Os pas(sos) em Pessoa
Su obra es un paso hacia lo desconocido. Una pasión.
Octavio Paz
David Mourão-Ferreira (1988)justifica o título do seu volume de ensaios
dedicado à obra de Fernando Pessoa, Nos Passos de Pessoa, com a multiplicidade
dos passos na totalidade da obra, que obriga igualmente o crítico, como
consequência, a optar por uma variedade de passos nas tentativas de
abordagem.
É inevitável perceber o quão determinantes são as questões implícitas nesta
afirmação, relativas ao texto enquanto performance.[1] A implícita proposta de
seguir a diversidade dos passos pessoanos na procura de um sentido último por
detrás de cada movimento é preocupante na medida em que se assume a
possibilidade de retraçar os passos do texto até uma explicação (metafísica,
psicológica, etc) que passe além do texto, que torne o texto simplesmente
parafraseável. Se, por outro lado, entendermos a textualidade como o constant
and radical dialectical play of the difference(s) between text and context
(McGuirk, 2007: 137), o texto crítico funciona como um suplemento no sentido
derrideano, encontrando-se inscrito simultaneamente antes e depois, imbricado
nesse movimento textual negativo e diferencial, the constant tracing and
supplementing (or another version) of that textuality (Ibidem).
Este artigo visa analisar diferentes passos na explicação do fenómeno da
heteronímia ou do processo poético que repetem uma mesma instabilidade e
tensão, embora dissimulada, que é detectável já na própria escrita e no
interior de poemas e dos textos como uma dificuldade transponível apenas
performativamente. Procura assim não ir além mas sim através das estruturas de
diferença, abordando antes a estruturalidade das diferenças, percebendo que
entre um passo e um outro, como o texto pessoano nos indica, há um
singularidade performativa que é irreduzível e não pode ser circunscrita.
Ao pé
Deconstruction, on the contrary, stresses that meaning is context bound - a
function of relations within or between texts - but that context itself is
boundless: there will always be new contextual possibilities that can be
adduced, so that the one thing we cannot do is to set limits.
Jonathan Culler
O poema Isto, publicado em abril de 1933, é visto como um desdobramento
deAutopsicografia (1931), [2] tendo recebido, no entanto, menos atenção que
este, talvez até pela aparente contradição entre os primeiros versos de
Autopsicografia e Isto (Seabra, 1974: 149). O poema, de fato, retoma a
questão do fingimento, com a formulação de eles vs eu (eles Dizem; eu
escrevo).
Isto
Dizem que finjo ou minto
Tudo o que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra cousa ainda.
Essa cousa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê! (Pessoa, 2006: 262)
O poema articula-se em disjunção (finjo ou minto; sonho ou passo; falha ou
finda) e negação (Não; Não uso; Não está; Não é), e é nesse
diferimento, suspendendo-se sobre outra cousa ainda, nesse movimento
enfatizando a negatividade, suplementado pela leitura (sinta quem lê) que se
produzem não só sentidos como sentimentos.
A escrita é um corte, uma estruturação negativa e diferencial. No poema Isto,
existe apenas sentimento na medida em que este departa de uma emoção original
(Não uso o coração), articulada pela imaginação: Tudo que sonho ou passo,/ O
que me falha ou finda. O que é sentido na imaginação (sonhado ou
passado; falhado ou findado) é já escrita, o descontínuo tudo que
escrevo que torna essas combinações possíveis. O passo nunca levará (e não
está) ao pé. Não há passagem do sentir para o mentir porque sentir é já
imaginação, estruturação, um terraço sobre uma prometida presença por vir e
alcançar. O sonharoupassar, falharoufindar, implica um constante diferir,
outra cousa ainda, por vir.
A escrita é um processo libertado da subjetividade: desligada do meu enleio,
da estrutura do próprio, e do sentir com o coração, a escrita é libertada
também do enleio de uma estrutura de propriedade e possessão (meu), já que
o sentimento é uma tarefa do leitor na apreensão do uso de sensibilidade
articulado no poema, no investimento em direcção a outra cousa ainda.
A libertação e descontextualização (que não está ao pé) não são
características exclusivas da poesia, mas da palavra escrita em geral, na
singularidade e iterabilidade (Derrida, 1982: 315)que lhe são características:
A palavra escrita é mediata, longínqua e particular. Quando
escrevemos, e tanto mais e quanto melhor e mais cuidadosamente
escrevemos, dirigimo-nos a quem não nos vai ouvir, que é ler, logo; a
quem não está ao pé de nós; a quem poderá entender-nos e não a quem
tem que entender-nos, tendo nós pois primeiro que o entender a ele.
