Uma História de Regressos, Império, Guerra Colonial e Pós-Colonialismo
Margarida Calafate Ribeiro, Uma História de Regressos, Império, Guerra Colonial
e Pós-Colonialismo, Porto, Edições Afrontamento, 2004, 464 páginas.
Uma História de Regressos, Império, Guerra Colonial e Pós-Colonialismo, de
Margarida Calafate Ribeiro, traz-nos um olhar sobre a história de Portugal,
visto sobretudo a partir da produção literária — e também política —, através
da análise da relação simbólica entre Portugal e o seu império num período
alargado de tempo que vai desde os Descobrimentos até ao período pós-colonial.
Na introdução a autora justifica a escolha de alguns conceitos de Boaventura de
Sousa Santos, como o de "imaginação do centro". Em sua opinião,
"a dimensão simbólica da política portuguesa que conduz à elaboração de
uma imagem de Portugal como centro" realizou-se "através do
império", encobrindo uma "imagem portuguesa ligada à sua realidade
vivencial de periferia que `imagina o centro'" (p. 12). Essa imagem,
ponto de partida da análise, teria origem no período dos Descobrimentos, de que
"Os Lusíadassão o espelho textual", e que, no imaginário imperial
português, "se expande e transfere do Índico para o Atlântico e para as
visões do Quinto Império do Padre António Vieira" (ibid.). A autora
utilizou e adaptou a expressão "imaginação do centro", e o conceito
nela contido, e rebaptizou-a por "o império como imaginação do
centro", que é o conceito condutor do livro. Por outro lado, inspirou-se
no pensamento de Eduardo Lourenço sobre a identidade portuguesa "tendo
como epicentro de análise o registo literário" (p. 15). Na sua abordagem
foram ainda importantes o conceito clássico de translatio imperii, isto é,
"a ideia de que o centro do império […] se vai transferindo, ou
`transladando', de um lugar para o outro" (ibid.), e o que se tem
designado por teoria ou estudos pós-coloniais.
O livro divide-se em quatro capítulos. No primeiro analisam-se as imagens de
centro e as imagens de periferia, enfatizando-se dois pontos-chave:
"Portugal, a Europa e o centro" e "Portugal, o império e o
centro". Foram as descobertas que trouxeram o levantamento da questão da
identidade num encontro do qual saiu valorizado o europeu e uma Europa
encarregue de pôr em acção uma "missão civilizadora" cristã.
Posteriormente, na "Era dos Impérios (1875-1914)", como a designou
Eric J. Hobsbawm, o olhar europeu sobre África foi alargado e aprofundado pelas
teorias científicas do século xix que tentaram organizar, sistematizar e
hierarquizar todos os seres humanos, inclusivamente através do racismo
científico. Como resultado, a diferença entre "eles" e
"nós" foi hiperbolizada e tal justificava um olhar da Europa sobre
a África. Como refere a autora, a África deu à Europa a "dimensão
imperial moderna de que ela necessitava" e o "lugar ideal para onde
transferir os conflitos que à data se faziam sentir" (pp. 23-24).
Por toda a Europa oitocentista surgiram sinais do "competitivo
imperialismo" e uma literatura que exemplificava a celebração dessa
centralidade. Neste contexto, porém, Portugal era "uma nação imperial
decadente e esvaziada, vítima da sua dependência do Brasil, entretanto perdido,
e de um país distante da Europa", que surgia "num espaço de
fronteira […] entre a sua herança histórica espalhada pelo mundo e a periferia
europeia" (p. 26).
Na parte intitulada "Portugal e a imagem de centro", Os Lusíadas
são assumidos como "o discurso fundador da identidade de uma pátria em
expansão" e o símbolo da "gloriosa voz onde a imagem nacional e a
imagem imperial se fundem" (p. 40). No que respeita às "imagens de
Portugal imaginando o centro", destaca-se a expedição do rei D. Sebastião
a Marrocos e a derrota de Alcácer-Quibir. Segundo a autora, é este episódio que
traz "o maior fantasma e a maior fantasia da mitologia portuguesa"
e nele se concentra "a mais profunda imagem de Portugal como periferia —
na imagem da nação chegada ao fim — e a mais exorbitante imagem de centro, pela
possibilidade de reimaginar a nação desejada, consubstanciada na miragem de
`voltar a ser'" (p. 41). Entre as "imagens de periferia"
surgem também a dependência dos ingleses e a mudança do centro imperial para o
Brasil.
