Home   |   Structure   |   Research   |   Resources   |   Members   |   Training   |   Activities   |   Contact

EN | PT

EuPTHUHu0003-25732009000100002

EuPTHUHu0003-25732009000100002

National varietyEu
Year2009
SourceScielo

Javascript seems to be turned off, or there was a communication error. Turn on Javascript for more display options.

Religião e pertença em discursos europeus: conceitos e agentes muçulmanos

Como é que os muçulmanos na Europa respondem aos imperativos dominantes de "integração, lealdade e pertença" na esfera pública? Como é que os intelectuais muçulmanos encaram as práticas da generalidade dos muçulmanos europeus? E, no contexto das ciências sociais e dos discursos islâmicos, quais são as tendências discursivas respeitantes aos tópicos do "transnacionalismo muçulmano" e da diáspora (hoje dissociado de conotações religiosas)1? O presente artigo procura abordar estas questões, analisando os contributos de dois dos mais importantes autores muçulmanos que definem a situação das minorias muçulmanas através desta prática discursiva2.

No centro da análise situam-se os trabalhos de dois intelectuais muçulmanos que cresceram na Europa e que leccionam e investigam em faculdades de ciências humanas e sociais: Tariq Ramadan (Suíça e Reino Unido) e S. Sayyid (Reino Unido). Enquanto a influência dos "concepts of space and belonging" de Ramadan ultrapassou o contexto francófono, e até mesmo europeu, encontrando entretanto eco em comunidades de jovens muçulmanos politicamente activos, Sayyid exerce uma influência decisiva no discurso anglo-muçulmano, efectuando a junção dos estudos pós-coloniais (postcolonial studies)e da crítica de esquerda (critical left) com conceitos islâmicos.

A observação de que esta metalinguagem difere da autopercepção dos sujeitos em causa, que aqui são apresentados através de amostras de entrevistas, pode parecer trivial numa primeira abordagem. De forma alguma sugere uma "particularidade muçulmana", mas antes o peso que, em geral, as classes médias instruídas neste caso, educadores e educandos têm nos processos de construção da subjectividade colectiva (Hroch, 1978; Siems, 2007).

Entretanto, o que torna esta dinâmica interessante é o facto de estarmos perante representantes de uma nova geração de intelectuais euro-muçulmanos3que analisam as novas condições sociais e as práticas de minorias religiosas heterogéneas em termos culturais e etno-linguísticos, não através das tradicionais categorias islâmicas do foro teológico e jurídico, mas antes recorrendo à linguagem do discurso secular e às suas noções de transnacionalidade e diasporicidade 4 .

No âmbito dos estudos comparados de religião existe um consenso alargado relativamente à noção de que a observação de religiões e a formulação de teorias de história religiosa se repercutem nos processos culturais 5 , notando-se igualmente uma crescente "atenção prestada às estruturas discursivas em que os estudos comparados de religião encontram as suas temáticas" (Seiwert, 2003). O mesmo é sobremaneira válido para as disciplinas das ciências sociais, e daí que a motivação do presente artigo consista em demonstrar de que forma os discursos dominantes podem influenciar o processo de desenvolvimento do respectivo tema de investigação.

Os discursos sobre os muçulmanos na Europa num primeiro relance Desde a Segunda Guerra Mundial que imigrantes, populações pós-coloniais (Sayyid, 2006, pp. 1-10) e refugiados vindos de sociedades maioritariamente islâmicas têm demandado a Europa e nela se têm estabelecido. Contudo, até meados da década de 80, a sua filiação religiosa apenas suscitava a atenção de um pequeno número de sociólogos da religião e de membros das igrejas (Nielsen, 1992, p. 2). Entretanto, nos últimos trinta anos, nos discursos e cenários de investigação em ciências sociais relacionados com migrações, os muçulmanos na Europa têm sido mais insistentemente citados do que estratos sociais representativos de outras religiões não cristãs, como é o caso dos hindus e dos siks. A maior parte dos académicos que iniciaram as suas investigações sobre o islão e os muçulmanos antes do 11 de Setembro parecem estar cientes do imperativo de reflexão autocrítica nas universidades sobre as consequências deste momento decisivo para as instituições de investigação. Os discursos políticos e públicos, bem como a situação das minorias muçulmanas que constituem o tema dos nossos debates, modificaram-se (de forma mais visível em contextos urbanos).

Enquanto os momentos decisivos de 1989 [fim da guerra fria, o caso Rushdie, a primeira "polémica do véu" (affaire du foulard) em França] e os acontecimentos políticos de dimensão mundial nos primeiros anos da década de 90 ("renascimento religioso", Bósnia, Saddam no Kuwait) deram origem a novos centros de interesse para a investigação num campo que antes era relativamente marginal, não dúvida de que o 11 de Setembro e o novo contexto histórico marcado pela "guerra ao terrorismo" suscitaram um enorme interesse por parte do público e das instituições de investigação relativamente a fenómenos ligados com o islão. Qualificada como "de interesse prioritário", a vigilância dos muçulmanos e da sua vida comunitária, especialmente em contextos minoritários, passou a ser frequente e oficialmente anunciada pelos políticos, através dos media, e pontualmente mencionada pelos serviços secretos.

Neste contexto, as conotações do atributo "transnacional" também se alteraram parcialmente. Enquanto algumas abordagens críticas transnacionais procedentes de instituições de investigação contribuíram para a percepção de que os migrantes internacionais e as suas comunidades não devem continuar a ser olhados como "anomalias, mas sim como manifestações de um mundo cada vez mais globalizado" (Al-Ali e Khoser, 2002, p. 3), a retórica da "guerra ao terrorismo", ao sugerir a ideia de ameaça, tende a fazer reviver a conotação negativa do transnacionalismo quando este termo é associado aos muçulmanos.

