Para além dos contos de fada: Jacob Grimm, o gramático
1.
Celebra-se, este ano, o bicentenário da primeira edição do primeiro volume dos
contos de fada, i.e. dos Kinder- und Hausmårchen dos irmãos Wilhelm e Jacob
Grimm. Se a fama dos irmãos em praticamente todos os países do mundo se deve,
talvez, em primeiro lugar a este seu trabalho, o mesmo já não se poderá dizer
com tanta segurança com respeito à sua receção na Alemanha, pois é aí que se
valoriza talvez ainda mais o papel protagonista que os dois autores tiveram no
âmbito do nascimento da Ciência da Linguagem. Destacam-se, neste âmbito, três
áreas específicas diferentes, fazendo todas elas, ainda hoje, parte dos Estudos
Germanísticos e para as quais o contributo dos irmãos Grimm foi importante ou
até decisivo:
* no âmbito da Filologia: a edição e interpretação de textos escritos em alto
alemão e médio alto alemão (este trabalho começou já em anos anteriores a
1812);
* no âmbito da Gramática: a edição da Deutsche Grammatik [Gramática do Alemão]
por Jacob Grimm, cujo primeiro volume saiu em 1819;
* e no âmbito da Lexicografia: a edição do Deutsches Wörterbuch [Dicionário
alemão], projeto que foi iniciado em 1838. O primeiro volume saiu em 1852,
mas o projeto em si foi terminado apenas após a morte dos irmãos.
Debruçar-me-ei, neste artigo, sobre o segundo destes trabalhos, a Deutsche
Grammatik da autoria de Jacob Grimm, com o objetivo de familiarizar o leitor
com o papel e o impacto que este contributo da autoria grimmiana teve e que
valeu a Jacob Grimm o título de pai da linguística alemã.
2.
Perante a diversidade à primeira vista bastante dispersa dos trabalhos dos
irmãos Grimm, poder-se-á pensar que as áreas acima mencionadas não terão nada
em comum. Nada no entanto seria mais falso que este juízo. Ao invés, há três
denominadores comuns que nos fornecem, enquanto combinados, as causas tanto
para o protagonismo dos Grimm como também para o seu sucesso. Segundo Hermand
(1994: 29s.) e Schmidt (1985: 178), estes três denominadores comuns residem
* numa atitude investigativa que, com um rigor e uma persistência altamente
evoluídos, se entrega à coleção de dados empíricos, relativamente a tudo que
seja pertencente ao domínio do património linguístico alemão, quer sejam
documentos literários, mitos, lendas, literatura oral (p. ex. os contos de
fadas), ou documentos na área do Direito, ou dados referentes à própria
língua alemã.
* Esta coleção considera como valiosos não só a atualidade, mas ainda mais e
até prioritariamente o passado. Daí que o aspeto da historicidade seja o
segundo princípio metodológico intrinsecamente relacionado com a atitude
investigativa dos Grimm.
* Para além disso, nota-se particularmente na atitude dos Grimm uma
sobrevalorização do germânico, i.e. do património nacional frente ao não-
nacional, que se deve a uma decisão deliberadamente tomada e que teve tanto
um impacto metodológico como também repercussões a nível político.
No que se seguirá, tentarei elucidar primordialmente os primeiros dois aspetos
aqui mencionados, que se referem ao método histórico e empírico da linguística
de Jacob Grimm. Porém tanto o alcance do seu trabalho, como também o seu
sucesso e a diferença específica face a outros linguistas do seu tempo não se
entendem se não for considerado o aspeto da ideologia nacional subjacente aos
estudos linguísticos, ou melhor, a combinação específica entre os três aspetos
de empiricidade, historicidade e ideologia nacional.
3.