No segundo capítulo, intitulado "Identidade, imagem e império africano no
imaginário político-literário dos séculos xix-xx"
1
, a autora reflecte sobre o conceito de "império como imaginação do
centro", desde "o Portugal esvaziado entre o Brasil e a África até
às novas rotas da imaginação do centro traçadas pelo isolamento estado-
novista" (p. 19). Dos textos mais celebradores aos mais pessimistas,
todos vão tentando preencher uma lacuna, que a história tinha deixado, à custa
dos imaginários imperiais. Com o virar para África procurava-se criar outro
império que poderia vir a ser mais poderoso do que o do Brasil. Contudo, entre
outros factores, a África era "objecto de disputa entre Portugal e a sua
ex-colónia da América do Sul, que há muito dominava os territórios de Angola e
controlava alguns portos de Moçambique" (p. 56). Neste contexto surgem
discursos, sobretudo elaborados por historiadores e escritores, acerca da
existência ou não da nação portuguesa. Tanto a ideia de Alexandre Herculano de
que Portugal era uma colónia do Brasil, retomada depois por Oliveira Martins,
como a "irrealidade e a falta de empenho evidente" (p. 63) dos
políticos no projecto africano, retratadas por Eça em Os Maias (1888), assim
como os males da escravatura e o equacionamento da venda de colónias,
contribuíam para uma imagem de Portugal como periferia europeia.
Apesar de considerada por alguns um "império teórico", a África vai
tornar-se alvo de estudos e de viagens de exploração, promovidos pela Sociedade
de Geografia de Lisboa (SGL), dos quais resultaram várias publicações e
debates. Neles vai denotar-se "a recuperação da imagem de Portugal como
centro, via império africano" (p. 76). Contudo, figuras como Oliveira
Martins, entre outros, perceberam que Portugal só seria uma potência em África
se o fosse na Europa. Para os homens da geração de 70, o ultimatum (1890) foi a
"grande humilhação necessária para acordar a nação de um sono de três
séculos" (p. 86) e "a razão da existência portuguesa era ter
sido" (p. 99). Na p. 98 a autora fala pela primeira vez directamente em
"regressos" e começamos a perceber melhor a razão do título do
livro. O regresso de Gonçalo, personagem principal de A Ilustre Casa de
Ramires,de Moçambique é "um regresso das terras imperiais ao Portugal
metropolitano, mas também um regresso à terra original, provinciana, e aos seus
valores sociais e políticos arcaizantes".
Durante o período do Estado Novo assiste-se a uma afirmação da "aventura
imperial portuguesa" e da "vocação ecuménica cristã dos portugueses
para civilizar e evangelizar" (p. 120). A divulgação da imagem de
Portugal como uma potência colonial é promovida nos manuais escolares e através
de iniciativas como as da Agência Geral das Colónias (AGC) e da SGL, os filmes
e os documentários, a rádio, os concursos literários, os cruzeiros de
estudantes às colónias e a participação em exposições e congressos nacionais e
internacionais. Contudo, apesar desta propaganda, Portugal não se tinha tornado
a terceira ou a quarta potência mundial tantas vezes apregoada, embora fosse no
império que se considerava estar inscrita a grandeza da nação. A Exposição do
Mundo Português (1940), exemplo da criação de uma "comunidade
imaginada", reflectiu essa cumplicidade e, como referiu a autora, a
"legitimação das políticas do presente pela evocação do passado"
(p. 127). Para Salazar, essa exposição era uma demonstração do que era
"ser português".
Também através da literatura, e de alguns contos e poemas, se procurou divulgar
"o mundo português", normalizando-o, ao instituir um concurso
literário a cargo da AGC. Até aos anos 50 os romances premiados tinham algumas
vezes pouco valor literário, mas representavam a reencarnação da ideologia
salazarista. Neste conjunto, porém, a autora destaca a obra de Castro Soromenho
pelo facto de as suas descrições corresponderem a "uma outra África,
desconhecida do mundo branco", onde as personagens "agem, pensam,
sentem, vivem" e onde os africanos não fazem apenas parte do cenário da
paisagem (p. 142). Com a obra Natureza Morta de José-Augusto França (1949) a
África optimista do Estado Novo é também desmistificada, nomeadamente com as
críticas aos colonos que iam à procura de oportunidades em África.
As mudanças vieram sobretudo no início dos anos 50. Primeiro, com a revisão
constitucional de 1951, que revogou o Acto Colonial, e, depois, com a
integração das teses luso-tropicalistas de Gilberto Freyre. Portugal deixa de
surgir como um território constituído pela metrópole e pelas colónias, um
conjunto ocupado por várias raças distintas entre si, para passar a ser
descrito como um território pluricontinental, onde as colónias se designam por
"províncias ultramarinas", e plurirracial, deixando a mestiçagem de
ser vista como uma ameaça e passando a ser encarada como necessária e
legitimadora da colonização portuguesa. Porém, o luso-tropicalismo foi mormente
o discurso "de salvação de uma ideologia e de um regime" (p. 165) —
os impulsionadores da guerra que trouxe o fim de uma ficção e o início do
caminho de regresso do império imaginado.
