Ética e Narratividade
Em Life and Action, Michael Thompson sublinha a possibilidade de atribuirmos um
caráter não-acidental a certos processos naturais. A definição de processo
natural a que o seu comentário se adequa pode coincidir com aquilo a que de
modo muito genérico poderíamos designar por processos não éticos, em
particular, processos que de acordo com uma sugestão da Ética a Nicómaco (EN
1103a20), Aristóteles descreveria como insuscetíveis ao hábito'. Exemplo de
tais processos seriam a queda das pedras quando atiradas ao ar e a direção em
que o fogo arde. No caso de Thompson, à categoria genérica de processos não
éticos pertenceriam aqueles a que chama processos vitais, entre os quais a
reprodução nos seres vivos:
Aquilo que perdemos, ou perdemos mais claramente, na imagem fisicalista
superficial da reprodução é qualquer conceção da unidade entre uma coisa e as
suas circunstâncias como potencialmente não-acidental. Um organismo passar a
existir em circunstâncias tais que tendem para a sua reprodução é, em si mesma,
tipicamente uma operação vital, ou uma fase de um processo de vida e, portanto,
num certo sentido, é um não-acidente'. Uma semente de dente-de-leão cair em
solo reprodutivo apto pode parecer fortuito, mas a sua origem, por uma espécie
de estratagema da vegetação, faz desse acidente um não-acidente, mais
obviamente através da produção de tanta semente. (Thompson, 2008, 52)
Este caráter não-acidental dos processos naturais em geral pode aplicar-se a
outros exemplos desses processos, os quais, como tal, não se relacionam com o
sinal de vida' discutido por Thompson de manter-se a si mesmo como o mesmo',
a que corresponderia o facto de que coisas vivas vêm de coisas vivas. A este
respeito, a sua discussão parte do pressuposto hipotético de que, em relação a
seres vivos, A partir de um dado U, outro U pode passar a existir (Thompson,
2008, 51), o que não significaria nem que tal acontecesse em todos os casos,
nem que os casos em que não acontecesse poriam em questão, quer a distinção de
U, quer a sua vitalidade. O mesmo pressuposto hipotético, aliás, não implicaria
sequer que a partir de um dado U, outro U pudesse passar a existir fosse em
que circunstâncias fosse (Thompson, 2008, 51). A verificação da
particularidade das circunstâncias requeridas, que, na passagem citada,
correspondem tanto ao que chama estratagema da vegetação, quanto à produção
de tanta semente, é o que nos permite referirmo-nos, afinal, ao caráter não-
acidental de certos acidentes.
Outros exemplos do mesmo caráter não-acidental seriam fornecidos, podemos
admitir, por outros processos vitais (e.g. a respiração dos humanos) e pelos
posicionamentos particulares por estes requeridos: i.e. por vários exemplos de
processos não éticos.
Regressemos, contudo, ao excerto do ensaio de Thompson, a fim de esclarecer o
objeto do caráter não-acidental de certos processos vitais. Numa imagem
fisicalista superficial da reprodução perderíamos, afirma, qualquer conceção
da unidade entre uma coisa e as suas circunstâncias como potencialmente não-
acidental. Para Thompson, não é acidente que onde cai uma semente de dente-de-
leão exista terra apta ao desenvolvimento dessa semente a coisa e as suas
circunstâncias apesar de esse lugar ser um fruto do acaso'. Não-acidental
seria nesse caso a ligação entre a semente cair num lugar e existir nesse lugar
terra fértil (mesmo que pudesse não haver e algumas vezes não haja, poderia
acrescentar-se). Nos termos de Thompson, não é acidental que na vizinhança de
roseiras exista terreno propício ao desenvolvimento de roseiras, caso contrário
não encontraríamos roseiras aí.
Como referimos, podemos considerar a aplicabilidade do mesmo argumento a outros
processos naturais, atentando ao caráter possivelmente não-acidental de outros
tipos de vizinhança. Pensar, por exemplo, no caráter não-acidental da
existência de um pulmão esquerdo perto de um pulmão direito em muitas espécies
de animais pensamento que emprestaria um caráter igualmente não-acidental aos
processos vitais dependentes de tal posicionamento.
Teríamos, deste modo, acumulado exemplos de o que é, para Thompson, a unidade
entre uma coisa e as suas circunstâncias, mas não teríamos esclarecido o uso
linguístico mais obscuro do excerto citado. Thompson refere-se a qualquer
conceção da unidade entre uma coisa e as suas circunstâncias como
potencialmente não-acidental (itálico meu). A obscuridade reside no seu uso do
advérbio potencialmente'. É mais simples perceber de que modo na vizinhança de
uma roseira existe solo adequado a roseiras do que perceber que existe solo
adequado a roseiras potencialmente. O que existiria em potência? É a relação de
unidade que é potencial, podendo não atualizar-se? mas, então, como dar por
ela? Ou, pelo mesmo raciocínio, a potencialidade inclui a probabilidade de
darmos com os estados de coisas que confirmariam a, imaginamos, esperada
unidade? É a conceção de unidade que é potencial? na medida em que, como foi
referido, uma coisa viva pode não se multiplicar; e, se assim for, diríamos que
a conceção de unidade só passa de potência a ato quando tal ocorre? Poderia
admitir-se que sim.
