Religião e pertença em discursos europeus: conceitos e agentes muçulmanos
Como é que os muçulmanos na Europa respondem aos imperativos dominantes de
"integração, lealdade e pertença" na esfera pública? Como é que os
intelectuais muçulmanos encaram as práticas da generalidade dos muçulmanos
europeus? E, no contexto das ciências sociais e dos discursos islâmicos, quais
são as tendências discursivas respeitantes aos tópicos do
"transnacionalismo muçulmano" e da diáspora (hoje dissociado de
conotações religiosas)1? O presente artigo procura abordar estas questões,
analisando os contributos de dois dos mais importantes autores muçulmanos que
definem a situação das minorias muçulmanas através desta prática discursiva2.
No centro da análise situam-se os trabalhos de dois intelectuais muçulmanos que
cresceram na Europa e que aí leccionam e investigam em faculdades de ciências
humanas e sociais: Tariq Ramadan (Suíça e Reino Unido) e S. Sayyid (Reino
Unido). Enquanto a influência dos "concepts of space and belonging"
de Ramadan já ultrapassou o contexto francófono, e até mesmo europeu,
encontrando entretanto eco em comunidades de jovens muçulmanos politicamente
activos, Sayyid exerce uma influência decisiva no discurso anglo-muçulmano,
efectuando a junção dos estudos pós-coloniais (postcolonial studies)e da
crítica de esquerda (critical left) com conceitos islâmicos.
A observação de que esta metalinguagem difere da autopercepção dos sujeitos em
causa, que aqui são apresentados através de amostras de entrevistas, pode
parecer trivial numa primeira abordagem. De forma alguma sugere uma
"particularidade muçulmana", mas antes o peso que, em geral, as
classes médias instruídas neste caso, educadores e educandos têm nos
processos de construção da subjectividade colectiva (Hroch, 1978; Siems, 2007).
Entretanto, o que torna esta dinâmica interessante é o facto de estarmos
perante representantes de uma nova geração de intelectuais euro-muçulmanos3que
analisam as novas condições sociais e as práticas de minorias religiosas
heterogéneas em termos culturais e etno-linguísticos, não através das
tradicionais categorias islâmicas do foro teológico e jurídico, mas antes
recorrendo à linguagem do discurso secular e às suas noções de
transnacionalidade e diasporicidade
4
.
No âmbito dos estudos comparados de religião existe um consenso alargado
relativamente à noção de que a observação de religiões e a formulação de
teorias de história religiosa se repercutem nos processos culturais
5
, notando-se igualmente uma crescente "atenção prestada às estruturas
discursivas em que os estudos comparados de religião encontram as suas
temáticas" (Seiwert, 2003). O mesmo é sobremaneira válido para as
disciplinas das ciências sociais, e daí que a motivação do presente artigo
consista em demonstrar de que forma os discursos dominantes podem influenciar o
processo de desenvolvimento do respectivo tema de investigação.
Os discursos sobre os muçulmanos na Europa num primeiro relance
Desde a Segunda Guerra Mundial que imigrantes, populações pós-coloniais
(Sayyid, 2006, pp. 1-10) e refugiados vindos de sociedades maioritariamente
islâmicas têm demandado a Europa e nela se têm estabelecido. Contudo, até
meados da década de 80, a sua filiação religiosa apenas suscitava a atenção de
um pequeno número de sociólogos da religião e de membros das igrejas (Nielsen,
1992, p. 2). Entretanto, nos últimos trinta anos, nos discursos e cenários de
investigação em ciências sociais relacionados com migrações, os muçulmanos na
Europa têm sido mais insistentemente citados do que estratos sociais
representativos de outras religiões não cristãs, como é o caso dos hindus e dos
siks. A maior parte dos académicos que iniciaram as suas investigações sobre o
islão e os muçulmanos antes do 11 de Setembro parecem estar cientes do
imperativo de reflexão autocrítica nas universidades sobre as consequências
deste momento decisivo para as instituições de investigação. Os discursos
políticos e públicos, bem como a situação das minorias muçulmanas que
constituem o tema dos nossos debates, modificaram-se (de forma mais visível em
contextos urbanos).
Enquanto os momentos decisivos de 1989 [fim da guerra fria, o caso Rushdie, a
primeira "polémica do véu" (affaire du foulard) em França] e os
acontecimentos políticos de dimensão mundial nos primeiros anos da década de 90
("renascimento religioso", Bósnia, Saddam no Kuwait) deram origem a
novos centros de interesse para a investigação num campo que antes era
relativamente marginal, não há dúvida de que o 11 de Setembro e o novo contexto
histórico marcado pela "guerra ao terrorismo" suscitaram um enorme
interesse por parte do público e das instituições de investigação relativamente
a fenómenos ligados com o islão. Qualificada como "de interesse
prioritário", a vigilância dos muçulmanos e da sua vida comunitária,
especialmente em contextos minoritários, passou a ser frequente e oficialmente
anunciada pelos políticos, através dos media, e pontualmente mencionada pelos
serviços secretos.
Neste contexto, as conotações do atributo "transnacional" também se
alteraram parcialmente. Enquanto algumas abordagens críticas transnacionais
procedentes de instituições de investigação contribuíram para a percepção de
que os migrantes internacionais e as suas comunidades não devem continuar a ser
olhados como "anomalias, mas sim como manifestações de um mundo cada vez
mais globalizado" (Al-Ali e Khoser, 2002, p. 3), a retórica da
"guerra ao terrorismo", ao sugerir a ideia de ameaça, tende a fazer
reviver a conotação negativa do transnacionalismo quando este termo é associado
aos muçulmanos.
Contudo, com especial destaque para os autores que já tinham contribuído para o
tema antes do 11 de Setembro, as ciências sociais empíricas e os estudos
islâmicos dispõem hoje de um amplo leque de trabalhos sobre o tópico dos
muçulmanos na Europa6.
