Contributos para a clarificação do conceito de competência numa perspetiva
integrada e sistémica
Introdução
A visibilidade que o conceito de competência tem assumido a nível nacional e
internacional, nas últimas décadas, em educação, evidencia um novo entendimento
do papel da escola e da formação face a uma sociedade em constante mudança,
alicerçada na complexidade e imprevisibilidade. No entanto, a falta de uma
definição mais concisa da noção de competência e o excesso de entendimentos que
proliferam têm-se vindo a revelar condições indutoras de confusão terminológica
e conceptual e evidenciam a necessidade e urgência de clarificação do conceito.
Utilizado pela Psicologia, pela Sociologia, pela Linguística, pelas Ciências do
Trabalho e pelas Ciências da Educação, o conceito de competência tem vindo a
ser objeto de múltiplas definições e interpretações, mudando de sentido de
acordo com o domínio em que é utilizado e o contexto a que se refere. Ropé e
Tanguy (1997) evidenciam o caráter polimorfo do conceito de competência.
Weinert (2001) salienta a inflação conceptual de que é alvo. Pires (2005) e
Gouveia (2007) não deixam de sublinhar a sua polissemia, referindo-se o último
a uma "nebulosa conceptual". Jonnaert (2002) refere-se à competência como
conceito "nómada" e "volátil" e Le Boterf (1999) apelida-o de "camaleão
conceptual".
Reconhecida que é, por vários autores, a diversidade conceptual e a variedade
terminológica do conceito, admitimos que perspetivas claras sobre competência
são mais necessárias do que nunca. No entanto, a construção de um entendimento
comum depende, em grande parte, da criação de uma linguagem partilhada a nível
internacional. Para tal, consideramos fundamental proceder à análise
sistemática de abordagens teóricas e conceptuais existentes. É, assim,
finalidade deste estudo contribuir, através da análise reflexiva das
perspetivas de vários autores, para a clarificação da noção de competência,
procurando apresentar, de forma fundamentada, uma abordagem integrada do
conceito que permita ultrapassar as limitações das abordagens analíticas (mais
tradicionais) que entendem a competência como resultado, objetivado em termos
de desempenho. Pretendemos, deste modo, colaborar para o esclarecimento de uma
perspetiva global e integradora de competência, que considere as suas múltiplas
dimensões, elementos e conteúdos no sentido de uma utilização partilhada (mais
útil), de modo mais incidente no domínio da Educação.
1. O interesse da clarificação conceptual de competência
O desenvolvimento científico-tecnológico que se tem vindo a acentuar a partir
da segunda metade do século XX contribuiu para a aceleração, produção e
reconfiguração da informação, dificultando qualquer ideia de certeza,
continuidade ou permanência (Cachapuz, Sá-Chaves, & Paixão, 2004; Eurydice
European Unit, 2002; Galvão, Reis, Freire, & Oliveira, 2006; Morin, 1999).
As sociedades contemporâneas são caracterizadas pela complexidade e
imprevisibilidade. Preparar os cidadãos para a constante mudança é uma
exigência da sociedade a fazer à escola e a ser assumida por esta. É
fundamental que os cidadãos compreendam a incerteza do real, a dimensão
científico-tecnológica dos problemas que enfrentam e intervenham de modo
refletido e solidário, numa perspetiva transnacional e conscientes da dialética
entre o local e o global (Morin, 1999; Santos, 2005). Já o Relatório da UNESCO
para a Comissão Europeia Educação: Um tesouro a descobrir (Delors et al., 1996)
partilhava desta posição, assumindo "o dever de se preparar para a mudança"
como "uma das responsabilidades fundamentais da educação".
Contudo, a escola que temos não tem servido esta sociedade. Vários
investigadores (Alonso, 2006; Cachapuz et al., 2004; Gouveia, 2007; Roldão,
2003; Tardif, 1999; Tiana, 2005, cit. em Rychen & Tiana, 2005; entre
outros) enfatizam o desajuste que se verifica entre a aceleração do
conhecimento científico-tecnológico das sociedades modernas e a definição e
desenvolvimento de políticas educativas capazes de apoiar a mudança para a
sociedade do conhecimento. Ou, a um outro nível de análise, o evidente
desfasamento entre o contexto formal de ensino e aprendizagem (escola) e as
exigências do atual mercado de trabalho. O contexto económico evoluiu, no
período anteriormente considerado, de uma economia centrada no fator produção
para uma economia centrada no fator mercado (Canavarro, 2000). Nesta, há uma
valorização do capital imaterial (conhecimento), tornando-se a qualidade dos
recursos humanos um fator estratégico (Gouveia, 2007; Tiana, 2005, cit. em
Rychen & Tiana, 2005).
A questão da influência da necessidade do exercício de vida política, social e
cultural por cada indivíduo e das novas exigências do mundo produtivo na
definição das competências a desenvolver pela ação educativa é, também,
abordada por Alonso (2006). A autora enfatiza a falta de significatividade e de
funcionalidade das aprendizagens escolares, bem como a falta de relevância
destas aprendizagens para as várias dimensões da vida quotidiana dos cidadãos
(social, laboral, relacional, cultural, ). Tal ideia é partilhada por Roldão
(2003), que evidencia a alegada ineficácia da escola e a crescente exigência
dos mercados de trabalho quanto às competências dos profissionais, fatores
apresentados pela autora como justificações para a reemergência da abordagem
por competências em contexto escolar.
