Os Sistemas Eleitorais: o contexto faz a diferença
Dieter Nohlen, Os Sistemas Eleitorais: o contexto faz a dife-rença, Lisboa,
Livros Horizonte, 2007.
Quando os fundadores do governo representativo estabeleceram os alicerces deste
modelo, por certo não imaginaram nem essa foi a sua preocupação central a
dinâmica do debate que se seguiria sobre os sistemas eleitorais. Mesmo Thomas
Hare, a quem devemos o Treatise on the Election of Representatives,como produto
mais acabado da machinery of representation, e Stuart Mill, sobretudo nas suas
Considerations on Representative Government,seguem a linha de Locke,
Montesquieu, Madison, Burke e Sieyès. O que é comum a estes autores é a
preocupação em construir um modelo de governo onde o povo pudesse governar
através de representantes; no fundo, um sistema particular de instituições
políticas enquanto mecanismo estrutural de tomada de decisão nas sociedades
complexas. Contudo, no quadro desta nova formulação sobre a teoria da
representação política, surgiria o debate seminal entre princípios de
representação (proporcional e maioritária), travado entre Stuart Mill e Walter
Bagehot, que estabeleceria as bases para compreender a essência dos sistemas
eleitorais, entendidos em sentido amplo, e que influenciaria a abordagem a este
fenómeno por parte de alguns dos actuais investigadores. Um deles é Dieter
Nolhen, que, desde muito cedo, orientou o seu trabalho, não sem alguma
controvérsia, para a compreensão dos sistemas eleitorais a partir da teoria da
representação política.
Seria fastidioso, mesmo em formato sintético, traçar aqui a evolução do debate
sobre os sistemas eleitorais e sobre as suas muitas formulações concretas. No
entanto, importa relevar o significativo desenvolvimento da aplicação de
sistemas eleitorais concretos, muito por força da terceira vaga de
democratização, bem como a dinâmica reformista ocorrida e nem sempre
concretizada em alguns países industrializados sobre aspectos estruturais ou
parciais dos seus sistemas. Estes factores, a que acrescem outros de natureza
política, têm contribuído para acelerar o ritmo de investigação sobre o tema,
ainda que persistam muitas divergências de cariz metodológico e conceptual que
marcam a sua natureza complexa e garantem a continuidade do debate, hoje mais
centrado nas suas consequências na vida política e na procura de ajustes
técnicos destinados à eventual terapia de alguns males da democracia
representativa moderna.
Em boa parte, a síntese deste debate encontra-se no mais recente livro de
Dieter Nolhen, Sistemas Eleitorais: o contexto faz a diferença, obra que
resume, numa linguagem acessível claramente devedora do esforço de Conceição
Pequito Teixeira, tradutora da obra do castelhano para português e organizadora
do índice , o essencial da discussão e que se resume ao que denomino de
traçado tridimensional do estudo dos sistemas eleitorais. Este traçado é,
sobretudo, uma sistematização de perspectivas observantes que orientam o
observador na compreensão deste subsistema do sistema político. A primeira
orientação é de natureza genérica, centrada na importância das instituições no
processo de decisão política; a segunda é de natureza específica, dedicada aos
efeitos dos sistemas eleitorais no sistema de partidos e noutras variáveis da
vida política; a terceira é de cariz metodológico e orienta-se para a análise
do tipo de relações causais entre uma variável supostamente independente e os
seus efeitos conhecidos.
A obra vale pelo seu todo, ainda que alguns capítulos repitam matérias tratadas
em secções precedentes, facto compreensível pela decisão do autor em
seleccionar textos publicados em anos recentes, a maioria decorrente de
conferências proferidas na América Latina, área onde é dos mais conceituados
especialistas. Mas vale, sobretudo, por tratar temas essenciais de uma forma
que se ajusta aos requisitos de aprendizagem de públicos pouco familiarizados
quer com aparelhos conceptuais mais elaborados requeridos à compreensão destas
matérias, quer com as ferramentas técnicas aplicadas à sua dimensão empírica.
É, por isso, uma obra aconselhada não só aos alunos das diferentes academias
que leccionam matérias desta natureza como a todos os interessados em
conhecerem melhor uma das instituições mais relevantes na configuração da
natureza da competição política pela via eleitoral.
Como bem assinala o autor, os textos podem ser lidos segundo as preferências
temáticas e subtemáticas do leitor. Isto significa que os textos assumem uma
autonomia, quer analítica, quer didáctica, o que só beneficia o leitor.
Contudo, a obra requer uma leitura transversal que assinale os eixos centrais
de reflexão sobre os sistemas eleitorais. Dessa leitura escolhi três temas que
me parecem constituir três aspectos cardeais para a compreensão dos sistemas
eleitorais. O primeiro respeita à necessidade de estudar os sistemas eleitorais
no quadro da teoria da representação política; o segundo trata de uma
controvérsia mais significativa entre os investigadores: a questão dos efeitos
dos sistemas eleitorais; o terceiro incide sobre os limites e sobre o alcance
das reformas eleitorais.