Como já mencionado acima, é sobretudo a primeira edição do primeiro volume da
Deutsche Grammatik de Jacob Grimm que é considerada como a obra que deu início
à Ciência da Linguagem propriamente dita. A novidade desta obra, porém, não é
uma novidade absoluta que não tivesse nada em comum com o tipo de investigações
que a precederam. Qualquer mudança assenta, sempre, em algo que é comum à
tradição. Como fundo comum que o trabalho de Jacob Grimm partilha com autores
de então poderão destacar-se sobretudo três aspetos:
* a descoberta do sânscrito e das suas semelhanças com o grego, o latim e as
mais tarde assim chamadas línguas indo-europeias (precisamente por causa
deste seu parentesco com o sânscrito) por William Jones e a divulgação desta
descoberta pelos irmãos Schlegel, em inícios de século XIX;
* a apreciação do património da literatura medieval germânica' e da
Volkspoesie, da poesia vulgar ou poesia do povo' com as suas alegadas
caraterísticas de ingenuidade e pureza, que deu origem à sua imagem de
incorruptibilidade e ao seu testemunho de uma era onde ainda havia
felicidade, sinceridade e justeza, particularmente promulgada pelos
românticos da corrente da Frühromantik (F. Schlegel, Novalis) e da
Heidelberger Romantik (A. von Arnim, C. Brentano etc.);
* a conceção, muito divulgada em fins de século XVIII, da linguagem e das
línguas como organismos, ou seja entidades autónomas que possuem uma dinâmica
própria de desenvolvimento e que estão intimamente ligadas à individualidade
e ao caráter de um povo (i.e. dos respetivos falantes da língua), conceção
que deve muito às ideias de Herder. Para além disso, a comparação com a
anatomia sugere que se possa, ao investigar o funcionamento do organismo
língua', chegar à descoberta de regras gerais responsáveis pelo seu
funcionamento e pelo funcionamento da linguagem em geral.
Para avaliar o inédito da obra de Jacob Grimm será então necessário que se
entenda em que medida ele partilhava estes saberes e perspetivas comuns com
outros autores do seu tempo e quais os aspetos onde acrescentava algo de facto
realmente novo. A descoberta do sânscrito, e nomeadamente a obra do grande
indo-europeísta Franz Bopp sobre o sistema das conjugações das línguas
sânscrito, persa, grega, latim e germânica, de 1816, despertou a comunidade dos
estudiosos das línguas para a imprescindibilidade da perspetiva histórica para
um qualquer estudo das línguas.
Jacob Grimm aplicou esta descoberta com particular ênfase e quase que
exclusivamente ao estudo dos estratos remotos da língua alemã, nunca entendendo
a sua vocação no âmbito da linguística comparativa. Esta renúncia ao desafio de
estudos comparatistas teve, no entanto, um efeito positivo, pois a concentração
na história da língua alemã fez com que a investigação se tornasse mais eficaz,
porque baseada num conhecimento aprofundado da base do material desta língua.
No que concerne à grande apreciação da literatura germânica e da Volkspoesie, a
atitude dos Grimm nas suas primeiras obras não se afasta, pelo menos não nitida
e conscientemente, da dos românticos. Os Grimm participaram no projeto
romântico de Arnim e de Brentano da edição de canções tradicionais em Des
Knaben Wunderhorn em 1805, e as edições de textos antigos em Altdeutsche
Wålder, em 1811, ainda não se alicerçam em conhecimentos fundamentados sobre o
desenvolvimento da língua alemã. Terá sido de influência decisiva a recensão
crítica da autoria de A. W. Schlegel dos Altdeutsche Wålder dos Grimm que os
terá incentivado a mudar radicalmente a sua metodologia de trabalho.[1]
Schlegel contestara que as etimologias dos Grimm seguiriam o mau exemplo da
tradição, pois seriam conjeturas feitas com base em meras associações
subjetivas, fundadas em semelhanças fonéticas ou semânticas, mas sem serem
legitimadas com base em conhecimentos sobre a verdadeira formação e o
verdadeiro parentesco das palavras. A crítica era dura, e o seu efeito foi
muito mais rápido do que se poderia esperar. Com a sua Deutsche Grammatik de
1819, Jacob Grimm não só pôs em prática o conselho de Schlegel, mas fê-lo com
tanta excelência que a obra se tornou modelo paradigmático para a Ciência da
Linguagem do século XIX.
No que concerne à ideia da linguagem e das línguas como organismos, o
importante é que se encarou a entidade de língua / linguagem como uma entidade
autónoma que se desenvolve segundo regras próprias. Contudo, se esta ideia se
pôde fazer valer em toda uma gama de especulações filosóficas de então sobre a
função e dignidade da linguagem, é apenas com Jacob Grimm que a ideia de
organismo encontrará uma base empírica muito forte. Tanto o parentesco como o
desenvolvimento das línguas se tornarão, a partir de agora, questões
empiricamente escrutáveis e verificáveis, porque assentes nas mudanças
fonéticas ao longo da história de uma língua e na descoberta das regras e dos
mecanismos destas mudanças.
