Análise biográfica de indivíduos com história de consumo de substâncias
INTRODUÇÃO
O presente estudo baseia-se na análise biográfica de indivíduos com história de
abuso de substâncias. O actual estado da investigação na área da dependência de
substâncias abarca uma multiplicidade de estudos, qualitativos e também de
carácter quantitativo. Contudo, é imperativo que se prossiga na procura de mais
conhecimento a respeito de uma problemática cuja abrangência e impacte não
param de aumentar. Assim, urge compreender melhor e, sem pretensões de carácter
explicativo, focalizar a atenção na exploração dos aspectos circunstanciais,
relacionais, afectivos e desenvolvimentais dos percursos de vida e de consumos
destes indivíduos, na exploração de eventuais similaridades, subjacentes à
conduta adictiva. Por isso, o estudo visa capturar aspectos tácitos e profundos
que, no interstício das palavras, dos silêncios e da comunicação não verbal,
propiciem a oportunidade de melhor compreender para melhor prevenir e intervir.
Da multiplicidade de modelos explicativos e de tentativas de compreensão, pode
apontar-se a perspectiva de Tinoco (2002) que, partindo da análise de histórias
de vida, acaba por referir a fissura biográfica do sujeito dependente de
drogas. Tudo se passa como se o Eu do passado não se reconhecesse no do
presente, numa desistência da construção de si, numa "desarticu-lação
biográfica", em que o próprio não sente a história de vida como sua,
tendendo a esquecê-la ou a nem sequer desejar lembrá-la.
Apesar de se saber tratar-se de um grupo heterogéneo, este e outros factores
comuns têm sido encontrados em sujeitos dependentes de substâncias,
nomeadamente entre aqueles que apresentam já uma história consideravelmente
longa de consumos. Costa (2002) refere-se ao estereótipo do adicto às drogas,
incluindo um ar degradado e geralmente afectado por um desgaste ao nível da
qualidade de vida e a todos os níveis do seu funcionamento global. Outras
similaridades têm sido evidenciadas entre estes indivíduos, como refere Farate
(2001), a respeito de diferentes estudos que apontam para a adesão dos jovens
consumidores a outras condutas problemáticas e até violentas. O autor afirma
ser claramente notória a associação entre o consumo de drogas e as condutas
socialmente transgressoras. Contudo, é fundamental n ão esquecer que, segundo
Ribeiro (2001), a toxicodependência é um fenómeno muito complexo, daí que não
exista um modelo que abarque a sua globalidade, até porque, a conduta do
toxicodependente varia em função da história de cada um, d a forma singular
como cada indivíduo vive a toxicodependência e de como organiza as próprias
defesas.
Jessor, em 1991 refere-se a alguns aspectos prévios aos consumos de drogas, ao
propor a teoria de risco dos adolescentes. Esta proposta centra-se na
importância de certas ocorrências de risco entre adolescentes, na pobreza
socialmente organizada, na desigualdade e discriminação, como factores que
mantêm o risco entre os mais jovens. Para o autor, o factor de risco leva à
conduta de risco, sendo que esta pode comprometer aspectos psicossociais e
desenvolvimentais do jovem. Com tal comprometimento, chega-se ao resultado de
risco com impacto nefasto sobre quatro áreas: (1) a saúde, com aparecimento de
enfermidades e de um estado de más condições físicas; (2) os papéis sociais, em
que se instala o fracasso escolar, o isolamento social, os problemas legais e a
paternidade prematura; (3) o desenvolvimento pessoal, cujo comprometimento
passa por um auto-conceito inadequado, pela presença de depressão e até pelo
risco de suicídio; (4) a preparação para a vida adulta, igualmente comprometida
pelas escassas competências laborais, pela situação de desemprego e pela
reduzida motivação (Becoña & Martin, 2004).
Torres (2003) apresenta uma interpretação diferente, mas igualmente centrada
nas ocorrên-cias prévias à história de consumos, baseando-se em Bion (1961)
para propor uma abordagem psicossomática na qual se contempla a ideia do homem
na sua globalidade, mediante a consi-deração de uma multiplicidade de factores
interactivos. É um modelo que procura uma forma explicativa do fenómeno, não
resvalando, no entanto, para o reducionismo dos modelos baseados na causalidade
única e linear. Assim, segundo o autor, Bion terá proposto a doença
psicossomática como resultante da presença de conflito entre pressões impostas,
de afiliação e de pertença, e pressões exercidas pelo nível biopsicológico do
próprio.
