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EuPTHUHu0003-25732009000300002

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National varietyEu
Year2009
SourceScielo

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Emigração e desenvolvimento da previdência social em Portugal Em 17 de Janeiro de 1967, Gonçalves de Proença volta à carga informando Salazar de que

o segundo problema apreciado com o senhor ministro da Economia sobre a possível extensão, por intermédio das caixas de previdência e casas do povo, do abono de família aos trabalhadores rurais encontrou também da sua parte a maior receptividade, tendo ficado assente que o assunto irá ser convenientemente estudado pelos dois departamentos, na dupla perspectiva das possibilidades económicas da nossa lavoura e do interesse social das providências a adoptar (ainda recentemente reclamadas na Assembleia Nacional). Na consideração deste último aspecto foi especialmente ponderado o valor positivo da política social como meio de fixação dos trabalhadores ao campo, donde hoje todos procuram fugir, merecendo igual ponderação os aspectos económicos imediatos dos novos encargos que para o efeito terão de ser criados. De acordo com a orientação recebida, serão esses estudos (que, aliás, se encontram bastante adiantados da nossa parte) levados oportunamente ao conhecimento de Vossa Excelência, a quem competirá, uma vez mais, dar a palavra definitiva de orientação e, seguramente, o mérito de este novo progresso da nossa política social 41 .

Era ao presidente do Conselho que cabia tomar a decisão final. Todavia, a receptividade que Gonçalves Proença julgou ter encontrado junto do ministro da Economia, José Gonçalo Correia de Oliveira, é totalmente negada numa carta que este último envia, em 17 de Abril de 1967, ao ministro das Corporações e da qual, através de uma cópia, conta a Salazar. Esta correspondência constitui uma longa queixa contra a perspectiva de uma extensão da previdência e constitui, por outro lado, um ataque às acções levadas a cabo pelo ministro das Corporações no domínio da regulamentação do trabalho. Abordando a política social rural, isto é, a política de salários, o esforço do INTP para que os grémios aceitassem os contratos sobre o horário de trabalho rural, e o esboço de projecto de protecção dos rurais, Correia de Oliveira mobiliza o tópico da "retórica reaccionária" (Hirschman, 1991) para recusar os postulados da reforma. Segundo ele, o aumento dos salários rurais não estava correlacionado com a produtividade. Por um lado, ele põe em dúvida o instrumento estatístico ao afirmar que os salários médios não reflectiam as diferenças regionais e temporais. Por outro, ele aponta o darwinismo social da emigração, ideia partilhada também por parte da oposição, defendendo que esta tem

incidido, como é natural, nos mais aptos, nos mais empreendedores, nos melhores. Em muitas regiões vão, assim, ficando livres para o trabalho agrícola os diminuídos fisicamente e os que nunca prestaram para coisa nenhuma. E, porque se encontram sozinhos em campo, são estes os que beneficiam e impõem as constantes elevações de salário.

Por outro lado, a escassez da oferta está a levar os nossos trabalhadores agrícolas a não aceitar o menor reparo ao seu trabalho: trabalham como querem, quanto lhes apetece e segundo o seu critério: "e, se o patrão não esta contente, é dizer porque quem o queira e por mais não falta". Tudo isto leva a uma redução enorme da produtividade que, dantes era baixíssima, do trabalhador agrícola 42 .

Em seguida, afirma ainda que não pode aceitar um novo aumento dos custos da produção, pois não quer aumentar os preços (e daí, em consequência, alimentar a inflação), e que os proprietários não podem suportar um tal encargo, ocultando a pobreza e a miséria reinante nos campos e insinuando que os trabalhadores eram correctamente remunerados:

É curioso notar que os nossos trabalhadores que, no campo, alcançam um horário de oito horas quase sempre se recusam a trabalhar fora do horário seja qual for o preço que se lhe ofereça pelas horas suplementares. Isto permite concluir que o salário ganho nas oito horas os satisfaz e alguma razão terão para o seu contentamento 43 .