Princípios de representação política: o regresso aos clássicos
Uma boa parte do trabalho de Nolhen incide na procura de um enquadramento
conceptual que permita classificar os sistemas eleitorais de modo a evitar
confusões entre a essência dos objectivos da representação política e as muitas
propostas classificativas de base normativa ou empírica, na linha, por exemplo,
de Rae, Farrel, Reynolds e Sartori, que seguem critérios como o da fórmula
eleitoral, o da combinação de vários elementos técnicos, o da escala de
proporcionalidade ou da dinâmica dos sistemas eleitorais.
Considerando que a representação política marca a essência do desenho
institucional das democracias representativas e que as sociedades complexas se
configuram a partir do princípio da representação política electiva, as
interrogações de Nolhen assumem particular relevância ao elegerem como questão
cardeal o mesmo problema que levou à reflexão dos clássicos: o dos princípios
da representação.
O regresso à centralidade estruturante destes princípios é seguramente mais
ajustado porque faz prevalecer o critério dos fins dos sistemas eleitorais
sobre critérios de natureza técnica ou até política. O mesmo é dizer que, em
primeiro lugar, o sistema eleitoral responde a uma concepção sobre a
arquitectura do governo representativo aferida para o todo nacional (diferente
da concepção sobre a natureza do mandato representativo): representação
funcional versus representação social. A primeira corresponde ao objectivo da
formação de governos maioritários, enquanto a segunda passa pela garantia, na
medida do possível, da representação das forças sociais e dos grupos políticos
existentes numa determinada comunidade política.
A este propósito, vale a pena salientar que Nolhen considera que os princípios
de representação são antitéticos, isto é, não se combinam. Esta posição é
particularmente interessante a propósito do debate sobre os sistemas eleitorais
combinados: a representação proporcional e a representação maioritária,
enquanto princípios de representação política, não
podem articular-se. O que se pode é combinar elementos de um e outro princípio,
resultando daí os chamados sistemas combinados. Em suma, para a classificação e
avaliação dos sistemas eleitorais, o critério básico a ter em conta é o dos
princípios de representação, e não o das fórmulas de decisão (forma de
conversão de votos em mandatos).
Os efeitos dos sistemas eleitorais ou a trivialidade das «leis»
O tema dos efeitos dos sistemas eleitorais é, seguramente, o que tem gerado
maior controvérsia entre os investigadores, nomeadamente após a formulação de
Duverger, em 1951, de «leis sociológicas» a propósito dos efeitos dos sistemas
eleitorais nos sistemas de partidos.
O trabalho de Nolhen é particularmente elucidativo da necessidade de
estabelecermos uma rede teórica de fundo para compreender o problema dos
efeitos. É por isso que o autor entra em ruptura com a tradição analítica que
estabelece relações causais entre os sistemas eleitorais e o funcionamento de
alguns aspectos da vida política, em particular o sistema de partidos, na linha
de Duverger, Rae e Sartori, a quem atribui uma visão reducionista (nomológica)
de um fenómeno complexo.
Nolhen contrapõe uma abordagem multicausal ou circular (abordagem contextual),
filiada na tradição sistémica de análise dos fenómenos políticos, a partir de
uma concepção ampla dos sistemas eleitorais. Em face da natureza e dos fins dos
sistemas eleitorais, esta abordagem parece-nos mais adequada ao estudo deste
fenómeno, dada a necessidade de relativizar os efeitos em face da ausência de
comprovação empírica de muitos deles quando seguimos a tradição nomológica.
Regressando à tese de Nolhen, importa salientar que não é possível estabelecer
uma relação causal entre sistema eleitoral e sistema de partidos. O sistema
eleitoral é apenas um dos factores que actuam sobre a estrutura do sistema de
partidos. Por exemplo, a homogeneidade ou heterogeneidade social, étnica e
religiosa de uma sociedade fazem com que o mesmo sistema eleitoral tenha
efeitos distintos.
Na sustentação de Nolhen é particularmente evidente a preocupação em encontrar
um modelo explicativo abrangente. A resposta é dada pela centralidade que
ocupam os actores políticos e o contexto que marca o processo de decisão desses
actores. Neste âmbito, Nolhen regressa à génese da implementação dos sistemas
eleitorais, destacando que, em primeiro lugar, a escolha de um sistema
eleitoral é feita pelos principais actores políticos que acreditam retirar
vantagens nas relações de poder e que, em segundo lugar, essa decisão ocorre
num determinado ambiente social e político que se transforma.