Nas décadas de 80 e de 90, a principal preocupação dos estudos académicos
dedicados ao islão e aos muçulmanos na Europa centrava-se na
institucionalização do islão. Pretendia-se compreender o lugar dos muçulmanos,
logo do islão, no espaço público das sociedades ocidentais, incluindo o
estatuto jurídico do islão (por exemplo, Shadid e van Koningsveld, 1991, 1996a,
1996b e 2002, e Metcalf, 1996). Para além da contínua atenção prestada à
"mudança religiosa", à educação islâmica e ao papel dos actores
sociais (por exemplo, mulheres, jovens e artistas), recentemente desenvolveu-se
outra linha de pesquisa, nela se notando a influência de novos tópicos no
estudo dos fenómenos sociais e culturais, designadamente devido ao
desenvolvimento teórico dos estudos transnacionais e da diáspora. Ao
interpretarem as questões da migração e da globalização, estas teorias têm
também sido aplicadas aos muçulmanos e ao islão. Os trabalhos inovadores devem-
se a Mandaville (2001), a Roy (2003), a Allievi e Nielsen (2003), a Grillo
(2004) e a Bowen (2004). Estas perspectivas tentam desenhar as actuais
dimensões europeias do islão e dos muçulmanos, designadamente quando cruzam as
fronteiras dos estados e das cidadanias.
Movimentos transnacionais islâmicos, tais como a tablighi jamaat,a rede de
migrantes muçulmanos, e a umma, a comunidade islâmica mundial que vai sendo
construída no dia-a-dia, são apenas três exemplos que revelam até que ponto é
importante a metáfora do transnacionalismo para compreender o islão
contemporâneo e o modo como é vivido e exteriorizado pelos muçulmanos na
Europa. Aspecto importante, estes estudos sugerem a distinção entre, por um
lado, o islão transnacional, incluindo escolas de pensamento, redes e discursos
que explicitamente se referem ao islão mundial e ao islão como sistema e
religião, e, por outro, as vivências e as práticas diárias de pessoas que,
sendo muçulmanas, passaram pela experiência da migração (por exemplo, Al-Ali e
Khoser, 2002, Salih, 2002, e Bryceson e Vuorela, 2002). Naturalmente, e
porventura seria desnecessário dizê-lo, as muito diversificadas ligações
transnacionais, experiências e práticas destas pessoas não devem ser,
necessariamente, vistas como uma espécie de "particularidade
muçulmana", nem, muito menos, como uma "prática islâmica"
específica. Os contributos para esclarecer o que é que o transnacionalismo
efectivamente significa para aqueles que o vivem baseiam-se, fundamentalmente,
nas pesquisas etnográficas provindas de antropólogos sociais e culturais.
Transnacionalismo e diáspora muçulmana: breves impressões recolhidas no terreno
A quem se tem dedicado nos últimos quinze a vinte anos, no âmbito dos estudos
sobre migração, ao estudo de minorias religiosas, culturais, étnicas ou
definidas de qualquer outro modo pareceu quase inevitável conceber a sua linha
de investigação à luz dos conceitos actuais e dos discursos dominantes. Na
Europa, desde finais dos anos 80, tais conceitos compreendiam, por exemplo, o
multiculturalismo (Rex, 1996; Modood e Werbner, 1997; Kürsat-Ahlers et al.,
1999), o "crescimento/regresso de religiões" (Kepel, 1991; Pollack,
1997 e 1998) e "o próprio e o outro" (Bielefeld, 1991). Com o avanço
dos anos 90, surgiram as ideias de etnicidade (Stender, 2000; Roy, 2000), de
diáspora (Anthias, 1998; Baumann, 2000; Cohen, 1998), de "identidades
colectivas" (Hall, 1990; Castells, 1997) e de transnacionalismo (Vertovec,
1999; Al-Ali e Khoser, 2002).
No meu caso, depois de efectuadas as primeiras entrevistas no extenso terreno
dos "muçulmanos na Europa"
7
, começaram a surgir algumas dúvidas: a experiência quotidiana dos meus
"sujeitos de estudo" seria efectivamente a de um membro de uma
diáspora ou comunidade transnacional? E isto apesar de serem raros os meus
primeiros interlocutores, masculinos ou femininos
8
, que aplicavam esses conceitos a si próprios, ou cuja linguagem se inseria num
discurso académico. As determinantes do seu quotidiano e a sua correspondente
reflexão em pouco ou nada deixavam transparecer as "formas de
consciência" hoje descritas como diáspora
9
ou transnacionalidade. Ou então, no caso de a definição destes conceitos ser
tão abrangente, revelavam que tinha sido efectuada, quase arbitrariamente, uma
selecção de características determinantes.
Relativamente às entrevistas, tudo dependia do nível de formação dos
entrevistados: os responsáveis por comunidades islâmicas e as pessoas formadas
da classe média já tinham ouvido falar de conceitos não arábes e não islâmicos,
mas com diferentes conotações o que também acontece nas universidades
ocidentais. A maior parte dos interlocutores negava, umas vezes com as mesmas
razões, outras vezes por razões totalmente diferentes, a aplicação dos
conceitos de diáspora ou de transnacionalismo ao "islão" ou à sua
comunidade. As razões de vários interlocutores muçulmanos decorriam da defesa
do conceito islâmico de universalismo, de acordo com o qual a umma, a
comunidade mundial dos crentes, tal como é entendida actualmente, representa a
comunidade transnacional por excelência e avant la lettre
10
.
No que respeita às experiências quotidianas das pessoas em questão, o exemplo
de uma entre muitas
11
famílias muçulmanas portuguesas que mantêm laços familiares entre Moçambique,
Portugal e o Reino Unido designadamente viajando, comunicando e, por vezes,
fazendo comércio através das fronteiras em contextos pós-coloniais sugere o
entendimento de que os horizontes transnacionais constituem um tipo de recurso
de capital social e que as ligações e as práticas transnacionais (enquanto
elementos marcantes da biografia de uma família)
12
são normais na vida diária13. Num debate com jovens deste grupo específico de
muçulmanos portugueses (que em Portugal podem ser considerados representativos
do islão público) acerca das suas atitudes relativamente à mobilidade e do seu
auto-conhecimento em comparação com outros jovens lisboetas (sem experiência de
migração nas suas histórias familiares), uma estudante universitária fez a
seguinte observação reveladora:
É certo que somos transnacionais, porventura um pouco mais do que a maioria dos
portugueses, mas não necessariamente mais do que aqueles [não muçulmanos] cujos
pais também provêm das colónias ou que foram trabalhar para a França ou para
outro país europeu. Também não somos os únicos que estamos interessados na
política internacional e na ajuda humanitária, ou contra a guerra no Iraque. De
alguma maneira tornámo-nos transnacionais, mas isso não foi de propósito....