Para além dos argumentos apresentados para a relevância da abordagem por
competências ' complexidade e imprevisibilidade do mundo atual, desfasamento
entre a formação académica e as exigências do mercado de trabalho e um novo
paradigma educativo ', o Ministério da Educação do Québec (2001) acrescenta,
ainda: i) a perspetiva demasiado analítica dos programas escolares, que
reforçou a proliferação de objetivos, o parcelamento dos conhecimentos, a
atomização das competências, a ênfase nos objetivos a curto prazo, nas
capacidades elementares em vez de competências mais complexas e na avaliação em
vez de na aprendizagem; e ii) a influência da formação profissional na formação
geral, no sentido da definição de uma perspetiva mais pragmática e relacional
do saber.
2. A evolução do conceito de competência
Face à pertinência do esclarecimento conceptual de competência, procedeu-se à
análise da evolução deste conceito. Embora outros critérios pudessem ter sido
usados para estruturar a apresentação da referida análise, a evolução do
conceito organizar-se-á de acordo com as abordagens dominantes que, desde o
início deste debate (final da década de 50 do século passado), foram emergindo
nos Estados Unidos da América (EUA) e na Europa.
2.1. Abordagem behaviorista de competência
Historicamente, White (1959, cit. em Delamare Le Deist & Winterton, 2005) é
identificado como o responsável pela introdução, nos EUA, do termo competência,
referindo-se às características pessoais associadas a um desempenho superior na
realização de uma tarefa e à motivação com que o indivíduo a realiza (Delamare
Le Deist & Winterton, 2005). Posteriormente, e seguindo a abordagem de
White, McClelland (1973), na sua publicação Testing for Competence rather than
Intelligence, define a competência como uma característica subjacente ao
sujeito, casualmente relacionada com desempenho superior na realização de uma
tarefa ou em determinada situação (Delamare Le Deist & Winterton, 2005;
Fleury & Fleury, 2001). Para além de precisar a noção de competência, o
referido autor, na mesma publicação, distingue, ainda, aptidões (que define
como talento natural e pessoal), habilidades (consideradas a demonstração
prática do talento particular, isto é, das aptidões) e conhecimentos (que
considera serem aquilo que as pessoas precisam de saber para desempenhar uma
determinada tarefa), num exercício de clarificação conceptual e terminológica
do conceito.
Na literatura de referência, McClelland tem vindo a ser referido por diversos
autores (Delamare Le Deist & Winterton, 2005; Fleury & Fleury, 2001;
Gouveia, 2007; Rychen & Salganik, 2001) como precursor de uma perspetiva
mais clássica da noção de competência: competência entendida como input. Assim,
no início da década de 70 do século XX, nos EUA, entre as abordagens mais
expressivas destacava-se a behaviorista, assente na valorização dos aspetos
observáveis da competência (desempenho/ comportamento diretamente observável).
No sentido de ilustrar a importância que esta abordagem atribui ao
comportamento observável relacionado com determinada tarefa, Pires (2005)
recupera Hager & Gonczi (1996) nas suas críticas ao behaviorismo:
A competência é concebida em termos de comportamentos separados,
associados com a finalização de tarefas atomizadas. ( ) Esta
abordagem não valoriza as relações entre as tarefas e ignora a
possibilidade de que o conjunto das tarefas pode conduzir à sua
transformação (Pires, 2005, p. 289).
De acordo com a perspetiva behaviorista, uma competência existe quando se
evidencia e manifesta através de um comportamento que seja passível de ser
diretamente observado e medido. As competências deveriam, assim, ser
caracterizadas através de indicadores comportamentais, da forma mais
operacional possível, particularizando ações específicas. Face ao exposto,
Hager (2005, cit. em Silva, 2009) considera esta perspetiva atomista, redutora,
mecanicista e estandardizada. O autor defende que, ao estar baseada em tarefas
rotineiras, reforça a uniformidade do desempenho e conduz à identificação de um
grande número de competências específicas, operacionalizadas pela definição de
comportamentos isolados e necessários à realização de determinada tarefa.
Sob a influência desta abordagem surgem, nos Estados Unidos da América e no
Reino Unido, programas de formação de professores centrados na aquisição de
competências entendidas como comportamentos diretamente observáveis que
tivessem uma correlação positiva com o aumento ou a melhoria dos resultados dos
alunos: o Competency Based Teacher Education (CBTE) e o Performance Based
Teacher Education (PBTE). Swanchek & Campbell (1981, cit. em Esteves, 2009)
referem a especificação precisa das competências ou comportamentos a serem
aprendidos, a modularização da instrução, a avaliação e o feedback, a
personalização e a experiência de campo como os principais traços dos referidos
programas. A seleção das competências era feita de entre os comportamentos que
a investigação científica de base experimental tivesse mostrado que estavam
positivamente correlacionados com as aprendizagens dos alunos (Esteves, 2009,
p. 39). As críticas ao CBTE e ao PBTE foram permanentes, tornando-se mais
incisivas a partir da década de 80 do século XX. Dois argumentos foram
invocados de modo recorrente: a inadequação da definição analítica das
competências para retratar o perfil dos profissionais mais bem-sucedidos e a
falta de evidências científicas que corroborassem a superioridade destes
programas em relação a outros (Esteves, 2009).
Ainda durante a década de 80, o Governo do Reino Unido, no sentido de
estabelecer um sistema nacional unificado de qualificações baseado no contexto
laboral, criou o National Vocational Qualifications (NVQ). As qualificações
vocacionais criadas sob este quadro de referência eram baseadas em padrões
estandardizados de competências, fundamentados em análises funcionais de
ocupações realizadas em diversos contextos. No NVQ, os padrões ocupacionais
identificam papéis-chave que se encontram subdivididos em várias unidades de
competência. Posteriormente, estas unidades subdividem-se em vários elementos
de competência e, para cada um destes, são definidos critérios de desempenho,
que formam a base da avaliação. Delamare Le Deist e Winterton (2005) consideram
que esta é uma abordagem funcional ao conceito de competência, distinguindo-
a da behaviorista pela particularidade do contexto para o qual são definidas as
competências.
