Os novos nomes do racismo: especificação ou inflação conceptual?
Na generalidade dos países da União Europeia, seja nos maiores e mais antigos
receptores de imigrantes, seja naqueles em que a imigração é mais recente e
reduzida, o racismo tem-se mantido, ao longo das duas últimas décadas, na
agenda social e política, embora com expressão variável de país para país e com
flutuações de intensidade.
Em alguns casos, há dele sinais bem evidentes e perigosos, como os actos de
violência contra imigrantes perpetrados por grupos assumidamente racistas, ou a
expressão eleitoral alcançada por partidos que assentam o seu discurso na
hostilidade contra migrantes e minorias. Noutros, sem assumir esse grau de
visibilidade e gravidade, o racismo não deixa de ter uma expressão social
difusa, tal como a dão a perceber atitudes de preconceito e rejeição de alguns
segmentos das populações autóctones, reveladas por estudos e sondagens de
opinião, ou episódios mais ou menos localizados de discriminação racial em
diferentes domínios da vida quotidiana.
Sendo um fenómeno de difícil delimitação e estudo, a própria imprecisão e
elasticidade de muitas definições que dele vêm sendo dadas contribuem para
dificultar a sua objectivação, e para facilitar a sua já de si fácil
ideologização e politização. Não faltam autores a dizer que o âmbito daquilo
que cabe sob a designação de racismo é muito mais amplo do que acabou de se
enunciar. Uma das mais demonstrativas provas de racismo seria, por exemplo, o
facto de muitos migrantes fixados nos países europeus terem uma condição social
mais desfavorecida do que a média das respectivas populações receptoras; a
adopção por esses países de medidas reguladoras de novas entradas seria também
uma forma de racismo; e seriam ainda racistas, embora subtis, aquelas
representações e discursos comuns que se limitam a constatar as diferenças
culturais das populações migrantes.
No limite, por acção ou omissão, quer ao nível das interacções individuais e de
grupo, quer ao nível institucional, tudo o que envolve a inserção dessas
populações nas sociedades receptoras seria, em suma, marcado pelo racismo e
poderia, portanto, ser equacionado e analisado nesses termos.
Quando, há mais de cinquenta anos atrás, Merton dizia que "a profecia que
se cumpre por si própria" (Merton, 1968 [1949]: 515-531) explicava em
grande parte a dinâmica do conflito racial e étnico nos EUA de então, ele
próprio estava a profetizar sobre os efeitos potenciais de boa parte dos
discursos hoje correntes sobre o tema, sobretudo nos próprios EUA, mas, a
partir daí, largamente difundidos na Europa e noutras partes do mundo. Se a
realidade é tão generalizadamente definida em termos raciais, incluindo pela
sociologia e outras ciências sociais, ela não deixará de tornar-se racial
nalgumas das suas consequências.
O objectivo deste artigo é, assim, a tentativa de especificar o conceito de
racismo, analisando do mesmo passo a "inflação conceptual" (Miles,
1989: 41-68) de que ele padece. Mesmo descontando os trabalhos que parecem
subordinar a construção rigorosa de um objecto de estudo a interesses de luta
ideológica e política imediata, com óbvio prejuízo de conhecimento, é verdade
que a própria plasticidade histórica do racismo favorece, também, essa produção
de discursos inflacionados. As suas formas e gravidade variam no tempo e no
espaço; têm protagonistas e grupos-alvo muito heterogéneos, grupos-alvo esses
que, de resto, nem sempre são racialmente distintos, mas por vezes apenas
racializados por construção ideológica e cultural, como tem acontecido com os
judeus; e revelam, finalmente, uma significativa capacidade de actualização de
conteúdos.
Racismo enquanto ideologia e preconceito
É relativamente consensual, na literatura sociológica e na de outros domínios
disciplinares, que se pode falar de racismo em três dimensões distintas, mas
articuladas: racismo enquanto ideologia, racismo enquanto preconceito e racismo
enquanto prática de discriminação. Já quanto ao conteúdo de cada uma dessas
dimensões e quanto ao modo como é equacionada a articulação entre elas o
consenso é, como veremos, bastante menor.