14
A relevância desta observação reside no modo como a entrevistada encara a sua
"transnacionalidade", que é vista como uma vantagem e como algo
normal, de forma alguma em oposição ou contra o seu sentimento de pertença
nacional, sendo esta claramente portuguesa (por nascimento, nacionalidade ou
socialização), apesar das diferenças relativamente à "maioria da
população" em termos de história de migração (populações das ex-colónias
provenientes de Moçambique), de filiação religiosa (islão) e de características
étnicas (origem indiana). A referida observação traduz uma espécie de senso
comum deste grupo de jovens portugueses muçulmanos, cujos pais já eram
nacionais portugueses quando Moçambique se encontrava sob o domínio colonial e
que se vêem a si próprios, não como imigrantes, mas sim como
"retornados", tal como outros portugueses não muçulmanos e não
etnicamente identificados
15
. Segundo um inquérito quantitativo realizado em 2006, 89% destes jovens
muçulmanos aderiam à noção de "sentir-se em casa" em Portugal,
percentagem comparável aos 88% dos jovens portugueses não muçulmanos
16
. Mais uma vez se torna claro que pessoas com horizontes, práticas e
experiências transnacionais não são "necessariamente sujeitos desinseridos
que conduzem as suas vidas num "espaço fluído", sem limites definidos
e desenraizado"; pelo contrário, são actores sociais que "estabelecem
fronteiras e fundam identidades" (Smith, 2002, p. XIV).
Neste aspecto, a observação da estudante universitária introduz e corrobora o
principal argumento do presente artigo, nomeadamente o de que uma linguagem
discursiva académica (neste caso, o termo "transnacionalismo")
fornece e/ou sugere instrumentos e marcadores para a auto-reflexão e iden
tidade em pessoas da classe média. Quando pontualmente adoptados, estes termos
constituem autodescrições, enquanto neste tipo de pêndulo entre a investigação
social e o terreno, a academia(na minha humilde impressão), na sua produção de
linhas discursivas, corre o risco de sobrestimar a relevância de e a
consciência sobre esses elementos no constante processo de formação da
subjectividade híbrida colectiva.
Em relação à diáspora, ficou patente que entre os membros da comunidade da
"primeira geração" existia o receio de se estabelecerem paralelismos
entre a história do judaísmo e a dos muçulmanos actualmente espalhados pelo
mundo. Na maior parte dos casos, as conversas sobre a diáspora conduziam à
história islâmica do direito e à problemática da situação das minorias, para as
quais não existe conceito teológico ou jurídico islâmico, mas sim exemplos
históricos, como o do al-Andaluz, depois da Reconquista
17
.
Os conceitos analíticos tendem sempre a ocultar e a anular diferenças a
lógica da generalização é-lhes inerente. O que é interessante nestas tendências
discursivas é, antes de mais, a discrepância entre a linguagem das autoridades
tradicionais e as vozes muçulmanas actuais, provocada pela emancipação de
conceitos restritos que já não reflectem as realidades societais.
A ausência de uma situação diaspórica na teoria
Apesar de hoje em dia quase um terço dos muçulmanos viver em circunstâncias
equivalentes, isto é, fora do "território do islão", no sentido
estrito, a situação das minorias que se encontram longe dos países centrais
islâmicos, ou seja, a presença de muçulmanos em territórios sujeitos ao direito
não islâmico, é ainda estigmatizada por círculos conservadores de visão
normativa e sunita, especialmente pelas autoridades religiosas nas sociedades
de maioria islâmica. Uma situação "diaspórica" é recusada ou só é
aceite temporariamente com argumentos que resultam, em parte, de complexos
enredos de teologia e de experiência histórica (Durán, 1990).
Isto não significa que, devido a essa estigmatização, lacuna jurídica ou de
orientação teológica e teórica, o muçulmano que imigrou para a Europa à procura
de melhores condições de vida voltaria à sua terra de origem (ou à dos seus
pais). A ausência de um modelo jurídico islâmico para uma "boa vida
islâmica" no seio de sociedades dominantes pós-industriais ou pós-
secularizadas parece não ter significado especial para grande parte dos
muçulmanos envolvidos. A origem da problemática da denominada "separação
do mundo em dois", nas zonas antagónicas "território do islão" e
"território da guerra ou da descrença" (a Europa incluía-se nesta), é
tida como medieval e ultrapassada ou então são estabelecidos novos parâmetros
de ordenação, pelos quais a Europa (ou parte dela) poderia ser incluída no
"território do islão", por exemplo, com a liberdade de religião
garantida, conforme a constituição (Shadid e van Koningsveld, 1996a).
Facilmente se imagina que a qualidade da liberdade de religião nos diversos
países europeus, ou seja, a condição para uma "vida islâmica" boa
numa situação minoritária, é apreciada de várias formas por diferentes
muçulmanos: basta pensar na decisão tomada em França sobre o véu (hijab), que
levou à proibição, em 2003, dessa peça de vestuário nas escolas públicas
francesas. Este tipo de conflito, que rapidamente origina uma explicação-modelo
simplista, assente na dicotomia "islão-Ocidente", que desrespeita a
sua origem sócio-histórica muito específica e actual, tem como consequência
quer o desenvolvimento de uma solidariedade emancipatória e lutadora e de uma
política de identidade, quer a implementação de políticas isolacionistas. A
velha divisão do mundo em dois presta, mais uma vez, bons serviços ideológicos
às posições isolacionistas, parcialmente no âmbito verbal-djihadista, e os
enredos das intenções jurídico-islâmicas com experiência histórica (desde as
cruzadas até à história colonial mais actual) estendem-se até à actualidade.