E é precisamente aí, na descoberta das leis e regras de mudanças fonéticas que
reside a nova metodologia de Jacob Grimm que se tornou modelo exemplar para a
Ciência da Linguagem. Grimm descobriu toda uma série de regularidades de
mudanças fonéticas supostamente ocorridas em tempos primordiais da formação das
línguas indo-germânicas, que hoje em dia se designam como teoria standard da
assim chamada 1. Lautverschiebung [primeira fase de mudanças fonéticas].[2]
Esta teoria ficou para sempre ligada ao nome de Jacob Grimm pela designação de
Grimm's law.
Um efeito colateral do método de Grimm e da sua concentração no desenvolvimento
da língua alemã foi a sensibilização para a variedade dos diferentes dialetos,
negligenciada ou até totalmente ignorada[3] na investigação linguística de
então, tendo portanto impulsionado também o trabalho investigativo neste campo
de estudos.
A obra Deutsche Grammatik de Jacob Grimm teve quase de imediato um eco forte
(cfr. Storost, 1985: 302-328). Praticamente todas as recensões reconheceram o
grande mérito de Jacob Grimm, num tom de grande afirmação ou até de entusiasmo.
Daí parecer legítima a atribuição do título de pai da linguística alemã' a
Jacob Grimm.
4.
Se se apelidar Jacob Grimm como o pai da linguística alemã, convirá no entanto
ter em consideração a especificidade da sua linguística como linguística
histórico-empírica. Usa-se geralmente o termo linguística histórico-
comparatista para classificar o intuito investigativo geral da linguística do
século XIX, mas, como já se mencionou, o objetivo da comparação entre as
línguas da grande família das línguas indo-europeias não fez parte dos
objetivos primários dos estudos dos irmãos Grimm. Daí advir a classificação das
obras e estudos grimmianos como fundamentalmente nacionais'. Se, por um lado,
é certo que o aspeto nacionalista' não se pode dissociar dos aspetos
científicos da obra dos Grimm, seria, por outro lado, falso entender este
nacionalismo' anacronicamente a partir das aceções ligadas às conjunturas
políticas dos séculos XX e XXI. A etiqueta nacionalismo' não apenas sinaliza a
concentração científica no património linguístico alemão, mas implica antes um
conjunto de tendências, acontecimentos e atitudes que, devido à conjuntura
política e sociocultural do início do século XIX, revelam um entrelaçamento
complexo entre ciência e política que se fez notar também e sobretudo nos
trabalhos e na vida dos Grimm. A Germanística' estava na altura carregada de
significância política e tinha uma repercussão direta na política, o mesmo se
podendo dizer em sentido inverso, a política teve um impacto direto e
inquestionável sobre o rumo da Germanística. Tentarei resumir as linhas mais
importantes deste entrelaçamento particularmente no que concerne às obras dos
Grimm e ao seu papel enquanto personagens de destaque na vida política do seu
tempo.