A esta ideia, Torres (2003) acrescenta que uma revisão de estudos,
longitudinais e retrospectivos, apoia que na origem da toxicodependência são
observadas disfunções aos níveis do aleitamento materno, da vinculação
primária, da afiliação social, do altruísmo recíproco e da religiosidade. Todos
estes aspectos são conjugados no modelo, que refere o défice na interacção do
bebé com a mãe, num comprometimento da vinculação primária do indivíduo que,
desde cedo, é alvo de um estilo relacional pobre e não satisfatório das suas
necessidades. Consequentemente, o padrão de vinculação que se desenvolve é
inseguro o que, por sua vez, virá a afectar negativamente o processo de
afiliação social, em que as relações com os outros serão marcadamente
desinvestidas de afectos e, não raras vezes, pautadas por condutas anti-
sociais, num registo de funcionamento instrumental. Estes aspectos do nível
psicossocial influenciam o nível biológico onde, face a uma eventual
vulnerabilidade genética do sistema opióide endógeno, passará a haver uma sub-
regulação ou insuficiente produção de opióides endógenos. Esta insuficiência
conjugar-se-á com as características decorrentes de uma vinculação de padrão
inseguro para, conjuntamente, afectarem o nível psicossomático. Desta forma, e
num regime de substituição, o contacto com as substâncias psicoactivas exógenas
conduzirá a uma procura de compensação da produção de opióides endógenos, cujo
nível teria sido normal e naturalmente desenvolvido por via do contacto
afectivo-emocional.
Em suma, são aqui apresentados três níveis de interacção que concorrem para a
motivação para o consumo de drogas: O nível psicossocial, em que logo na
primeira infância se verifica o défice na interacção com a mãe, comprometendo a
vinculação primária. Posteriormente, e já em idade adulta, o padrão
predominante de vinculação é igualmente deficitário, quer ao nível das relações
íntimas, quer em termos da precariedade da afiliação social do indivíduo. Tudo
isto acarreta implicações sobre um segundo nível, o biológico, que apresenta um
défice na regulação do sistema opióide endógeno que, a par de uma
vulnerabilidade genética, conduz a uma sub-regulação do mesmo sistema com
consequente tendência para a busca de substâncias exógenas compensatórias. Ao
terceiro nível, o psicossomático, encontram-se as oscilações de humor, a
depressão, a ansiedade, a indiferenciação de sentimentos e de emoções, o
desamparo e outros factores que contribuirão também para o uso de drogas
(Torres, 2003).
Poder-se-á então falar da possível existência de factores de carácter afectivo-
emocional, anteriores ao uso de substâncias, sendo que a busca desses aspectos
poderá contribuir para uma melhor compreensão do fenómeno.
O PORQUÊ DA ABORDAGEM QUALITATIVA
O presente estudo procura esse carácter compreensivo, com recurso ao biograma
que, segundo Tinoco e Pinto (2003), se revela um instrumento de grande
utilidade uma vez que procede à busca das regularidades biográficas,
possibilitando, também, a identificação e localização dos pontos de inflexão,
num processo de tomada de consciência dos momentos chave do percurso
existencial do indivíduo.
A análise, de índole compreensiva e de procura de significados, passa
necessariamente pela palavra e pelo que ela representa para o indivíduo,
detentor de uma realidade subjectiva, única e irredutível. De acordo com
Elliott e Shapiro (1992), o método de análise compreensiva é um sistema de
pesquisa qualitativa que obedece a um processo de averiguação de
acontecimentos, numa busca de compreensão do contexto das ocorrências e do seu
impacto no indivíduo. Na verdade, a história contada na primeira pessoa
ultrapassa o acto de a relatar, uma vez que o narrador é também o protagonista,
que pode ir construindo uma nova orientação para a autobiografia (Eisenberg,
2001). Trata-se de uma abordagem em que se considera a relatividade da
realidade, sem verdades únicas e absolutas, mas antes subjectivas, múltiplas e
mentalmente construídas por cada sujeito. Está também presente uma
subjectividade em que investigador e objecto de investigação se interligam no
processo, cujo método assenta na hermenêutica e na dialéctica, em que as
construções individuais se subsidiam, através e ao longo da interacção
investigador/objecto (Guba & Lincoln, 1994).