Enfim, é sobre a implantação do sistema de protecção social que ele estende os dois principais argumentos da retórica reaccionária: a inutilidade e a perigosidade. Segundo ele, a proposta do ministro das Corporações estava votada à inutilidade, pois, "de resto teria que ser muito vasto, um esquema de política social com suficiente poder de atracção de uma mão-de-obra agrícola que teria de se qualificar para merecer o que quer ganhar. O esquema em causa é, em meu entender, insuficiente para atingir aquele objectivo e, mesmo assim, é incomportável" 44 . Seguidamente, convoca o argumento do perigo, afirmando viver "angustiado com o receio de não poder o governo evitar uma ruptura das bases em que se baseia, tantos anos, a estabilidade financeira interna que permitiu ao país realizar tudo o que fez. Se essa ruptura se verifica, arriscaremos tudo desde a segurança do trabalhador à segurança da nação"45. Termina a sua missiva pedindo ao ministro das Corporações que abandone o seu projecto porque: "não podendo ser aceite, ele vai criar, no trabalhador rural e nas organizações que o pretendem subverter, um pretexto de descontentamento contra patrões e contra a política económica que pode ter as mais sérias e injustas consequências" 46 .

A longa argumentação desenvolvida pelo ministro da Economia e o conflito com Gonçalves de Proença ilustram a falência do neofisiocratismo português e as contradições da política económica nos anos 60, contradições personalizadas na figura de Correia de Oliveira. O principal actor da abertura económica e comercial de Portugal à Europa (Lucena, 1999; Leitão, 2007) erige-se em defensor dos grupos conservadores, os proprietários agrícolas, e mais particularmente os alentejanos e os ribatejanos. Quando foi nomeado ministro da Economia em 1965, substituindo José Maria Teixeira Pinto, o objectivo de Correia de Oliveira era acalmar a "actividade agrícola", que se "encontrava então" num estado de "autêntica revolta", convencida que estava "de que o governo a queria levar ao seu colapso para, depois, promover uma grande reforma agrária" 47 . Parte dos proprietários agrícolas criticava virulentamente José Maria Teixeira Pinto e sentia-se "quase que troçados pelo senhor ministro da Economia, quando_comparecemos_diante_dele_ou_que_Sua_Excelência_vem_falar_ao país,_através_da_rádio_televisão_portuguesa"48. Correia de Oliveira censurava a acção dos técnicos de sensibilidade católica social do seu ministério: "um dos serviços do ministério da Economia criado para o apoio à lavoura preocupava-se mais em pregar política social e reforma agrária do que em fazer apoio técnico e financeiro e gastava parte das suas disponibilidades a imprimir e a distribuir, de graças, excertos dos documentos emanados da Santa e de centros laicos católicos"49. Para apaziguar as queixas expressas por parte dos proprietários agrícolas, Correia de Oliveira foi visitar pessoalmente os grandes proprietários alentejanos. Cutileiro conta que, quando passou por Monsaraz, Correia de Oliveira "permaneceu em casa de um dos latifundiários e foi que se procedeu à análise da situação" (Cutileiro, 1977 [1971], p. 212). As medidas tomadas pelo ministro da Economia enquadraram- se na política económica salazarista, de laivos mercantilistas, cuja prioridade era controlar a inflação e proteger-se dos seus efeitos políticos (reivindicações populares, greves, desordens públicas, etc.) (Salazar, 1998 [1918]; Garrido, 2004). Os governos de Salazar tentaram assim manter os salários dos trabalhadores agrícola baixos para abastecer as cidades de produtos agrícolas baratos [cujos preços, como Correia de Oliveira confessou em 1966, foram congelados (Cabral, 1986, p. 8)], contendo assim os salários das populações urbanas, a inflação e os movimentos sociais. Mas o abastecimento das cidades a baixo preço não devia reduzir demasiado os lucros dos proprietários agrícolas. A intervenção de Correia de Oliveira perante as iniciativas de Gonçalves de Proença visava estes dois objectivos: acalmar os proprietários agrícolas do Ribatejo e do Alentejo sem ter de aumentar os preços dos produtos agrícolas tabelados e, assim, favorecer a inflação. Perante as reivindicações dos latifundiários que reclamavam anos o aumento dos preços agrícolas o governo preferia dar subsídios e tentar manter baixos, por vários meios, os salários dos trabalhadores agrícolas. Neste caso, esta meta era alcançada tirando aos trabalhadores rurais a possibilidade de obter regalias sociais. Ora isto ia contra certas reivindicações feitas ao longo dos anos 60 pela Corporação da Lavoura, então dirigida por António Pereira Caldas de Almeida, que pedia a Salazar o "estabelecimento imediato do abono de família para os trabalhadores rurais, colonos da Junta de Colonização Interna e empresários familiais [sic] e uma subida no preço"50 dos principais cereais. As organizações corporativas da lavoura declaravam-se favoráveis à extensão das políticas sociais aos trabalhadores rurais desde que os preços dos produtos agrícolas aumentassem (Lucena, 1980). O que Salazar, temendo a inflação, sempre recusou. A recusa da extensão da previdência social aos rurais também divergia das opiniões expressas por vários técnicos do Ministério das Corporações e da Previdência Social, que não mobilizavam somente a argumentação da fixação da população mas eram também influenciados pelo catolicismo social da justiça social. Assim, Soeiro de Sousa afirmava nas páginas da Análise Social: "o mundo do trabalho agrícola é ainda o que tem maior peso entre os três sectores de actividade económica, não faz sentido que a previdência continue a ignorar tão desafortunado núcleo populacional" (Sousa, 1966b). Na década de 60, Salazar, pouco sensibilizado pela justiça social, focava as suas prioridades no esforço de guerra e preferia conciliar dois objectivos aparentemente pouco conciliáveis. Por um lado, pretendia não descontentar os proprietários agrícolas em declínio económico, social e político e não fragmentar perigosamente a "retaguarda". Por outro lado, procurava favorecer um importante crescimento económico, indispensável à continuação das guerras coloniais. Este desenvolvimento, ao contrário do que pretendiam os actores políticos e administrativos de sensibilidade católica, não reduzia as desigualdades sociais, aumentava-as 51 . A extensão da previdência social aos rurais era vista por Salazar como uma fonte de problemas inútil com os proprietários rurais e uma medida gravosa que ia proteger uma população que devia movimentar-se, não obstante os discursos elogiando a imobilidade52.