Posições que, embora marginais, assumem grande eficácia nos meios de
comunicação.
O facto de a Europa, enquanto local de residência permanente, não ter sido até
hoje enquadrada positivamente nas categorias islâmicas, bem como a
circunstância de os conceitos islâmicos estabelecidos não abarcarem a realidade
de 20 milhões de imigrantes, populações provenientes das colónias, refugiados e
cidadãos que a si mesmos se apresentam como muçulmanos ou são por outros
qualificados como tal devido às suas origens étnicas, são aspectos que chamam a
atenção para a necessidade de desenvolver novos conceitos. Novas condições e
experiências de vida requerem novas respostas a novas perguntas. As respectivas
discussões não tratam apenas da situação internacional e da migração, mas
baseiam-se também, no nosso caso, nas experiências em contexto europeu.
Mandaville descreve a Europa como um "contexto ímpar para a reavaliação de
teorias, crenças e tradições, enquanto um transnacionalismo acrescido franqueia
o mundo a estas novas reformulações" (Mandaville, 2003, pp. 140-141). Não
marcam o início da história mais recente da nova presença islâmica
18
na Europa, mas juntaram-se a uma segunda geração que já não encara a sua
estada como temporária, pois aí nasceu e cresceu.
A tese de um jogo de permuta entre universidades e comunidades
Como foi anteriormente referido, diversos contributos recentes de
investigadores interpretam determinadas actuações de muçulmanos dispersos pelo
mundo, bem como de diferentes grupos islâmicos, escolas de pensamento e redes
internacionais, por meio dos conceitos de transnacionalidade ou de comunidades
transnacionais (por exemplo, Mandaville, 2001 e 2003, Werbner, 2002, Allievi e
Nielsen, 2003, Vertovec, 2003, Roy, 2003, Grillo, 2004, e Bowen, 2004). As
características e o alcance das relações entre os muçulmanos mundialmente
dispersos, as suas ligações entre os países de origem e os países de destino,
as viagens (com mercadorias), ocasionalmente o comércio e a circulação de
dinheiro, a participação em conversas e a comunicação através da esfera
virtual, não há dúvida de que constituem indícios do seu carácter
transnacional. Outros investigadores têm debatido a noção de "diáspora
muçulmana" (Saint-Blancat, 1995; Samers, 2003), definindo-a, entre outras
coisas, como uma "antinação" (Sayyid, 2002). Na verdade, nos últimos
trinta anos, os muçulmanos na Europa foram tema em todos os discursos e
perspectivas de investigação que se ocupam da migração. Existem muitas ideias
ou razões suplementares que, do(s) ponto(s) de vista muçulmano(s), são a favor
ou contra os conceitos de diáspora e de transnacionalidade como designação
própria. No entanto, logo que os rótulos exteriores de "diáspora" e
de "transnacionalidade" começam a ser discutidos no que respeita à
sua possível utilização como auto-rotulagem, levanta-se imediatamente a
seguinte dúvida: encontrar-nos-emos perante uma linguagem discursiva que, numa
dinâmica própria e num primeiro momento, se distancia do material (da
experiência dos entrevistados) para, em seguida, ser levada por investigadores
e investigadoras desde as universidades até às comunidades? A resposta não
constitui uma surpresa: sim, foi assim. A tese aqui apresentada para discussão
é a seguinte: no extenso âmbito do tema "muçulmanos na Europa", o
papel essencial da definição, proclamação e, até certo ponto, formação de
"consciências diaspóricas" ou "transnacionais" tem,
efectivamente, origem nos investigadores (na maioria, não muçulmanos) e nas
classes médias instruídas muçulmanas. Se diásporae transnacionalidadesurgem com
significados próprios, então isso deve-se a uma divulgação dessa evidência
efectuada por protagonistas muçulmanos que pertencem a universidades ou
faculdades europeias.
19
O simples "sim" torna-se expressivo quando observamos a
especificidade histórica deste processo, com relevo para as condições sociais
da Europa, não esquecendo a influência das relações e dos acontecimentos
internacionais nem as interacções ao nível translocal. Frequentemente, esse
facto é esquecido em relação aos muçulmanos, quando "o islão" é
percepcionado como algo distante ou exótico e estranho e os protagonistas
locais são erradamente encarados como reprodutores de uma única tradição,
importada sem alterações e simplesmente prolongada (Salih, 2001). Além disso,
afastamos o olhar dos sistemas (neste caso, do islão, da história do direito
islâmico) em que não existem ideias como o conceito recente de
transnacionalidade ou o termo "diáspora" ou as suas novas
conceptualizações semânticas e globais, para nos ocuparmos dos agentes que
modificam tradições históricas. Estas são, como acontece na maior parte das
vezes nos processos de mudanças sociais e/ou na sua análise, as classes médias
educativas
20
, neste caso as universidades e os muçulmanos europeus intelectuais, que
exercem influência na comunicação social ou nas respectivas comunidades. Assim,
podemos descobrir por detrás do simples "sim" deste exemplo as
consequências que a utilização de uma linguagem discursiva secular pode ter nas
políticas comunitárias.
Nova presença islâmica e novos discursos académicos
A situação histórica específica, ou seja, a história da evolução da nova
presença islâmica na Europa, só pode ser compreendida se acrescentarmos mais
alguns dados importantes. Desde o final da Segunda Guerra Mundial, a migração
global, a descolonização, os objectivos educacionais, a fuga de zonas de crise
e de pobreza económica, geraram uma vaga crescente de imigração vinda dos
países maioritariamente muçulmanos em direcção aos estados-nações que durante a
guerra fria eram designados por "Europa livre". Hoje cerca de 20
milhões de pessoas consideradas muçulmanas devido às suas convicções
religiosas e expressões sociopolíticas, ou apenas devido à sua origem
geográfica ou história familiar vivem em sociedades europeias ocidentais. O
número de cidadãos muçulmanos europeus e seus descendentes (que nasceram e
foram educados na Europa) está constantemente a crescer.