O ESTUDO EMPÍRICO
O estudo exploratório, descritivo e transversal foi desenvolvido com indivíduos
com história de abuso de substâncias, perseguindo os seguintes objectivos:
- Aprofundar conhecimentos sobre a problemática, numa perspectiva
compreensiva;
- Procurar uma inteligibilidade para o fenómeno, com base na busca de
aspectos tácitos e subjacentes à conduta adictiva;
- Averiguar a existência de um padrão de funcionamento global, com pontos
convergentes no percurso de vida dos participantes.
Em conformidade com a perspectiva de conhecimento adoptada, interessa
fundamentalmente aceder às experiências e às significações de cada indivíduo,
enquanto actor e autor da sua própria mudança. Trata-se de um registo que evoca
Kelly (1955), o qual já referia o homem com capacidade de edificar os seus
próprios constructos, e como autor dinâmico e activo da sua própria história de
vida.
A construção dos biogramas baseou-se na condução de uma entrevista semi-
estruturada e semi-directiva, cujo guião foi previamente elaborado. Foram
também construídas fichas de registo de aspectos paraverbais, como a fluência,
o débito locutório, os conteúdos do discurso e os aspectos prosódicos,
nomeadamente, o tom e o ritmo da fala. Também os comportamentos não verbais,
observados no decorrer das entrevistas, foram registados numa grelha
previamente elaborada para o efeito.
Foram entrevistados 10 participantes, com idades compreendidas entre os 35 e os
44 anos, com um nível de escolaridade variável entre os 0 e os 9 anos. A
amostra incluiu 6 indivíduos do sexo masculino e 4 do sexo feminino, sendo que
do total apenas 1 estava empregado, estando os restantes se encontravam em
situação de desemprego (6) ou de reforma (3).
Todos os dados recolhidos foram alvo de análise de conteúdo de tipo categorial
(Bardin, 2004), a partir da qual se criaram três grandes categorias que, por
sua vez, incluíram subcategorias, como se pode ver no Quadro_1.
QUADRO_1
As categorias resultantes do processo de análise de conteúdo
A criação do sistema de categorias passou por um processo de elaboração do
inventário com isolamento dos elementos a considerar e subsequente
classificação e agregação desses elementos, através de um trabalho conducente à
construção das diferentes categorias por "milha", conforme o método
proposto por Bardin (2004).
Ao longo do processo de análise temática e categorial, foi-se desenvolvendo a
classificação analógica e progressiva dos vários elementos até se criar o
sistema de categorias que consta do Quadro_1 e que se passa a descrever
sucintamente.
A grande categoria designada por "Análise do discurso" centrou-se
na análise dos comportamentos, verbais e não verbais, dos sujeitos. Esta
categoria incluiu três subcategorias:
- A subcategoria intitulada por "Verbal", que focalizou as
verbalizações dos sujeitos, atendendo à forma e ao conteúdo e incluindo a
fluência (tida como comprometida ou normal) e o débito locutório (tido como
reduzido, normal ou elevado) de cada participante;
-A subcategoria denominada "Paraverbal", foi aquela em que se
agruparam os indivíduos em função dos aspectos prosódicos evidenciados, como a
entoação (tida como adequada ou não concordante com o conteúdo do discurso) e o
ritmo (também considerado como adequado ou como não concordante com o
conteúdo);
- A terceira subcategoria, chamada "Não-Verbal", remeteu para
aspectos como a apresentação (considerada cuidada ou descuidada), a expressão
facial (tida como rica ou, pelo contrário, pobre quando não variava em função
dos diferentes momentos e tópicos abordados), o contacto ocular (considerado
evitante ou directo) e os movimentos corporais (tidos como lentos, adequados ao
discurso ou de agitação).
Quanto à segunda grande categoria, designada por "História de
vida", resultou nas quatro subcategorias cuja descrição se segue:
- A subcategoria respeitante à "Infância/ /Vinculação"
remeteu para os aspectos afectivos da relação com as figuras de vinculação dos
sujeitos, tendo-se revelado fraca, quando eram evidentes os sinais de reduzida
proximidade afectiva, ou distante, sempre que eram evidentes os sinais e
verbalizações indicadores de grande afastamento e ausência por parte das
figuras parentais;
- A segunda subcategoria, intitulada "Adolescência/Figuras de
autoridade" registou o estilo educativo de que os participantes terão
sido alvo. Os sujeitos revelaram ter percebido permissividade e/ou negligência
na educação recebida;
- Quanto ao "Percurso escolar", foi a subcategoria em que se
registou a percepção dos sujeitos, relativamente às suas aptidões escolares e
ao interesse que terão sentido pela escola;
- A subcategoria relativa às "Relações afectivas" foi aquela
em que se analisou o registo de emoções e afectos manifestados pelos
participantes ao longo da entrevista, tendo-se encontrado um registo estável ou
plano (sem ressonância afectiva).