Embora vencido pelo ministro da Economia, Gonçalves de Proença, alguns meses mais tarde, não hesita em exprimir publicamente o seu desacordo com a decisão tomada. Recusando os argumentos que diziam que os custos destas medidas seriam demasiado elevados, ele argumenta que, pelo contrário,

os encargos que o alargamento da previdência social a esses sectores daria lugar são bem menores do que os custos de toda a ordem a que origem a ausência desse seguro, dado a influência que tal facto tem tido, por exemplo, sobre o êxodo rural e consequentes falta de mão- de-obra e aumento do custo de retribuição do trabalho. Queremos com isto significar que, em nossa opinião, esse êxodo pode em certa medida ser combatido através da criação de condições que tornem mais aliciante o trabalho, para o que muito pode contribuir o seguro social" [Proença, 1965, pp. 32-33].

Gonçalves de Proença liga, claramente, a melhoria das prestações fornecidas pelo Estado à redução do volume da emigração. Para ele, se se pretendia verdadeiramente fixar a população em Portugal, era preciso melhorar as suas condições de vida e a sua protecção. O veto de Correia de Oliveira e de Salazar à extensão da previdência social demonstra a fecundidade da "polity- centered analysis" proposta por Theda Skocpol (1992, p. 40). Foi a natureza particular do jogo político nos últimos anos do salazarismo que impediu a introdução de políticas recusadas pelos grupos conservadores em declínio. E isto apesar da existência no próprio seio do Estado, nomeadamente no Ministério das Corporações e da Previdência Social, de uma "nebulosa reformadora" (Topalov, 1999) constituída por "tecnocatólicos".

Norteados pela doutrina social da Igreja, que se encontrava então em plena reformulação, e pelas normas difundidas pelas organizações internacionais, agrupados em vários associações católicas (Acção Católica, Juventude Católica Universitária, etc.), estes técnicos ligados ao Ministério das Corporações foram actores da reformulação da política social numa tentativa de luta contra as desigualdades, de modernização das estruturas produtivas e de adopção e implementação do modelo fordista em Portugal. Muitos destes técnicos do Ministério das Corporações eram próximos do sociólogo Adérito Sedas Nunes e colaboravam com a revista que ele dirigia de facto, a Análise Social. Houve assim uma certa convergência entre técnicos do ministério das Corporações de sensibilidade católica social e a disciplina sociológica 53 . Esta influência da sociologia sobre os técnicos que pugnaram pela implementação do Estado-providência vai ao encontro de outra hipótese de Stein Kuhnle (1996) e dos trabalhos de autores como Dietrich Rueschemeyer e Theda Skocpol (1996) ou Pierre Rosanvallon (1990). Com efeito, o desenvolvimento das ciências sociais e das estatísticas permitiu que certos fenómenos sociais até então invisíveis pudessem ser construídos em "problemas públicos" por certos actores (como alguns actores estatais). Em Portugal, os sociólogos e outros investigadores sociais tentaram "mostrar as realidades sociais que o regime ignorava ou escondia, desmontar as ocultações sociais que serviam ao regime para se justificar a si próprio ou para impedir que se revelassem os seus aspectos sociais mais clamorosos" (Nunes, 1988, p. 17). Assim, os artigos da revista Análise Social,criada em 1963, descreviam, quantificavam e apontavam os atrasos, as insuficiências, as desigualdades vigentes na sociedade portuguesa.