Nesse caso, a unidade entre a posição de dois pulmões apenas seria um não-
acidente nos casos em que os dois pulmões funcionassem como é próprio aos
pulmões funcionar. Isto pareceria indicar que, nos termos de Thompson, a
conceção de unidade não-acidental entre uma coisa e as suas circunstâncias
depende, de algum modo, de uma noção daquilo que é próprio a essas coisas
fazerem, i.e. da sua função.
No entanto, é útil testar o interesse da posição de Thompson independentemente
de uma discussão acerca do conceito de função, que não nos ocupará[1]. (Tal
implica ignorar o uso do advérbio potencialmente na passagem citada.) Tendo
presente o caráter não-acidental da unidade entre uma coisa e as suas
circunstâncias sob discussão, considere-se agora o caso de processos éticos.
Poderíamos talvez preservar o sentido segundo o qual não é acidental a relação
de unidade entre uma qualidade (virtude) que um agente adquire e as
circunstâncias que propiciaram o desenvolvimento ou aquisição dessa qualidade.
A este respeito, poderíamos sugerir que o termo circunstâncias engloba
igualmente ações desse agente e eventos cujos efeitos sofreu.
A esta aplicação do argumento de Thompson a processos suscetíveis ao hábito
seria assim subjacente a implicação geral de que, no mesmo sentido de
acidental', se poderia dizer que não é acidental que alguém possua as
qualidades que possui, tal como não é acidental o modo como e.g. à inspiração
de oxigénio por mamíferos se seguem determinados processos gasosos.
Testemos a acuidade de analogias similares, o que nos fará sobrevoar outras
famílias de problemas. Reiterando a hipótese de que não é acidental a relação
de unidade entre as circunstâncias de um agente e as suas qualidades (fossem
tais circunstâncias ações ou outro tipo de eventos), seríamos conduzidos a um
sentido mediante o qual algumas circunstâncias são especialmente adequadas a
alguns agentes. Nesse sentido, seria, por exemplo, acidental nascer-se na
família em que se nasce, mas seria um não-acidente ser-se um irmão extremoso.
Numa glosa direta de Thompson, o caráter não-acidental deste traço dependeria
de um estratagema como a produção, numa dada família, de irmãos
suficientes. Porém, numa glosa relevante, interessaria sobretudo sublinhar que
não seria acidental ser-se o irmão que se é.
Até este momento, não pareceria necessário complementar a analogia com um uso
especial do conceito de potência, ou do conceito de função. Bastaria manter
que existiria uma unidade entre as circunstâncias de um agente sejam elas ou
não, ou nem sempre, ações e as qualidades que adquiriu. Rodearíamos assim
quer a necessidade de imaginar que essas qualidades ou que essa unidade estava
potencialmente contida nesse agente, quer a de imaginar que ele, por assim
dizer, cumpre, de modo apropriado, aquilo que, por ser o que é, lhe é
apropriado cumprir. Não precisaríamos de imaginar, se quisermos, que em todo o
irmão existe um irmão extremoso potencial ou imaginar que é próprio aos
irmãos serem extremosos. Nenhuma destas pressuposições gerais parece decorrer
necessariamente da pressuposição que suportaria a analogia. A saber, a de que
existiria um modo de descrever a unidade entre certas circunstâncias e as
qualidades que delas resultam como não-acidental.
Descartar o conceito de potência implica esclarecer o que se entende
exatamente por unidade nos exemplos referidos e, desde logo, na nossa
interpretação do excerto citado de Thompson. A unidade a que ele se refere
respeita ao facto de que aquilo que resulta de uma semente de dente-de-leão é
ainda um dente-de-leão. No excerto em questão, a referida unidade teria
aplicação quanto à passagem à existência de coisas da mesma espécie (no
interior da mesma espécie) e não à passagem à existência de coisas em geral.
Este pressuposto, a que havíamos aludido ao sublinhar a sua aplicação do
princípio de que coisas vivas vêm de coisas vivas' é, aliás, o que justifica o
seu uso do advérbio. Se não é acidente a unidade que une uma semente a uma
planta, tal dever-se-ia também ao facto de essa semente ser potencialmenteessa
planta. E, nesse sentido, a relação de potencialidade entre os elementos da
relação entre o que existe e o que passa a existir seria conferida pela
afinidade ontológica que manteriam entre si e determinaria a unidade em
questão.
Transferido para fora do campo dos processos da natureza, este aspeto pareceria
implicar que a unidade existente entre certas circunstâncias e as qualidades a
que essas circunstâncias (sejam ou não ações) dão origem é não-acidental, na
medida em que tais qualidades estariam contidas em tais circunstâncias, como no
exemplo do irmão extremoso. De acordo com esta ideia, a que voltaremos,
pareceria possível descrever como uma sucessão de efeitos necessários fosse que
conjunto de resultados fosse, na medida em que tal suporia conceber não apenas
que certos efeitos são específicos de certas circunstâncias, como que a lei que
os relaciona é uma espécie de lei física.