Se só bastante mais tarde a palavra racismo surgiu e se fixou no vocabulário
comum, mais precisamente na segunda e terceira décadas do século XX, é durante
o século XIX, em especial na sua segunda metade, que se sistematiza, na Europa,
a ideologia da hierarquização inelutável dos homens em função das pertenças
raciais.1 Autores franceses como Arthur de Gobineau, que publica em 1852 um
Ensaio sobre a Desigualdade das Raças Humanas,ou Georges Vacher de Lapouge, que
no final do século escreve, entre outros títulos, O Ariano e o Seu Papel Social
(1899), são habitualmente dados como os principais sistematizadores desse
pensamento. As taxinomias raciais mais ou menos elaboradas, com a respectiva
atribuição diferencial de qualidades culturais e morais, ou o temor da
degenerescência das culturas ditas superiores por via da miscigenação racial
são, entre outros, tópicos fixados nesses trabalhos.2
Mas a ideia de que as capacidades intelectuais e a cultura se transmitem de
forma hereditária e desigual de acordo com as raças ideia que toma como
indicador principal, embora não exclusivo, a cor da pele, com o branco europeu
do norte a ocupar o topo da hierarquia é uma interpretação sobre a
diversidade humana amplamente partilhada no campo intelectual e científico
europeu da época, e não o produto de alguns espíritos isolados. Esta maneira de
pensar, também designada por racialismo, é o resultado "de uma formidável
convergência de todos os campos do saber, com inumeráveis contribuições de
filósofos, teólogos, anatomistas, fisiologistas, historiadores, filólogos, mas
também de escritores, poetas e viajantes", numa Europa em que, por todo o
lado, há quem "se apaixone pela medição dos crânios e dos ossos, a
pigmentação da pele, a cor dos olhos e dos cabelos" (Wieviorka, 1991: 27,
29).3
Esta primeira configuração ideológica do racismo, habitualmente apelidada de
"racismo científico", tem o contributo, como nota ainda Wieviorka, da
própria sociologia emergente. Se alguns escritos de Tocqueville e Weber sobre
as relações raciais nos EUA permitem designá-los como "primeiros
sociólogos do racismo", outros seguem a tendência intelectual dominante de
tomar a raça como factor explicativo da cultura.
Na Sociological Society of London debate-se, em ambiente de amena polémica
intelectual, o eugenismo, que Francis Galton advogava como solução prática para
defender da decadência genética os mais dotados em termos raciais, mas também
em termos sociais, e nos Estados Unidos o American Journal of Sociology
publica, durante a primeira década do século XX, textos do mesmo Galton, bem
como um capítulo do já citado livro de Vacher de Lapouge, entre outros artigos
na mesma linha de autores menos conhecidos (Wieviorka, op. cit.: 28, 37).4
A relação biunívoca entre estas ideias e os contextos políticos, económicos e
sociais da época é bastante evidente. Por um lado, o interesse intelectual e
científico na classificação e hierarquização das raças e culturas humanas vai
sendo alimentado pelo crescente contacto dos europeus com outros povos do
mundo, racial e culturalmente muito diferentes de si próprios; por outro lado,
o acolhimento político e a difusão social dos produtos que resultam dessa
actividade intelectual são tanto mais alargados quanto legitimam a consolidação
dos impérios coloniais europeus em curso e as relações de dominação que aí se
fortalecem. Do mesmo modo se pode compreender a rápida adopção das ideias
racialistas nos EUA, que, não certamente por acaso, virão a tornar-se mais
tarde o maior exportador mundial de categorias analíticas racializadas no campo
das ciências sociais, especialmente na sociologia, aspecto a que se voltará
adiante.
É este racismo de base biológica, a que corresponde, de resto, o sentido
originário e exclusivo da palavra, que a generalidade dos investigadores deste
domínio considera estar a ser paulatinamente abandonado, nos últimos 23 anos, a
favor de outras configurações ideológicas.
O enorme impacto público que, nos anos a seguir à 2.ª Guerra Mundial, teve a
revelação do genocídio dos judeus pelos nazis alemães, justamente em nome de
uma ideologia da superioridade e da pureza racial, é tido como o principal
contexto para o declínio das explicações pela raça, tanto nos discursos mais
elaborados como nos discursos comuns. Na esfera intelectual, em particular, a
UNESCO contribui decisivamente para a crítica do racismo, convocando, por
diversas vezes, entre o início dos anos 50 e meados dos anos 60, comissões
pluridisciplinares de reputados investigadores das áreas naturais e sociais,
com a incumbência de produzirem declarações conjuntas formais rejeitando, à luz
do conhecimento científico, a ideia de hierarquização dos indivíduos e das
culturas em função de características raciais.5
Segundo uma interpretação largamente partilhada, a nova configuração do racismo
deixa cair, ou pelo menos coloca em segundo plano, a linguagem da raça, pondo
em seu lugar a referência às diferenças étnicas e culturais. A tentativa de
qualificar essa transição ideológica dá azo, nos anos 70 e 80 do século XX, a
uma verdadeira explosão de novos conceitos, tanto nos EUA como na Europa.
Racismo simbólico, racismo aversivo, racismo cultural, racismo moderno, novo
racismo, racismo diferencialista, racismo latente, são todas elas categorias
que procuram equacionar esse recuo das concepções mais primárias de base
biológica e a sua substituição por formas mais subtis de racismo.6
Pierre-André Taguieff, um dos autores que em França mais se tem dedicado ao
tema, sintetiza em quatro pontos as características desse "neo-racismo
contemporâneo": passagem da raça à cultura, com a substituição da ideia de
pureza racial pela de identidade cultural autêntica; da desigualdade à
diferença, em que o desprezo pelos "inferiores" dá lugar à obsessão
do contacto com eles; recurso a enunciados mais heterófilos do que heterófobos,
ou seja, a insistência no direito à diferença da maioria face às culturas
minoritárias; e uma expressão simbólica e indirecta, mais do que directa e
assumida (Taguieff, 1987: 14-16; 1991: 42-43).