Apesar de ter sido uma perspetiva dominante, a perspetiva behaviorista da
competência mostrou-se claramente insuficiente para uma compreensão mais
alargada do agir humano, sendo alvo de várias críticas (Gouveia, 2007),
nomeadamente:
i) ser reducionista: a decomposição de uma função em várias tarefas,
atividades e comportamentos só é possível com baixos níveis de complexidade
(onde é mais fácil estabelecer relações do tipo causal entre comportamentos e
desempenho);
ii) ser rígida: a listagem de comportamentos que evidenciem a competência
pode inibir formas alternativas de obter o mesmo resultado;
iii) ser centrada nos comportamentos: não tem em conta aspetos tão importantes
para a compreensão da complexidade da competência como os valores, as
motivações, o autoconceito e os traços da personalidade; e
iv) ser independente do contexto: a competência é vista como não sendo afetada
pelas caraterísticas do contexto onde se manifesta.
Em síntese, por um lado, esta abordagem não considera a competência enquanto
realidade complexa, dinâmica e globalizante e, por outro, focando-se num
produto final (comportamento diretamente observável e mensurável), desvaloriza
outros aspetos, menos objetiváveis (Silva, 2009) mas fundamentais para a sua
compreensão, tais como as dimensões cognitiva, afetiva, social e relacional
(Hager & Gonczi, 1996).
2.2. Abordagem integrada de competência
Na linha da complexidade e da sistémica, Sá-Chaves (1994) sublinha o duplo
sentido da noção de competência: i) por um lado, surge como comportamento
específico ou desempenho, que pode ser observado e demonstrado e, por esta
razão, avaliado; e ii) por outro lado, embora ainda dentro de um quadro de
tendência atomista,
emerge associada ao domínio de conhecimentos e de capacidades, o que
pressupõe uma intencionalidade prévia ao comportamento ou desempenho
e à qual subjaz uma análise de factores que determinam a pertinência
dos objectivos e a tomada de decisão quanto à natureza do dito
comportamento, de modo a facilitar a sua consecução eficaz (p. 64).
É também na mesma linha que Le Boterf (1999) afirma que o sentido mais
tradicional da noção de competência já não permite compreender os novos
desafios colocados pelo século XXI. Neste novo contexto de um mundo em que a
complexidade e a interdependência são características dominantes, terá de se
abandonar o âmbito mais tradicional da noção de competência. O conceito terá de
ganhar novos contornos, tornar-se pluridimensional. O autor situa a competência
no centro da interação entre três eixos: a pessoa (definindo uma dimensão de
pessoalidade), a sua formação (no sentido mais académico) e a sua experiência
profissional. A noção de competência é, por ele, perspetivada como uma
disposição para agir de modo pertinente em relação a uma situação específica,
exigindo saber coordenar operações e não somente aplicá-las isoladamente, o que
remete para "saber combinatório" e definição contextualizada da competência.
Este saber combinatório pode ser entendido à luz do triângulo saber agir,
querer agir e poder agir.
Adicionalmente, Le Boterf (cit. em Gouveia, 2007) enfatiza a necessidade da
adoção de uma abordagem conceptual de competência que:
i) vá ao encontro das evoluções do contexto e das situações do trabalho;
ii) dê conta da dupla dimensão individual e coletiva (embora as competências
se refiram às pessoas, dependem do contexto profissional e das redes que aí se
estabelecem);
iii) evidencie a necessidade de considerar a competência não apenas como uma
disposição para agir, mas igualmente como um processo;
iv) conduza a um raciocínio em termos combinatórios e não apenas em termos de
adição;
v) permita ter presente a diferença entre competência exigida e competência
real;
vi) faça apelo a uma responsabilidade partilhada (a responsabilidade da
construção das competências não se reduz ao indivíduo); e
vii) torne possível a sua avaliação.
Neste sentido, para Le Boterf (2005) a noção de competência deverá promover a
articulação entre diversos domínios: dos saberes à ação (a competência não se
reduz ao domínio dos conhecimentos, capacidades, destrezas e técnicas, mas
trata-se, essencialmente, de saber mobilizar); do sujeito e do conteúdo (a
competência só pode ser entendida por referência ao sujeito e ao contexto onde
este se situa); do saber-integrar (a competência combina diversos elementos que
se conjugam para a realização de uma tarefa ou resolução de um problema); da
responsabilidade e do individual e do coletivo (a competência deve ser
entendida numa perspetiva individual que comporta uma vertente coletiva). Para
Courtois (1996) é esta dimensão coletiva que possibilita a construção de novos
modos de ação, mais ajustados e inovadores.
Zarifian (1999) evidencia três aspetos que introduzem um caráter dinâmico na
noção de competência:
i) a imprevisibilidade (incidente), considerada, pelo autor, ser relativa a
ocorrências que perturbam o normal desenrolar do sistema, afetando a capacidade
rotineira de assegurar a sua autorregulação. Alguém competente consegue, na
ação, mobilizar os recursos necessários para resolver as novas situações
problemáticas que possam surgir;
ii) a compreensão dos contextos, onde a comunicação surge como meio para
compreender o outro e a si mesmo. A comunicação é importante enquanto
potenciadora de diálogo e de construção do conhecimento acerca dos contextos; e
iii) a multiplicidade de funções associadas à profissão, evidenciando o
caráter de construção permanente da competência profissional face a uma
situação profissional cada vez mais mutável.
Para Dolz e Ollagnier (2004), o conceito de competência refere-se "às
capacidades de diferenciação, adaptação, integração e combinação" (p. 4) e,
nesse sentido, e no seguimento da ideia de saber combinatório de Le Boterf,
constitui um continuum que se organiza à volta de saberes teóricos, sendo,
assim, um sistema complexo funcional.