Existe no entanto um sentido em que, a propósito dos chamados processos
naturais, mas não só acerca deles, se poderia defender que a unidade entre
determinados resultados e as circunstâncias que a eles deram origem é não-
acidental, na medida em que esses resultados são inseparáveis dessas
circunstâncias. Isto prefigura a possibilidade de descrever o género de unidade
de que fala Thompson sem a necessidade de recorrer ao conceito de potência.
No que se refere a processos suscetíveis ao hábito, a noção de inseparabilidade
pressuposta teria a implicação de que um agente é inseparável das mudanças
através das quais se tornou no agente que é (e, nesse sentido, que é
inseparável das circunstâncias no sentido abrangente do termo que temos vindo
a usar que as proporcionaram). Ele é inseparável da sua própria vida, o que
não parece requerer uma teoria especial acerca daquilo que ele era
potencialmente'. Este aspeto, aliás, não parece sequer depender da suposta
particularidade do processo em questão. Na mesma aceção do termo inseparável',
diríamos que uma planta de dente-de-leão é inseparável do processo que a tornou
na planta que é e não pode viver o ciclo de vida de outra planta. Se
quiséssemos preservar a seguinte formulação, diríamos então que a unidade entre
certas circunstâncias e certos resultados das mesmas seria, nalgum sentido, um
não-acidente, na medida em que umas e outros são inseparáveis.
Não interessaria, neste ponto preciso, atribuir as qualidades adquiridas por um
dado agente ao resultado de ações repetidas, da natureza, de alianças, de lutas
interiores, de influências, conversões etc. E nesta medida, seria a este
respeito indiferente adotar um ponto de vista aristotélico, humeano, kantiano
ou outro acerca da aquisição de qualidades como as virtudes. Atribuir o caráter
não-acidental de certos resultados à relação de inseparabilidade que os
prenderia aos seus efeitos, teria ainda a consequência de realçar uma afinidade
entre processos éticos e processos insuscetíveis ao hábito.
Para retomarmos o exemplo anterior, não diríamos, assim, que alguém se tornou
no irmão extremoso que, por natureza, todo o irmão pode vir a ser, mas antes
que ele é inseparável daquilo que o levou a ser extremoso. Um outro modo de
apresentar a mesma ideia seria dizer que ele é inseparável da história mediante
a qual adquiriu a qualidade que adquiriu. Esta última afirmação não pareceria
depender, contudo, de tal história ser contada. E admiti-lo seria considerar
que podemos explicar de que modo um irmão se tornou num irmão extremoso, mesmo
que não interessasse a ninguém explicá-lo, quer a esse irmão, quer a qualquer
observador.
Nada pareceria opor-se à intuição de que, por princípio, haveria maneira de o
explicar, mesmo que ninguém se lembrasse dessa história, ou a quisesse contar,
ou a contasse com honestidade, etc. mesmo que a versão verdadeira dessa
história fosse a de outra pessoa que não o irmão em questão, etc. A relação de
inseparabilidade seria, em qualquer dos casos, a relação entre certas
circunstâncias e certos resultados e, desse ponto de vista, não estaria
dependente de um conceito de narrativa.
A história de acordo com a qual um agente se tornou num irmão extremoso não
dependeria, pois, nem de esse agente conceber a sua própria vida como uma
história com uma determinada forma como poderia defender o MacIntyre de After
Virtue; nem da propensão desse agente para conceber a sua vida como um plano,
para que chama a atenção o Rawls da Teoria da Justiça[2]; nem do que seria a
omnisciência putativa de qualquer observador em relação ao modo como as
circunstâncias e os resultados se relacionam. Neste sentido, não seria
argumento válido contra a presunção de inseparabilidade um dado agente declarar
nunca se ter visto a si mesmo como uma criatura que tem uma história. A sua
inseparabilidade em relação a essa história seria dada pela sua referência a si
próprio.
Pareceria, aliás, ser a este respeito muito pouco relevante a maneira como cada
um de nós se vê a si mesmo. Tal inseparabilidade não seria uma consequência da
nossa autoimagem. Não seria uma consequência das nossas qualidades, nem uma
qualidade nossa. E, a propósito, tal noção não suporia um conceito de narrativa
que dependesse de uma noção de autoimagem. Se alguém afirmasse não acreditar no
conceito de narrativa ou afirmasse, como Galen Strawson em Against
Narrativity[3], nunca se ter imaginado como um elemento de uma narrativa
- estaria a declarar-se, na verdade, pelas razões aduzidas, como
inseparável da história de acordo com a qual se tornou alguém a quem um certo
tipo de descrições sobre si próprio não desperta interesse.
Do ponto de vista da noção de inseparabilidade, que pareceria pairar sobre as
nossas descrições, a relação (num sentido, de algum modo, técnico do termo
relação') de cada um de nós com, chamemos-lhe assim, a nossa própria vida, não
seria necessariamente uma consequência dos nossos interesses.