Inicialmente, os imigrantes eram sobretudo homens, cuja estada era considerada
provisória por eles próprios e pelos outros, não sendo olhados como muçulmanos,
antes sendo qualificados de acordo com a sua condição económica (por exemplo,
guest workers, à letra "trabalhadores convidados"), com o seu
estatuto jurídico (por exemplo, refugiados) e, sobretudo, com a sua origem
nacional (turcos, paquistaneses, etc.). O facto de não serem vistos como
muçulmanos relaciona-se, por um lado, com a ausência de demonstrações públicas
ou com a exibição de sinais visíveis de religiosidade (Kettani, 1996) e, por
outro, com a falta de interesse público e científico da Europa do pós-guerra e
pós-colonial em relação à religião. Questões ligadas à religião eram, na
altura, consideradas pouco modernas, circunstância que já não se verifica
actualmente (Nielsen, 1992; Pollack, 1997). De um ponto de vista retrospectivo,
apenas em relação aos anos 80 é que se pode falar de uma nova presença islâmica
na Europa, quando a religiosidade dos novos membros da sociedade em relação ao
islão foi organizada de forma visível e de acordo com modelos europeus. Nas
ciências sociais europeias e assim chegamos aos agentes os investigadores
desenvolviam um discurso paralelo, seguindo uma estratégia discursiva livre
que, desde então, e em colaboração com colegas americanos, se centrou
progressivamente nos "muçulmanos na Europa" e no "islão no
Ocidente".
A partir da revolução no Irão, em 1979, voltamos a encontrar o islão nas
agendas políticas e, mais tarde, com o fim do pequeno século XX (1914-1991)
(Hobsbawm, 1995) e da guerra fria, surgiram em várias regiões do mundo
movimentos políticos modernos, de definição religiosa: do despertar do bible
belt americano, durante o governo de Reagan, ou seja, o religious right
protestante nos EUA, passando pela Islamic Salvation Front (FIS) na Argélia,
até ao movimento extremista Comunione e Liberazione, de inspiração católica, em
Itália. Situamos o ponto de viragem da história da nova presença islâmica na
Europa no ano de 1989 (Tiesler, 2006b, p. 93), marcado pela primeira
"polémica do véu" (affaire du foulard) em França, à qual a
comunicação social deu grande relevo, e, no mesmo ano, por ocasião do caso
Rushdie, na Grã-Bretanha, que concentrou a atenção mundial (o protesto público
de muçulmanos em Bradford contra os Versículos Satânicos, que terminou com uma
queima de livros e levou Khomeini a decretar a denominada "fatwa de
morte" contra o escritor Salman Rushdie).
Nestas circunstâncias, cada vez mais se tornavam notórios os problemas
emergentes de minorias étnicas com antecedentes migratórios, nomeadamente
durante a estagnação económica das grandes cidades europeias. Estes problemas
dos muçulmanos que imigraram de regiões de tradição agrária para metrópoles
europeias industrializadas foram explicados através de modelos religiosos,
apesar de pouco terem a ver com o islão e muito mais com um confronto entre
padrões de vida tradicionais e modernos.
Aproximadamente nessa altura, os filhos dos primeiros imigrantes oriundos de
sociedades de maioria islâmica chegavam à idade de ingressar na universidade,
tendo crescido a ouvir os conceitos de postcolonial studies e de cultural
studies e, mais importante ainda, os discursos sobre "identidades
colectivas" tardiamente importados dos Estados Unidos da América (Siems,
2007; Tiesler, 2006b). Com a formação de classes médias euro-muçulmanas, que
tinham frequentado os sistemas de ensino locais, aumentaram os contributos de
académicos e de intelectuais muçulmanos sobre o tema "muçulmanos na
Europa", bem como os debates dentro do islão, que reflectiam as
experiências de emigração e das minorias, por um lado, em colaboração com
responsáveis universitários e religiosos nos países de origem (dos pais) e por
outro, demarcando-se e opondo-se a eles.
Protagonistas de modernidades islâmicas
Dada a actual situação das minorias muçulmanas, e atentendo ao panorama do
ensino islâmico tradicional, considerou-se que as novas condições sociais
criaram a oportunidade e a necessidade de se desenvolverem novos conceitos. No
âmbito do desenvolvimento destes novos conceitos euro-islâmicos, não se deve
ignorar a linguagem discursiva secular, porque os seus agentes são formados em
instituições onde lhes são facultados esses instrumentos intelectuais. Contudo,
e na sua grande parte, esses agentes têm educação religiosa e alguma influência
nas suas comunidades. Assim, o meu interesse incide, mediante uma análise
discursiva, no posicionamento dos conceitos da política de identidade e nos
conceitos da teologia e do direito islâmico que foram desenvolvidos na Europa e
que têm relação com o espaço europeu, dando especial atenção ao comportamento
sociológico dos agentes sociais.
No centro da análise situam-se os trabalhos dos dois intelectuais muçulmanos
anteriormente referidos: Tariq Ramadan e S. Sayyid. Tariq Ramadan é, hoje em
dia, o autor euro-islâmico mais conhecido. Neto de Hasan al-Banna
21
e filho do exilado egípcio Said Ramadan (ambos considerados "gigantes dos
movimentos de reislamização" (v. Q-News, 312, 1999), começou por trabalhar
como pedagogo na Suíça e, mais tarde, como activista em organizações de ajuda
humanitária ao Terceiro Mundo. Só há cerca quinze anos é que este suíço
frequenta o palco das actividades islâmicas na Europa, sendo consultor nas
comissões europeias que se ocupam das populações muçulmanas na Europe de hoje.