(Pessoa 1997: 56)
Quem não está ao pé: a libertação do meu enleio é o que incorpora e
inscreve o leio de um leitor, antecipado já enquanto estrutura geral na escrita
do poema. O leitor está fora da subjetividade, mas não está fora do texto. O
poema realiza uma performance de um processo de leitura (não-mimético e não
representacional) similar ao evocado por Geoffrey Bennington numa tentativa de
definição da desconstrução:
Reading is not a simple process of deciphering, nor of interpreting,
for Deconstruction. It is neither entirely respectful nor simply
violent. Secure production of insecurity (Derrida). Reading is not
performed by a subject set against the text as object: reading is
imbricated in the text it reads. (2000: 218)
Uma meditação sobre a leitura sob a assinatura de Bernardo Soares fornece ainda
outra referência intertextual, quando Soares demonstra ser incapaz de meramente
se render ao sentimento quando lê:
Nunca pude ler um livro com entrega a ele; sempre, a cada passo, o
comentário da inteligência ou da imaginação me estorvou a sequência
da própria narrativa. No fim de minutos, quem escrevia era eu, e o
que estava escrito não estava em parte alguma. (Pessoa, 2003: 372)
Na leitura do que não está ao pé, na passagem do escritor para o leitor, não
há senão escrita a cada passo. Nada existe completamente além do isto: a
escrita não se apaga nem se retrai de encontro a uma presença interior e
anterior. Il n'y a pas d'hors-texte (Derrida, 1997: 158), não há nada que não
seja já, em certa medida, textual(izado). Isto refere-se ao que não pode ser
contido pela escrita, ao espaçamento (Derrida, 1997: 68)que a estrutura. A
cousa em si pode ser articulada mas não apropriada: a cousa é outra, a
beleza está no ainda.
Um primeiro pas
Só o primeiro passo é que custa. Mas depois do primeiro passo dado, o segundo é
o primeiro depois desse. É bom reparar nisto e não dar passo nenhum... Todos
custam.
Fernando Pessoa
Para além de chamar a atenção para a escrita em si, esta análise visou também
ilustrar simultaneamente um movimento negativo de diferenciação e diferimento
no processo de escrita: Il y va d'un certain pas (Derrida, 1993: 9). Tal como
Irene de Ramalho Santos na sua análise à carta de 13 de Janeiro de 1935
endereçada a Adolfo Casais Monteiro, estou interessado na intraduzibilidade
desta frase presente no livro Aporias, mas sobretudo na tensão (entre movimento
e negação; de movimento e negação) na palavra pas, na indecidibilidade
linguística do termo pas, tal como explorado por Maurice Blanchot (1992) no seu
livro The step not beyond[Le pas au-delà], cuja duplicidade tentar-se-á
expressar através do termo pas(sos). Tendo sido alertado para esta tensão
pela necessidade que um leitor francófono teve em assegurar que pasno nome
Chevalier de Pas, um suposto primeiro e ausente heterónimo pessoano, não
deveria ser percebido enquanto substantivo (passo), mas enquanto advérbio de
negação (não) (Bréchon, 1997: 37), penso que um par de considerações críticas
deve ser tido em conta: em primeiro lugar, como uma tal opção pode ser tomada
em definitivo; em segundo lugar, por que razão a indecidibilidade de um termo
deve (e por que razão se considera que pode) ser reduzida.[3]
No entanto, não é o Pas que é relevante neste momento; é-o mais o movimento
negativo e diferencial articulado na escrita. Tentar-se-á, deste modo, abordar
não só a significância de pas, mas sobretudo abordar a tensão subjacente em
diversas passagens da escrita pessoana que em pas é declinada. Num dos poemas
exemplarmente mais líricos de Pessoa, Leve, breve, suave (15 de janeiro
1920), um canto de ave é inscrito como a origem negativa do texto, o que não
é, que passou e parou:
Leve, breve, suave,
Um canto de ave
Sobe no ar com que principia
O dia.
Escuto, e passou
Parece que foi só porque escutei
Que parou.
Nunca, nunca, em nada,
Raie a madrugada.