Em Against Narrativity, Strawson recusa a ideia de que todos somos o género
de pessoa que encara a sua vida como uma narrativa ideia defendida, entre
outros, por MacIntyre. Tal hipótese, segundo Strawson, disfarça mal a
recomendação de que todos deveríamos ser esse género de pessoa. (Aliás, numa
versão tardia de MacIntyre, não temos maneira concebível de o não ser[4]).
Cingindo-nos, no entanto, ao MacIntyre de After Virtue, que é o objeto da
resposta de Strawson, ele advoga uma tese que admite a plausibilidade do
contra-argumento de Strawson, ao afirmar que uma história narrativa de algum
tipo é em certo sentido o género essencial e básico da caracterização das ações
humanas (MacIntyre, 2003, 208).
Vistas as coisas assim, e apesar de esta frase poder ser lida como tendo a
implicação de que não teríamos modo de nos isentar da história narrativa, por
não termos modo de nos isentar de caracterizar ações, a posição de MacIntyre
favoreceria a possibilidade de que, se a história narrativa é o género
essencial e básico, então estaria ao nosso dispor a escolha entre vários
géneros (e, como aponta Strawson, prevaleceria em tal escolha o tipo de pessoa
que se é).
Concebido nos termos de Strawson, o conceito de narrativa a que MacIntyre apela
dependeria então de uma fragilidade de que a noção de inseparabilidade estaria
protegida. Precisamente, a de se admitir que a unidade narrativa da vida de um
dado agente é, nalgum sentido, uma consequência do modo como ele concebe a sua
vida. Segundo Strawson, o argumento de MacIntyre esconderia a intenção ulterior
de fazer coincidir uma certa conceção das coisas e de nós mesmos com uma certa
conceção de bem e, como tal, seria o suficiente para abalá-lo declarar que não
se partilha dessa conceção subjacente. MacIntyre apontaria talvez a Strawson
que este teria optado por um modo diferente de conceber a mesma coisa, e talvez
o naturalismo tardio do primeiro tivesse sido anunciado pela necessidade, que o
argumento de Strawson apenas sublinha, de declarar que em qualquer caso não nos
podemos eximir a fazer uma opção. E no entanto, à afirmação de Strawson de que
não é a pessoa que foi no passado' (Strawson, 2004, 433-34) pareceria bastar-
nos indicar que a mera autoria do ensaio citado supõe algum sentido de
inseparabilidade em relação ao que seriam, por assim dizer, Strawsons passados
sucessivos os quais, a cada instante t, são ainda os autores da linha
seguinte do mesmíssimo ensaio (e ainda os agentes que partilham ou não
partilham das crenças de outros e escrevem sobre o assunto).
Como o meu uso do condicional vem esclarecendo, o meu argumento até aqui
apelaria à ideia de que um agente é inseparável de todas as ações que realizou,
e de todos os acidentes que lhe sucederam, e de todos os acasos ou outra
espécie de eventos de que foi agente ou paciente. Uma segunda proposta seria a
de que uma relação de inseparabilidade ligaria certas circunstâncias a, digamos
assim, certos resultados, nos casos em que o que está sob discussão é o modo
como um agente adquire qualidades. Enquanto característica de relações, a noção
de inseparabilidade candidatar-se-ia a atributo das coisas e indicaria o
caráter inespecífico da descrição de processos éticos. Por razões a que
voltarei, o meu uso do condicional sugere, ao mesmo tempo, porém, a preservação
de algum ceticismo em relação à possibilidade que acabo de descrever.
Pode agora traçar-se o aspeto do género de argumento a que se opõe a noção de
inseparabilidade, assim como a razão de ser dessa oposição. Tal obrigar-nos-á a
reconsiderar a pertinência dos termos de Thompson para a presente discussão.
Afirmar que somos inseparáveis de todas as ações, acidentes e acasos de que
fomos agentes ou pacientes, e que existe um modo de descrevermos como não-
acidental o facto de termos adquirido algumas qualidades ou virtudes, é
pressuposto por qualquer explicação do modo como um agente adquire qualidades.
Mas admitir que um agente adquire qualidades implica, antes de mais, preservar
uma noção de agente'. A inteligibilidade de qualquer noção de agente' e a
inteligibilidade da noção de inseparabilidade estão mutuamente relacionadas.
Para além disso, a conceção de agência' subjacente a esta noção de
inseparabilidade subjaz à generalidade característica do conceito de virtude'.
Ela é subjacente à hipótese a que essa generalidade parece aludir: i.e. à
possibilidade de que mais do que um agente possua a mesmavirtude.
O género de argumento que se opõe a tal noção de inseparabilidade foi enunciado
por Diderot, em Jacques le fataliste, numa síntese da doutrina fatalista de
Jacques:
Seja qual for a soma dos elementos de que me componho, eu sou uno; ora uma
causa una apenas tem um efeito; sempre fui uma causa una, nunca tive mais que
um efeito para produzir, e portanto a minha duração não passa de uma sequência
de efeitos necessários (Diderot, 2009, 191).