Contudo, com especial destaque para os autores que tinham contribuído para o tema antes do 11 de Setembro, as ciências sociais empíricas e os estudos islâmicos dispõem hoje de um amplo leque de trabalhos sobre o tópico dos muçulmanos na Europa6.

Nas décadas de 80 e de 90, a principal preocupação dos estudos académicos dedicados ao islão e aos muçulmanos na Europa centrava-se na institucionalização do islão. Pretendia-se compreender o lugar dos muçulmanos, logo do islão, no espaço público das sociedades ocidentais, incluindo o estatuto jurídico do islão (por exemplo, Shadid e van Koningsveld, 1991, 1996a, 1996b e 2002, e Metcalf, 1996). Para além da contínua atenção prestada à "mudança religiosa", à educação islâmica e ao papel dos actores sociais (por exemplo, mulheres, jovens e artistas), recentemente desenvolveu-se outra linha de pesquisa, nela se notando a influência de novos tópicos no estudo dos fenómenos sociais e culturais, designadamente devido ao desenvolvimento teórico dos estudos transnacionais e da diáspora. Ao interpretarem as questões da migração e da globalização, estas teorias têm também sido aplicadas aos muçulmanos e ao islão. Os trabalhos inovadores devem- se a Mandaville (2001), a Roy (2003), a Allievi e Nielsen (2003), a Grillo (2004) e a Bowen (2004). Estas perspectivas tentam desenhar as actuais dimensões europeias do islão e dos muçulmanos, designadamente quando cruzam as fronteiras dos estados e das cidadanias.

Movimentos transnacionais islâmicos, tais como a tablighi jamaat,a rede de migrantes muçulmanos, e a umma, a comunidade islâmica mundial que vai sendo construída no dia-a-dia, são apenas três exemplos que revelam até que ponto é importante a metáfora do transnacionalismo para compreender o islão contemporâneo e o modo como é vivido e exteriorizado pelos muçulmanos na Europa. Aspecto importante, estes estudos sugerem a distinção entre, por um lado, o islão transnacional, incluindo escolas de pensamento, redes e discursos que explicitamente se referem ao islão mundial e ao islão como sistema e religião, e, por outro, as vivências e as práticas diárias de pessoas que, sendo muçulmanas, passaram pela experiência da migração (por exemplo, Al-Ali e Khoser, 2002, Salih, 2002, e Bryceson e Vuorela, 2002). Naturalmente, e porventura seria desnecessário dizê-lo, as muito diversificadas ligações transnacionais, experiências e práticas destas pessoas não devem ser, necessariamente, vistas como uma espécie de "particularidade muçulmana", nem, muito menos, como uma "prática islâmica" específica. Os contributos para esclarecer o que é que o transnacionalismo efectivamente significa para aqueles que o vivem baseiam-se, fundamentalmente, nas pesquisas etnográficas provindas de antropólogos sociais e culturais.

Transnacionalismo e diáspora muçulmana: breves impressões recolhidas no terreno A quem se tem dedicado nos últimos quinze a vinte anos, no âmbito dos estudos sobre migração, ao estudo de minorias religiosas, culturais, étnicas ou definidas de qualquer outro modo pareceu quase inevitável conceber a sua linha de investigação à luz dos conceitos actuais e dos discursos dominantes. Na Europa, desde finais dos anos 80, tais conceitos compreendiam, por exemplo, o multiculturalismo (Rex, 1996; Modood e Werbner, 1997; Kürsat-Ahlers et al., 1999), o "crescimento/regresso de religiões" (Kepel, 1991; Pollack, 1997 e 1998) e "o próprio e o outro" (Bielefeld, 1991). Com o avanço dos anos 90, surgiram as ideias de etnicidade (Stender, 2000; Roy, 2000), de diáspora (Anthias, 1998; Baumann, 2000; Cohen, 1998), de "identidades colectivas" (Hall, 1990; Castells, 1997) e de transnacionalismo (Vertovec, 1999; Al-Ali e Khoser, 2002).

No meu caso, depois de efectuadas as primeiras entrevistas no extenso terreno dos "muçulmanos na Europa" 7 , começaram a surgir algumas dúvidas: a experiência quotidiana dos meus "sujeitos de estudo" seria efectivamente a de um membro de uma diáspora ou comunidade transnacional? E isto apesar de serem raros os meus primeiros interlocutores, masculinos ou femininos 8 , que aplicavam esses conceitos a si próprios, ou cuja linguagem se inseria num discurso académico. As determinantes do seu quotidiano e a sua correspondente reflexão em pouco ou nada deixavam transparecer as "formas de consciência" hoje descritas como diáspora 9 ou transnacionalidade. Ou então, no caso de a definição destes conceitos ser tão abrangente, revelavam que tinha sido efectuada, quase arbitrariamente, uma selecção de características determinantes.

Relativamente às entrevistas, tudo dependia do nível de formação dos entrevistados: os responsáveis por comunidades islâmicas e as pessoas formadas da classe média tinham ouvido falar de conceitos não arábes e não islâmicos, mas com diferentes conotações o que também acontece nas universidades ocidentais. A maior parte dos interlocutores negava, umas vezes com as mesmas razões, outras vezes por razões totalmente diferentes, a aplicação dos conceitos de diáspora ou de transnacionalismo ao "islão" ou à sua comunidade. As razões de vários interlocutores muçulmanos decorriam da defesa do conceito islâmico de universalismo, de acordo com o qual a umma, a comunidade mundial dos crentes, tal como é entendida actualmente, representa a comunidade transnacional por excelência e avant la lettre 10 .