Ainda antes de Taguieff, outro autor francês de referência neste campo, Albert
Memmi, estabelecia a distinção entre um racismo estrito, de fundamentação
apenas biológica, e um racismo lato, "de geometria variável", que
passa de bom grado ao lado da diferença racial, e invoca "a psicologia, a
cultura, os costumes, as instituições, a própria metafísica", todas elas
fornecendo "o seu contingente de escândalos" (Memmi, 1993 [1982]:
71). Em nome da clarificação terminológica, o autor propõe, de resto, que se
reserve o termo racismo para os casos em que a primazia é dada às
características biológicas, e o de heterofobia para os restantes (idem: 83-85).
A emergência das novas formas de racismo é relacionada, tanto em França como no
Reino Unido, com um trabalho de reelaboração ideológica nos círculos da direita
mais conservadora, no final dos anos 60 e nos anos 70, face à realidade da
crescente imigração e da diversidade étnica a ela associada. Em França, a
partir de certos clubes ou associações "de pensamento", como o Grece
ou o Club de l'Horloge, e tendo como expressão política a temática da
"preferência nacional" advogada pela Frente Nacional de Jean-Marie Le
Pen (Taguieff, op. cit.: 49; Wieviorka, op. cit.: 90); no Reino Unido, em
alguns sectores do Partido Conservador, com um discurso em tudo idêntico, já
não o da hierarquia das raças, que pode até ser firmemente rejeitado, mas o de
que é natural cada povo gostar de "viver entre os seus" e o de que a
imigração ameaça essa homogeneidade cultural nacional (Miles, 1989: 62-63).
É assim que, nas actuais análises sobre o preconceito racial, a segunda das
três dimensões do racismo atrás indicadas, se vai à procura da manifestação
dessas novas faces do racismo nas representações comuns das populações
ocidentais.
O estudo do preconceito, com sede privilegiada na psicologia social, constitui
uma linha de investigação consistente e duradoura, que tem como referências
clássicas a investigação de John Dollard, Caste and Class in a Southern Town,
de 1937, a pesquisa dirigida por Theodor Adorno, intitulada The Authoritarian
Personality,publicada em 1950, e de Gordon Allport, The Nature of Prejudice, de
1954, todas elas nos EUA. Hoje em dia, são as investigações dirigidas ou
inspiradas por Thomas Pettigrew, também norte-americano, e cujos primeiros
trabalhos remontam ainda aos anos 50, alguns em colaboração com Allport, que
marcam a agenda de pesquisa deste campo.
Para efeitos de operacionalização de conceitos e investigação empírica, agora
no contexto europeu, Pettigrew introduz a distinção entre racismo flagrante e
racismo subtil, o primeiro designando a configuração tradicional de base
biológica, o segundo com o objectivo de sintetizar num novo conceito o conjunto
já mencionado de designações entretanto propostas para captar os novos sentidos
da ideologia racista (Pettigrew e Meertens, 1993; Meertens e Pettigrew, 1999;
Pettigrew, 1999). Essa distinção, bem como os procedimentos de pesquisa
adoptados por Pettigrew, são retomados por Vala, Brito e Lopes (1999), no
estudo que, como foi dito, inaugura a investigação empírica sistemática sobre
racismo no Portugal de hoje.
O pressuposto destes autores é o de que o senso comum, no contexto do abandono
da ideia de raça tanto pelo discurso científico como pelos discursos políticos
e institucionais, vem deslocando "a construção de teorias sociais sobre os
grupos humanos, e as consequentes formas de categorização racial, de ideias
sobre a raça para ideias sobre as diferenças culturais e étnicas". A ideia
de raça não foi propriamente abandonada nos discursos quotidianos, dizem, mas
"hoje é mais fácil exprimir diferenças culturais do que diferenças
raciais", já que a expressão de diferenças culturais não desafia
abertamente a "norma social da indesejabilidade do racismo" (Vala,
Brito e Lopes, op. cit. 141, 73).
O racismo é, então, definido como uma "configuração multidimensional de
crenças, emoções e orientações comportamentais", alinhadas em dois eixos
estruturantes, um relativo à diferenciação e inferiorização racial e outro
relativo à diferenciação e inferiorização cultural. Os resultados obtidos nos
vários países onde o estudo foi realizado mostram que a expressão de
preconceitos se faz hoje mais pela negação de traços positivos do que pela
atribuição de traços negativos a um grupo-alvo, ou seja, são atribuídos mais
traços positivos ao endogrupo do que ao exogrupo (favoritismo endogrupal), mas
não necessariamente mais traços negativos ao exogrupo do que ao endogrupo
(derrogação exogrupal). Em suma, em todas as amostras inquiridas, incluindo a
portuguesa, a adesão ao racismo subtil é maior do que a adesão ao racismo
flagrante, não deixando os dois, no entanto, de estar muito correlacionados
(idem: 14-15, 77, 171-195).