Caetano, política social e legitimidade Dois meses depois da sua chegada à Presidência do Conselho, na Assembleia Nacional, Caetano apresentava o seu programa relativamente à política social: "procurará [...] acelerar o ritmo da política social para que se acompanhe, e até estimule, o desenvolvimento económico e assegure mais equitativa distribuição dos rendimentos. Neste capítulo a situação dos trabalhadores rurais merecerá especial cuidado, por dever de justiça e até por necessidade de fixar nos campos a mão-de-obra de que a agricultura carece" (Caetano, 1969, p. 98). Nesta frase, Caetano resume as três ideias basilares, repetidas desde os anos 50, que estiveram na origem da reforma de 1962 e das propostas do seu alargamento e aprofundamento: limitar a emigração, favorecer a modernização do país e reduzir as desigualdades sociais em nome da justiça social. Em Abril de 1969, na sua terceira "conversa em família", Caetano perguntava-se: "como havemos de conseguir estancar, ou pelo menos reduzir consideravelmente a emigração para o estrangeiro? Pois melhorando as condições da vida rural. Se tivermos uma agricultura mais rica, associada à indústria e produzindo para grandes mercados, poderá haver trabalho mais constante e melhores salários, previdência e assistência eficazes para os trabalhadores" (Caetano, 1969, p. 102). Assinalando os protestos expressos contra a sua iniciativa sobre a protecção dos trabalhadores rurais, ele assegurava: "trata-se de fazer justiça aos trabalhadores rurais, desirmanados do operariado fabril em regalias e protecção, e trata-se de agir no próprio interesse das empresas agrícolas, pois se não acudirmos a quem nelas trabalha deixarão de dispor de mão-de-obra dentro de pouco tempo. Continuarmos parados, cruzando os braços perante a iniquidade, em homenagem à rotina, é que não pode ser" (Caetano, 1969, p. 102).

A lei n.º 2144, de 25 de Maio de 1969, inicia o processo de extensão da previdência social aos rurais e a concessão do abono de família, limitando-se, porém, a uma escassa fatia desta população. É sobretudo o decreto n.° 445, de 23 de Setembro de 1970, que realiza a extensão da previdência social aos trabalhadores rurais. Nos anos seguintes, as prestações e serviços fornecidos conhecem várias revalorizações, ainda que sem atingir uma quantidade e uma qualidade comparáveis às oferecidas noutros países europeus.

Por que é que, passados mais de dez anos sobre os pedidos feitos pelo ministro das Corporações no sentido de se alargarem as medidas de previdência social às populações rurais, e numa altura em que o êxodo rural (emigração e migração para o litoral português) havia esvaziado os campos, esta extensão foi finalmente realizada? Por que é que o governo alargou o sistema de previdência social a uma população que, devido à emigração e à subida dos salários que esta proporcionou e às remessas que disponibilizou, vivia menos miseravelmente do que nos fim dos anos 50? Quais eram as motivações de Caetano? Caetano fez desaparecer as barreiras conservadoras que impediram a implantação de medidas prontas vários anos 54 . Rompeu com a inércia que grassou até 1968 e retomou o fio das ideias e dos projectos que se tinham multiplicado nestes anos. O que singulariza a governação de Caetano é que ela põe fim às ambiguidades e à duplicidade que reinaram nos anos 1959-1968. Apesar da entrada de Portugal na EFTA, Salazar nunca reconheceu no espaço público português a escolha da via da modernização e as suas consequências para os sectores tradicionais da sociedade portuguesa, mais particularmente para a burguesia agrária. Os discursos reaccionários e antimodernos preenchiam o espaço público, enquanto os escritos dos industriais e dos modernizadores eram vigiados pela censura55. Mesmo os planos de fomento eram atentamente revistos para eliminar os aspectos mais críticos e potencialmente perturbadores para os meios conservadores. Caetano acaba com esta duplicidade, assumindo o desenvolvimento económico e a modernização do país. A modernização não é vista como um perigo para a ditadura, mas como uma maneira de a salvar, legitimando-a. Nesta busca de uma legitimidade baseada na eficácia económica e no bem-estar da população, Caetano avança rapidamente no assunto da previdência social.

