraprisionais desempenhados na cadeia, v.
também Cunha (2002), pp. 203-240.
7
V. Cunha (2007 e, para uma análise mais em pormenor deste aspecto, 1994).