No que respeita às experiências quotidianas das pessoas em questão, o exemplo de uma entre muitas 11 famílias muçulmanas portuguesas que mantêm laços familiares entre Moçambique, Portugal e o Reino Unido designadamente viajando, comunicando e, por vezes, fazendo comércio através das fronteiras em contextos pós-coloniais sugere o entendimento de que os horizontes transnacionais constituem um tipo de recurso de capital social e que as ligações e as práticas transnacionais (enquanto elementos marcantes da biografia de uma família) 12 são normais na vida diária13. Num debate com jovens deste grupo específico de muçulmanos portugueses (que em Portugal podem ser considerados representativos do islão público) acerca das suas atitudes relativamente à mobilidade e do seu auto-conhecimento em comparação com outros jovens lisboetas (sem experiência de migração nas suas histórias familiares), uma estudante universitária fez a seguinte observação reveladora: É certo que somos transnacionais, porventura um pouco mais do que a maioria dos portugueses, mas não necessariamente mais do que aqueles [não muçulmanos] cujos pais também provêm das colónias ou que foram trabalhar para a França ou para outro país europeu. Também não somos os únicos que estamos interessados na política internacional e na ajuda humanitária, ou contra a guerra no Iraque. De alguma maneira tornámo-nos transnacionais, mas isso não foi de propósito....

14 A relevância desta observação reside no modo como a entrevistada encara a sua "transnacionalidade", que é vista como uma vantagem e como algo normal, de forma alguma em oposição ou contra o seu sentimento de pertença nacional, sendo esta claramente portuguesa (por nascimento, nacionalidade ou socialização), apesar das diferenças relativamente à "maioria da população" em termos de história de migração (populações das ex-colónias provenientes de Moçambique), de filiação religiosa (islão) e de características étnicas (origem indiana). A referida observação traduz uma espécie de senso comum deste grupo de jovens portugueses muçulmanos, cujos pais eram nacionais portugueses quando Moçambique se encontrava sob o domínio colonial e que se vêem a si próprios, não como imigrantes, mas sim como "retornados", tal como outros portugueses não muçulmanos e não etnicamente identificados 15 . Segundo um inquérito quantitativo realizado em 2006, 89% destes jovens muçulmanos aderiam à noção de "sentir-se em casa" em Portugal, percentagem comparável aos 88% dos jovens portugueses não muçulmanos 16 . Mais uma vez se torna claro que pessoas com horizontes, práticas e experiências transnacionais não são "necessariamente sujeitos desinseridos que conduzem as suas vidas num "espaço fluído", sem limites definidos e desenraizado"; pelo contrário, são actores sociais que "estabelecem fronteiras e fundam identidades" (Smith, 2002, p. XIV).

Neste aspecto, a observação da estudante universitária introduz e corrobora o principal argumento do presente artigo, nomeadamente o de que uma linguagem discursiva académica (neste caso, o termo "transnacionalismo") fornece e/ou sugere instrumentos e marcadores para a auto-reflexão e iden tidade em pessoas da classe média. Quando pontualmente adoptados, estes termos constituem autodescrições, enquanto neste tipo de pêndulo entre a investigação social e o terreno, a academia(na minha humilde impressão), na sua produção de linhas discursivas, corre o risco de sobrestimar a relevância de e a consciência sobre esses elementos no constante processo de formação da subjectividade híbrida colectiva.

Em relação à diáspora, ficou patente que entre os membros da comunidade da "primeira geração" existia o receio de se estabelecerem paralelismos entre a história do judaísmo e a dos muçulmanos actualmente espalhados pelo mundo. Na maior parte dos casos, as conversas sobre a diáspora conduziam à história islâmica do direito e à problemática da situação das minorias, para as quais não existe conceito teológico ou jurídico islâmico, mas sim exemplos históricos, como o do al-Andaluz, depois da Reconquista 17 .

Os conceitos analíticos tendem sempre a ocultar e a anular diferenças a lógica da generalização é-lhes inerente. O que é interessante nestas tendências discursivas é, antes de mais, a discrepância entre a linguagem das autoridades tradicionais e as vozes muçulmanas actuais, provocada pela emancipação de conceitos restritos que não reflectem as realidades societais.

A ausência de uma situação diaspórica na teoria Apesar de hoje em dia quase um terço dos muçulmanos viver em circunstâncias equivalentes, isto é, fora do "território do islão", no sentido estrito, a situação das minorias que se encontram longe dos países centrais islâmicos, ou seja, a presença de muçulmanos em territórios sujeitos ao direito não islâmico, é ainda estigmatizada por círculos conservadores de visão normativa e sunita, especialmente pelas autoridades religiosas nas sociedades de maioria islâmica. Uma situação "diaspórica" é recusada ou é aceite temporariamente com argumentos que resultam, em parte, de complexos enredos de teologia e de experiência histórica (Durán, 1990).

Isto não significa que, devido a essa estigmatização, lacuna jurídica ou de orientação teológica e teórica, o muçulmano que imigrou para a Europa à procura de melhores condições de vida voltaria à sua terra de origem (ou à dos seus pais). A ausência de um modelo jurídico islâmico para uma "boa vida islâmica" no seio de sociedades dominantes pós-industriais ou pós- secularizadas parece não ter significado especial para grande parte dos muçulmanos envolvidos. A origem da problemática da denominada "separação do mundo em dois", nas zonas antagónicas "território do islão" e "território da guerra ou da descrença" (a Europa incluía-se nesta), é tida como medieval e ultrapassada ou então são estabelecidos novos parâmetros de ordenação, pelos quais a Europa (ou parte dela) poderia ser incluída no "território do islão", por exemplo, com a liberdade de religião garantida, conforme a constituição (Shadid e van Koningsveld, 1996a).

Facilmente se imagina que a qualidade da liberdade de religião nos diversos países europeus, ou seja, a condição para uma "vida islâmica" boa numa situação minoritária, é apreciada de várias formas por diferentes muçulmanos: basta pensar na decisão tomada em França sobre o véu (hijab), que levou à proibição, em 2003, dessa peça de vestuário nas escolas públicas francesas. Este tipo de conflito, que rapidamente origina uma explicação-modelo simplista, assente na dicotomia "islão-Ocidente", que desrespeita a sua origem sócio-histórica muito específica e actual, tem como consequência quer o desenvolvimento de uma solidariedade emancipatória e lutadora e de uma política de identidade, quer a implementação de políticas isolacionistas. A velha divisão do mundo em dois presta, mais uma vez, bons serviços ideológicos às posições isolacionistas, parcialmente no âmbito verbal-djihadista, e os enredos das intenções jurídico-islâmicas com experiência histórica (desde as cruzadas até à história colonial mais actual) estendem-se até à actualidade.