Spencer e Spencer (cit. em Ramos & Bento, 2006) servem-se da imagem de um
iceberg para explicitar o seu entendimento conceptual de competência. De acordo
com os autores, a zona emersa do iceberg representaria os outputs da
competência (habilidades e conhecimentos) e a submersa os inputs (motivações,
traços, valores e autoconceito). Embora perspetivem a competência com um
caráter dinâmico e evolutivo, consideram que é mais fácil intervir sobre os
outputs, que se manifestam através de comportamentos e de ações, do que nos
inputs, que se relacionam com as características da personalidade dos
indivíduos.
O entendimento de competência de Perrenoud (1999, 2000) vem reforçar algumas
das principais ideias supramencionadas, aproximando-se do de Le Boterf (embora
este último esteja mais ligado ao campo das competências profissionais): a
competência é entendida como o agir face a situações complexas, perante as
quais é necessário tomar decisões e resolver problemas através da mobilização
de um conjunto de recursos. "A abordagem por competências transforma saberes
disciplinares em recursos para resolver problemas, realizar projectos e tomar
decisões" (Perrenoud, 2001, cit. em Cachapuz et al., 2004, p. 23). A
competência é definida pelo autor como um saber em ação, isto é, que se
manifesta no agir, num contexto específico, mas sem se limitar à ação passível
de ser observada. É, assim, um saber que se traduz na capacidade efetiva de
utilização e de manejo ' intelectual, verbal ou prático ', e não nos conteúdos
acumulados, com os quais não é possível agir no concreto nem fazer qualquer
operação mental ou de resolução de problemas (Roldão, 2005a). Perrenoud (2001,
pp. 133-144) considera, ainda, a autonomia fundamental em termos de educação e
desenvolvimento. O seu entendimento de competência assenta, também, na
necessidade de desenvolver sujeitos autónomos, capazes de agir por si, em
contextos sociais distintos.
Allal (2004) considera os componentes afetivos, e também sociais,
imprescindíveis a uma nova compreensão da noção de competência ' perspetiva-se
uma visão mais humanizada do conceito. Para a autora, a competência "é uma rede
integrada e funcional constituída por componentes cognitivos, afectivos,
sociais, sensoriomotores, capaz de ser mobilizada em acções finalizadas diante
de uma família de situações" (p. 15). A este propósito, Sá-Chaves (2005) e
Tomaz (2007) sugerem uma visão expandida da noção de competência, na qual "se
reconhecem componentes de natureza técnica, relacional, crítica e ética,
pressupondo desde logo que o seu desenvolvimento constitui uma difícil e longa
aprendizagem correspondente ao processo global de formação ao longo da vida"
(Sá-Chaves, 2005, p. 9).
Roldão (2005a), como Perrenoud e Le Boterf, entre outros, também se refere ao
conceito de competência como um saber em uso. Na perspetiva da autora, o uso
integrado do saber situa-se no domínio da ação em diferentes campos da vida
social e individual dos cidadãos e nos quais é necessário usar o saber para
agir inteligentemente. Na mesma linha de pensamento situam-se Galvão e
colaboradores (Galvão et al., 2006), entendendo que a competência congrega a
faculdade de mobilizar diferentes saberes adquiridos num novo espaço de ação,
isto é, as competências, possuindo caráter operatório e social, são relativas a
uma determinada situação e combinam de forma dinâmica os diferentes elementos
que a constituem.
Para Leitão & Alarcão (2006), uma definição possível é a veiculada pelo
projeto DeSeCo (2002), que entende a competência como a capacidade de responder
às exigências individuais ou sociais, ou de efetuar uma tarefa com sucesso,
comportando dimensões cognitivas e não cognitivas. Rychen e Tiana (2005) vão ao
encontro deste entendimento, considerando que o conceito de competência pode
ser definido como uma combinação de conhecimentos, motivações, valores e ética,
atitudes, emoções e de outros elementos sociais e comportamentais que, juntos,
poderão ser mobilizados para o agir eficaz.
Zabala e Arnau (2007) entendem que a competência "é a capacidade ou habilidade
(a existência nas estruturas cognitivas do sujeito de condições e recursos para
atuar) de efectuar tarefas ou fazer frente a situações diversas (assumir um
papel determinado; uma tarefa específica; realizar acções; ) de forma eficaz
(capacidade efectiva; conseguir resultados e exercê-los excelentemente)" (p.
43).
Estas abordagens integradas, por procurarem ser mais abrangentes no
fornecimento de elementos de compreensibilidade da competência (Pires, 2005),
situam-se na linha da complexidade e da sistémica. De acordo com Hager e Gonczi
(1996), estas abordagens perspetivam as competências como combinações complexas
de elementos (conhecimentos, atitudes, valores e perícias) que são usados para
compreender e funcionar em situações particulares em que os indivíduos se
situam. Para os autores, esta abordagem permite, ainda, "incorporar aspectos
éticos e valores como elementos do desempenho competente, a necessidade de
prática reflectida, a importância do contexto e o factor de poder existir mais
do que uma forma de poder exercer competentemente" (p. 249).
3. Divergências e consensos na definição de competência
Uma análise sistemática das abordagens teóricas e conceptuais existentes sobre
o conceito de competência permitiu identificar, por um lado, imprecisões e/ou
indefinições terminológicas relativas ao conceito de competência e, por outro,
consensos, entre vários autores, quanto aos componentes e constituintes
teóricos essenciais numa perspetiva integrada e holística de competência. A
sistematização que se segue não pretende separar as partes (elementos
analisados) do todo que define o conceito, somente contribuir para um
entendimento e criação de uma linguagem comum no domínio de um referencial
competencial.