A esta postura deve acrescentar-se o facto de que a descrição de si mesmo como
causa una de todos os efeitos necessários, se submeteria, segundo Jacques, à
condição geral de que está tudo escrito lá em cima; pelo que se alguém é a
causa dos efeitos que sofre, é-o, por assim dizer, por autoria interposta. O
corolário de semelhante tese é descrito de seguida: A distinção entre um mundo
físico e um mundo moral parecia-lhe vazia de sentido (Diderot, 2009, 191). O
fatalismo de Jacques dá, então, uso a uma noção de unidade do eu, mas tal
unidade é conferida pela sujeição ao que lhe estava destinado à partida e não
depende de qualquer noção de agência'. Pelo contrário, reconduz todos os
cursos de ação alternativos ao estatuto de acontecimentos pré-determinados.
Não parece haver menos fatalismo na doutrina oposta, a de tudo serem acidentes.
Poderia ser isso o que estava escrito lá em cima, o que apenas reforça a
eficácia reducionista da doutrina de Jacques. A sua descrição da unidade entre
causas e efeitos enfatiza, aliás, a dependência conceptual entre um argumento
fatalista e o conceito de potência. Tudo pode ser reconduzido à causa una que
alguém é, visto todos os efeitos a verificar estarem por princípio contidos
nela. Aquilo em que, atualizando-me, eu me torno, poderia estar contido, em
versões diferentes do mesmo género de argumento, em mim ou nas circunstâncias
em que me encontro o que, no vocabulário de Jacques, equivaleria a dizer que
está tudo escrito cá em baixo'. Em ambos os casos, no entanto, a posição
depende de uma tese acerca da especificidade de resultados. Da aliança entre um
uso do conceito de potência e um princípio de especificidade resulta um
compromisso instável, de acordo com o qual, por uma espécie de lei natural que
relaciona a especificidade entre causas e efeitos, cada um de nós é o resultado
altamente específico das suas próprias circunstâncias[5] e, ao mesmo tempo, não
é exatamente um agente, mas uma combinação de resultados a que, de um modo ou
de outro, não pode fugir. Desse ponto de vista, cada um de nós é, na realidade,
aquilo que era em potência, atualizando-se. O que se perde num argumento
fatalista é o que se perde no ensaio de Strawson. Em particular, uma descrição
convincente de cada pessoa enquanto agente das suas ações, ou, de igual modo,
enquanto paciente de quaisquer que sejam os acidentes e os acasos que ocorrem
com cada um de nós.
Pode parecer inapropriado responder ao que estamos a chamar fatalismo'
apelando ao caráter não-acidental de certos resultados, o qual dependeria, para
usar as palavras de Diderot, de uma forma de indistinção entre o mundo físico e
o mundo moral. Pareceria que, por hipercorreção, estamos a responder a
fatalismo com mais fatalismo, apontando para a possibilidade de descrever
resultados variados precisamente como não-acidentes. A questão, todavia, é a de
que não perdendo de vista a distinção entre os mundos, a intenção de preservar
uma noção de agência precisa de descrever um sentido segundo o qual não é
simplesmente acidental que se possua as qualidades ou virtudes que se possui. É
necessário preservar um sentido segundo o qual as qualidades de um agente podem
de algum modo ser reconduzidas a várias coisas que esse agente fez e lhe
aconteceram. E nessa medida, não perder de vista a distinção entre aqueles dois
mundos consiste em considerar que a não-acidentalidade é explicada em relação a
critérios diferentes em cada um dos casos.
O fatalismo apela a um conceito de acidente, para afirmar que, ou tudo é
acidente, ou que não há acidentes. Mas, para se fazer sentido da ideia de que
somos agentes, é preciso que se preserve alguma noção do caráter não-acidental
de certos resultados. Uma noção adequada de agência depende se preservar a
ideia, afinal, de que não é totalmente acidental que sejamos como somos e de
que somos inseparáveis de todas as ações, acasos, acidentes e demais
circunstâncias que nos trouxeram até aqui. Esta última formulação, porém, este
que nos trouxeram até aqui' desperta a necessidade de mais algumas
considerações.
O problema quanto à suposta neutralidade da noção de inseparabilidade reside
contudo no facto de que o reconhecimento dessa relação não equivale a declarar
que eu sou o resultado presente de uma cadeia de ações e acontecimentos que
culmina nisto que eu sou. Se assim fosse, tanto faria onde se começasse uma
explicação das minhas qualidades, e atribuir algum valor explicativo a alguma
ação minha ou acidente seria vulnerável a uma regressão infinita.
Se qualidades adquiridas por um agente fossem apenas o ponto onde culmina uma
cadeia de eventos, se a noção de inseparabilidade denotasse isso o valor
explicativo atribuído a qualquer evento ficaria comprometido. Quiséssemos
explicar a razão por que alguém possui a qualidade X, tanto faria isolar um
dado evento Y, quanto dizer que todas as qualidades que alguém possui, como
aliás tudo o que uma pessoa é, faz, e lhe acontece, é reconduzível e.g. a ações
da sua bisavó. Perceber o que pode querer dizer inseparabilidade' implica, por
isso, considerar um aspeto até aqui por esclarecer do excerto de Thompson
citado de início, em particular, o seu uso do termo conceção.