É justamente a propósito dos resultados deste estudo comparativo, e na medida
em que ele tem o mérito de as colocar no terreno empírico, que importa fazer um
primeiro conjunto de comentários quanto às novas definições de racismo e aos
riscos de inflação conceptual a elas associados.
É verdade que o preconceito racista, como outras formas de preconceito, tem uma
grande maleabilidade e criatividade. A alquimia moral de que falava Merton,
pela qual o "intragrupo transforma facilmente a virtude em vício e o vício
em virtude, conforme as necessidades de ocasião" (op. cit.: 522),
significa justamente que os preconceituosos se agarram ao que for preciso para
visarem o grupo tomado como alvo. É nesse mesmo sentido que Sartre, no ensaio
que dedicou ao anti-semitismo, dizia que "se o judeu não existisse, o
anti-semita inventá-lo-ia" (Sartre, 1999 [1954]: 14).
Mas, dito isto, deve perguntar-se se é ainda de racismo que se trata quando os
membros de uma população maioritária se referem mais positivamente à sua
cultura do que à de determinada minoria, quando não chegam sequer a qualificar
negativamente essa minoria, limitando-se a considerar os seus próprios traços
culturais preferíveis face aos dela. A ser assim, deixaria de haver qualquer
diferença entre racismo e etnocentrismo.
Ora, a fusão dos dois conceitos está longe de ser consensual. Claude Lévi-
Strauss, por exemplo, opõe-se firmemente a essa possibilidade, dizendo que não
se pode confundir o racismo, doutrina falsa que "pretende ver nas
características intelectuais e morais atribuídas a um conjunto de indivíduos
( ) o efeito necessário de um património genético comum", com a atitude de
indivíduos ou grupos cuja fidelidade a certos valores os torna parcial ou
totalmente insensíveis a outros valores". Essa "incomunicabilidade
relativa não autoriza naturalmente a opressão ou destruição dos valores que se
rejeita e dos seus representantes, mas, mantida nesses limites, nada tem de
revoltante" (1983: 15).7
Confrontado com o mesmo problema, João de Pina-Cabral não manifesta tal
oposição. Dado que, nas novas formas de preconceito, as características
fenotípicas representam apenas um entre vários factores de classificação, seria
preferível adoptar, em vez de racismo, "expressões mais abrangentes do
género de etnocentrismo' ou discriminação e preconceito étnico'". O
conceito de racismo, segundo o autor, põe uma ênfase excessiva na diferenciação
fenotípica como princípio classificatório dominante, o que, se é verdade
"em contextos radicados na tradição anglo-americana", não o é em
tantos outros contextos a nível mundial, "onde o preconceito e a
discriminação também grassam, incluindo os lusófonos" (1998: 24). Uma
terceira posição, distinta de qualquer das anteriores, é a daqueles que falam
de "etnicismo" para designar essas novas formas de preconceito, não
deixando, contudo, de o incluir num conceito alargado de racismo (Essed, 1991:
287-288; Dijk, 1993: 5, 23).
Sem negar que há uma faixa de sobreposição entre os dois fenómenos, e não
entrando aqui na discussão aprofundada do problema, pode, de qualquer modo,
dizer-se que a fusão do etnocentrismo e do racismo, ou a substituição do
segundo conceito pelo primeiro, é precipitada. Se isso permite dar conta
daquilo que os dois têm em comum, perde-se de vista o que eles têm de
diferente, e que justificou a evolução autónoma dos dois conceitos. Não será
também por mera inovação terminológica, seja o referido "etnicismo"
ou ainda "etnismo" ou "etismo", que a questão se
resolverá.8
Considerar a autovalorização cultural de um determinado grupo maioritário como
uma forma de racismo torna-se ainda mais discutível quando se tem em conta o
tipo de indicadores utilizados para a sua "medição" empírica. A
operacionalização proposta por Pettigrew, e seguida em Portugal por Vala, Brito
e Lopes, inclui na "escala de racismo subtil" itens que só por
extrema ampliação do conceito se podem considerar indicadores de preconceito
racial.
Assim, às perguntas sobre se a religião, a língua, ou mesmo os valores
incutidos aos filhos por determinada minoria (no caso do estudo português,
"os negros"), são muito semelhantes ou muito diferentes dos da
população maioritária (Pettigrew et al., 1993: 112-113; Meertens e Pettigrew,
1999: 28-29; Vala, Brito e Lopes, 1999: 176), quando essa diferença é uma
questão factual, as respostas obtidas, quaisquer que sejam, não podem tomar-se
como sinónimo de preconceito, mas apenas como indicativas de conhecimento ou
desconhecimento de factos objectivos. Perguntar, por outro lado, com que
frequência se sente simpatia ou admiração por essa mesma minoria também não
parece uma boa maneira de medir preconceitos. Se a manifestação de antipatia
para com uma minoria globalmente considerada poderá ser sinal de racismo, já
não é aceitável dizer-se que só não há racismo se forem expressas, de forma
igualmente global, simpatia e admiração frequentes face a ela.