A maior das categorias foi a da "História dos consumos" que abarcou
oito subcategorias cuja breve descrição é apresentada de seguida:
- A primeira subcategoria, "Idade da primeira experiência",
remeteu para a idade em que cada participante referiu ter-se iniciado nas
drogas;
- Já a subcategoria respeitante ao "Contexto da primeira
experiência" focalizou-se na(s) figura(s) que acompanhou cada sujeito
durante o primeiro consumo, tendo-se encontrado figuras como o companheiro, os
colegas e os amigos;
- Os "Motivos/Razões" para a iniciação no mundo das drogas
constituíram outra sub-categoria na qual se encontraram explicações
relacionadas com a pressão e influência e, sobretudo, com factores meramente
hedonistas;
- Quanto à subcategoria da "Substância(s) de iniciação"
remeteu para a droga, ou drogas, com que se iniciou cada participante,
encontrando-se, neste subcategoria, o haxixe, a heroína e a cocaína;
- A "Evolução dos consumos" consistiu na subcategoria em que
se registou a maior ou menor rapidez de transição para o consumo de drogas como
a heroína e a cocaína;
- A subcategoria relativa aos "Problemas jurídico-legais"
registou a participação em actos de delito e a ocorrência de eventuais
detenções e/ou prisões, para cada um dos sujeitos;
- As "Consequências percebidas" incluíram o registo de como
os participantes percebiam as ocorrências decorrentes do seu percurso;
- A subcategoria designada por "Consumos pós-metadona"
centrou-se nos consumos mantidos após a iniciação do tratamento de
substituição.
Finalmente, a última subcategoria remeteu para a "Análise
prospectiva" dos sujeitos, permitindo registar a forma como cada
participante se projectava no futuro, e como definia os seus projectos de vida.
RESULTADOS
Análise do discurso
Na subcategoria verbal apenas 1 dos participantes apresentou comprometimento da
fluência, denotando alguns problemas ao nível da produção da fala. Os conteúdos
eram lógicos e sequenciais em 6 dos indivíduos e 1 deles apresentava-os
ligeiramente confusos. 3 dos participantes denunciavam alguma tangencialidade,
não conseguindo focalizar-se num tópico e apenas contornando superficialmente
cada tema. O débito locutório era elevado em 2 dos sujeitos, reduzido em 3,
nomeadamente ao nível da fala espontânea, e normal ou adequado nos restantes 5
sujeitos.
No que respeita aos aspectos paraverbais e relativamente aos prosódicos, 5 dos
sujeitos exibiram um tom e um ritmo não concordantes com os conteúdos do
discurso, o qual ocorreu em tom monocórdico.
No que concerne aos aspectos não verbais, 6 dos participantes apresentaram-se
de forma claramente desleixada, denunciando reduzidos cuidados com a higiene e
a aparência. 5 indivíduos evitavam o contacto ocular e, 4 manifestaram uma
clara agitação motora, cuja explicação pode basear-se nos consumos regulares de
cocaína.
Histórias de vida
No que toca à subcategoria infância/ /vinculação, a totalidade dos sujeitos
(10) evidenciou um padrão inseguro de vinculação primária, o qual de acordo com
Aron (1975), mais não é que a consequência de um processo desenvolvimental que
põe em causa a segurança e estabilidade do ambiente social próximo, com uma
percepção das figuras parentais que é perturbadora de um desenvolvimento
psíquico e emocional seguro e equilibrado.
No plano da adolescência/figuras de autoridade, todos os indivíduos (10)
percepcionaram a educação de que foram alvo como permissiva e/ou negligente,
num padrão de clara auto-regulação.
Relativamente ao percurso escolar, 9 dos participantes demonstraram uma auto-
percepção de incapacidade para os estudos, sentida desde tenra idade.
Na subcategoria respeitante às relações afectivas, 9 dos sujeitos evidenciaram
um estilo relacional evitante, num registo de relações instrumentais e sem
ressonância de afectos.