Estas medidas enquadravam-se na política defendida por Caetano desde os anos 50, que pretendia reduzir as desigualdades sociais, ajudar os mais desfavorecidos e assegurar um desenvolvimento harmonioso económico e industrial do país. Eram essas as reivindicações que ele formulara na sua correspondência particular com Salazar ou que inscreveu no II plano de fomento, que preparou quando passou pelo ministério da Presidência do Conselho entre 1955 e 1958. então uma certa continuidade, como mostrou Fernando Rosas, entre as propostas de Caetano antes de 1968 e a sua governação. Por outro lado, em 1968, Caetano recupera o fervilhar de ideias dos anos 50 e 60. Em 1968, em várias políticas públicas, como foi o caso da política social, Caetano tem de promulgar decretos que estavam prontos anos.

Mas é preciso não ver apenas nesta legislação promulgada por Marcelo Caetano uma concessão magnânima ou uma simples coerência com um conjunto de ideias anteriores. Trata-se, mais do que isso, de uma concessão feita a fim de travar o movimento da emigração, entendido como um protesto colectivo silencioso e como uma forma de cortar a insatisfação e o sentimento de insegurança social provocado pela emigração. Diferentemente de Salazar, que viveu quase em clausura durante os últimos anos do seu "reinado", não conhecendo o país senão pelos jornais, pela correspondência recebida e pelos relatos das suas visitas, Marcelo Caetano esteve atento às mutações socioeconómicas do país e possuía uma leitura menos passadista destas evoluções. Esta política não deu os seus frutos a curto prazo, pois a emigração conheceu o seu apogeu entre os anos de 1969 e 1971. Mas ela revela a tentativa de Marcelo Caetano para se ligar às classes populares e para ganhar uma legitimidade à falta da conferida pelo sufrágio livre e concorrencial dos eleitores ou pela tradição à qual ele aspirava a fim de, nomeadamente, se tornar mais independente em relação aos "ultras" salazaristas, representados pelo presidente da República, e de enfraquecer a oposição (Valente, 2002, p. 136; Fernandes, 2005). O início do processo das concessões de regalias sociais à população rural acontece poucos meses antes das eleições legislativas de Novembro de 1969, com as quais Caetano queria legitimar perante Américo Tómas e os "ultras", mas também perante a oposição o seu poder e fortalecer a sua autoridade. Do mesmo modo, as medidas sociais dirigidas à população rural propiciavam a Caetano nas suas visitas à província aclamações populares, em parte organizadas pelas autoridades locais, que ele instrumentalizava na luta travada com Belém. Depois das manifestações de apoio popular, devidamente propagandeadas, Caetano, segundo um antigo ministro do seu governo, podia falar "com vigor reforçado" ao "presidente da República [que] não podia naturalmente ignorar a importância de tão exuberante apoio das populações" (Pinto, 1994, p. 297).

Conclusão O exemplo dos efeitos directos e indirectos da emigração portuguesa sobre a evolução do Estado-providência português demonstra que o estudo do regime autoritário português não pode reproduzir a ideia de uma política autónoma da sociedade na sua globalidade, agindo sem tomar em atenção os movimentos da população, que, como a emigração clandestina o prova, podia desobedecer de facto aos desejos formulados pelas elites e libertar-se das leis destinadas a controlar e regulamentar a mobilidade. E por detrás da imagem de apolitismo ou de passividade que temos do campesinato português, ou da imagem que este transmitiu para se proteger, "resistir e adaptar-se" (Silva, 1998), esconde-se uma variedade de práticas sociais que podemos considerar formas de resistência. As grelhas de análise oferecidas por uma parte da literatura sobre os movimentos sociais revelam-se insuficientes para descodificar as práticas sociais dos indivíduos pertencentes às classes sociais populares nos regimes autoritários. Como defendem estudiosos de regimes totalitários e autoritários (Blum e Mespoulet, 2003, p. 5), é necessário matizar o primado do político sobre as dinâmicas sociais e ver nas decisões políticas adaptações às tensões existentes no seio da sociedade. Esta perspectiva tem de ser articulada com um estudo fino do campo político e administrativo e das estratégias dos actores que nele actuam e estão em luta para impor ao Estado, portanto à sociedade na sua globalidade, as suas visões do mundo.


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