Pettigrew e Meertens não deixam de reconhecer a limitação destes indicadores,
afirmando que "os turcos e os norte-africanos, por exemplo, têm uma
religião e falam uma língua realmente diferentes das da maior parte dos
europeus". O contra-argumento segundo o qual, apesar disso, "os
sujeitos que obtêm valores mais altos na escala do racismo subtil consideram
sistematicamente essas diferenças como sendo maiores do que as reconhecidas
pelos outros sujeitos", o que, portanto, validaria esses indicadores, não
é convincente (1993: 113-114). Deste modo, quando os mesmos autores se
questionam, no título de um dos trabalhos já citados, se "Será o racismo
subtil mesmo racismo?" (1999: 11-29), não se pode deixar de manifestar
reservas perante a resposta positiva inequívoca a que chegam, tendo em conta a
operacionalização e os indicadores usados.
O mesmo problema de inflação conceptual do racismo, na sua dimensão
representacional, pode encontrar-se, numa modalidade ainda mais flagrante, dir-
se-ia, nos trabalhos de outro autor contemporâneo influente neste domínio, o
holandês Teun van Dijk (1987, 1993). Dijk parte do pressuposto, que partilha
com muitos outros autores, e que será questionado mais à frente, de que, tanto
os EUA como os países europeus ocidentais receptores de imigrantes constituem,
acima de tudo, sociedades de dominação racial, em que um grupo maioritário
branco domina, a todos os níveis da existência colectiva, uma ou mais minorias
étnicas e raciais totalmente subordinadas.
Nesse quadro, o preconceito "não é apenas uma atitude individual de certas
pessoas (preconceituosas), mas uma forma de cognição social estruturalmente
fundada" (Dijk, 1987: 391), destinada a legitimar essas relações de
dominação global, e que conhece uma reprodução alargada através de todo o tipo
de discursos. Estruturas de poder e dominação, cognição social e discurso
constituem, por outras palavras, o modelo articulado que o autor adopta para
analisar o racismo. Tanto o racismo flagrante como o subtil, este último
reconhecido também como a sua forma predominante, permeiam, em sentido
descendente, "todos os níveis sociais e pessoais das nossas sociedades:
desde as decisões, acções e discursos dos corpos legislativos e governamentais,
passando pelos de várias instituições, na educação, investigação, media, saúde,
polícia, tribunais e agências sociais, até à conversação, pensamento e
interacção quotidianos" (idem: 15).
A comunicação pública e interpessoal dos preconceitos racistas é esse o
objecto empírico do autor , faz-se através de uma multiplicidade de discursos
correntes no seio da maioria dominante branca, discursos que servem para
reproduzir esses preconceitos.9 Inclui aí a conversação entre pais e filhos;
entre vizinhos, amigos e nos grupos de pares; em filmes e programas de
televisão, romances e noticiários, propaganda política e relatórios de
investigação académicos. Fundamental em todos esses discursos, "embora
cuidadosamente implícito, é o par escondido superioridade/inferioridade"
(idem: 384, 386).
No segundo dos trabalhos citados, Dijk desenvolve largamente a ideia, sugerida
já no primeiro estudo, segundo a qual os conteúdos da conversação corrente
entre os membros comuns das maiorias brancas acerca das minorias invocam, em
grande medida, discursos institucionais produzidos e postos a circular a partir
de patamares mais elevados na estrutura social, e que funcionam como
legitimação desses conteúdos. São, concretamente, as elites políticas,
educativas, universitárias, empresariais e dos media,quem contribui para a
reprodução do preconceito, pré-formulando persuasivamente o consenso dominante
em matéria étnica e as formas populares de racismo. Diz ainda o autor que,
circunscrevendo o racismo às ideologias e práticas explícitas, intencionais e
flagrantes da extrema-direita, essas elites adoptam "uma definição de
racismo que convenientemente as exclui como parte do problema" (1993: 8-
9).
Particularmente visadas por Dijk são as chamadas elites académicas. No primeiro
estudo já afirmava que, hoje em dia, e de forma muito mais subtil e indirecta
do que no passado, são "pressupostos e objectivos racistas que inspiram
muito do trabalho académico (de brancos) sobre grupos étnicos e relações
raciais, com a negação, por exemplo, da natureza estrutural do racismo nas
nossas sociedades" (1987: 15). No estudo subsequente, analisa, como
alegada prova da reprodução universitária de discursos racistas, diferentes
manuais de sociologia em língua inglesa, entre os quais o conhecido Sociology
de Giddens, sobre o qual diz "ter uma perspectiva branca e não sublinhar
nem analisar suficientemente o papel da dominação étnica europeia, da
desigualdade e do racismo nas relações étnicas (1993: 177)."10
Perante definições e operacionalizações com esta latitude, especialmente no
caso de Dijk, mas também no de Pettigrew, só pode concluir-se que o racismo
enquanto preconceito é uma fatalidade, ou seja, não pode não haver preconceitos
racistas. Mais do que ser conceptualmente especificado, o racismo é aqui
objecto de generalização conceptual, a um ponto em que toda a representação
simbólica da distintividade étnica e racial desde o seu mero reconhecimento
de facto, passando pelos estereótipos mais ou menos inócuos que sobre ela se
produzem, até às expressões mais explícitas e agressivas contra ela , é
virtualmente sinónimo de preconceito. O preconceito seria, assim, tão
inevitável quanto o é, no próprio funcionamento cognitivo humano, a produção de
estereótipos, como forma de reduzir a imensa variedade de informação social
relativa a grupos sociais (Garcia-Marques, 1999: 130-131).