Ou splenda o dia ou doire no declive
Tive
Prazer a durar
Mais do que o nada, a perda, antes de eu o ir
Gozar. (Pessoa, 2006: 140)
A origem prostética de uma presença desejada é apresentada como viável apenas
através da encenação da sua própria ausência, através da estruturação da
instância aporética (o escutar) que demonstra e utiliza a sua vacuidade no
par passar/parar. O prazer não advém de gozar, mas advém antes da
performance dos enviados negativos diferentes e diferindo (o nada, a perda)
que estruturam a subjetividade (eu o ir/Gozar), colocada em palco pela
ilusória presença encenada, a promessa de um tal canto.
O texto pára e avança ao mesmo tempo, mas fá-lo apenas através da negatividade
que estrutura esse próprio movimento, apenas no porvir que uma prometida futura
transcendência torna possível complementar como o suplemento do passou.
Ao enfatizar em seguida uma variante num poema (24 de julho de 1916) publicado
postumamente, em que no primeiro verso Pausa surge como variante de Passa,
pretende-se ilustrar na escrita uma tensão instalada num processo em que uma
oposição binária (passar e pausar) permanece indefinida:
Alga
Passa[4] na noite calma
O silêncio da brisa
Acontece-me à alma
Qualquer cousa imprecisa
Uma porta entreaberta
Um sorriso em descrença
A[5] ânsia que não acerta
Com aquilo em que pensa.
Sombra, dúvida, elevo-a
Até quem me suponho,
E a sua voz de névoa
Roça pelo meu sonho (Pessoa, 2006: 86)
Passa/pausa: como escolher? A questão é crítica, em ambos os sentidos da
palavra, mas revela já uma tentativa de abordagem falhada, ou seja a do
tratamento de um texto sendo (predominantemente) limitada à redução de
escolhas. Particularmente no que toca à variante de um texto deixada
indecidida. Se escolher é de fato uma necessidade na escrita e na leitura, tal
não significa que a disseminação de sentido da escrita possa ser tomada
simplesmente como a criação de espaço para confusão ou desentendimento. Pelo
contrário, como vimos na análise de Isto, deve ser abordado como um efeito da
impossibilidade de fechar o sentido de um texto, a salvo da disseminação que
ameaça a sua própria constituição, enquanto o constitui, enquanto lhe dá lugar.
Passa/pausa: o problema está já e sempre lá mesmo antes de a problemática ser
revelada no estado inacabado de um poema, ou de uma obra, como se pode entender
nesta carta a um destinatário desconhecido:
Tenho pronto o estudo definitivo para a primeira publicação em que
pensávamos. Talvez lhe parecesse longo o tempo em chegar a este
"estudo", que é um mero plano. É que, meu querido Amigo,
antes de dar o primeiro passo - o primeiro passo autêntico e real - é
que é ocasião de hesitar, de duvidar, de voltar atrás - se assim se
pode dizer de uma altura em que ainda se não andou. Depois de dar o
primeiro passo, não se pode voltar atrás, e é sempre fraqueza e
confusão modificar o plano que afinal não houve.
Faço estas considerações, para o caso, naturalmente inexistente, de
que estranhasse eu não ter aparecido ainda com qualquer coisa de
"positivo". (Pessoa, 1999a: 127)
O que se toma por nada, pela ausência da escrita, é a escrita em si. A
negatividade é o que permitirá o "positivo", o hesitar,
duvidar, voltar atrás, a negatividade subjacente subscrevendo o primeiro
passo autêntico e real. Tal indecidibilidade aparece mais nitidamente
formulada num aforismo, uma reformulação de um adágio popular, que revela o
carácter aporético (no sentido etimológico da palavra) estruturando qualquer
perspectiva porética da vida ou da escrita: Só o primeiro passo é que custa.
Mas depois do primeiro passo dado, o segundo é o primeiro depois desse. É bom
reparar nisto e não dar passo nenhum... Todos custam (Pessoa, 2005: 52).
O que deve ser realçado é o custo de qualquer passo, além e depois do
primeiro, sem ir para além do primeiro, porque se trata sempre de uma
questão de valor, quer para o poeta quer para o crítico. O passo não abole
diferenças, simplesmente as dissimula como o passo a ser dado e ultrapassado.
O que o aforismo parece demonstrar é a consciência de que não há nenhum passo
(pas) que não envolva já um custo, uma negação (pas), e que estes pas(sos),
afirmação e negação, não podem ser ultrapassados por um Aufhebung, uma
sublimação hegeliana, como parece propor Óscar Lopes:
Naquilo em que teimo em considerar o drama de cada heterónimo, e o de
todos, e em cada poema independentemente considerado, Pessoa põe, é
certo, a tese e a antítese, e não a síntese lógica. Mas, no plano da
expressão poética, não é efectivamente sintética, portanto
dialéctica, a consciência de uma primeira negação onde ela não
existia ainda? Pessoa parou, decerto, mas depois de dar um passo.