Podemos descrever a cadeia de acontecimentos mediante a qual alguém adquiriu
certa disposição. Dizer, por exemplo, que, se eu não tivesse levado um tiro no
joelho não teria ido para o hospital, onde não teria conhecido Z, que me
apresentou a X, de quem hoje sou amiga. As coisas aconteceram deste modo e sou
inseparável delas, no nosso uso do termo inseparável'. Mas a possibilidade de
descrever a minha amizade com X como um não-acidente depende de atribuir valor
explicativo a eventos que isolo. Caso contrário, poderia sempre afirmar que as
minhas amizades, como aliás tudo o que me diz respeito, dependem, por hipótese,
mais uma vez, de ações da minha bisavó. E até poderemos suspender neste momento
o aspeto das explicações enquanto modos de sublinhar o caráter não-acidental da
relação entre eventos. E passar a dizer simplesmente que a possibilidade de
explicar de que modo me tornei amiga de alguém, depende da atribuição de valor
explicativo a certos eventos, sejam eles ações ou não.
Não é menor o valor explicativo inerente ao reconhecimento de que uma amizade
nasceu de uma sucessão de acidentes. Essa atribuição de valor explicativo supõe
que quando digo que se não tivesse levado um tiro no joelho, então não ______,
a relação de condicionalidade que assim se estabelece não é estritamente a que
uma cadeia de eventos mantêm entre si, mas é uma relação explicativa. Se
quisermos usar o termo, essa atribuição de valor explicativo a um evento ou a
uma ação, ou a um conjunto de eventos ou ações, constitui uma conceção acerca
da maneira como certas coisas podem ser relacionadas; ou antes, é, em si mesma,
uma maneira de relacioná-las. E a consideração anterior não depende de uma
teoria acerca do modo como, por exemplo, amizades decorrem em geral de tiros em
joelhos.
O mesmo se aplica a qualquer proposta de explicação da ligação entre vários
tipos de eventos. Se ao dizer que um tiro que levei (poderia ser uma ação minha
particular) explica X, quero na verdade dizer que esse tiro foi o que me trouxe
onde me encontro; e se, tendo isso em conta, não páro nalgum ponto, se não
parar, em especial, no tiro em questão não consigo explicar seja o que for.
Terei de admitir, pelo contrário, que tanto o tiro me trouxe onde me encontro,
como tudo o que me levou ao tiro me trouxe ao ponto onde me encontro. Se
explicar alguma coisa é parar nalgum ponto, isso significa que uma explicação
das minhas qualidades atuais não é redutível a uma descrição de características
num dado instante t, e, nessa medida, a atualidade das minhas qualidades não
denota propriamente um atributo temporal.
Se não pararmos em ponto algum e fizermos coincidir uma noção de agência com
uma descrição de um estado de coisas com uma duração mensurável (dizer: eu sou:
eu aqui e agora', por exemplo), o que se extingue é uma noção de agência.
Note-se, aliás, que esta é precisamente a reivindicação de Strawson: a de estar
mais localizado no presente, no momento presente (Strawson, 2004, 432), que
os seus opositores.
A noção de que se é inseparável de todas as ações, acidentes e acasos de que se
é/foi agente ou paciente não é, por isso mesmo, uma caracterização de pessoas
como o ponto de chegada de cadeias de eventos. Pelo contrário, aquela noção
constitui uma conceção acerca de relações entre certos eventos, a qual depende,
se quisermos, de começar em algum ponto e parar nalgum ponto. Saber parar em
algum lado é afinal uma condição requerida tanto pela intenção de preservar uma
noção de agente', como pela intenção de explicar relações entre eventos, cuja
singularidade é de outro modo severamente ameaçada. Quando dizemos que certas
coisas explicam outras, não estamos a compor cadeias de eventos, mas estamos a
isolar a relevância de algumas coisas para a explicação de outras coisas.
É precisamente a aplicabilidade de uma noção de conceção', ou de uma noção
parecida com ela, à posição que temos vindo a apresentar, um dos aspetos que
determina o ceticismo declarado anteriormente quanto ao que seria o caráter
neutro da noção de inseparabilidade. Um uso da noção de conceção' aplicava-se
já em relação aos processos naturais. Thompson falava afinal acerca da
possibilidade de negligenciar conceções. O seu uso do termo conceção'
implicava um argumento sobre a interpretação de um dado X como um não-acidente.
A interpretação de um dado X como um não-acidente é isso mesmo uma
interpretação mas, em todo o caso, tal não parece ainda sobrepor-se à
possibilidade de declarar que uma pessoa é inseparável de o que quer que faça.
A principal vantagem de enfatizar o seu uso do termo conceção' seria, afinal,
a de estabelecer outra diferença entre referirmo-nos a inseparabilidade e a
não-acidentalidade.
A relevância do uso de Thompson do termo conceção' faz-nos regressar, porém,
ao seu uso do advérbio potencialmente.Seria a conceção' o que existe
potencialmente, devido, por exemplo, a os factos precederem as explicações e
elas estarem contidas potencialmente neles, potencialmente contidas na
natureza? E então, em relação à formação das qualidades de um agente, a crença
na possibilidade de uma versão verdadeira do que teria sido essa formação seria
justificada pela precedência dos factos em relação às explicações?