No caso particular de van Dijk, há, além do mais, um modelo circular e fechado
de análise do racismo, que em si mesmo coloca as perguntas e dá as respostas,
limitando-se a pesquisa empírica a confirmá-las. Se o racismo, como diz o
autor, é estrutural e atravessa todas as instâncias institucionais e pessoais
na sociedade, então ele estará em todos os pensamentos e em todos os discursos.
Como em todos os discursos há preconceitos raciais, e empiricamente consegue
encontrá-los por mais escondidos que estejam, então o racismo é estrutural.
Outra questão suscitada pelas formulações de Pettigrew e Dijk é a que tem a ver
com o significado atribuído ao declínio do chamado racismo flagrante.
Preocupados em identificar e classificar as formas mais subtis e ocultas do
racismo contemporâneo, os autores citados, e muitos outros, parecem subavaliar
a importância que tem a contenção social das formas mais primárias de racismo
do ponto vista do seu combate, ou, se se quiser, do ponto de vista do chamado
anti-racismo.11
Entre o racismo flagrante e o subtil há, segundo estas interpretações, uma
diferença de natureza, mas não de grau. No entanto, não será o racismo subtil
menos racista do que o flagrante? A sanção social externa e a autocontenção a
que está submetido o racismo flagrante não significam, justamente, que a
expressão do racismo é menor do que naqueles contextos históricos em que, tanto
as representações como as práticas racistas tinham ou têm pouca ou nenhuma
contenção e penalização social?
Apesar da definição tão lata que adopta, é o próprio Pettigrew e, em sintonia
com ele, Vala, Brito e Lopes, quem chama a atenção para o carácter
antinormativo do racismo nas sociedades ocidentais contemporâneas, ou melhor,
para a normatividade social anti-racista que hoje caracteriza essas sociedades.
O grau de enraizamento social da norma anti-racista é atestado pela própria
ideia de racismo subtil, já que, de acordo com os autores, ele torna-se subtil
justamente para não contrariar essa norma, o que não deixa de mostrar quão
efectiva ela é. Pettigrew chega mesmo a distinguir "igualitários",
"racistas subtis" e "fanáticos" (ou racistas flagrantes),
de acordo com a influência social obtida por essa norma: os
"igualitários" internalizam-na completamente, os subtis acatam-na ou
conformam-se com ela, embora não deixem de exprimir preconceitos não
flagrantes, e os "fanáticos" desafiam-na activa e publicamente
(Pettigrew e Meertens, 1993: 122-126; Vala, Brito e Lopes, op. cit.: 170-174).
Ora, se é importante investigar que "mecanismos psico-sociológicos
alimentam o racismo em contextos sociais em que este é antinormativo, e que
expressões subtis, não antinormativas, assume hoje o racismo" (Vala et
al., idem: 18), não será menos importante sublinhar que há aqui uma diferença
de natureza, mas também de grau, por comparação com os contextos em que o
racismo não era ou não é antinormativo. Como notava Fontette, já há bastante
tempo, "o verdadeiro racista não tem vergonha" e a "célebre
fórmula eu não sou racista, mas' é susceptível de várias interpretações, a
menos desfavorável das quais é a de que aquele que a pronuncia revela, por isso
mesmo, sentimentos de que se envergonha e que não ousa manifestar enquanto
tais" (Fontette, 1981: 122).
No entanto, Teun van Dijk e outros autores desvalorizam largamente os valores e
as normas que, no quadro das culturas ocidentais contemporâneas, condenam
firmemente o racismo. Referindo-se a esta questão, Dijk diz que, de acordo com
os resultados das suas pesquisas, as pessoas em geral não aprenderam a
contradizer o pensamento racista e raramente o contradizem, ao passo que os
media não fornecem contra-informação que possa ser usada para o combater. Esses
valores e normas gerais poderão ser, quando muito, "inconsistentes com o
racismo", mas o que realmente sobressai é que "uma das mais notáveis
propriedades de uma sociedade racista é que ela não é anti-racista" (Dijk,
1987: 394).
Na mesma linha, Philomena Essed, autora, tal como Dijk, de pesquisas
comparativas entre a Holanda e os EUA, mas cujos resultados considera serem
válidos para outras sociedades "dominadas por brancos", afirma que o
valor da tolerância, tido pela sociedade holandesa como um dos seus traços
culturais mais marcantes, é problemático quando aplicado a relações
hierárquicas entre grupos.12 A tolerância, diz, "pressupõe que um grupo
tem o poder de ser tolerante e que os outros terão de esperar para ver se vão
ser rejeitados ou tolerados. Por isso, a tolerância cultural é, essencialmente,
uma forma de controlo cultural" (1991: viii, 210-211).