Posições que, embora marginais, assumem grande eficácia nos meios de comunicação.

O facto de a Europa, enquanto local de residência permanente, não ter sido até hoje enquadrada positivamente nas categorias islâmicas, bem como a circunstância de os conceitos islâmicos estabelecidos não abarcarem a realidade de 20 milhões de imigrantes, populações provenientes das colónias, refugiados e cidadãos que a si mesmos se apresentam como muçulmanos ou são por outros qualificados como tal devido às suas origens étnicas, são aspectos que chamam a atenção para a necessidade de desenvolver novos conceitos. Novas condições e experiências de vida requerem novas respostas a novas perguntas. As respectivas discussões não tratam apenas da situação internacional e da migração, mas baseiam-se também, no nosso caso, nas experiências em contexto europeu.

Mandaville descreve a Europa como um "contexto ímpar para a reavaliação de teorias, crenças e tradições, enquanto um transnacionalismo acrescido franqueia o mundo a estas novas reformulações" (Mandaville, 2003, pp. 140-141). Não marcam o início da história mais recente da nova presença islâmica 18 na Europa, mas juntaram-se a uma segunda geração que não encara a sua estada como temporária, pois nasceu e cresceu.

A tese de um jogo de permuta entre universidades e comunidades Como foi anteriormente referido, diversos contributos recentes de investigadores interpretam determinadas actuações de muçulmanos dispersos pelo mundo, bem como de diferentes grupos islâmicos, escolas de pensamento e redes internacionais, por meio dos conceitos de transnacionalidade ou de comunidades transnacionais (por exemplo, Mandaville, 2001 e 2003, Werbner, 2002, Allievi e Nielsen, 2003, Vertovec, 2003, Roy, 2003, Grillo, 2004, e Bowen, 2004). As características e o alcance das relações entre os muçulmanos mundialmente dispersos, as suas ligações entre os países de origem e os países de destino, as viagens (com mercadorias), ocasionalmente o comércio e a circulação de dinheiro, a participação em conversas e a comunicação através da esfera virtual, não dúvida de que constituem indícios do seu carácter transnacional. Outros investigadores têm debatido a noção de "diáspora muçulmana" (Saint-Blancat, 1995; Samers, 2003), definindo-a, entre outras coisas, como uma "antinação" (Sayyid, 2002). Na verdade, nos últimos trinta anos, os muçulmanos na Europa foram tema em todos os discursos e perspectivas de investigação que se ocupam da migração. Existem muitas ideias ou razões suplementares que, do(s) ponto(s) de vista muçulmano(s), são a favor ou contra os conceitos de diáspora e de transnacionalidade como designação própria. No entanto, logo que os rótulos exteriores de "diáspora" e de "transnacionalidade" começam a ser discutidos no que respeita à sua possível utilização como auto-rotulagem, levanta-se imediatamente a seguinte dúvida: encontrar-nos-emos perante uma linguagem discursiva que, numa dinâmica própria e num primeiro momento, se distancia do material (da experiência dos entrevistados) para, em seguida, ser levada por investigadores e investigadoras desde as universidades até às comunidades? A resposta não constitui uma surpresa: sim, foi assim. A tese aqui apresentada para discussão é a seguinte: no extenso âmbito do tema "muçulmanos na Europa", o papel essencial da definição, proclamação e, até certo ponto, formação de "consciências diaspóricas" ou "transnacionais" tem, efectivamente, origem nos investigadores (na maioria, não muçulmanos) e nas classes médias instruídas muçulmanas. Se diásporae transnacionalidadesurgem com significados próprios, então isso deve-se a uma divulgação dessa evidência efectuada por protagonistas muçulmanos que pertencem a universidades ou faculdades europeias.

19 O simples "sim" torna-se expressivo quando observamos a especificidade histórica deste processo, com relevo para as condições sociais da Europa, não esquecendo a influência das relações e dos acontecimentos internacionais nem as interacções ao nível translocal. Frequentemente, esse facto é esquecido em relação aos muçulmanos, quando "o islão" é percepcionado como algo distante ou exótico e estranho e os protagonistas locais são erradamente encarados como reprodutores de uma única tradição, importada sem alterações e simplesmente prolongada (Salih, 2001). Além disso, afastamos o olhar dos sistemas (neste caso, do islão, da história do direito islâmico) em que não existem ideias como o conceito recente de transnacionalidade ou o termo "diáspora" ou as suas novas conceptualizações semânticas e globais, para nos ocuparmos dos agentes que modificam tradições históricas. Estas são, como acontece na maior parte das vezes nos processos de mudanças sociais e/ou na sua análise, as classes médias educativas 20 , neste caso as universidades e os muçulmanos europeus intelectuais, que exercem influência na comunicação social ou nas respectivas comunidades. Assim, podemos descobrir por detrás do simples "sim" deste exemplo as consequências que a utilização de uma linguagem discursiva secular pode ter nas políticas comunitárias.

Nova presença islâmica e novos discursos académicos A situação histórica específica, ou seja, a história da evolução da nova presença islâmica na Europa, pode ser compreendida se acrescentarmos mais alguns dados importantes. Desde o final da Segunda Guerra Mundial, a migração global, a descolonização, os objectivos educacionais, a fuga de zonas de crise e de pobreza económica, geraram uma vaga crescente de imigração vinda dos países maioritariamente muçulmanos em direcção aos estados-nações que durante a guerra fria eram designados por "Europa livre". Hoje cerca de 20 milhões de pessoas consideradas muçulmanas devido às suas convicções religiosas e expressões sociopolíticas, ou apenas devido à sua origem geográfica ou história familiar vivem em sociedades europeias ocidentais. O número de cidadãos muçulmanos europeus e seus descendentes (que nasceram e foram educados na Europa) está constantemente a crescer.

