Home   |   Structure   |   Research   |   Resources   |   Members   |   Training   |   Activities   |   Contact

EN | PT

EuPTHUHu0003-25732007000400012

EuPTHUHu0003-25732007000400012

National varietyEu
Year2007
SourceScielo

Javascript seems to be turned off, or there was a communication error. Turn on Javascript for more display options.

Portugal e a Escravatura dos Africanos João Pedro Marques,Portugal e a Escravatura dos Africanos,Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2004, 160 páginas.

O livro de João Pedro Marques foi feito para portugueses em um duplo sentido.

Sua estrutura é assemelhada a um trabalho de síntese como, aliás, alerta o próprio autor cujo fim é claramente o de atualizar o público lusitano, acadêmico ou não. Seu objeto é o Portugal incrustado em territórios recônditos de certa cultura historiográfica, acuado pela dupla acusação de haver reintroduzido o cativeiro no Ocidente e de não tê-lo combatido adequadamente quando, séculos depois, quase todo o mundo o exorcizava.

Talvez se possa considerar que Portugal e a escravatura dos africanos representa uma espécie de «resposta nacional» a estas imputações. Que seja.

Entretanto, em termos mais amplos, os portugueses não estão sozinhos na contenda. A acompanhá-los está, por exemplo, o Brasil, onde o tráfico e a escravização ainda hoje operam como fantasmas em seu imaginário nacional. Ali, anualmente, produz-se um verdadeiro caudal de teses e dissertações nas quais, não obstante a eventual qualidade acadêmica, gastam-se rios de tinta em introduções transformadas em verdadeiras profissões de contra o cativeiro.

Como se fosse necessário, como se a escravidão moderna não passasse de tecido morto. (Na verdade, estas anacrônicas tomadas de posição têm o seguinte subtexto: todos são racistas, menos eu.) Em um plano mais profundo, o que incomoda a muitos autores de ambas as partes do Atlântico está em outro lugar na escolha que, em algum momento de suas histórias, Portugal e Brasil fizeram pela eterna manutenção do status quo.

Opção amalgamada pelo catolicismo contra-reformista, é certo, mas para a qual, de diferentes modos, o tráfico de escravos e a escravidão assumiram papel de suma importância.

Fronteira vitoriosa na luta contra o islamismo, desde o início a nação portuguesa se confundiu de tal modo com a igreja que, quando a Reforma cindiu a cristandade, a Península Ibérica naturalmente se transformou em bastião do catolicismo. Como se não bastasse, os ganhos derivados do comércio oriental e das riquezas americanas permitiram a Portugal levar ao extremo um tipo de sociedade fundado na afirmação de valores aristocráticos e na esterilização de grande parte da riqueza social. Em vez de capturar nesses traços elementos de um projeto arcaico tão legítimo quanto a opção pelo capitalismo, a historiografia anglo-saxã mas também a francesa e a alemã esmerou-se em reduzi-lo a mero «atraso». E um dos maiores signos dessa decadência radicaria no pioneirismo lusitano no tráfico de africanos e no seu afinco à escravidão quando, embalado pelo puritanismo abolicionista do Oitocentos, o Ocidente denunciava a ambos. Eis como a escravatura se imprimiu como nódoa na imagem que se tem dos portugueses.

Ironicamente, ao completarem-se duzentos anos da abolição do tráfico inglês (1807), os ganhos obtidos pela historiografia anglo-saxã permitem redefinir muito daquele ponto de vista que, nas palavras de João Pedro Marques, «pesadamente responsabiliza os lusitanos pela existência de instituições tão desumanas». Para tanto, o autor revela-se extremamente atualizado, demonstrando enorme intimidade com o que de melhor acerca da escravidão ocidental, com destaque para o manejo de obras como as de David Brion Davis, Philip Curtin, David Eltis, Joseph Miller, John Thornton, Paul Lovejoy, Ralph Austen, dentre outros.