Resta-nos escolher entre a exemplaridade passiva do passo dado, e a
exemplaridade activa de dar o passo a seguir ao dele, quando
possível; para o que devemos também compreender positivamente todo o
movimento que nos dispomos a continuar. (Lopes, 1970: 249)
O crítico encontra-se perante uma encruzilhada entre pas (primeira negação
ainda inexistente) e pas (ou passivo ou ativo), e embora Lopes proponha
continuar dando-se um passo em frente e ultrapassando a dialética suspensa do
texto pessoano através da recuperação da dialética anteriormente presente, tal
passo activo pode também ser visto como a prova de uma paragem perante o
reconhecimento que a poesia pesssoana excede e não se pode encerrar dentro de
uma economia hegeliana. José Augusto Seabra, em resposta ao texto anterior,
refere precisamente:
Poder-se-á, no entanto, a não ser através de uma espécie de cavalo de
Tróia lógico (e dialéctico), subentender uma negação da negação como
intrínseca ab initio à oposição inscrita na linguagem poética? É o
que, como veremos, a poesia de Pessoa põe precisamente em causa.
(Seabra, 1974: 39)
No entanto, quer a abordagem de Lopes quer a proposta de Seabra de colocar a
coincidentia oppositorum como a forma fundamental da linguagem poética como
se esta fora fundamentalmente, essencialmente ou substantivamente distinta
não são os únicos passos a seguir. Com efeito, ambos os criticismos se escudam
do seu horror perante a noção da ausência e da negatividade com agências
estruturantes do poético, por via de constructos que forneçam uma espécie de
alicerce crítico.
A confusão de Lopes acerca da paragem de Pessoa apenas após o primeiro passo
demonstra que a sua leitura é algo insensível aos graus e passos de tal
movimento. O primeiro passo não é já autêntico, mas encontra-se permeado de
negatividade, o que o torna ao mesmo tempo possível e impossível (um passo
além), como o acima mencionado aforismo faz notar. Há sempre um excesso, uma
réstea, um traço que escapa a circularidade, o retorno (do próprio) a si mesmo
de uma economia, ao passo que a negatividade não é sublimada. Há o simulacrum
de um movimento dialético que toma lugar, não apesar de disrupções ou
interrupções, mas inscrevendo-se precisamente a partir destas.
Lopes está certo ao afirmar que o primeiro passo encena e requer incompletude,
mas parece não seguir o enfiamento lógico: buscando completá-lo, não indo além
da lógica e do desejo incontestado pelo completo, somos levadospelo texto.
Talvez uma abordagem crítica tendendo mais para a deconstrucão tal como Derrida
definiu enquanto the limit, the interruption, the destruction of the Hegelian
relève wherever it operates (1987: 40-41)seja particularmente útil nesta
instância.
Assim sendo, a opção crítica passapor mas não passado passo, abordando uma
questão que está já em causa mesmo antes do passo ser inscrito, ou melhor
ainda, à medida que é inscrito e que a sua pluralidade, a sua duplicidade, a
negatividade em jogo e através da qual se articula não podem ser contidas.
Será melhor, então, seguindo o aforismo pessoano, não dar passo algum? É esse o
custo de não haver custo? Ou será que na questão debilmente formulada enquanto
escolha entre activo e passivo, entre um ou outro, é precisamente a disrupção
deste binário que permite uma reformulação do parar/pausar, uma distinção que
está longe de ser clara ou decisiva. Talvez tomando em conta não só mas também
as figurações de um certo Chevalier de Pas, mas de vários pas no texto
pessoano, se deva optar per nem um um nem outro, operando enquanto ativo
epassivo.
Trata-se de uma tentativa de abordar o texto não através de outra estrutura
ainda, mas através da sua própria estruturação, não desde fora, mas a partir do
que está dentro, mesmo que exteriorizado, necessariamente já extrínseco. Dentro
e fora, ativo e passivo, são efeitos da différance que deve ser dissimulada de
modo a haver uma apresentação dos binários dentro/fora e ativo/passivo enquanto
forças estruturantes de um suposto ou imposto discurso ou espaço pessoano. O
que existe é pas(sos), e não a passagem (transcendental e/ou
transcendentalizado) para além do texto, para um além, para outra cousa
ainda.