A constatação com a qual Theodor Heinsius (apud Neumann, 1985b: 66) resume, em
1848, a situação relativamente ao uso e ao estatuto da língua alemã em fins de
século XVIII é reveladora: Diferenciavam-se, na altura, três castas, conforme
a língua que falavam: a corte e os aristocratas falavam francês, os eruditos e
cultos latim, os burgueses e camponeses um alemão mosaico. Esta constatação é
significativa, pois alude a uma realidade em que se começava a sentir a falta
de uma língua una e o desejo de elevar a língua alemã ao estatuto de uma língua
culta. No âmbito da literatura, poesia e filosofia, com os textos de Kant,
Fichte, Schelling, Hegel, com Schiller e Goethe etc., ocorreu uma rápida
ascensão dos textos em alemão ao cânone dos textos mais eruditos. O que, no
entanto, faltava, era antes uma base prática e sólida que se preocupasse com o
ensino, a aprendizagem e o estudo da língua. Se bem que já antes de 1807/08
tenha havido várias iniciativas, entre outras também estatais[4], de colmatar
três grandes lacunas, uma gramática, um dicionário e uma História da língua
alemã, apenas após a experiência desoladora da derrota frente a Napoleão e a
consecutiva ocupação francesa dos países de língua alemã se começaram a pôr em
prática toda uma série de reformas que incluíram também as reformas nas áreas
do ensino e das ciências. O sentimento de oposição à ocupação e à hegemonia
francesas acolheu o topos da Sprachnation, da nação unida pela língua falada,
como símbolo e ao mesmo tempo projeto concreto de resistência e desejo de
reconquistar a autonomia, o poder e a dignidade política. Compilar um
dicionário, escrever uma gramática, editar textos do património cultural alemão
(destacam-se, neste sentido, as várias edições e a onda dos comentários
científicos do Nibelungenlied, do epos medieval que se deixava ler como
história lendária de uma Alemanha heroica) tornaram-se questões de importância
nacional no sentido sociopolítico. A maior parte dos intelectuais e eruditos,
como demonstram vários estudos acerca desta questão (cf. Schmidt, 1985: 235-
248), eram liberais, apoiando a ideia da monarquia constitucional e uma maior
participação dos burgueses no poder político, alimentando o sonho democrático
dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade da revolução francesa que
segundo eles teriam sido traídas pela rumo que os acontecimentos políticos
tomaram na França e que poderiam ser reavivadas numa Alemanha unida e
politicamente mais progressiva. A elevação dos grandes eruditos, como Arndt,
Fichte, Jahn e os Grimm que se preocupavam com o património cultural alemão, ao
estatuto de figuras simbólicas e de heróis nacionais (cf. Neumann, 1985a: 38)
demonstra a estreita ligação entre a política e os estudos germanísticos e
filosóficos nesta fase histórica.
No entanto, após a restauração do equilíbrio dos grandes poderes políticos de
então no congresso de Viena, em 1815, e nomeadamente após os decretos de
Karlsbad em 1819, a situação para os cientistas nacionais' mudou
fundamentalmente. O patriotismo, nomeadamente o promulgado pelos professores
universitários e ligado às corporações estudantis, foi visto com cada vez maior
suspeita. Vários acontecimentos, entre outros o assassinato do poeta Kotzebue,
a manifestação estudantil no castelo de Hambach que teve uma afluência que
superou todas as expectativas, e as revoltas de 1830 na França, levaram a
perseguições, expulsões do país, penas de prisão de muitos académicos (cf. H.
Schmidt, 1985: 243ss.) e a uma censura cada vez mais rigorosa que se estendeu
também às universidades e academias. Cursava até o preconceito que os estudos
do sânscrito eram, naturalmente, democráticos.[5] Quem evocava publicamente o
patriotismo arriscava-se a ser visto e tratado como demagogo e a sofrer
consequências drásticas. Os poderes políticos tentavam suprimir todo o
patriotismo que sonhava com uma nação una e unida alemã, e o único patriotismo
permitido foi a atitude de submissão e lealdade total perante os respetivos
soberanos dos numerosos estados territoriais. Sob estas circunstâncias, o
protesto que os irmãos Grimm, na altura professores da Universidade de
Göttingen, publicaram na imprensa, em 1837, juntamente com mais cinco
professores da mesma universidade, contra a abolição da constituição pelo novo
Rei do Reinado de Hannover, foi um ato de coragem elevada. Teve como
consequência previsível a expulsão dos Grimm da universidade e do reinado, mas
ao mesmo tempo transformou os irmãos em heróis nacionais. Três anos mais tarde,
em 1840, foram convidados a integrar a Akademie der Wissenschaften em Berlim,
por despacho do próprio Rei Friedrich Wilhelm IV. da Prússia. Motivo deste
convite foi o seu trabalho no Dicionário Alemão, iniciado em 1837 e apoiado e
subvencionado por muitas pessoas ilustres da sociedade alemã. Se bem que desta
vez o projeto explicitamente declarado por Jacob Grimm como nacionalista' (cf.
Neumann, 1985: 141) tenha sido acolhido favoravelmente pelas autoridades
políticas, o perigo de ultrapassar os limites do tolerado continuava a ser
iminente. Prova disto é um acontecimento do ano 1842, em que a celebração do
aniversário de Wilhelm Grimm com uma marcha noturna de estudantes à casa dos
Grimm se transformou numa manifestação de protesto contra a demissão e expulsão
do professor e poeta Hoffmann von Fallersleben, devido ao conteúdo considerado
demagógico dos seus Unpolitische Lieder. Desta vez, os Grimm não tardaram em
distanciar-se pública e explicitamente desta manifestação. Este recuo, face ao
ato de coragem em Göttingen, não lhes manchou muito a fama já conquistada.