3.1. Imprecisões terminológicas na definição do conceito de competência
Embora o presente estudo se tenha focado na análise crítica das definições e
interpretações conceptuais de competência no domínio da Educação, foi possível
identificar, entre os autores analisados, variações e imprecisões quanto à
terminologia usada para a designação de uma mesma realidade ou, pelo menos, de
realidades semelhantes ' isto é, autores que partilham um entendimento do
conceito de competência mas que, do ponto de vista da terminologia, o definem
de forma distinta.
Focando o domínio da Educação, o conceito de competência surge identificado, na
bibliografia de referência, com os conceitos de capacidade, saber (em ação, em
uso, combinatório, complexo, integrado, dinâmico), processo, rede/sistema,
dimensão de inteligência prática, coleção de recursos e pré-requisito. No
sentido da clarificação dos conceitos supracitados, evidenciaremos, de seguida,
os entendimentos avançados por diferentes autores para cada um destes
conceitos.
Capacidade
Vários são os autores que utilizam, na definição do seu entendimento do
conceito de competência, os termos capacidade e competência como sinónimos.
Rychen & Tiana (2005) apresentam a definição do conceito de competência
concebida no âmbito do projeto DeSeCo, entendida como "a capacidade de
satisfazer com sucesso exigências complexas, ou ainda desenvolver uma
determinada actividade ou tarefa" (pp. 33-34). Dolz e Ollagnier (2004)
consideram que o conceito de competência se refere à combinação de diferentes
capacidades (diferenciação, adaptação, integração e combinação), constituindo-
se, assim, como um sistema complexo funcional.
Para Escamilla, Lagares e Fraile (2006), as competências são "capacidades
relacionadas, de maneira prioritária, com o saber-fazer" (p. 112). A este
propósito, os autores esclarecem que a consideração da funcionalidade da
competência não a reduz a um caráter meramente mecânico. No seu entendimento, o
saber-fazer possui, também, uma dimensão de caráter teórico-compreensivo e uma
dimensão de caráter atitudinal.
Pérez Gómez (2007) entende que as competências são capacidades para enfrentar
exigências externas e desenvolver atividades e projetos de maneira satisfatória
em contextos complexos. Naumescu (2008) considera que a competência é um
conceito que integra "a capacidade para transferir capacidades e conhecimentos
a situações e ambientes novos" (p. 5), acrescentando o desempenho das tarefas
esperadas no local de trabalho como manifestação evidente da competência '
ideia já evidenciada por Pellerey (2001), para quem ser competente não
significa apenas o domínio dos conhecimentos e dos métodos, mas também a
capacidade de integrar diferentes tipos de conhecimento e de os usar
sinergeticamente. Para o autor, ser competente numa determinada área implica a
capacidade de mobilizar o conhecimento e de o transformar em ações concretas.
Embora na maior parte das situações nos tenhamos deparado com imprecisões
relativamente ao uso do termo capacidade na definição do conceito de
competência, alguns autores evidenciam preocupação com o rigor, apresentando o
seu entendimento sobre o conceito em causa. No sentido de ajudar a esta
distinção, Perrenoud (2001) propõe o uso da palavra capacidade' quando se
pretendem designar operações que não consideram o conjunto de uma situação e
que ficam relativamente independentes dos contextos. De acordo com o autor, a
utilização do termo competência deverá ser feita quando se pretendem designar
disposições que subentendem a gestão global de uma situação complexa e
contextualizada.
Gaspar (2004), no sentido de clarificação dos termos que, geralmente, se
utilizam como sinónimos de capacidade, propõe a definição de habilidade como
"actividade rotineira, automatismo, muitas vezes sensório motor, que se reporta
a uma operação específica ' vulgarmente associado a um saber-fazer; ou, então,
é algo adquirido através de uma habilitação" (p. 58). Por aptidão, a autora
entende "um conjunto de disposições físicas e intelectuais, inatas ou
adquiridas, para uma pessoa realizar uma tarefa. A aptidão é identificável e
independente do contexto" (p. 58).
Saber (em ação, em uso, combinatório, complexo, integrado, dinâmico)
Para Perrenoud (1999, 2000), a competência é definida como um saber em ação.
Isto é, a competência manifesta-se na ação, num contexto específico.
Relativamente à oposição entre as noções de competência e de saber, Perrenoud
assume uma posição aparentemente contraditória. Se, por um lado, o autor
considera que esta oposição pode ser justificada na medida em que não é
possível desenvolver competências a partir do conhecimento estruturado em
disciplinas, por outro, considera que esta oposição também pode não se
justificar uma vez que não é possível falar em competências sem falar em
saberes (a maior parte das competências tem como pressuposto básico a aquisição
de saberes).
Para Legendre (2000), a competência é entendida como um "saber agir fundado na
mobilização e utilização eficaz dos recursos, que integra tanto os
conhecimentos como outros recursos, e que está ligada aos contextos de
exploração e às condições da sua aplicação fecunda". Fleury e Fleury (2001)
definem a competência como um saber agir responsável e reconhecido, que implica
mobilizar, integrar e transferir conhecimentos, recursos e habilidades.
Esta ideia do saber orientado para a ação é também partilhada, entre outros,
por: Cachapuz, Sá-Chaves & Paixão (2004), que entendem "os saberes como
competências fundacionais que se deseja que todos os cidadãos na sociedade da
informação e do conhecimento possuam" (p. 17); Pires (2005), que considera que
a competência é composta por saberes de natureza diversa, que se finalizam na
ação através da realização de tarefas em contextos determinados; Zabala e Arnau
(2007), que consideram que a "competência consiste na intervenção eficaz nos
diferentes âmbitos da vida mediante acções nas quais se mobilizam, ao mesmo
tempo e de maneira inter-relacionada, componentes atitudinais, procedimentais e
conceptuais" (p. 45); Escamilla (2009), que define competência como "saber
orientado para a acção eficaz, fundamentado numa integração dinâmica de
conhecimentos e valores e desenvolvido mediante tipos de tarefas que permitem
uma adaptação ajustada e construtiva a diferentes situações em contextos
distintos" (p. 43); e Roldão (2005a), para quem a competência é um saber em
uso.