No terceiro capítulo é dada voz a textos que evidenciam o lado da história
trágico-marítima dos Descobrimentos. Para a autora, José Bação Leal, Assis
Pacheco e Manuel Alegre parecem "sintetizar as várias maneiras como foi
possível aos poetas da `hora urgente' dizer o que se passava em África,
mostrando que o centro estava a deslocar-se para a periferia" (p. 230).
As margens e os naufrágios apresentados vão ser as imagens-epitáfios que
constituem o prenúncio da queda do império e o desastre da guerra. O
"centro" começou a ser questionado e iniciou-se o fim de um tempo,
de um império, de uma identidade nacional e de uma moralidade nacional e
familiar. Emerge alguma literatura sobre a guerra colonial e alguns textos de
autores ligados aos movimentos de libertação das colónias. Os sectores
estudantis manifestam-se, pondo em causa o ensino, o regime, a vocação
imperialista e a guerra. Nos anos 60 e inícios dos anos 70 muitos jovens
portugueses tiveram de optar entre a guerra e o exílio/emigração, uma geração
ilustrada pela poesia de Manuel Alegre como "destinada à exportação: da
universidade para a guerra ou para o exílio, da pobre aldeia para os matos
africanos ou para os bidonvilles de Paris" (p. 194).
Com a guerra colonial aumentam os regressos ao cais de partida, embora por
diferentes motivos (hospital psiquiátrico, prisão, reabilitação, cemitério,
entre outros). Não era possível uma aproximação institucional à Europa enquanto
não houvesse uma reforma democrática e uma resolução pacífica da guerra, o que
só aconteceu com o 25 de Abril. Resta dizer que o colonialismo não foi um
movimento de sentido único. Tanto os países colonizadores como os países
colonizados foram mutuamente influenciados e reestruturados. Contudo, é só a
partir da descolonização e do país regressado à origem que se começam a traçar
as novas relações. Após 1974 surgem textos onde de novo se explora a questão da
identidade portuguesa. E seria no "regresso das margens" que essa
questão se iria colocar de forma mais diversificada. Estamos a falar dos
"emigrantes chegados de países europeus", dos "soldados
vindos das ex-colónias", dos exilados que regressaram do estrangeiro e
dos "retornados" (p. 235). Para todos os "regressados",
Portugal era um "país imaginado" (ibid.).
Posteriormente, a "imaginação do centro" deixa de ser feita através
do império para ser feita através da Europa. O período pós-colonial passou por
várias fases: a nova lei da nacionalidade (1981), que privilegiava os laços
sanguíneos, a entrada de Portugal na Comunidade Europeia (1986) e a criação e
institucionalização da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (1996). Num
mundo agora globalizado, Portugal ia negociando a sua posição. Foi nesse
contexto que as histórias do passado e o seu ajuste de contas no presente foram
revelados através da literatura, um meio privilegiado de exorcizar os
fantasmas, de libertar as angústias e de denunciar situações trágicas, que teve
a "genérica função de reparação moral, individual e colectiva" e
que ligou os "processos de desterritorialização e
reterritorialização" (pp. 251-253). Segundo a autora, as narrativas de
guerra e as de regresso são "elementos de reflexão sobre o modo europeu/
português de estar em África" e são "indispensáveis para entender o
modo de estar hoje em Portugal" (p. 256). Por essa razão, e tendo o
cuidado de demarcar o seu trabalho de estudos anteriormente realizados, dedica
o quarto e último capítulo, intitulado "Leituras", à análise de
trabalhos literários sobre a guerra colonial publicados depois do 25 de Abril.
Os textos escolhidos são Os Cus de Judas, de António Lobo Antunes (1979),
Autópsia de um Mar de Ruínas, de João Melo (1984), Jornada de África, de Manuel
Alegre (1989), e A Costa dos Murmúrios, de Lídia Jorge (1988). Este é o
capítulo mais longo, mas também o mais descritivo, no qual a autora vai
contextualizando, quando necessário, e incluindo alguma teoria, mas cujo
principal objectivo parece ser o de mostrar o conteúdo dos textos que denunciam
o modo como o "Portugal-centro-periferia é desfeito, mantido ou
reimaginado" (p. 19). No entanto, vai recorrendo a outros autores que já
reflectiram sobre estas obras e reconhece o contributo de tais leituras para a
sua análise. Ao mesmo tempo estabelece comparações entre as quatro obras. A
autora detém-se mais tempo com A Costa dos Murmúrios, que relata a vida das
mulheres na guerra, não no quartel nem no mato, mas em casa ou no hotel, numa
atitude, sobretudo, de espera. Todavia, esta é parte do livro que tem mais
ritmo, revelando um texto que pretende "dar visibilidade ao lado
invisível da história, aparentemente traçada pelos homens, mas onde está a mão
cúmplice ou subversiva da mulher" e aos vários murmúrios, "pela voz
de mulheres" (pp. 371-375). Todas as quatro obras terminam de uma forma
nostálgica e melancólica, onde a África surge como o espelho de um Portugal
limitado e amordaçado. O império estava a perder-se e o corpo desmembrado
chegava, finalmente, a casa.