Posição do mesmo tipo é, ainda, a de Ponterotto e Pedersen, para quem as
modernas formas de racismo subtil prevalecem mesmo entre aqueles norte-
americanos que "possuem valores fortemente igualitários, simpatizam com as
vítimas de injustiças passadas, apoiam políticas de promoção da igualdade
racial e se vêem a si próprios como não preconceituosos e como não tendo
práticas discriminatórias (op. cit.: 17).
Neste ponto já não estamos só perante um problema de generalização do conceito
de racismo a uma escala que o deixa praticamente sem préstimo, em que tudo se
igualiza, desde o preconceito racista mais flagrante até ao valor da tolerância
e o apoio a políticas de igualdade racial. Mais do que isso, há aqui meras
posições de princípio, em que parece já não interessar muito a constituição do
racismo enquanto objecto de reflexão e pesquisa sociológica, mas, antes disso,
ou até em vez disso, constituí-lo em campo de luta ideológica e política, a
partir do mundo académico. Declarar, por princípio, que tudo é racismo tem
exactamente o mesmo valor, neste quadro, que declarar, também por princípio,
exactamente o contrário.
O modo como é interpretada a relação inversamente proporcional entre
escolaridade e preconceito, habitualmente confirmada pela pesquisa empírica,
ilustra bem essa posição. Mais do que realçar a importância da escolaridade na
redução de estereótipos e preconceitos, prefere-se defender que ela proporciona
mais consciência das subtilezas das normas e valores prevalecentes, e que os
mais escolarizados, quando os contextos o favorecem, são pouco menos racistas,
nas ideias e nas práticas, do que as outras pessoas (Dijk, 1987: 394).13
A discussão sobre os contornos conceptuais do racismo, enquanto fenómeno
representacional, não poderia completar-se sem referência ao conceito de
racialização, de uso corrente na sociologia de língua inglesa. Aquele que é o
seu principal proponente actual, Robert Miles, distingue-o inequivocamente, por
um lado, de racismo e, por outro lado, de racismo institucional, conceito que
será comentado adiante e que, também no mundo anglo-saxónico, é habitualmente
tido como alternativa vantajosa ao de discriminação racial.
Fala-se de racialização para designar o processo simbólico que consiste na
atribuição de "significado social a certas características biológicas
(normalmente fenotípicas), na base das quais aqueles que delas são portadores
são designados como uma colectividade distinta" (Miles, 1989: 74). Trata-
se, por outras palavras, de um processo de categorização social a partir de
traços de distintividade racial de determinadas populações, e que se traduz na
utilização generalizada da noção de raça para mencionar ou descrever essas
populações, mesmo em casos em que a diferença fenotípica é apenas imaginada
(Miles, 1996: 306-307).
O que, para o autor, distingue racialização de racismo é que o racismo é um
caso particular de racialização, envolvendo uma avaliação explicitamente
negativa de categorias imutavelmente definidas em termos biológicos ou
culturais.14 Essa avaliação negativa não está, no entanto, necessariamente
presente em todos os processos de categorização racial. Em muitos discursos
contemporâneos nos EUA e na Europa, diz ainda Miles, e no caso europeu estará
certamente a referir-se mais ao Reino Unido do que a qualquer outro país,
"categorias como branco' e preto' são utilizadas para etiquetar
indivíduos e, por consequência, para constituir grupos, mas frequentemente na
ausência formal do discurso da raça'" (1989: 75, 79).
Trata-se, pode dizer-se, de um conceito largamente tributário da perspectiva
weberiana sobre a orientação subjectiva da acção social e a constituição, por
essa via, de identidades colectivas. Era, de resto, em termos muito próximos
destes que o próprio Weber se referia já ao significado da "pertença
racial", dizendo que ela "não conduz a uma comunidade' a não ser que
seja sentida subjectivamente como uma característica comum" (1995 [1922]:
124). Foi também para evidenciar como a distintividade racial se torna objecto
de categorização social que Roger Bastide chegou a propor a noção de
"raças sociológicas" e sublinhou a sua grande variabilidade entre
países e contextos históricos. Justamente por as pertenças raciais serem
construídas socialmente é que um mulato claro é definido como branco no Brasil
e como negro nos EUA (Bastide, 1973: 34).
Se a racialização, nos termos estritos em que Miles a define, não é, com
efeito, sinónimo de racismo, coloca-se a questão de saber se a fronteira que
separa uma e outro não será, no entanto, mais difusa do que a definição deixa
crer, e se não se passará facilmente da categorização racial meramente
descritiva para a constituição de estereótipos e preconceitos raciais
propriamente ditos.