História dos consumos
A idade de iniciação no consumo de substâncias ilícitas foi a da adolescência
para 7 dos participantes, sendo que os 3 restantes se iniciaram já em idade
adulta. Estes últimos, do sexo feminino, iniciaram-se com o companheiro e
referiram como motivos para consumir a pressão ou influência do mesmo. Os
motivos apontados pelos que se iniciaram na adolescência foram de natureza
hedonista.
Quanto à substância de iniciação, 9 sujeitos referiram ter sido o haxixe e
apenas 1 se iniciou com heroína e cocaína.
No que respeita aos problemas jurídico-legais, 4 participantes afirmaram ter
sofrido uma ou mais detenções, sendo que os 10 indivíduos confessaram ter
participado activamente em acções delituosas.
As consequências percebidas por todos os sujeitos relativamente ao seu percurso
de consumo de drogas foram descritas como sendo de perda total em todas as
áreas de vida.
No respeitante aos consumos pós-metadona de substâncias que não a heroína, 9
dos sujeitos referiram ter mantido ou até aumentado tais consumos, sendo a
cocaína e o álcool as substâncias mais frequentemente consumidas nestas
circunstâncias.
No que toca à análise prospectiva foi notório, em todos os participantes, um
registo de pobreza ou até de vazio de projectos de vida futura, num patamar de
alheamento e desesperança.
NOTAS INTERPRETATIVAS
Entre os participantes deste estudo parece ser possível identificar um padrão
com uma convergência de aspectos a considerar nas categorias definidas.
No percurso de vida encontrou-se, em todos os indivíduos, um padrão inseguro de
vinculação primária, decorrente da ausência de supervisão, de cuidados e de
afectos. Esse estilo relacional parece ter sido transportado para a idade
adulta e reproduzido, num regime transgeracional, por 9 dos participantes, os
quais não estabelecem relações de intimidade e compromisso, mas antes factuais,
instrumentais e desinvestidas de afectos. Essa ausência de ressonância afectiva
é aliás sentida nos sujeitos relativamente a si próprios, com reduzida auto-
estima, baixa auto-confiança e notório abandono de si. Foram também notadas a
percepção de incapacidade para os estudos desde tenra idade, o vazio de
projectos de vida, o próprio abandono do corpo e dos cuidados de que o mesmo
carece, num claro desinvestimento.
O discurso, em tom monocórdico e ritmo constante, denotou um registo emocional
discordante dos conteúdos e tópicos abordados, num processo de banalização e de
superficialidade de análise das ocorrências mais marcantes. Pobre de
imaginário, o discurso apenas ganhou alguma riqueza quando tocava aspectos do
consumo de substâncias, em que os sujeitos se referiam à(s) droga(s) como se a
(s) personificassem.
Reconhecendo a perda de tudo e de todos como consequência dos consumos, os
participantes persistiram num discurso pleno de significados relativamente às
substâncias, num registo que se aproxima da identificação do indivíduo apenas
enquanto dependente daquelas, como se de uma absorção identitária se tratasse.
Tal aspecto pode relacionar-se com a busca de outras substâncias que não a
heroína, após iniciar o abandono daquela droga, numa tentativa que se assemelha
ao preenchimento de um vácuo. O vazio foi, aliás, verbalizado pelos próprios
que assumiram nada ter e nada investir. O indivíduo abandonou-se, perdeu-se de
si, não sentindo a própria história como sua nem o próprio corpo como seu,
parecendo que a sua existência se confina, identifica e reconhece, apenas como
consumidor de substâncias.
Se é certo que há uma convergência de certos aspectos consequentes dos longos
períodos de consumo, não é menos correcto afirmar que se encontram, logo na
infância, factores comuns que parecem ter contribuído para os percursos
existenciais destes indivíduos, bem como para os seus trajectos desviantes. O
estudo, mais do que fornecer respostas parece levantar questões, sobretudo a
respeito da forma como se cresce e das circunstâncias em que cada um constrói a
sua própria realidade. De facto, nesta problemática tudo se conjuga, não
havendo apenas um determinante. No entanto, tudo parece estar ligado a uma vida
afectiva (ou à ausência dela) que é diferentemente edificada por, e para, cada
indivíduo. Assim, parece pertinente referir a importância de se estar atento a
estes sinais que podem alertar para acções preventivas mais atempadas.