Para Ramadan, a chave para o sucesso da integração muçulmana na Europa reside
na obtenção de uma formação secular e islâmica, ou seja, encontra-se em
primeiro lugar na própria fé, no islão, cujas fontes textuais devem ser
interpretadas à luz do contexto social e histórico actual. Tendo feito o
doutoramento em Friburgo sobre Nietzsche (co-orientado por Reinhard Schulze) e
estudado direito islâmico na Universidade Al-Azhar, no Cairo, torna-se óbvio
que Ramadan é a pessoa adequada para um empreendimento desta dimensão, devido à
sua história familiar. Talvez haja até quem afirme que ele estava predestinado
para tal. Ramadan efectuou a referida interpretação com sucesso, como se pode
comprovar pela difusão internacional de To Be a European Muslim (1999) e de
Muslims in the West and the Future of Islam (2003) tanto em círculos muçulmanos
como não muçulmanos. Também é visto como precursor de ideias e activista de uma
islamização contemporânea, de "compatibilização europeia" dos
muçulmanos na Europa, sendo assim claramente integrável na tradição familiar
dos dirigentes de movimentos de (re)islamização.
Tariq Ramadan é o mais importante elo de ligação de um novo movimento
internacional de activistas islâmicos que se dedicam, hoje em dia, à defesa da
democracia e dos direitos do homem e que se preocupam em estabelecer um
entendimento com a classe média secularizada (Kepel, 2002, p. 429). Os seus
conceitos podem ser entendidos através da noção de "pós-islamismo".
Segundo Asef Bayat (2005), a viragem pós-islamista é caracterizada pela
promoção e proclamação de direitos, em vez de obrigações, de pluralidade, em
vez de umavoz singular e autoritária, de historicidade, em vez de escritura
imutável, e de futuro, em vez de passado. Ramadan é também um orador
carismático e um pregador, cujos discursos são solicitados não apenas em
conferências académicas, em encontros de especialistas de política europeia e
em círculos de diálogos inter-religiosos, mas também constantemente, e desde o
princípio ou meados dos anos 90, nos movimentos de "jovens
muçulmanos" franceses (por exemplo, a Union des Jeunes Musulmans, UJM),
neste caso em combinação com temas espirituais. No essencial, estes movimentos
reclamam a constituição de uma "identidade islâmica", apelando para
uma ideia de comunidade (Kepel, 1996, p. 325), opinião que se reporta à
Irmandade Muçulmana (Muslim Brotherhood) e cujos impulsionadores e defensores
dentro da juventude franco-islâmica foram sobretudo Tariq Ramadan e o seu irmão
Hani (imã da comunidade islâmica de Genebra)22. O que não significa que Ramadan
pertença a qualquer movimento da Irmandade Muçulmana; ele é, antes de mais, um
intelectual crítico e independente, tal como S. Sayyid.
Ao contrário de Ramadan, Sayyid não é um pregador nem utiliza uma argumentação
teológica, pelo menos em contextos que eu conheça
23
. Para além de ser um professor universitário britânico, é também um muslim
networker,como designadamente fica comprovado pela sua participação no fórum de
discussão no Muslim Institute, em Londres. Os seus trabalhos nunca abandonam o
terreno de uma linguagem rigorosa e crítica, cultivada dentro do contexto
teórico da ciência política, da filosofia e da sociologia, que demonstra uma
formação filosófica e um nível de pensamento acima dos discursos dominantes
ocidentais24. Também não abdica dessa linguagem em textos que são publicados,
por exemplo, na "sala de leitura" virtual do Jamaat-e-Islami
Bangladesh25.
Na verdade, Tariq Ramadan também se distancia da linguagem habitual dos
religiosos e dos intelectuais islâmicos. Mas identifica-se com o motivo
principal desse grupo, o que levou a que, frequentemente, em artigos de jornais
e outros, se referissem a ele como a cabeça de Jano ou o cavalo de Tróia do
fundamentalismo, ou que o comparassem com Martinho Lutero ou com os teólogos de
libertação da América Latina dos anos 80. Essas comparações tornaram-se, de
alguma forma, obrigatórias na imprensa, bem como nos artigos da internet que o
referem.
Horário nobre para conceitos de espaço e pertença
O essencial dos trabalhos destes autores só pode ser aqui abordado
resumidamente
26
. Interessante para nós e no âmbito da tese acima referida é o ponto de
partida desses trabalhos e o tipo de conceitos que aí são articulados ou
desenvolvidos. A partir do início dos anos 90, Tariq Ramadan tem centralizado o
seu interesse na lacuna do sistema jurídico islâmico acima descrito. Diz ele
que é premente definir a Europa como um local de vivência muçulmana (1999, p.
145): as condições de vida dos muçulmanos na Europa são boas, embora este nível
nada tenha a ver com a sua condição minoritária. De acordo com este autor, a
segurança de um muçulmano não é maior nos países de maioria muçulmana do que na
Europa. Ramadan invalida a referida lacuna, na medida em que cria um novo
conceito de "território" com base na antiga divisão do mundo em dois:
o "território da profissão de fé", ospace of testimony, ao qual
claramente pertence a Europa.
De sublinhar é o facto de a obra de Tariq Ramadan, To Be a European Muslim
(1999), demonstrar que existe uma crescente aceitação da tentativa de
regulamentação jurídico-islâmica e de conceptualização teológica islâmica da
situação minoritária, levando ao fim da estigmatização dos muçulmanos que nela
se encontram. Ramadan rejeita uma transferência terminológica relativamente ao
termo judaico da diáspora com o argumento, entre outros, de que a definição da
umma não inclui o conceito de exclusão27. Por isso, não utiliza como ponto de
partida para a sua argumentação o clássico modelo do judaísmo helénico, que
defende que todos os judeus vivem na diáspora, mas antes a moderna ideologia
sionista, que tencionava atrair a imigração para o novo Estado de Israel,
aquando da sua fundação, e que, seguidamente, estigmatizou os judeus da
diáspora (Zuckermann, 1997).