O uso de Thompson do advérbio é, como dissemos, obscuro, mas quanto ao que nos
interessa, basta apenas reter que ele nos avisa de novo quanto a uma diferença
entre plantas e pessoas e quanto ao modo como a não-acidentalidade é explicada
em relação a critérios diferentes consoante o tipo de processo. No caso dos
processos naturais, o que surge diluída é a noção de agência. Os processos na
planta podem ser reconduzidos a outros processos na planta, e, nesse sentido,
se quisermos, a coisas que lhe acontecem, coisas por que passa. Mas a
coincidência (e até a permanência) do objeto dos processos não equivale a que o
sentido anterior do verbo reconduzir' (poderia ser o verbo explicar')
subentenda algum modo de agência'. Aquilo a que os processos podem ser
reconduzidos é a outros processos e os casos em que a sucessão dos processos é
interrompida constituem exceções. Uma planta não pode interromper a
fotossíntese.
Poderíamos também referir-nos ao fatalismo do gesto de Strawson indicando o
modo como o seu argumento responde ao que chama tendência narrativa', apelando
ao que seria não apenas a durabilidade do eu, mas a sua própria especificidade
a uma noção de um eu específico'. A especificidade do eu é, nesse caso,
conferida pelo facto de este ser a cada novo momento determinado pelo momento,
o que é um modo de se conceber a si mesmo como o efeito necessário' do
momento, para usar a formulação de Diderot.
O nosso argumento é, a este respeito, o de que o fatalismo anda a par de uma
tese mais ou menos explícita acerca do caráter específico da relação entre as
circunstâncias de um agente e os fins em relação aos quais ele descreve as suas
ações. Seria esta então a versão fatalista de sujeito: não é bem um agente, mas
é altamente específico, é por excelência o único representante de uma espécie,
se quisermos. O gesto fatalista relaciona-se com a reclamação ou com a
imputação de especificidade, com a declaração de que um agente é o resultado
específico de circunstâncias específicas. E a nossa suposição parece ser a de
que, por assim dizer, quanto mais agência, menos especificidade.
O argumento que a suporta depende da referida generalidade do conceito de
qualidade' (ou, mais propriamente, de virtude'). Se admitirmos
provisoriamente que possuir uma dada virtude consiste em descrever as ações que
se pratica em relação a um certo fim, isso significa que o conceito de virtude
supõe a ideia de fim partilhável', na medida em que supõe que mais do que um
agente pode possuir a mesma virtude. Esta suposição subjaz a qualquer uso do
conceito, aliás, e subsiste apesar da obscuridade quanto à sua definição. Como
afirma Thompson (Thompson, 2008, 150), corresponde ao conceito de virtude, como
ao de máxima, princípio, ou qualidade, uma generalidade peculiar, a qual,
poderíamos acrescentar, é independente de o que quer que seja que se admita ser
a definição desses conceitos e, como tal, subsiste mesmo para além de uma
rejeição da nossa definição provisória do termo.
De qualquer maneira, de acordo com essa definição, a afirmação geral de que
agentes possuem as mesmas virtudes pressupõe que agentes diferentes em
circunstâncias diferentes descrevem as suas ações em relação aos mesmos fins.
Pelo que, afirmar que agentes possuem certas qualidades supõe o caráter
inespecífico da relação entre as suas circunstâncias e os fins em relação aos
quais eles descrevem as suas ações. A discussão sobre a posse e a aquisição de
qualidades é, por outro lado, uma discussão acerca do modo como um agente se
torna no agente que é. Portanto, a própria noção de agente depende da referida
inespecificidade entre fins e circunstâncias. Este argumento responde à objeção
de que não consideraria a diversidade entre descrições de fins declarando que
diversidade não é sinónimo de especificidade.
Se a relação que estabelecemos entre um evento ou sequência de eventos e o
desenvolvimento de uma qualidade de um agente constitui uma conceção', tal
aspeto mostra-nos, em última análise, que a intenção de desligar a noção de
inseparabilidade de alguma conceção de como agir' parece resultar perturbada,
por ela estar dependente daquilo a que se pode chamar saber parar uma
explicação'.
Quer isto dizer, a noção de inseparabilidade parece indiscernível do
reconhecimento da inseparabilidade como um modo de conceber relações
explicativas entre eventos. A conceção de como agir' suposta pela intenção de
preservar uma noção de agência' está, assim, relacionada com saber onde parar
e onde começar uma descrição, o que põe em questão precisamente a neutralidade
aparente da noção de inseparabilidade e a própria afinidade, pelo menos neste
ponto, entre a descrição daquilo a que chamámos processos éticos e não éticos.