As narrativas de regresso redimensionam então o "último naufrágio
português" e levam-nos a pensar sobre um novo discurso de identidade.
Porém, a própria identidade portuguesa pós-colonial tem vindo a definir-se num
jogo de equilíbrios entre os destroços do império e os caminhos que se abrem
com a Europa e, como temos assistido ultimamente, mesmo em termos económicos e
políticos, é sobre algumas continuidades imperiais que assenta o projecto
europeu e a sua relação com a África. Na verdade, o tema do
"império" continua a fazer parte das conversas e dos discursos de
muitos portugueses, assim como das agendas dos investigadores. Além disso, no
âmbito dos estudos sobre a história recente de Portugal, e não só, é um tema
incontornável.
Da leitura do texto registámos alguns pequenos lapsos. Por exemplo, apesar de
na p. 68 referir que a obra O Brasil e as Colónias Portuguesas é de 1881, na p.
80 refere que foi publicada em 1880, o que está correcto, pois é essa a data
original. Ainda a respeito de Oliveira Martins podia ter destacado a diferente
visão deste historiador relativamente às colónias na década de 80 e na década
de 90 do século xix. Quanto ao modo como apresenta o argumento — o império e a
sua intransigente manutenção foram sempre o escape a uma vivência de periferia
—, a autora parece, por vezes, partir do pressuposto da condição de periferia e
de ideias que remetem para a melancolia e para a perda, parecendo conduzir o
seu trabalho em busca de provas para demonstrar essas pressuposições. Para além
de ao longo do texto concordar quase sempre com o que dizem os autores que
estudaram os temas que analisa, alguns são equiparados a outros, referidos de
forma idêntica ou como se todos estivessem ao mesmo nível de abordagem. Deveria
ter existido uma maior preocupação em diferenciá-los, pois, embora todos
escrevam sobre as suas preocupações relativamente a Portugal, são muito
diferentes entre si: romancistas, políticos, poetas, historiadores, etc. Isso
acontece, por exemplo, na p. 88 e também na p. 100, onde compara uma obra
literária (que mistura realidade e ficção) com um estudo histórico, baseada nos
dados empíricos que ambos lhe fornecem. O que alguns deles têm em comum,
sobretudo aqueles a que se refere no segundo capítulo, mas não todos, é a
evidência de quererem fazer ressurgir Portugal pela sua vocação imperial. Dado
o tema do trabalho, poderia ter existido também uma definição de memória. Ao
longo do texto são utilizadas várias expressões poéticas e percebemos que são a
poesia e a literatura as grandes inspiradoras do texto e que autora tem um
conhecimento profundo das mesmas. Essa aura literária, aliás, cativa-nos para a
sua leitura. No entanto, o texto vai algumas vezes atrás para chegar ao fim e
às conclusões. Por essa razão, talvez pudesse ser um pouco mais sucinto. A sua
extensão sugere--nos ainda que deveria ter constado do trabalho um índice mais
pormenorizado dos pontos a tratar.
Como pontos fortes do livro destaca-se a escolha do tema — a história do
império colonial e o pós-colonialismo —, pois, apesar de não existir um
consenso científico relativamente à leitura de "periferia" que a
autora faz, trata-se de um tema que continua a suscitar discussões. É de
salientar a exaustividade e a diversidade dos materiais analisados. A
bibliografia é vasta e totalmente pertinente. O texto está bem escrito, numa
linguagem acessível, não hermenêutica, seguindo uma escrita escorreita. A forma
correcta como a autora utiliza os dados históricos, a literatura e alguns
conhecimentos das ciências sociais torna este trabalho de grande utilidade para
qualquer dessas áreas. Será uma leitura fundamental para investigadores e
estudantes devido à sua abrangência, à forma como está contextualizado
historicamente e às suas interpretações que beneficiaram dos conhecimentos das
ciências sociais, contribuindo para melhor elucidar alguns temas que, embora já
conhecidos e tratados noutros livros, continuam a ser debatidos.
Patrícia Ferraz de Matos
Doutoranda no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
1
É este o título que figura no índice e na p. 55. Porém, na introdução o título
é citado de forma diferente: "O império como imaginação do centro —
identidade, imagem e império africano no imaginário político-literário do final
do século xix e do século xx" (p. 19).