A verdade, sustenta Marques, é que até o século xviii a cultura ocidental encarava a escravidão como uma muitas vezes dolorosa forma de promover o progresso humano. Evitemos mal-entendidos. Ninguém em consciência questiona a crueldade implícita em todo tipo de escravidão é absurdo pensar em bom ou mau cativeiro. Um exemplo: de acordo com o historiador norte-americano Joseph Miller, de cada 100 escravos apanhados em Angola, 36 morriam entre a captura e o traslado até a costa, 7 à espera do embarque nos negreiros, 6 pereciam durante a travessia oceânica e 23 feneciam nos primeiros anos de Brasil, ou seja, em quatro anos, 72% de mortalidade acumulada! Afiançando a escravização do africano estava certa visão depreciativa do negro, muito comum à cristandade, e que não era de modo algum apanágio apenas dos letrados ibéricos. Assim, se 55% dos norte-americanos adultos de hoje interpretam literalmente a Bíblia, imagine-se quão corrente era, na época moderna, associar os negros aos descendentes de aqueles que, por terem sido amaldiçoados por Noé, deveriam servir às proles de Sem (os asiáticos) e de Jafé (os europeus). Outros coevos juravam de pés juntos que, por derivarem de Caim, os africanos personificavam a própria maldição do Senhor. Não surpreende que os negros encontrassem no cativeiro a saída natural para o vício que os tecia. O aparecimento do Systema Naturae (1735), de Lineu, não melhorou as coisas inscreveu o homem no reino animal, é certo, mas reiterou a inferioridade do africano, indolente e astuto, frente ao europeu, delicado, perspicaz e inventivo.

Portugal não apenas não era a única sociedade europeia a encontrar na religião a justificativa para a escravidão moderna, como tampouco a inventou. Se o cativeiro declinava desde a derrocada de Roma, ganhou força no Mediterrâneo dos séculos xiv e xv, impulsionado por Gênova e Veneza, primeiro em suas plantações de cana-de-açúcar no Oriente Médio, depois em Chipre, Creta e na Sicília.

Destaca-se em semelhante processo o peso da crise do século xiv, cujo principal signo a enorme fratura demográfica resultou em panoramas razoavelmente distintos dentro da própria Europa. No norte impulsionou o incremento do exército de jornaleiros rurais e urbanos e a regulação de salários, além da introdução do trabalho compulsório para os indigentes. Na Itália e Península Ibérica, ao invés, incrementou a procura por escravos provenientes cada vez mais do mar Negro, sem contar os africanos e um número cada vez menor de mouros.

Portugal tampouco inventou o tráfico de africanos, que existia sobretudo para o mundo islâmico e, secundariamente, para o Mediterrâneo antes mesmo da descoberta da América 6 milhões de africanos foram exportados até 1500, seja por meio do Sahara, ou do mar Vermelho, ou ainda pelo Índico ( no século viii existiam escravos africanos em locais tão distantes como Java ou Cantão). A não ser como resultado de absoluta ignorância ou de mero posicionamento politicamente correto calcado, não raro, na perigosa idéia de que raças efetivamente existem , não como descartar a prioridade muçulmana no comércio de africanos antes mesmo de este representar papel importante para Portugal e, depois, para as Américas.

A demanda americana potencializou o tráfico, é óbvio, mas jamais poderia ser atendida na escala em que foi sem que a posse de escravos (e, como derivação, o tráfico) representasse um dos poucos meios legítimos de enriquecimento individual dentro da África tradicional. Ali, o escravo podia ser comercializado, arrendado, legado, doado, penhorado e confiscado, motivo pelo qual a duração e o volume das exportações de negros expressam o arraigo do continente ao cativeiro, onde o tráfico atendia à simultânea demanda interna e externa por braços e úteros. Em parte devido aos tênues limites que os separava de outras vítimas da dependência pessoal, ainda não se pode precisar a exata quantidade de cativos existentes nos antigos estados de Gana, Mali, Songai, Congo, Monomotapa, Ndongo e em outras regiões. Mas nada indica que ali a sua participação demográfica fosse inferior à detectada para os escravos da Grécia, de Roma ou do sul dos Estados Unidos.