Inicialmente, os imigrantes eram sobretudo homens, cuja estada era considerada provisória por eles próprios e pelos outros, não sendo olhados como muçulmanos, antes sendo qualificados de acordo com a sua condição económica (por exemplo, guest workers, à letra "trabalhadores convidados"), com o seu estatuto jurídico (por exemplo, refugiados) e, sobretudo, com a sua origem nacional (turcos, paquistaneses, etc.). O facto de não serem vistos como muçulmanos relaciona-se, por um lado, com a ausência de demonstrações públicas ou com a exibição de sinais visíveis de religiosidade (Kettani, 1996) e, por outro, com a falta de interesse público e científico da Europa do pós-guerra e pós-colonial em relação à religião. Questões ligadas à religião eram, na altura, consideradas pouco modernas, circunstância que não se verifica actualmente (Nielsen, 1992; Pollack, 1997). De um ponto de vista retrospectivo, apenas em relação aos anos 80 é que se pode falar de uma nova presença islâmica na Europa, quando a religiosidade dos novos membros da sociedade em relação ao islão foi organizada de forma visível e de acordo com modelos europeus. Nas ciências sociais europeias e assim chegamos aos agentes os investigadores desenvolviam um discurso paralelo, seguindo uma estratégia discursiva livre que, desde então, e em colaboração com colegas americanos, se centrou progressivamente nos "muçulmanos na Europa" e no "islão no Ocidente".

A partir da revolução no Irão, em 1979, voltamos a encontrar o islão nas agendas políticas e, mais tarde, com o fim do pequeno século XX (1914-1991) (Hobsbawm, 1995) e da guerra fria, surgiram em várias regiões do mundo movimentos políticos modernos, de definição religiosa: do despertar do bible belt americano, durante o governo de Reagan, ou seja, o religious right protestante nos EUA, passando pela Islamic Salvation Front (FIS) na Argélia, até ao movimento extremista Comunione e Liberazione, de inspiração católica, em Itália. Situamos o ponto de viragem da história da nova presença islâmica na Europa no ano de 1989 (Tiesler, 2006b, p. 93), marcado pela primeira "polémica do véu" (affaire du foulard) em França, à qual a comunicação social deu grande relevo, e, no mesmo ano, por ocasião do caso Rushdie, na Grã-Bretanha, que concentrou a atenção mundial (o protesto público de muçulmanos em Bradford contra os Versículos Satânicos, que terminou com uma queima de livros e levou Khomeini a decretar a denominada "fatwa de morte" contra o escritor Salman Rushdie).

Nestas circunstâncias, cada vez mais se tornavam notórios os problemas emergentes de minorias étnicas com antecedentes migratórios, nomeadamente durante a estagnação económica das grandes cidades europeias. Estes problemas dos muçulmanos que imigraram de regiões de tradição agrária para metrópoles europeias industrializadas foram explicados através de modelos religiosos, apesar de pouco terem a ver com o islão e muito mais com um confronto entre padrões de vida tradicionais e modernos.

Aproximadamente nessa altura, os filhos dos primeiros imigrantes oriundos de sociedades de maioria islâmica chegavam à idade de ingressar na universidade, tendo crescido a ouvir os conceitos de postcolonial studies e de cultural studies e, mais importante ainda, os discursos sobre "identidades colectivas" tardiamente importados dos Estados Unidos da América (Siems, 2007; Tiesler, 2006b). Com a formação de classes médias euro-muçulmanas, que tinham frequentado os sistemas de ensino locais, aumentaram os contributos de académicos e de intelectuais muçulmanos sobre o tema "muçulmanos na Europa", bem como os debates dentro do islão, que reflectiam as experiências de emigração e das minorias, por um lado, em colaboração com responsáveis universitários e religiosos nos países de origem (dos pais) e por outro, demarcando-se e opondo-se a eles.

Protagonistas de modernidades islâmicas Dada a actual situação das minorias muçulmanas, e atentendo ao panorama do ensino islâmico tradicional, considerou-se que as novas condições sociais criaram a oportunidade e a necessidade de se desenvolverem novos conceitos. No âmbito do desenvolvimento destes novos conceitos euro-islâmicos, não se deve ignorar a linguagem discursiva secular, porque os seus agentes são formados em instituições onde lhes são facultados esses instrumentos intelectuais. Contudo, e na sua grande parte, esses agentes têm educação religiosa e alguma influência nas suas comunidades. Assim, o meu interesse incide, mediante uma análise discursiva, no posicionamento dos conceitos da política de identidade e nos conceitos da teologia e do direito islâmico que foram desenvolvidos na Europa e que têm relação com o espaço europeu, dando especial atenção ao comportamento sociológico dos agentes sociais.

No centro da análise situam-se os trabalhos dos dois intelectuais muçulmanos anteriormente referidos: Tariq Ramadan e S. Sayyid. Tariq Ramadan é, hoje em dia, o autor euro-islâmico mais conhecido. Neto de Hasan al-Banna 21 e filho do exilado egípcio Said Ramadan (ambos considerados "gigantes dos movimentos de reislamização" (v. Q-News, 312, 1999), começou por trabalhar como pedagogo na Suíça e, mais tarde, como activista em organizações de ajuda humanitária ao Terceiro Mundo. cerca quinze anos é que este suíço frequenta o palco das actividades islâmicas na Europa, sendo consultor nas comissões europeias que se ocupam das populações muçulmanas na Europe de hoje.