Poder-se-ia até alegar que este último acontecimento contribuiu para confirmar
a imagem dos Grimm como pessoas conciliantes e prudentes, politicamente
neutras', enfim como liberais sensatos' e não radicais.
O perfil desta imagem também se confirma com acontecimentos ocorridos na
segunda metade da década dos anos 40, nomeadamente no que concerne ao estatuto
científico e político de Jacob Grimm. Eleito como primeiro presidente do
primeiro Germanistentag (primeiro congresso nacional dos germanistas) em 1846 e
subsequentemente em 1847, foi-lhe dado o privilégio de ocupar uma sede de honra
no primeiro parlamento alemão em Frankfurt, em 1848, precisamente no meio das
frações de direita e de esquerda. Dar-lhe a honra deste lugar era um ato
carregado de simbolismo, refletindo bem o caráter desse parlamento que se
titulou também de parlamento de honoratiores, de pessoas intelectuais provindas
do ambiente académico e culto, de boa vontade e imbuídas de um idealismo
patriótico-liberal. O título em parte depreciativo alude à falta de poder dos
intelectuais, pois o parlamento teve uma vida muito curta, cedendo já em 1849
às estratégias do poder factual do soberano que mostrou não ter a mínima
vontade de se deixar comandar' pelas decisões deste parlamento, ao recusar-se
a receber a coroa do rei por despacho parlamentar. O facto de Jacob Grimm ter
participado ativamente nos procedimentos que nada mais eram que a rendição do
parlamento face à imposição do rei, completa a sua imagem como autoridade
científica e figura simbólica do patriotismo germânico' dos tempos de então,
mostrando por um lado uma coragem cívica elevada, mas por outro também um
pragmatismo algo tímido e cauteloso.
Independentemente de como se avalie o envolvimento político dos irmãos Grimm e
nomeadamente de Jacob Grimm, julgo que é óbvio que a luta científica pelo novo
método científico-empírico da Ciência da Linguagem e pela sua
institucionalização como ciência academicamente valiosa juntamente com o seu
êxito se deram em íntima conexão com os acontecimentos políticos. Neste âmbito,
a germanística teve decerto uma função simbólica na luta pela concretização da
unificação estatal do povo alemão, e essa função simbólica prendia-se até ao
ano de 1849 com ideias profundamente liberais e democráticas. Que este sonho se
transformou mais tarde em pesadelo, é um outro capítulo da História que
dificilmente se deixa ligar ainda ao mérito dos irmãos Grimm.
5.
Quero terminar esta breve apreciação do papel de Jacob Grimm para a
institucionalização académica da Ciência da Linguagem voltando a um assunto a
que se aludiu já algumas vezes ao longo deste artigo: o horizonte mais vasto
dos outros estudos de então que também se deixam enquadrar sob o título de
Estudos Germanísticos ou de estudos sobre a linguagem em geral. Pois é
precisamente pelas fronteiras com as quais Grimm demarcou o alcance dos seus
estudos que ele teve, em última instância, o êxito a que aspirou e que merece
com todo o direito. O esquema abaixo apresentado pretende identificar as
correntes mais importantes deste tempo e algumas das influências diretas entre
estas, indicadas pelas setas bidirecionais. A falta de setas, por outro lado,
reporta-se a uma oposição mais explícita, muitas vezes reconhecida pelos
próprios autores.
As duas áreas de estudo com as quais Grimm teve muito em comum são a de Franz
Bopp e a Filologia. Se Jacob Grimm, mesmo assim, sentiu por vezes a necessidade
de demarcar os seus estudos claramente dos de Bopp (cf. Schmidt, 1985: 192s.)
ou da Filologia[6], isso dever-se-á certamente à necessidade de afirmar e
legitimar os seus estudos como disciplina própria perante outras disciplinas
concorrentes.