Razão parece ter o norte-americano John Thornton, para quem foi a hipertrofia de instituições corporativas como a família, o clã e o próprio Estado o que transformou a posse de escravos no meio mais eficiente de legítimo enriquecimento individual do africano. Tratava-se de um contexto que fazia com que a riqueza e prestígio de um homem estavam mediados pelo número de dependentes e clientes que conseguisse possuir. Do que resulta terem sido as elites africanas elementos tão ativos quanto as européias e americanas no processo que tornava a escravidão a variável que amalgamava a Europa, a África e as Américas ao redor de um verdadeiro sistema atlântico e não meras vítimas passivas da tragédia implícita à escravidão.

O livro de João Pedro Marques ensina que a responsabilidade maior de Portugal para com o cativeiro e o tráfico ocorreu no século xix, quando razões de Estado impediram-no de, por muito tempo, associar-se à onda abolicionista que varria o Ocidente. Aqui cabe um parêntesis. Pois se é certo que, no século xix, o Ocidente transformou o comércio negreiro em excrescência, o racismo um dos seus pilares teria de esperar o pós-1945 para ver-se alçado à condição de crime contra a humanidade. E o motivo é simples: o combate sem trégua ao tráfico de escravos não procedeu à integral separação entre raça e cultura, razão pela qual muitas vertentes abolicionistas amaldiçoavam a compra e venda de pessoas e, simultaneamente, insistiam na inferiorização do negro. Mais ainda: algo dessa paradoxal tensão oitocentista ainda viceja no imaginário do homem ocidental contemporâneo, sobretudo quando reduz o tráfico negreiro à condição de problema exclusivamente europeu ou americano. Semelhante movimento pode até apaziguá-lo ante a crescente demanda por correção política, mas infantiliza o negro e banaliza o drama humano objetivo presente também no paternalismo que por séculos privou-o de dispor de si mesmo nas Américas.

Da junção entre semelhantes torções cobra viço a África mítica, alter ego da mãe preta cálida e inocente, ausente de hierarquias e indefesa frente à sanha atávica de mouros e cristãos à qual me referi anteriormente. Encobre-se assim o «trabalho sujo» a que se refere o historiador Jean Suret-Canale, representado pela captura e venda inicial de milhões de infelizes pelos africanos. Oculta-se igualmente a derivação: a renitência do cativeiro em vastas regiões de África, especialmente em países como Mauritânia, Mali, Sudão, Camarões e Nigéria, celeiros hoje de desgraçados de todas as idades sabe-se que no Níger um único homem detém pelo menos 7000 escravos e no Chade pode-se alugar uma criança pelo equivalente a US$ 8 mensais.

Mesmo no caso da resistência ao fim da escravidão, Portugal não se encontrava sozinho no século xix. A acompanhá-lo estava o Brasil, postergando o trauma, extraviando-se da modernidade e travando a nação no plano da paixão arcaica.

Nessa época, os milhões de africanos desembarcados nos portos brasileiros o foram por iniciativa quase exclusiva do capital mercantil residente na América portuguesa. É que, desde o século xviii, as comunidades traficantes de Rio de Janeiro, Salvador e Recife passaram a dominar o fundamental das etapas empresariais que garantiam o comércio negreiro, provendo-o de naus, de bens para o escambo, arregimentando tripulantes e garantindo o negócio por meio de suas próprias empresas seguradoras.

Em suma, de pequeno, o excelente livro de João Pedro Marques tem apenas o tamanho. São grandes as suas ambições, precisos os caminhos que as afiançam e cirúrgicas as suas conclusões. Resta torcer para que Portugal e a escravatura dos africanos contribua para que a relativa invisibilidade que se impôs ao negro em Portugal seja igualmente revertida.

Manolo Florentino


Download text