Para Ramadan, a chave para o sucesso da integração muçulmana na Europa reside na obtenção de uma formação secular e islâmica, ou seja, encontra-se em primeiro lugar na própria , no islão, cujas fontes textuais devem ser interpretadas à luz do contexto social e histórico actual. Tendo feito o doutoramento em Friburgo sobre Nietzsche (co-orientado por Reinhard Schulze) e estudado direito islâmico na Universidade Al-Azhar, no Cairo, torna-se óbvio que Ramadan é a pessoa adequada para um empreendimento desta dimensão, devido à sua história familiar. Talvez haja até quem afirme que ele estava predestinado para tal. Ramadan efectuou a referida interpretação com sucesso, como se pode comprovar pela difusão internacional de To Be a European Muslim (1999) e de Muslims in the West and the Future of Islam (2003) tanto em círculos muçulmanos como não muçulmanos. Também é visto como precursor de ideias e activista de uma islamização contemporânea, de "compatibilização europeia" dos muçulmanos na Europa, sendo assim claramente integrável na tradição familiar dos dirigentes de movimentos de (re)islamização.

Tariq Ramadan é o mais importante elo de ligação de um novo movimento internacional de activistas islâmicos que se dedicam, hoje em dia, à defesa da democracia e dos direitos do homem e que se preocupam em estabelecer um entendimento com a classe média secularizada (Kepel, 2002, p. 429). Os seus conceitos podem ser entendidos através da noção de "pós-islamismo".

Segundo Asef Bayat (2005), a viragem pós-islamista é caracterizada pela promoção e proclamação de direitos, em vez de obrigações, de pluralidade, em vez de umavoz singular e autoritária, de historicidade, em vez de escritura imutável, e de futuro, em vez de passado. Ramadan é também um orador carismático e um pregador, cujos discursos são solicitados não apenas em conferências académicas, em encontros de especialistas de política europeia e em círculos de diálogos inter-religiosos, mas também constantemente, e desde o princípio ou meados dos anos 90, nos movimentos de "jovens muçulmanos" franceses (por exemplo, a Union des Jeunes Musulmans, UJM), neste caso em combinação com temas espirituais. No essencial, estes movimentos reclamam a constituição de uma "identidade islâmica", apelando para uma ideia de comunidade (Kepel, 1996, p. 325), opinião que se reporta à Irmandade Muçulmana (Muslim Brotherhood) e cujos impulsionadores e defensores dentro da juventude franco-islâmica foram sobretudo Tariq Ramadan e o seu irmão Hani (imã da comunidade islâmica de Genebra)22. O que não significa que Ramadan pertença a qualquer movimento da Irmandade Muçulmana; ele é, antes de mais, um intelectual crítico e independente, tal como S. Sayyid.

Ao contrário de Ramadan, Sayyid não é um pregador nem utiliza uma argumentação teológica, pelo menos em contextos que eu conheça 23 . Para além de ser um professor universitário britânico, é também um muslim networker,como designadamente fica comprovado pela sua participação no fórum de discussão no Muslim Institute, em Londres. Os seus trabalhos nunca abandonam o terreno de uma linguagem rigorosa e crítica, cultivada dentro do contexto teórico da ciência política, da filosofia e da sociologia, que demonstra uma formação filosófica e um nível de pensamento acima dos discursos dominantes ocidentais24. Também não abdica dessa linguagem em textos que são publicados, por exemplo, na "sala de leitura" virtual do Jamaat-e-Islami Bangladesh25.

Na verdade, Tariq Ramadan também se distancia da linguagem habitual dos religiosos e dos intelectuais islâmicos. Mas identifica-se com o motivo principal desse grupo, o que levou a que, frequentemente, em artigos de jornais e outros, se referissem a ele como a cabeça de Jano ou o cavalo de Tróia do fundamentalismo, ou que o comparassem com Martinho Lutero ou com os teólogos de libertação da América Latina dos anos 80. Essas comparações tornaram-se, de alguma forma, obrigatórias na imprensa, bem como nos artigos da internet que o referem.

Horário nobre para conceitos de espaço e pertença O essencial dos trabalhos destes autores pode ser aqui abordado resumidamente 26 . Interessante para nós e no âmbito da tese acima referida é o ponto de partida desses trabalhos e o tipo de conceitos que são articulados ou desenvolvidos. A partir do início dos anos 90, Tariq Ramadan tem centralizado o seu interesse na lacuna do sistema jurídico islâmico acima descrito. Diz ele que é premente definir a Europa como um local de vivência muçulmana (1999, p.

145): as condições de vida dos muçulmanos na Europa são boas, embora este nível nada tenha a ver com a sua condição minoritária. De acordo com este autor, a segurança de um muçulmano não é maior nos países de maioria muçulmana do que na Europa. Ramadan invalida a referida lacuna, na medida em que cria um novo conceito de "território" com base na antiga divisão do mundo em dois: o "território da profissão de ", ospace of testimony, ao qual claramente pertence a Europa.

De sublinhar é o facto de a obra de Tariq Ramadan, To Be a European Muslim (1999), demonstrar que existe uma crescente aceitação da tentativa de regulamentação jurídico-islâmica e de conceptualização teológica islâmica da situação minoritária, levando ao fim da estigmatização dos muçulmanos que nela se encontram. Ramadan rejeita uma transferência terminológica relativamente ao termo judaico da diáspora com o argumento, entre outros, de que a definição da umma não inclui o conceito de exclusão27. Por isso, não utiliza como ponto de partida para a sua argumentação o clássico modelo do judaísmo helénico, que defende que todos os judeus vivem na diáspora, mas antes a moderna ideologia sionista, que tencionava atrair a imigração para o novo Estado de Israel, aquando da sua fundação, e que, seguidamente, estigmatizou os judeus da diáspora (Zuckermann, 1997).