Quando do lado islâmico se fala de diáspora muçulmana, na maior parte dos casos
as conotações são sociodemográficas, incluem referências étnicas ou procuram
ser compreendidas como um conceito político em todo o caso, não se referem a
discussões islamológicas ou conceptuais
28
. Assim, a noção de Sayyid de uma diáspora muçulmana não é teológica. Na base
das suas reflexões encontram-se, por um lado, as actuais interpretações da umma
e, por outro, o acervo das discussões teóricas acerca das intermináveis
extensões do termo "diáspora". Na exposição literária do termo umma
como lugar de pertença pode afirmar-se, conclusivamente, que a umma é
estilizada como a comunidade imaginada por excelência, the imagined community
(Anderson, 1991), ou como a própria nação, the very nation (Tiesler, 1999).
Sayyid caminha em sentido contrário e descreve a umma como um fenómeno não
nacional,a-national, que simultaneamente questiona e transcende a lógica da
nação:
A afirmação da subjectividade muçulmana representa um sério desafio à ideia de
nação [...] O islão suspende a lógica da nação ao evidenciar o problema da
integração, isto é, como incluir várias populações dentro das fronteiras da
mesma nação, e ao incidir a sua atenção no problema da lealdade dessas
populações para com uma entidade mais ampla do que a nação [Sayyid, 2002, p. 2
e 4]
Recorrendo ao aparelho teórico das modernas teorias da nação (Derrida, em
particular), Sayyid argumenta contra a corrente. No seu caminho para a
formulação da subjectividade muçulmana, com o apoio da noção de diáspora
muçulmana entendida como antinação, Sayyid afirma claramente: a umma não é uma
nação. Em primeiro lugar, refere que a nação define uma pátria, enquanto a
diáspora descreve uma situação sem pátria. No caso de uma nação, os sujeitos
nacionais e o território estariam juntos, mas no caso da diáspora não. A
diáspora não é o que se encontra em frente, não é o "outro" dentro de
uma nação. Assim, a existência de uma diáspora dentro de uma nação evita a sua
coesão, ou a unidade da nação. Reside aqui o carácter antinacional da diáspora.
Além disso, segundo Sayyid, a umma não é uma comunidade económica ou comercial,
uma civilização ou uma sociedade linguística e não revela realmente um estilo
de vida comum. O caminho da conceptualização de uma diáspora muçulmana parte de
duas considerações: em primeiro lugar, está presente a ideia de que a
proclamação ou as discussões acerca de uma subjectividade muçulmana podem ser
encontradas, hoje em dia, em todas as comunidades islâmicas do mundo. Contudo,
em segundo lugar, surge a seguinte questão:
Ainda existem algumas práticas que são comuns entre os muçulmanos (por exemplo,
os muçulmanos rezam voltados para Meca); contudo, é difícil concluir [ ] que
isso constitua a unidade da ummano seu modo de vida uniforme. Se a ummanão é
uma nação, um mercado comum ou uma civilização será porventura alguma coisa?
Será que a dificuldade em identificar a umma sugere que a ideia de uma
subjectividade muçulmana não passa de uma quimera? Se a identidade muçulmana é
tão fragmentária, como será possível conceptualizá-la? Um forma será concebê-la
em termos de uma diáspora muçulmana [Sayyid, 2002, p. 6].
Apesar das claras diferenças entre os trabalhos de Ramadan e Sayyid, as
questões colocadas são, na sua essência, muito parecidas. Ramadan, o político
da identidade, sintetiza-as da seguinte maneira:
Onde estamos nós? Quem somos nós? A que lugar ou a quem pertencemos? Qual é a
nossa "identidade"?29
Estas questões e as respectivas reflexões não marcam o princípio da história da
nova presença islâmica na Europa, mas colocam-se com mais premência desde o
final dos anos 80 a uma segunda geração de intelectuais muçulmanos. Enquanto
Ramadan procura soluções que aos jovens europeus com ascendência muçulmana
oferecem a possibilidade de serem mais islâmicos, sem os obrigar a serem menos
europeus, Sayyid (s.d.) entende esta mesma questão como um desafio colocado aos
académicos.
Podemos resumir os conceitos de Ramadan e Sayyid com o lema "conceitos de
espaço e pertença",concepts of space and belonging, uma temática que se
articula com as "questões de espaço e de pertença", questions of
space and belonging, cuja relevância nas sociedades dominantes e nas políticas
das "maiorias" europeias vem crescendo desde os anos 80, como é
confirmado pelo debate sobre as "identidades"
30
nacionais e culturais, bem como pelos discursos académicos (Claussen, 2000b).
De uma forma breve (ou lacónica), podemos dizer que os intelectuais muçulmanos
colocam estas questões, não porque uma avó do Afeganistão ou um imã oriundo da
Turquia estão a debater "identidades colectivas", mas porque, na
Europa, essas questões estão constantemente a ser invocadas nos discursos
proferidos nos meios académicos, públicos e políticos.
Conclusão
Como foi anteriormente mencionado, o contexto discursivo no âmbito do qual
foram escritas as obras dos académicos europeus Ramadan e Sayyid é decisivo
como suporte da tese segundo a qual existe uma dinâmica relação pendular entre
a investigação em ciências sociais e as políticas dirigidas às comunidades.
Os discursos dominantes acima referidos, desde o multiculturalismo até à
transnacionalidade, nos quais são tratadas, entre outras questões, as
diferenças entre maiorias e minorias sociais e em que também se encontram
pistas para "saber como estudar" populações muçulmanas locais,
remetem, desde o final do pequeno século XX, para três concepções.
Em primeiro lugar, para o denominado cultural turn, que chega a extravasar as
ciências culturais, políticas e socias. De um ponto de vista crítico, trata-se
aqui de uma aplicação cultural às problemáticas sociais. As políticas das
maiorias e das minorias revelam um desenvolvimento crescente em relação a
atribuições próprias ou alheias de índole religiosa e cultural, que resultam em
categorias de origem ou ascendência já ultrapassadas ao longo da história
31
. A tradição passa a ser argumento e modelo explicativo, anunciando-se um
"retorno à tradição", mas esquecendo-se muitas vezes que se recua
quase sempre para algo que nunca existiu com essa forma.