Embora a definição do conceito de competência como processo, rede ou sistema,
dimensão de inteligência prática, coleção de recursos e/ou conjunto de pré-
requisitos tenha menos expressão na literatura consultada, num estudo que tem
como finalidade contribuir para a clarificação do conceito de competência não
poderia deixar de ser feita uma sistematização dos entendimentos emergentes do
quadro teórico de referência. Assim:
Processo
Para Tóbon et al. (2006, cit. em Escamilla, 2009), as competências são
processos complexos de desempenho (entendido como um todo sistémico, tendo como
referência a realização de atividades e a resolução de problemas em diferentes
contextos) que implicam idoneidade e responsabilidade. Ou seja, face a qualquer
situação ou contexto, e considerando a finalidade a que se propõe, os autores
consideram que o sujeito deverá pensar sobre a adequação da ação que pretende
concretizar e avaliar todas as possíveis consequências.
Rede/sistema
A ideia de competência enquanto sistema complexo ou rede integrada e funcional
é partilhada por Hager e Gonczi (1996), Weinert (2001), Jonnaert (2002), Allal
(2004), Dolz & Ollagnier (2004) e Le Boterf (2005), entre muitos outros.
Para estes autores, a competência, promovendo a articulação entre domínios
distintos, constitui-se como um saber combinatório, composto por diferentes
componentes (ex. cognitivo, afetivo, sensoriomotor) e mobilizável em situações
diversas.
Dimensão de inteligência prática
Canto & Dupuy (2001), referindo-se às competências básicas, consideram que
estas devem ser concebidas como dimensões da inteligência prática. Para os
referidos autores, as competências básicas não devem ser percebidas como
separadas e distintas, mas cada competência deve ser vista como um conjunto de
competências.
Coleção de recursos
Pellerey (2001) define competência como uma coleção de recursos (conhecimento,
saber-fazer, saber-ser) mobilizados para resolver problemas num contexto
particular. Esta ideia é partilhada por Jonnaert (2002), que define as
competências como a forma como cada sujeito gere os seus recursos cognitivos e
sociais na ação, numa dada situação. Para o autor, cada competência faz
referência a um conjunto de recursos que o sujeito pode mobilizar para
resolver, com sucesso, determinada situação.
Pré-requisitos
Weinert (2001) considera que "o conceito de competência só deve ser usado para
nos referirmos a pré-requisitos colocados à disposição de um indivíduo ou grupo
de indivíduos de forma a ultrapassarem com sucesso exigências complexas" (p.
62).
Em síntese, embora seja evidente, entre os autores referidos, uma imprecisão
terminológica no que se refere ao conceito de competência, na maior parte dos
conceitos apresentados esta diversidade terminológica refere-se ao mesmo
entendimento conceptual do objecto (competência). Assim, o entendimento
conceptual emergente da análise realizada assenta em pilares conceptuais
partilhados pelos vários autores. São estas convergências que abordaremos de
seguida.
3.2. Convergências na definição de competência
Na análise realizada às diversas abordagens do conceito de competência, foi,
ainda, possível identificar entendimentos quanto a algumas características
presentes na definição deste conceito. Assim, a competência:
i) é constituída por diferentes elementos
Embora sejam identificados, pelos vários autores, diferentes elementos
constituintes das competências, existe acordo quanto à diversidade de elementos
presentes. Ou seja, embora seja evidente na literatura a multiplicidade e
imprecisão terminológica na definição dos elementos que constituem a
competência, é consensual a pluralidade de elementos na sua constituição.
Assim, foram identificados na literatura como elementos integrantes da
competência: saber; saber-fazer; saber-ser (Escamilla, 2009; Pellerey, 2001);
habilidades, conhecimentos, motivações, traços, valores e autoconceito (Spencer
& Spencer, cit. em Ramos & Bento, 2006); saber agir, querer agir e
poder agir; conhecimentos, capacidades, destrezas e técnicas (Le Boterf, 2005);
componentes cognitivos, afetivos, sociais e sensoriomotores (Allal, 2004;
Legendre, 2000; Jonnaert, 2002); saberes de natureza diversa (Pires, 2005);
conhecimentos, atitudes, valores e perícias (Hager & Gonczi, 1996);
conhecimentos, habilidades práticas, atitudes, valores e emoções (Pérez Gómez,
2007); conhecimentos, recursos e habilidades (Fleury & Fleury, 2001);
conhecimentos, capacidades, saberes-fazer, habilidades ou skills (Esteves,
2009); conhecimentos, emoções, atitudes, estratégias (Weinert, 2001);
conhecimentos, atitudes práticas e cognitivas, conhecimento, motivação,
valores, ética, emoções, componentes de caráter social e comportamental (OECD,
2002); conhecimentos, capacidades, atitudes e estratégias (Cachapuz et al.,
2004); conhecimentos, capacidades e atitudes (Comissão Europeia, 2007;
Ministério da Educação, 2001).
ii) é pluridimensional
Numa perspetiva integrada de competência, a multidimensionalidade é um aspeto
consensual na literatura de referência. Embora possam ser encontradas
designações distintas para a mesma dimensão, as dimensões cognitiva,
sensoriomotora, social/coletiva, situacional, valorativa, afetiva e ética estão
presentes na maioria dos documentos consultados.