Quando do lado islâmico se fala de diáspora muçulmana, na maior parte dos casos as conotações são sociodemográficas, incluem referências étnicas ou procuram ser compreendidas como um conceito político em todo o caso, não se referem a discussões islamológicas ou conceptuais 28 . Assim, a noção de Sayyid de uma diáspora muçulmana não é teológica. Na base das suas reflexões encontram-se, por um lado, as actuais interpretações da umma e, por outro, o acervo das discussões teóricas acerca das intermináveis extensões do termo "diáspora". Na exposição literária do termo umma como lugar de pertença pode afirmar-se, conclusivamente, que a umma é estilizada como a comunidade imaginada por excelência, the imagined community (Anderson, 1991), ou como a própria nação, the very nation (Tiesler, 1999).

Sayyid caminha em sentido contrário e descreve a umma como um fenómeno não nacional,a-national, que simultaneamente questiona e transcende a lógica da nação: A afirmação da subjectividade muçulmana representa um sério desafio à ideia de nação [...] O islão suspende a lógica da nação ao evidenciar o problema da integração, isto é, como incluir várias populações dentro das fronteiras da mesma nação, e ao incidir a sua atenção no problema da lealdade dessas populações para com uma entidade mais ampla do que a nação [Sayyid, 2002, p. 2 e 4] Recorrendo ao aparelho teórico das modernas teorias da nação (Derrida, em particular), Sayyid argumenta contra a corrente. No seu caminho para a formulação da subjectividade muçulmana, com o apoio da noção de diáspora muçulmana entendida como antinação, Sayyid afirma claramente: a umma não é uma nação. Em primeiro lugar, refere que a nação define uma pátria, enquanto a diáspora descreve uma situação sem pátria. No caso de uma nação, os sujeitos nacionais e o território estariam juntos, mas no caso da diáspora não. A diáspora não é o que se encontra em frente, não é o "outro" dentro de uma nação. Assim, a existência de uma diáspora dentro de uma nação evita a sua coesão, ou a unidade da nação. Reside aqui o carácter antinacional da diáspora.

Além disso, segundo Sayyid, a umma não é uma comunidade económica ou comercial, uma civilização ou uma sociedade linguística e não revela realmente um estilo de vida comum. O caminho da conceptualização de uma diáspora muçulmana parte de duas considerações: em primeiro lugar, está presente a ideia de que a proclamação ou as discussões acerca de uma subjectividade muçulmana podem ser encontradas, hoje em dia, em todas as comunidades islâmicas do mundo. Contudo, em segundo lugar, surge a seguinte questão: Ainda existem algumas práticas que são comuns entre os muçulmanos (por exemplo, os muçulmanos rezam voltados para Meca); contudo, é difícil concluir [ ] que isso constitua a unidade da ummano seu modo de vida uniforme. Se a ummanão é uma nação, um mercado comum ou uma civilização será porventura alguma coisa? Será que a dificuldade em identificar a umma sugere que a ideia de uma subjectividade muçulmana não passa de uma quimera? Se a identidade muçulmana é tão fragmentária, como será possível conceptualizá-la? Um forma será concebê-la em termos de uma diáspora muçulmana [Sayyid, 2002, p. 6].

Apesar das claras diferenças entre os trabalhos de Ramadan e Sayyid, as questões colocadas são, na sua essência, muito parecidas. Ramadan, o político da identidade, sintetiza-as da seguinte maneira: Onde estamos nós? Quem somos nós? A que lugar ou a quem pertencemos? Qual é a nossa "identidade"?29 Estas questões e as respectivas reflexões não marcam o princípio da história da nova presença islâmica na Europa, mas colocam-se com mais premência desde o final dos anos 80 a uma segunda geração de intelectuais muçulmanos. Enquanto Ramadan procura soluções que aos jovens europeus com ascendência muçulmana oferecem a possibilidade de serem mais islâmicos, sem os obrigar a serem menos europeus, Sayyid (s.d.) entende esta mesma questão como um desafio colocado aos académicos.

Podemos resumir os conceitos de Ramadan e Sayyid com o lema "conceitos de espaço e pertença",concepts of space and belonging, uma temática que se articula com as "questões de espaço e de pertença", questions of space and belonging, cuja relevância nas sociedades dominantes e nas políticas das "maiorias" europeias vem crescendo desde os anos 80, como é confirmado pelo debate sobre as "identidades" 30 nacionais e culturais, bem como pelos discursos académicos (Claussen, 2000b).

De uma forma breve (ou lacónica), podemos dizer que os intelectuais muçulmanos colocam estas questões, não porque uma avó do Afeganistão ou um imã oriundo da Turquia estão a debater "identidades colectivas", mas porque, na Europa, essas questões estão constantemente a ser invocadas nos discursos proferidos nos meios académicos, públicos e políticos.

Conclusão Como foi anteriormente mencionado, o contexto discursivo no âmbito do qual foram escritas as obras dos académicos europeus Ramadan e Sayyid é decisivo como suporte da tese segundo a qual existe uma dinâmica relação pendular entre a investigação em ciências sociais e as políticas dirigidas às comunidades.

Os discursos dominantes acima referidos, desde o multiculturalismo até à transnacionalidade, nos quais são tratadas, entre outras questões, as diferenças entre maiorias e minorias sociais e em que também se encontram pistas para "saber como estudar" populações muçulmanas locais, remetem, desde o final do pequeno século XX, para três concepções.

Em primeiro lugar, para o denominado cultural turn, que chega a extravasar as ciências culturais, políticas e socias. De um ponto de vista crítico, trata-se aqui de uma aplicação cultural às problemáticas sociais. As políticas das maiorias e das minorias revelam um desenvolvimento crescente em relação a atribuições próprias ou alheias de índole religiosa e cultural, que resultam em categorias de origem ou ascendência ultrapassadas ao longo da história 31 . A tradição passa a ser argumento e modelo explicativo, anunciando-se um "retorno à tradição", mas esquecendo-se muitas vezes que se recua quase sempre para algo que nunca existiu com essa forma.