Um pas em frente
To sum up: there is no 'relation' between poetry and drama. All poetry tends
towards drama, and all drama towards poetry.
T. S. Eliot
Passo agora a responder à sua pergunta sobre os heterónimos.
Fernando Pessoa
Se a questão dos pas(sos) levará inevitavelmente a focar a inquietante
intraduzibilidade de Chevalier de Pas, esta discussão não se prenderá com o
tomar de Chevalier de Pas enquanto um primeiro heterónimo ou um primeiro
fenómeno de desdobramento. Pelo contrário, irá abordar este movimento de
indecidibilidade, pas(sos), se se pode chamar movimento a um gesto tão
negativo, enquanto aquilo que tem, entre outras coisas, como efeito a
representação de Chevalier de Pas enquanto o primeiro heterónimo na carta a
Adolfo Casais Monteiro (13 janeiro 1935).
Seria um faux pas ignorar a textualidade e o valor da carta enquanto texto
literário, como reconheceu inclusivamente Adolfo Casais Monteiro na primeira
publicação deste no número 49 da Presença(Silva, 2004: 392-93). Mais do que uma
questão de testemunho e testamento, a carta deve ser analisada enquanto
performance literária, em que Chevalier de Pas e as outras figuras aparecem
sobretudo enquanto evocação de um passamento: Começo por aqueles que morreram,
e de alguns dos quais já me não lembro ' os que jazem perdidos no passado
remoto da minha infância quase esquecida (Pessoa, 1999a: 341). Neste processo
de luto por aqueles a quem José Gil chama heterónimos não literários (s.d.:
133),[6] é estabelecido um alicerce prostético para além da inteligência, para
além da literatura e da escrita, para além do texto. O Fernando Pessoa que
comunica com o outro via uma relação postal literária presupostamente avant-la-
lettre (nomeadamente, sobre a génese dos heterónimos) encontra-se já
textualizado como o locus orgânico e psicológico pré-heteronímia, pré-idade
adulta e pré-literatura. Chevalier de Pas é um pas-au-delà, em toda a sua
indecidibilidade, já uma performance, um escritor ao mesmo tempo que escrita. A
duplicação e alteridade, a indecidibilidade, não está presente no nome, o nome
não significa duplicação e alteridade. Antes a inscreve, tornando-a assim
visível e acessível.
Não é o espaço de Chevalier de Pas enquanto primeiro heterónimo, e suposta
importância metafísica ou transcendental de tal nome, [7] mas antes os passos,
quer na escrita quer na leitura, que produzem Chevalier de Pas como um
precursor de heteronímia. Chevalier de Pas é significativo só e já enquanto
produto textual.
O pas no pas é não só uma questão de pluralidade como também de
indecidibilidade e consequente estranhamento, como já mencionada redução de
sentido de Bréchon faz notar, quando o pas necessariamente implica negação e
movimento simultaneamente, como Ramalho Santos aponta nas suas traduções como
Knight of Naught e Forward and Wayward knight (Santos, 2003: 8-9). É no
jogo entre os dúplices sentidos, e não numa mera equivalência ou ambiguidade,
entre irredutibilidade e excesso, que os sentidos são produzidos.
Importa assim notar que a questão dos pas(ssos), de fronteiras, graus e
degraus, é intrínseca à textualidade da escrita pessoana. É uma questão na
linguagem e da linguagem com as consequentes e inegáveis implicações
filosóficas, sociais e políticas, e não o contrário:
Vem uma voz pela bruma,
Vem pela bruma a falar.
Não me diz coisa nenhuma.
Sei ouvi-la sem escutar.
É a voz antiga e perdida
Que diz sempre ao coração
Que não é nada esta vida
Que todo o esforço é em vão.
Naufraga em ser todo intuito.
Morre em passar todo passo.
O que queremos é muito,
O que obtemos só chega.
Chega e vê que há somente
No cais aonde amarramos
A ausência de toda a gente
E a chegada que lhes damos.
E assim, inúteis do acaso,
Senhores do nada ser,
Cantamos o nosso caso,
Poetas, ao entardecer. (Pessoa, 2006: 288)
Neste poema de 6 April 1934 é aquilo que se perde, o que morre (Morre em
passar todo passo), o nada ser, o que permite o canto dos poetas (o nosso
caso). A morte, neste como noutros poemas, na carta enquanto documento
literário ou nos vários prefácios, é uma questão que aparece invariavelmente
ligada à escrita. O carácter aporético da escrita, a disrupção de identidade,
não tem de esperar pela chegada (ficcionada) de um cavaleiro andante, neste
caso, Chevalier de Pas, mas antes, passa já além de e transgride limites,
enfatizando negatividade antes que qualquer subjetividade possa ser e seja
efectivamente (re)presentável.