Uma das perplexidades que daqui decorre é o facto de uma injunção metodológica
se parecer com uma injunção moral, implícita desde logo na sugestão de que
devemos preservar uma noção de agência'. Reclamar a noção de inseparabilidade
enquanto critério adequado de explicações confunde-se com apelar a que agentes
se reconheçam como inseparáveis de si mesmos. De qualquer modo, deste ponto de
vista, preservar uma noção de agência' requer preservar a noção de que os
agentes relacionam e atribuem valor a eventos e pareceria requerer uma teoria
acerca da delimitação dos mesmos, embora as pessoas o façam espontaneamente, em
todo o caso. Para além disso, preservar uma noção de agência' requer talvez
comprometermo-nos com um certo modo de entender a maneira como fazemos
descrições.
Podemos também perguntar-nos: como é que o argumento sobre a noção de
inseparabilidade, que é acerca de explicações, se relaciona com o argumento
sobre inespecificidade, que é acerca de fins?
Decorre da primeira ideia que uma noção de agência' depende em algum sentido
de alguma visão sobre explicações, em particular da visão segundo a qual aquilo
que um dado humano, por exemplo, fez ao longo do tempo, pode ser descrito como
tendo sido feito sempre pelo mesmo humano. A segunda ideia propõe que os fins
em relação aos quais as ações de um agente podem ser descritas não são
específicos das suas circunstâncias; o que equivale a dizer que podem ser
partilhados por, e justificados em relação a, outros agentes.
A pressuposição de que somos o resultado de alguma coisa é instrumental, como
vimos, para um argumento fatalista, para o qual não se ser exatamente um agente
consiste em ser-se o resultado de eventos diversos. Nos termos do fatalismo,
explicar a aquisição de qualidades representará pessoas como meros resultados e
dificilmente poderá conjugar-se com uma conceção forte de agência'. A solução
para este problema poderá ser dada pela conjugação de ambos os argumentos,
entendidos no sentido particular mediante o qual a pessoa que eu sou éo mesmo
humano que aqui estava há alguns anos, i.e. éo mesmo humano a descrição de
cujos fins pode ser reconduzida a várias coisas que ele fez e lhe aconteceram.
Significa isto que eu sou inseparável das minhas circunstâncias, mas muitas
pessoas inseparáveis das suas próprias circunstâncias descrevem as suas ações
em relação a fins idênticos aos meus. Não existem, neste sentido, descrições de
fins específicas, e exclusivas, de certas circunstâncias.
Um dos modos de pensar sobre o que acabamos de dizer é pensar acerca da prática
das virtudes artificiais justiça e fidelidade no sentido de David Hume.
De acordo com Hume, é característico das virtudes artificiais (que têm esta
designação devido ao seu caráter convencional) que todos os atos isolados' de
cada uma delas são realizados na expectativa de que os outros homens vão
realizar o mesmo (Hume, 2001, 574). Isto significa que tais virtudes supõem
uma prática[6]. Cada ato isolado de uma delas é realizado na expectativa de
reciprocidade e é, ao mesmo tempo, um ato isolado de virtude e uma instanciação
da prática.
Noutros termos, porém, isto equivale a afirmar que cada ato isolado de virtude,
cada instanciação da prática, é definido em relação ao mesmo fim. Para usar o
exemplo de uma das virtudes artificiais mais emblemáticas a fidelidade
envolvida no cumprimento de promessas poderíamos dizer que, para Hume,
qualquer ato isolado de cumprimento de uma promessa é descrito pelo agente que
o pratica em relação ao mesmo fim: em particular, o fim que Hume descreve como
o de querer a obrigação que tem origem na promessa (Hume, 2001, 597). O facto
de a prática da obrigação de promessas ser o fim em relação ao qual vários
agentes descrevem algumas das suas ações não implica, por um lado, que todos
somos (ou possamos ser) cumpridores de promessas, mas implica, por outro lado,
a generalidade desse fim. Possivelmente, esta generalidade está relacionada com
tais práticas nos serem externas, ou, por assim dizer, estarem aí para ser
praticadas i.e. existirem.
A generalidade peculiar quanto ao conceito de virtude a que se refere
Thompson corresponde, neste sentido, à generalidade de certos fins, a qual,
segundo nos mostra Hume, é implicada não apenas pelo facto de a mesma virtude
ser partilhada por mais do que um agente ou em vocabulário humeano, de a
mesma prática ser praticada por vários agentes; mas também pelo modo como cada
instanciação da mesma virtude é realizada tendo em vista um fim que é geral.
Thompson resume este último aspeto dizendo que nos casos em que agentes cumprem
promessas por fidelidade (a virtude correspondente tradicionalmente à prática
de prometer e cumprir promessas), as suas ações têm origens diferentes apenas
no sentido em que eles tenham feito promessas diferentes. À parte disso, eles
atuam não apenas por fundamentos paralelos ou similares, mas por um mesmo
fundamento último e não apenas por princípios com o mesmo conteúdo, mas pelo
mesmo princípio. (Thompson, 2008, 210).
Como dissemos, é consequência desta similaridade de fundamentos o caráter
inespecífico da relação entre as circunstâncias de um agente e os fundamentos
das suas ações ou, se quisermos, o próprio caráter inespecífico desses
fundamentos. O que implica que a conceção inespecífica de agência' que
tentámos caracterizar está subjacente à generalidade que associámos ao conceito
de virtude.