Como segunda tendência, podemos considerar as novidades conceptuais de "espacialização", que surgem com a nova descoberta de espaços (nacionais) e reclamam "recordações colectivas", conformes a um equivalente individual-psicológico. Este desenvolvimento, que foi previsto por Michel Foucault, entre outros, para o fim do século xx em relação à importância do espaço (a presente época será talvez, acima de tudo, a época do espaço), é muitas vezes utilizado erradamente como "fenómeno de globalização", apenas ganhando clareza quando pensado em paralelo com o aumento dos discursos de "identidade". Porque esta é a mais decisiva das concepções complexas: a procura e a atribução de "identidades colectivas". Pelo menos desde o fim da guerra fria, as conhecidas categorias de subjectividade colectiva, como povo, nação, grupoeclasse, começaram a evoluir, dando origem a um universo de questões abertas para as ciências sociais, preocupadas com fenómenos de actores e de grupos sociais e colectividades. Actualmente, as atribuições de "identidades colectivas" estão "à mão de semear", apresentando frequentemente o risco de caírem na generalização e de se tornarem redutoras.

Por forma a tornar mais acessível a dialéctica da reificação e da secularização falhada, Detlev Claussen, na tradição da teoria crítica, categorizou estas novas ideologias em termos da "religião da vida quotidiana" (Alltagsreligion) (Claussen, 2000c). Segundo este autor, a experiência da desintegração social reintroduz as questões básicas do significado social na consciência quotidiana, isto de uma forma radical, como nunca antes acontecera.

A noção da "religião do quotidiano" revela-se útil para tornar opacas relações explicáveis em termos de polaridades. Para o crente, a religião do quotidiano introduz e justifica por meio de uma estilização da própria vitimização do indivíduos uma clara separação entre amigos e inimigos e, como refere Claussen (1994, p. 62), oferece ao indivíduo respostas para todas as questões centrais do significado social que uma sociedade sedenta de "identidade" exige: quem somos nós?; donde viemos?; quem é o culpado?; de acordo com os requisitos da mentalidade do dia-a-dia, pouco disposta a lidar, em profundidade, com problemas de difícil solução. As linguagens discursivas dos intelectuais são influentes porque, hoje em dia, são rapidamente transmitidas ao público. Contudo, são por certo de curta duração como fica demonstrado no caso das "identidades colectivas", ultrapassadas por novas perspectivas que lidam, por exemplo, com movimentos sociais na era da "pós-identidade" e que nos chegam dos Estados Unidos (Laraña et al., 1994). Apesar disso, para as classes médias ocidentais e não ocidentais, é aparentemente bastante difícil desistir da procura e da proclamação de "identidades colectivas", nacionais e religiosas (Tiesler, 2006b, p. 170).

A interacção entre estas concepções e as questões centrais relativas à etnicidade, à diáspora, à transnacionalidade e às discussões sobre a procura da "identidade colectiva" e dos conceitos do "próprio" e do "outro" pode, em todo o caso, ser articulada ou discutida em função da construção de espaços (spaces) e de pertenças (belonging). Neste cenário, são compreensíveis os trabalhos de Ramadan e Sayyid, bem como as políticas de reconhecimento das comunidades. Dado que a noção de uma "identidade europeia" se tornou extremamente popular, os representantes dos interesses muçulmanos transformaram-se em políticos identitários. Os conceitos euro- muçulmanos podem ser lidos como respostas tanto a discursos dominantes como a novas experiências societais. A integração das actuais linguagens discursivas nos conceitos "euro-islâmicos" e nas políticas comunitárias testemunha a transformação da religião tradicional em religião moderna. Por religião tradicional podemos entender a prática religiosa ritualista ou a sabedoria religiosa transmitida oralmente, sem preocupações reflexivas relativamente aos textos escritos, apenas acessíveis às elites. A chave da transformação está na formação secular. Uma geração que frequenta os sistemas educativos europeus (ou outros seculares) tem outra perspectiva em relação à sua religião ou à dos seus pais. Com outros instrumentos, e com acesso aos textos escritos, esta geração tem um relacionamento desafiador para com as autoridades religiosas tradicionais. No âmbito da nova presença islâmica, verificou-se que os religiosos "importados" dos países de origem não sabiam responder às questões colocadas pelos jovens muçulmanos integrados no seu novo contexto. O lugar do antigo responsável da comunidade será em breve ou se encontra ocupado por uma nova geração que cresceu na Europa e que se sente "em casa". Essa geração guarda elementos da religião dos pais e, em alguns casos, propaga a ideia de um "retorno à verdadeira essência" do islão. A definição daquilo que é a verdadeira essência encontra-se no princípio da pluralidade, muito diferente na Europa daquilo que se passa, por exemplo, na Argélia, na Arábia Saudita ou no Afeganistão. Mesmo que especialmente entre os jovens muçulmanos europeus se discuta o "retorno ao verdadeiro islão", a situação requer que se "retorne" a algo que nunca existiu sob essa forma, nomeadamente porque não se verificavam as mesmas condições sociais nas quais se desenvolve a religiosidade actual. Apesar de as novas perspectivas e as práticas e ideias islâmicas serem muito variadas, são diferentes daquelas que seguiam os avós desta nova geração. Formação secular, meios de comunicação, formas organizativas, condições quotidianas, estratégias políticas, socialização, mas também experiências de exclusão nas sociedades europeias, bem como a integração de novas linguagens discursivas nos debates islâmicos, apontam para as seguintes tendências: por um lado, a europeização das culturas muçulmanas e, por outro, ao mesmo tempo, a islamização dos europeus com ascendência muçulmana. Estas tendências podem ser compreendidas à luz de um contexto europeu que, desde o final da guerra fria, assistiu à formação de espaços de debate, quer públicos, quer no âmbito das ciências sociais, acerca das atribuições tradicionais e religiosas, incluindo a promoção do "transnacionalismo" e das "diásporas", bem como das respectivas formas de consciencialização e de identidade políticas.


Download text