Como segunda tendência, podemos considerar as novidades conceptuais de
"espacialização", que surgem com a nova descoberta de espaços
(nacionais) e reclamam "recordações colectivas", conformes a um
equivalente individual-psicológico. Este desenvolvimento, que foi previsto por
Michel Foucault, entre outros, para o fim do século xx em relação à importância
do espaço (a presente época será talvez, acima de tudo, a época do espaço), é
muitas vezes utilizado erradamente como "fenómeno de globalização",
apenas ganhando clareza quando pensado em paralelo com o aumento dos discursos
de "identidade". Porque esta é a mais decisiva das concepções
complexas: a procura e a atribução de "identidades colectivas". Pelo
menos desde o fim da guerra fria, as conhecidas categorias de subjectividade
colectiva, como povo, nação, grupoeclasse, começaram a evoluir, dando origem a
um universo de questões abertas para as ciências sociais, preocupadas com
fenómenos de actores e de grupos sociais e colectividades. Actualmente, as
atribuições de "identidades colectivas" estão "à mão de
semear", apresentando frequentemente o risco de caírem na generalização e
de se tornarem redutoras.
Por forma a tornar mais acessível a dialéctica da reificação e da secularização
falhada, Detlev Claussen, na tradição da teoria crítica, categorizou estas
novas ideologias em termos da "religião da vida quotidiana"
(Alltagsreligion) (Claussen, 2000c). Segundo este autor, a experiência da
desintegração social reintroduz as questões básicas do significado social na
consciência quotidiana, isto de uma forma radical, como nunca antes acontecera.
A noção da "religião do quotidiano" revela-se útil para tornar opacas
relações explicáveis em termos de polaridades. Para o crente, a religião do
quotidiano introduz e justifica por meio de uma estilização da própria
vitimização do indivíduos uma clara separação entre amigos e inimigos e, como
refere Claussen (1994, p. 62), oferece ao indivíduo respostas para todas as
questões centrais do significado social que uma sociedade sedenta de
"identidade" exige: quem somos nós?; donde viemos?; quem é o
culpado?; de acordo com os requisitos da mentalidade do dia-a-dia, pouco
disposta a lidar, em profundidade, com problemas de difícil solução. As
linguagens discursivas dos intelectuais são influentes porque, hoje em dia, são
rapidamente transmitidas ao público. Contudo, são por certo de curta duração
como fica demonstrado no caso das "identidades colectivas",
ultrapassadas por novas perspectivas que lidam, por exemplo, com movimentos
sociais na era da "pós-identidade" e que nos chegam dos Estados
Unidos (Laraña et al., 1994). Apesar disso, para as classes médias ocidentais e
não ocidentais, é aparentemente bastante difícil desistir da procura e da
proclamação de "identidades colectivas", nacionais e religiosas
(Tiesler, 2006b, p. 170).
A interacção entre estas concepções e as questões centrais relativas à
etnicidade, à diáspora, à transnacionalidade e às discussões sobre a procura da
"identidade colectiva" e dos conceitos do "próprio" e do
"outro" pode, em todo o caso, ser articulada ou discutida em função
da construção de espaços (spaces) e de pertenças (belonging). Neste cenário,
são compreensíveis os trabalhos de Ramadan e Sayyid, bem como as políticas de
reconhecimento das comunidades. Dado que a noção de uma "identidade
europeia" se tornou extremamente popular, os representantes dos interesses
muçulmanos transformaram-se em políticos identitários. Os conceitos euro-
muçulmanos podem ser lidos como respostas tanto a discursos dominantes como a
novas experiências societais. A integração das actuais linguagens discursivas
nos conceitos "euro-islâmicos" e nas políticas comunitárias
testemunha a transformação da religião tradicional em religião moderna. Por
religião tradicional podemos entender a prática religiosa ritualista ou a
sabedoria religiosa transmitida oralmente, sem preocupações reflexivas
relativamente aos textos escritos, apenas acessíveis às elites. A chave da
transformação está na formação secular. Uma geração que frequenta os sistemas
educativos europeus (ou outros seculares) tem outra perspectiva em relação à
sua religião ou à dos seus pais. Com outros instrumentos, e com acesso aos
textos escritos, esta geração tem um relacionamento desafiador para com as
autoridades religiosas tradicionais. No âmbito da nova presença islâmica,
verificou-se que os religiosos "importados" dos países de origem não
sabiam responder às questões colocadas pelos jovens muçulmanos integrados no
seu novo contexto. O lugar do antigo responsável da comunidade será em breve ou
já se encontra ocupado por uma nova geração que cresceu na Europa e que aí se
sente "em casa". Essa geração guarda elementos da religião dos pais
e, em alguns casos, propaga a ideia de um "retorno à verdadeira
essência" do islão. A definição daquilo que é a verdadeira essência
encontra-se no princípio da pluralidade, muito diferente na Europa daquilo que
se passa, por exemplo, na Argélia, na Arábia Saudita ou no Afeganistão. Mesmo
que especialmente entre os jovens muçulmanos europeus se discuta o
"retorno ao verdadeiro islão", a situação requer que se
"retorne" a algo que nunca existiu sob essa forma, nomeadamente
porque não se verificavam as mesmas condições sociais nas quais se desenvolve a
religiosidade actual. Apesar de as novas perspectivas e as práticas e ideias
islâmicas serem muito variadas, são diferentes daquelas que seguiam os avós
desta nova geração. Formação secular, meios de comunicação, formas
organizativas, condições quotidianas, estratégias políticas, socialização, mas
também experiências de exclusão nas sociedades europeias, bem como a integração
de novas linguagens discursivas nos debates islâmicos, apontam para as
seguintes tendências: por um lado, a europeização das culturas muçulmanas e,
por outro, ao mesmo tempo, a islamização dos europeus com ascendência
muçulmana. Estas tendências só podem ser compreendidas à luz de um contexto
europeu que, desde o final da guerra fria, assistiu à formação de espaços de
debate, quer públicos, quer no âmbito das ciências sociais, acerca das
atribuições tradicionais e religiosas, incluindo a promoção do
"transnacionalismo" e das "diásporas", bem como das
respectivas formas de consciencialização e de identidade políticas.