Trata-se, assim, também mas não unicamente ou exclusivamente, de um
sacrificing of identity para a chegada do totally other ' lyric poetry
(Santos, 2003: 9), pois a escrita gera a (im)possibilidade de identidade(s). É
precisamente ao abordar os simultâneos passos e negação que estruturam mais uma
difícil passagem, a aporia de um poeta escrevendo diversamente, que se
coordenam quer uma necessidade quer uma impossibilidade nos seguintes escritos
relativos ao poeta dramático e aos graus da poesia lírica: a) a
irredutibilidade da poesia a um género pré-configurado incapaz no entanto de
abandonar os termos nos quais se configuram os conceitos; b) a impossibilidade
de escrever uma poesia dramática que não tenha a forma de um drama, de colocar
personagens poéticos e dramáticos fora de um enredo e de um drama. A questão
que se coloca em ambas é a dos pas(sos) no e além do texto.
A noção de poeta dramático é avançada por Pessoa como a chave para a
explicação dos seus escritos na carta a João Gaspar Simões de 11 de dezembro de
1931, uma estrutura além da textura e da textualidade da forma. Embora comece
por ser definido como a característica do poeta e do dramaturgo nos escritos, o
poeta dramático é em última instância apresentado como a chave para a
personalidadde, o oikos do poeta, o ponto central da minha personalidade como
artista; e continua com a gradação até que atinge a construção de uma emoção
numa pessoa inexistente, sentindo verdadeiramente o que o puramente eu se
esqueceu de sentir (Pessoa, 1999a: 255-56). Como diria Umberto Eco, a
subjetividade está, de fato, nos advérbios: o poeta essencialmente dramático,
essencialmente, porque, de forma algo paradoxal, não pode abandonar
totalmente a forma. Como se verá em seguida, a poesia lírica será dramática sem
assumir forma dramática nem implicitamente nem explicitamente dado que as
concepções de lirismo, drama e poesia não são senão formais.
Ao invés de simplesmente aceitar o valor proposto na noção de poeta
dramático, tentar-se-á antes abordar as estruturas que tornam esta
conceptualização possível, os vários pas(sos) que levam (com mais ou menos
desvios e interrupções) até ela. Não podemos simplesmente, como sugerido por
Óscar Lopes, dar o passo seguinte, um passo único inscrevendo a teleologia de
um percurso (neste caso, o hegeliano) como se o crítico soubesse de antemão
onde o texto o vai levar, seja qualquer texto, qualquer texto em si, ou estes
textos.
Naquele que é suposto ser o quinto dos degraus da poesia lírica, que se
encontram dispostas por uma gradação de intelecto e imaginação num texto
anterior, de 1930 (Pessoa, 1973: 67-69), e se tornam continuamente mais raros,
que encontramos os degraus de despersonalização e a suposição de um último
passo, um precisamente além (mas irá além?) da poesia dramática, propriamente
dita (Idem, 68). Trata-se de poetas líricos, embora dramaticamente. Os
escritos de Shakespeare e alguns de Browning corresponderiam a esta categoria.
Contudo, é o ainda um passo (Idem, 69) que nos interessa aqui:
Suponhamos, porém, que o poeta, evitando sempre a poesia dramática,
externamente tal, avança ainda um passo na escada da
despersonalização. Certos estados de alma, pensados e não sentidos,
sentidos imaginativamente e por isso vividos, tenderão a definir para
ele uma pessoa fictícia que os sentisse sinceramente ( ). (Ibidem)
Trata-se de um passo ensaiado para além da forma, para além do binário pensar/
sentir, até um sentir imaginativamente, para além de um próprio, na estrutura
de uma pessoa fictícia.