As dimensões cognitiva, social/coletiva e situacional da competência são as
mais evidenciadas, sendo assumidas pela maioria dos autores (Allal, 2004;
Alonso, 2006; Cachapuz et al., 2004; Escamilla, 2009; Galvão et al., 2006;
Hager & Gonczi, 1996; Jonnaert, 2002; Katz, 2000; Le Boterf, 2005; Muller,
2003; Naumescu, 2008; Perrenoud, 1999, 2000; Roldão, 2005a; Weinert, 2001;
entre muitos outros) e estando presentes nos principais documentos, nacionais e
internacionais, orientadores da implementação em contexto escolar do enfoque
competencial (Cachapuz et al., 2004; Comissão Europeia, 2007; OECD, 2001, 2002,
2004; Eurydice European Unit, 2002; González & Williams, 2009).
As dimensões relacionadas com a ética, os afetos e os valores surgem em
perspetivas de competência mais recentes (Allal, 2004; Alonso, 2006; Escamilla,
2009; Pérez Gómez, 2007; Naumescu, 2008; Rychen & Tiana, 2005; Sá-Chaves,
2005; Tóbon et al., 2006, cit. em Escamilla, 2009), evidenciando o impacte da
conjetura mundial atual na necessidade de uma visão mais humanizada do
conceito.
A pessoalidade da competência é, ainda, evidenciada por Le Boterf (2005), Mayer
(2000), Pellerey (2001) e Sá-Chaves (2005) de forma explícita, embora possa ser
percebida/inferida em muitas outras das definições referidas.
iii) é complexa
A complexidade da competência está presente nas definições avançadas por vários
autores. Para Escamilla (2009), a competência é definida como saber complexo,
para Alonso (2006) implica a construção e transformação do conhecimento
complexo, e Perrenoud (1999, 2001) entende-a como o agir face a situações
complexas. Embora estes três autores integrem a complexidade no seu
entendimento da definição de competência, fazem-no de forma distinta: a
primeira autora referida considera o saber complexo como a essência da
competência; a segunda refere-se à necessidade de transformação do conhecimento
complexo para a construção da competência; e o último evidencia a complexidade
das situações.
iv) é mobilizável e transferível
A mobilização de múltiplos elementos e a possibilidade de transferência desses
elementos para novas e diversas situações são características de competência
evidenciadas como fundacionais na literatura de referência que advoga uma
perspetiva integrada da noção de competência (Allal, 2004; Alonso, 2006;
Escamilla, 2009; Esteves, 2009; Fleury & Fleury, 2001; Galvão et al., 2006;
Gaspar, 2004; Jonnaert, 2002; Le Boterf, 2005; Legendre, 2005, cit. em Almeida,
2009); Naumescu, 2008; Perrenoud, 1999, 2000; Roldão, 2005a; Rychen &
Tiana, 2005, entre outros). Le Boterf (2005) considera mesmo que a mobilização
constitui a própria essência da competência. É a convocação e articulação dos
múltiplos saberes face a uma determinada situação que, de acordo com o autor,
indicia a competência. Tal ideia é partilhada por Esteves (2009), que a
evidencia como diferenciadora dos elementos constitutivos da competência face a
uma situação contextualizada. A este propósito, Roldão (2005b) define a
transposição como a capacidade de transpor saberes de um domínio para outro ou,
por outras palavras, do campo conceptual para o acional. Para a autora, a
transposição é dependente do contexto e a competência não é viável sem um
contexto, face ao qual a mobilização de saberes é acionada.
v) é um saber em uso
A definição da competência como o uso integrado do saber situa-se no domínio da
ação (Roldão, 2005b), sendo este uso uma característica aceite de forma
transversal, tanto no que diz respeito à evolução temporal do conceito como aos
diferentes domínios em que esta ocorreu.
Face à divagação terminológica e conceptual associada à definição de
competência enquanto saber em uso (Alonso, 2006; Roldão, 2005a), saber em ação
(Jonnaert, 2002; Pérez Gómez, 2007; Rychen & Tiana, 2005; Weinert, 2001),
disposição para agir (Le Boterf, 2005; Perrenoud, 1999, 2000) e/ou saber
orientado para a ação (Escamilla, 2009; Pires, 2005), Roldão (2005a) clarifica
a distinção entre saber em uso e uso do saber. Para a autora, no plano
epistemológico, a ideia do uso (diferente da aplicação ou ação) é inerente à
própria natureza do saber. O conhecimento implica capacidade e possibilidade de
uso, ou não pode considerar-se verdadeiro conhecimento. Opõe-se ao saber
inerte, desprovido de sentido e vazio de potencialidades. Relativamente ao uso
do saber, e de modo a não restringir a ideia de uso ao campo da estrita
aplicação, a autora clarifica campos de possibilidade de usos do saber: i) o
estabelecimento de nexos inteligentes de vária ordem (entre o real e o sujeito,
entre o mundo introspetivo e o mundo da ação, entre o saber e a realidade,
entre os contextos, entre os saberes entre si); ii) o uso do saber para poder
agir inteligentemente, identificando a natureza da ação, dos seus propósitos, o
seu contexto, e assim poder regular adequadamente o seu desenvolvimento; iii) o
uso do saber para pensar, para interpretar, para compreender, ou seja, para
poder conhecer mais e melhor, e para poder fundamentar o pensamento, o
argumento, a decisão; e iv) a fruição. O saber que realmente se adquire
permite-nos ganhos acrescidos, não só de acesso a novo conhecimento, mas de
apreciação, satisfação, capacidade de prazer e entendimento no domínio
cultural.
vi) é de natureza combinatória
A natureza combinatória da competência é outra das características consensuais
para a definição deste conceito, sendo evidenciada pela maioria dos autores e
estando presente nos principais documentos de referência para a definição e
seleção das competências.