Aos argumentos monocausais, Nolhen, na linha de Rokkan, sugere que a
compreensão dos efeitos se deve ancorar no aspecto genético dos sistemas
eleitorais, ou seja, nas circunstâncias históricas concretas que lhe deram
origem e na transformação dessas circunstâncias enquanto expressão das relações
de poder. Aqui o autor rompe com a lógica de relação entre variáveis
dependentes e variáveis independentes. É que os sistemas eleitorais e os
sistemas de partidos são um reflexo das estruturas sociais e políticas e, nesta
perspectiva, ambos devem ser considerados variáveis dependentes. Ou, se
quisermos, os sistemas eleitorais podem ser entendidos, quer como variáveis
dependentes, quer como variáveis independentes. Daí que sustente que são
limitadas as possibilidades de prever as consequências dos sistemas eleitorais
e que as previsões são apenas possíveis quando se consideram os contextos
sociais e políticos que conformam o ambiente em que opera um determinado
sistema eleitoral.
Não admira que Nolhen se filie na abordagem empírica de orientação histórica,
por oposição à abordagem normativa (excessivamente valorativa) e à abordagem
empírica de orientação estatística (centrada excessivamente no que é
mensurável). Com efeito, a primeira abordagem é mais aconselhada ao estudo dos
sistemas eleitorais concretos em contexto sócio-político. Por isso, o autor
também a usa no debate sobre as instituições políticas: as instituições contam,
mas a sua importância real e a sua idoneidade dependem da contingência política
(relações sistémicas entre estruturas sociais e políticas, memória histórica,
cultura política, desafios políticos, entre outros elementos do sistema
político).
A opção de Nolhen tem a particularidade de relativizar a importância do sistema
eleitoral ou, dito de outra forma, de o considerar importante no contexto de
outras variáveis políticas e sociais. O problema de fundo mantém-se: é crucial
distinguir entre efeitos específicos dos sistemas eleitorais (efeitos
mecânicos) e efeitos que resultam da sua confrontação com a realidade política
de uma determinada comunidade. É precisamente aqui que o contexto faz a
diferença. Isto implica uma mudança do paradigma analítico que exclui, por
exemplo, enunciados baseados em sociedades homogéneas e em sistemas de partidos
bem estruturados.
A caixa negra dos mixed-sytems ou as limitações das reformas eleitorais
Uma boa parte do trabalho de Nolhen está associada ao desenho e avaliação dos
sistemas eleitorais, bem como à sua reforma. Seleccionei este tema pela sua
relação com o debate (ou ausência dele) sobre a reforma do sistema eleitoral
português para a Assembleia da República, que tem somado confusões
metodológicas bastantes para justificar uma leitura atenta da presente obra de
Nolhen, aconselhada particularmente a decisores políticos e a deputados. Sendo
muitas as advertências do autor a este propósito, por limitações inerentes a
uma recensão, seleccionámos três.
Em primeiro lugar, o autor adverte para a necessidade de desmistificar a ideia
de crise de representação, muitas vezes confundida com crise de representação
sociológica, com crise de representação política ou mesmo com crise de
participação política. Como é bem sabido, no caso português, a justificação da
reforma encontra na suposta crise de representação o argumento de fundo para a
introdução de círculos uninominais. Não é de mais salientar que na nossa
história de justificação de reformas eleitorais abundam os argumentos desta
natureza, que chegam a ser contraditórios. Por exemplo, enquanto as alterações
do sistema para a Assembleia da República se justificam pela necessidade de
responder a uma crise de representação, as alterações ao sistema eleitoral
autárquico surgem como resposta a uma crise de governabilidade.
Em segundo lugar, Nolhen salienta que os sistemas eleitorais devem ser
desenhados basicamente por critérios funcionais e de poder. Embora aos
legisladores e sobretudo aos governantes convenham desenhos institucionais
politicamente mais favoráveis, não é de mais lembrar a impossibilidade de os
sistemas eleitorais cumprirem diferentes exigências ao mesmo tempo. Quer isto
dizer que uma modificação que vise aumentar a participação política ou a
proximidade entre eleitos e eleitores tem, em regra, custos noutras funções dos
sistemas. A este propósito, é particularmente elucidativa a referência de
Nolhen ao trade off entre as funções básicas dos sistemas eleitorais: ao
favorecer algumas funções minimizam-se certamente outras.
A prova pode encontrar-se na recente reforma eleitoral italiana, que não
conseguiu concretizar nenhum dos objectivos traçados pelos governantes.
Por último, Nolhen adverte para o facto de não existirem sistemas eleitorais
ideais, assinalando que a exportação de um sistema eleitoral, ou de alguns dos
seus elementos, de um país para outro tem as suas limitações. Quer isto dizer
que o bom funcionamento de um sistema num determinado país não determina igual
comportamento noutro país. Por exemplo, nada garante que o sistema alemão, em
parte inspirador da nossa reforma, tenha os mesmos efeitos em Portugal, o que
remete para o facto de a depositada confiança nos círculos uninominais para
curar os males da suposta crise de representação portuguesa não passar de uma
simples crença. Mais uma vez, o contexto pode fazer toda a diferença.
Manuel Meirinho Martins