De novo nos pas(sos) da escala de despersonalização, ou seja de imaginação
(Pessoa, 2007: 150), que introduzirá os escritos de Caeiro e de outras
personae, Pessoa começa por abordar a divisão aristoteliana da poesia em
lírica, elegíaca, épica e dramática (Ibidem), contestando esta classificação
simplista, e propondo em seu lugar uma gradação do lírico até ao dramático,
dividida em graus de poesia lírica:
O primeiro grau da poesia lírica é aquele em que o poeta, concentrado
no seu sentimento, exprime esse sentimento. Se ele, porém, for uma
criatura de sentimentos variáveis e vários, exprimirá como que uma
multiplicidade de personagens, unificadas somente pelo temperamento e
o estilo. Um passo mais, na escala poética, e temos o poeta que é uma
criatura de sentimentos vários e fictícios, mais imaginativo que
sentimental, e vivendo cada estado de alma antes pela inteligência
que pela emoção. Este poeta exprimir-se-á como uma multiplicidade de
personagens, unificadas, não já pelo temperamento e o estilo, pois
que o temperamento está substituído pela imaginação, e o sentimento
pela inteligência, mas tão-somente pelo simples estilo. Outro passo
na mesma escala de despersonalização, ou seja de imaginação, e temos
o poeta que em cada um dos seus estados mentais vários se integra de
tal modo que de todo se despersonaliza, de sorte que, vivendo
analiticamente esse estado de alma, faz dele como que a expressão de
um outro personagem, e, sendo assim, o mesmo estilo tende a variar.
Dê-se o passo final, e teremos um poeta que seja vários poetas, um
poeta dramático escrevendo em poesia lírica. Cada grupo de estados de
alma mais aproximados insensivelmente se tornará uma personagem, com
estilo próprio, com sentimentos porventura diferentes, até opostos,
aos típicos do poeta na sua pessoa viva. E assim se terá levado a
poesia lírica ' ou qualquer forma literária análoga em sua substância
à poesia lírica ' até à poesia dramática, sem todavia se lhe dar a
forma de drama, nem explícita nem implicitamente. (Ibidem)
O passo final nunca é demasiado final: a incompletude do futuro imperfeito e
perfeito (teremos; terá levado) faz pouco mais do que acentuar o aspecto
modal estruturando quer afinalidadequer a finitude do passo: Dê-se;
Suponhamos. De novo a evocação de um constructo para sentir mediatamente: um
poeta que seja. O passo final é mais ainda um passo: le pas-au-delà
texto? Ou o pas au-delà no texto:
The pas does not simply negate such a possibility [of completion and
closure], but puts into question the possibility of negation
necessary for the closure to be accomplished. How can this pas ever
produce closure if it sets up a limit to be crossed even in
prohibiting its crossing?
The step beyond is never completed, or, if it is completed, is never
beyond. (Nelson, 1992: xvii)
A estruturação do texto está já integrada integrada na obra, e ela própria não
é imune nem à ficcionalização nem à performatividade poético-literária que esta
encerra, levando à dissimulação de estrutura, de forma, da obra exterior (pre-
facio) perante uma prometida presença.
A forma é precisamente não apenas a questão, mas o que é colocado em questão:
le pas au delà forma? Se as estruturas e os construtos prometem um abandono (o
não de um drama, quer na sua forma explícita ou implícita) através da presença
por vir (um poeta, uma pessoa fictícia), a estruturação não pode ser
abandonada. Na aporia, a prometida passagem de escalasegraus, permitindo os
passos na direção de um telos não são um meio, mas já uma performance. Passar o
limite articula uma negação e afirmação simultânea, um pas (no sentido dúplice
que se lhe reconhece)d'hors-texte.
Outra cousa ainda
Tudo isto se passa em casas, em janelas que dão para paisagens realmente
visíveis.
Fernando Pessoa
The first step is the hardest - says the popular adage. But in dramaturgy the
reverse is true: the last step is the hardest.
Arthur Schopenhauer
Os diversos pas(sos) no e do texto pessoanonão podem ser entendidos
simplesmente como origem ou telos de negatividade ou paradoxo, mas como um
performance exemplar da irredutibilidade e do excesso na escrita, do texto
enquanto performance que constrói e descontróido mesmo passo (parafraseando
José Augusto Seabra) as estruturas que prometem limitá-lo e contê-lo (presença,
drama, eu, isto).
O leitor crítico não tem necessariamente de seguir um passo, de dar o passo
seguinte, ou de simplesmente não dar passo algum. O leitor não pode senão, do
mesmo passo, seguir o passo do texto, embora enfatizando a negatividade que lhe
é subjacente e estruturante, lembrando que a escrita estrutura tais oposições,
não é produto destas. Esta leitura visa não apenas ir além dos binários e
constructos, mas através deles abordar a estruturalidade das estruturas
(Derrida, 1990: 278-80), notando que na origem está já, e que a origem é já
diferença. Na origem do texto está já a textualidade.