Le Boterf (2005) define a competência como saber combinatório ' a competência
combina diversos elementos que se conjugam para a realização de uma tarefa ou
resolução de um problema ' que pode ser entendido à luz do triângulo saber
agir, querer agir e poder agir. Para este autor, a noção de competência deverá
promover a articulação entre diversos domínios, nomeadamente: dos saberes e da
ação; do sujeito e do conteúdo; do saber integrar; da responsabilidade e do
individual e do coletivo.
Hager & Gonczi (1996) perspetivam as competências (focando o plural do
conceito) como combinações complexas de elementos (conhecimentos, atitudes,
valores e perícias), que são usadas pelos indivíduos para compreender e
funcionar nas diversas situações com que se deparam ao longo da vida.
Para Escamilla (2009), a competência fundamenta-se numa integração dinâmica de
conhecimentos e valores, ideia que Galvão et al. (2006) também assumem quando
se referem à combinação de forma dinâmica dos diferentes elementos que
constituem a competência. Na mesma linha, Pellerey (2001) evidencia que ser
competente implica a capacidade de integrar diferentes tipos de conhecimento e
de os usar sinergeticamente.
A natureza combinatória da competência é, ainda, evidenciada por Pires (2005),
que a define como "composta por saberes de natureza diversa, que se finalizam
na acção, através da realização das tarefas num determinado contexto. Ela vai-
se construindo e desenvolvendo na e pela ação" (p. 291).
Em síntese, embora seja evidente, entre a literatura considerada, a imprecisão
terminológica que caracteriza a designação do conceito de competência, emerge
um consenso quanto aos elementos que devem ser considerados na sua definição
conceptual. Ao longo desta análise tornou-se evidente que a maioria dos autores
referidos entende a competência como plural, no que diz respeito aos elementos
que a constituem, pluridimensional, complexa, um saber em uso, mobilizável e
transferível e de natureza combinatória.
Conclusão
A finalidade do estudo que se apresenta é, tal como já foi referido, contribuir
para a clarificação conceptual da noção de competência. Neste sentido, foi
feita uma síntese da evolução do conceito de competência e apresentadas e
discutidas perspetivas de vários autores e orientações de organizações
internacionais para uma abordagem integrada e sistémica do conceito.
A primeira conclusão que pode ser retirada da análise apresentada relaciona-se
com a imprecisão conceptual e terminológica existente, no domínio educativo,
quanto à definição da noção de competência. Mesmo entre autores que partilham
uma perspetiva integrada e sistémica, são evidentes os distintos entendimentos
encontrados para o conceito. Se ao nível da análise semântica é possível
encontrar consensos quanto às principais características da competência ' é um
saber em uso (orientado para a ação), constituída por diferentes elementos,
pluridimensional, complexa, dinâmica e interativa, de natureza combinatória,
transferível e mobilizável para contextos distintos ', ao nível da análise
estrutural, verifica-se uma grande diversidade na identificação e definição dos
elementos que a compõem. Assim, a competência surge definida como capacidade,
aptidão, habilidade, comportamento, saber, processo, rede, sistema, coleção de
recursos e pré-requisito. Embora em muitas situações estas designações se
refiram à mesma realidade, esta diversidade evidencia a necessidade de a
comunidade científica se ocupar (de forma intencional e sistemática) da
clarificação conceptual de cada um destes termos utilizados para definir
competência, bem como das suas implicações epistemológicas e pedagógicas, no
sentido da criação de um entendimento refletido e partilhado deste conceito, e
que possa conduzir a uma desejável e necessária convergência de linguagem.
Outra conclusão importante prende-se com o impacte da imprecisão conceptual na
atual orientação internacional de reorganização curricular com base no enfoque
competencial. Nos últimos anos tem-se assistido, tanto a nível político como
académico, a um esforço de identificação e definição consensual de
competências, reconhecidas como básicas, essenciais e/ou fundamentais, que se
deseja que todos os cidadãos possuam no século XXI. A urgência de dotar os
indivíduos de competências, não apenas de caráter técnico, mas também de
caráter pessoal e relacional, que permitam a sua adaptação a um mundo complexo,
caracterizado pela imprevisibilidade e incerteza, é internacionalmente
reconhecida. Projetos como o Tuning, de 2000 (González & Wagenaar, 2003),
ou o DeSeCo (OECD, 2002) evidenciam esta preocupação de chegar a um
entendimento partilhado do que define e constitui a competência e de quais são
as competências que devem ser identificadas e definidas como essenciais, isto
é, quais devem ser consideradas pelos currículos e, consequentemente, pela
escola, como saberes para todos (Cachapuz et al., 2004).
A emergência do conceito de competência no quadro da política internacional e
ao nível da educação, em particular no desenvolvimento curricular, por um lado,
e a discussão sobre a formação, ao nível do Ensino Superior induzida pelo
processo de Bolonha, e seus impactes nas práticas dos professores, por outro,
suscita, de acordo com Roldão (2005a, p. 10), perturbações associadas "ao
efeito da discrepância face aos quadros curriculares de referência anteriores e
a práticas de ensino ancoradas largamente num paradigma transmissivo". A
reorganização curricular que atualmente se vive em diferentes países (a título
de exemplo, em Espanha assistiu-se à reestruturação e reorganização do Sistema
Educativo com a aprovação, em 2006, da Lei Orgânica da Educação [LOE] e no
Reino Unido foi publicado pelo Ministério da Educação, em 2010, o National
Curriculum Primary Handbook) e a resistência que, na prática, as suas
implicações evidenciam são argumentos que reforçam a ideia da importância dos
contributos da investigação para a clarificação conceptual da noção de
competência enquanto referencial do currículo (nomeadamente, de acordo com os
princípios de Bolonha). É, de facto, fundamental desenvolver e consolidar mais
trabalho e mais discussão de forma a lidar eficazmente com a questão do
desenvolvimento de competências no domínio da Educação.