No que respeita ao ímpeto de intensificar o ensino da língua materna nas
escolas básicas (Elementarunterricht) e nos liceus, é sabido que Grimm teve
pouca ou nenhuma noção da utilidade deste empreendimento (cf. ibid. 174s.). Não
viu nenhum proveito na tentativa de popularizar a sua Ciência da Linguagem,
reservando assim o estudo das línguas ao intelectual erudito. Partindo do
princípio que a aprendizagem da língua materna corresponde a um processo
natural que desnecessita de um esforço suplementar, negligenciou ou até ignorou
a tarefa da didatização dos resultados e estudos científicos, destacando-se
assim bastante do ideal da formação (Bildung) humana que de maneira
paradigmática foi defendido por Humboldt.
Uma demarcação clara, e explicitamente evocada por Grimm no prefácio ao
primeiro volume da sua Deutsche Grammatik (Grimm, 1819: XIIss.; apud Schmidt,
1985: 176), diz respeito às assim chamadas correntes de gramática lógica ou
filosófica e à gramática crítica (ibid. XIII; apud Schmidt, 1985: 177). As
teorias ligadas à primeira corrente pecariam, segundo Grimm, por filosofar
sobre a essência e lógica da linguagem sem ter em consideração o estudo dos
factos empíricos, enquanto a segunda corrente se preocuparia com o efeito do
uso da linguagem sobre o pensamento, tentando logificar e uniformizar a
linguagem através de tentativas de eliminar irregularidades gramaticais.
Segundo Grimm, esta corrente manifestaria algo como um sacrilégio contra a
santidade da própria língua, pois em muitos casos nem sequer se saberia qual a
razão da irregularidade que se quer eliminar.
Enquanto as oposições com a ciência comparativa de Bopp, com a empresa das
gramáticas escolares e com a Filologia se prendem com a conjuntura histórica da
constituição académica das disciplinas da Ciência da Linguagem, perdendo depois
em importância, há uma oposição que ainda hoje se mantém assunto de disputa.
Num artigo publicado em 1983, Schlieben-Lange realça novamente a diferença
entre o tipo de Ciência da Linguagem reconstrutivo-retrospetivo cujo primeiro
protagonista seria Jacob Grimm e o tipo construtivo-prospetivo que a autora
associa precisamente ao tipo de gramática lógico-filosófica, nomeadamente aos
ideólogos franceses (Schlieben-Lange, 1983: 477ss.). Schlieben-Lange termina o
seu estudo histórico com um apelo (ibid., 484-487): devido à aceitação geral do
método histórico-empírico e da sua consequente evolução para o método evolutivo
e mecânico, foi-se negligenciando e ignorando cada vez mais o método lógico-
filosófico e prospetivo' dos autores em fins de século XVIII, facto que seria
lamentável, pois residiria nesta corrente um potencial prometedor humanizante
que mereceria ser redescoberto e revisto.
Outro caso é a comparação dos papéis de Jacob Grimm e Wilhelm von Humboldt para
o desenvolvimento dos estudos sobre a linguagem. Alegou-se, nomeadamente em
inícios de século XX, que o favorecimento do método de Grimm teria conquistado
uma certa paradigmaticidade em detrimento da apreciação da obra de Humboldt que
caiu, durante quase 100 anos, em esquecimento. Também aqui, notar-se-á uma
diferença do alcance das duas teorias, pois Humboldt era sem dúvida um autor
cuja teoria se afigura como mais filosófica e que se pautava pela tendência
universalista de dar importância a todas as vertentes do estudo linguístico,
desde o estudo empírico-histórico até à ênfase da sua importância para a
Bildung humana e à reflexão filosófica sobre a essência da linguagem. Mas, o
que se afirma, no fundo, com estes apelos e comparações é a importância dada a
uma certa dicotomia entre Ciência da Linguagem e Filosofia da Linguagem, sob um
ponto de vista por vezes estereotípico: enquanto a Ciência da Linguagem se
preocupa demasiado com a análise de bases de dados empíricos, perderá de vista
o verdadeiro fim deste empreendimento. Mas logo que esta dimensão entra no
pensamento metodológico, a mera ciência torna-se filosófica. Pode-se alegar que
esta última dimensão está ausente nos trabalhos de J. Grimm, mas esta limitação
talvez tenha sido necessária para conseguir os grandes avanços na Ciência da
Linguagem. Convém, portanto, dar mérito a ambos os empreendimentos, sem cair na
posição algo limitada de louvar um em detrimento do outro. É neste sentido, que
o trabalho de Jacob Grimm, que pôde contar sempre com a ajuda e contribuição do
seu irmão Wilhelm, merecerá sempre a devida atenção e homenagem.