Isto alerta o leitor quer para o que o texto é quer para o que o texto faz,
para os pas(sos) de cada espaço e de cada passar. Antes de descrever um
instinto dramático em 1931 ( 1999a: 254)e um i>sentir
dramaticamente, havia já um escrito dramaticamente (Pessoa, 1999b: 143), como
é descrito na carta a Armando Côrtes-Rodrigues de 19 de janeiro de 1915. A
progressiva assimilação dos produtos textuais como enviados dos sentimentos do
eu na carta a Adolfo Casais Monteiro leva a uma dissimulação da dissimulação, à
apresentação da escrita como mimesthai de um verdadeiro sentimento origindo no
próprio, ou de outro próprio, subordinando a escrita ao que se vem a passar:
Criei, então, uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de
realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro
de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto
me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece
que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda
se passa. (Pessoa, 1999a: 343)
Assim, o que se passa (que é também uma difícil passagem, aqui dissimulada) é
já encenada dentro de um próprio. Mas o passo para além do texto é um passo que
dobra (em ambos os sentidos da palavra) o texto, numa propriedade prostética,
uma economia de representação. Finjo? Não finjo. Se quisesse fingir, para que
escreveria isto? Estas coisas passaram-se, garanto(Pessoa, 2007: 148). Esta
frase do rascunho do prefácio geral para Aspectos (mais tarde, Ficções do
Interlúdio) é ilustrativa de um movimento que é já, de certo modo,
estranhamento familiar no poema Isto: Dizem que finjo ou minto/ Tudo o que
escrevo. Não. Isto ecoa e explora o prazer inerente à mimesis, tal como
apontado por Derrida (1982: 239), em que o duplo, o mimesthai, é não a
coisa em si, mas a promessa da sua (re)apropriação, lembrando-nos no entanto
que o espaçamento da escrita torna impossível um simples retorno ao próprio,
apenas a promessa de outra cousa ainda.
Suplementar com uma leitura, neste caso, com uma inscrição pessoana (um
sublinhado na sua edição de poemas de Stéphane Mallarmé) é perseguir a
indicação que a escrita produz não espaços mas sim pas(sos) interpretativos,
conscientes que a redução da escrita a um medium para um significado e/ou
presença não é mais do que um passo em falso. Afinal, um poema, como qualquer
texto, relelmbrando a lição mallarmeana, constrói-se com palavras. O décimo
verso recebeu uma atenção particular de Pessoa, que o sublinhou, despertada
talvez por esta meditação inspirada pelo valor (saveur=valeur?) da ausência, e
da ausência consciente (docte manque) sendo mais apetecível do que a
presença. Paphos (rimando com faux [duplamente: foice; falso]) sempre foi um
passo em falso (pas faux).
Mes bouquins refermés sur le nom de Paphos,
Il m'amuse d'élire avec le seul génie
Une ruine, par mille écumes bénie
Sous l'hyacinthe, au loin, de ses jours triomphaux.
Coure le froid avec ses silences de faux,
Je n'y hululerai pas de vide nénie
Si ce très blanc ébat au ras du sol dénie
À tout site l'honneur du paysage faux.
Ma faim qui d'aucuns fruits ici ne se régale
Trouve_en_leur_docte_manque_une_saveur_égale:
Qu'un éclate de chair humain et parfumant !
Le pied sur quelque guivre où notre amour tisonne,
Je pense plus longtemps peut-être éperdûment
À l'autre, au sein brûlé d'une antique amazone. (Mallarmé, 1998: 46-
47)
L'autre? Como com Isto resta-nos a referencialidade sem referências.
L'autre', uma ausência que não se encontra simplesmente ausente, ou à volta da
qual são construidos sentido(s) e presença(s), mas antes uma ausência cuja
aparência de presença é construida através de um reenvio e não de uma
referência, num corte com a realidade. A topografia de Paphos, o nome Paphos,
funciona deste modo como a referência a um texto construido em redor da
evocação do mítico local de nascimento da ideal Afrodite no seu apagamento
perante o inominável, o outro irrecuperável após o fechamento do livro.
L'autre, como a outra cousa ainda, como o outrar-se,[8] toma o lugar,
articula e requer incompletude, como um outro do qual não há próprio. Enquanto
suplemento, o que articula o texto nas suas aporias é somente os pontos de
articulação do texto. Não nos restam senão os pas(sos) do texto, a textualidade
que torna um/o sentido possível e impossível, não se limita simplesmente a
passá-lo.