Tomando, desde logo, a interacção social quotidiana entre indivíduos
racialmente diferenciados, pode dizer-se que ela dá lugar a um processo cruzado
de categorização, fundado na própria visibilidade imediata dessa diferença, que
não implica, de facto, necessariamente preconceitos raciais. Sendo certo que em
todas as situações de interacção as pessoas envolvidas procedem a uma
categorização automática do visível, nos casos em que essas pessoas são
fenotipicamente diferentes, essa mesma diferença fenotípica sobrepor-se-á,
muitas vezes, enquanto critério de classificação, a todas as outras
características distintivas igualmente apreensíveis a olho nu, como, por
exemplo, o sexo ou a idade. A cor da pele, em particular, sendo o mais visível
de todos os traços fenotípicos, e o que se oferece de maneira mais directa e
inquestionável à percepção de um observador comum, constitui-se facilmente em
principal critério de categorização social.
Não deve esquecer-se, no entanto, que, no curso dessas práticas
classificatórias automáticas e recíprocas, se pode transformar facilmente uma
característica entre muitas outras daqueles que são observados, como seja a cor
da pele, em eixo organizador da própria prática de observação, deixando a
categorização racial de ter uma função apenas descritiva, para passar a ser um
princípio de explicação de tudo o que se observa, e abrindo caminho, portanto,
à formação de estereótipos e preconceitos raciais.
Mais do que das interacções informais quotidianas é, contudo, da racialização
produzida em sede institucional que advêm os maiores contributos para que a
fronteira ténue entre a mera categorização racial e o preconceito seja
transposta. Particularmente nos EUA e na Inglaterra, e não é por acaso que o
conceito em análise é daí oriundo, há múltiplas instâncias institucionais de
racialização, fortemente articuladas entre si, que constituem um poderoso
factor de estruturação do pensamento e dos discursos comuns a este respeito.15
Entre os lugares permanentes de produção institucional de categorias e
discursos racializados contam-se: o campo político, tanto do lado das
autoridades governativas a todos os níveis de decisão, como do lado do
associativismo e da acção colectiva das minorias étnicas e raciais; o campo
jurídico, particularmente o legislativo; os aparelhos estatísticos oficiais; e
as próprias ciências sociais, nomeadamente a sociologia. Em todos esses
domínios, termos como raça e relações raciais, negro ou branco, fazem parte da
terminologia formal de uso corrente.
É, aliás, notório, nas formulações de Miles, que o cuidado em distinguir
racialização de racismo tem a ver, também, com a necessidade de salvaguardar a
posição daqueles que, sendo historicamente as principais vítimas de preconceito
e discriminação, adoptam, como linguagem política e bandeiras de mobilização
(desde o Black Power dos anos 60 até à actualidade), essas mesmas categorias
racializadas, categorias que, afinal, coincidem, em larga medida, com as usadas
nos discursos racistas propriamente ditos.
Além de contribuir para uma cristalização de designações que indirectamente
favorece o pensamento racista, a racialização dos discursos dos líderes e
organizações de minorias, em particular, tem o problema adicional e mais
imediato das condições de eficácia. Noções como "unidade negra",
"luta dos negros" ou "resistência negra" conhecem
frequentemente problemas de operacionalização política, já que simplificam ao
extremo realidades que são complexas e multidimensionais, acabando por ser
muito menos mobilizadoras do que era esperado.
A ideia, por exemplo, de que seria parte integrante do "movimento
negro" o protesto público dos asiáticos muçulmanos fixados em Inglaterra,
por ocasião da publicação do livro Versículos Satânicos de Salman Rushdie, em
1988, é apenas um caso limite de um processo de reificação política de
categorias raciais, que conhece muitas outras expressões e que, como nota o
próprio Miles, "reproduz a dicotomia racista subsistente como uma imagem
de espelho" (Miles, 1993a: 3-4)
Algo de homólogo se passa com a racialização dos instrumentos estatísticos.
Embora se possam invocar alguns argumentos a seu favor, o uso oficial de
estatísticas raciais, não só tende a reforçar significativamente a linguagem da
raça nos discursos informais e institucionais, como tem eficácia duvidosa do
ponto de vista da própria caracterização da realidade, uma vez que é
virtualmente impossível produzir sistemas de classificação que sejam,
simultaneamente, consensuais, rigorosos, exaustivos e capazes de dar conta da
permanente flutuação das auto-identificações étnicas e raciais.16
No recenseamento norte-americano de 1990, por exemplo, os 9, 8 milhões de
respostas registadas na categoria "outros" dão um bom testemunho da
falibilidade do sistema de classificação adoptado e podem ser lidos como uma
"rejeição de facto" dessa classificação (Berghe, 1993: 248). Nenhum
sistema de classificação racial poderia, tão pouco, dar sentido útil às 136
respostas diferentes que uma pergunta do mesmo tipo obteve no recenseamento
brasileiro de 1980 (Vieira, R. M., 1995: 235), caso, aliás, bem demonstrativo
de um pensamento comum não racializado.
No que toca, finalmente, à racialização do discurso sociológico, o uso
generalizado de categorias analíticas como "raça", "relações
raciais" ou "linha de cor", é um processo de longa duração,
iniciado nos EUA com a Escola de Chicago, nos anos 20, estendido mais tarde à
sociologia inglesa, a partir do momento em que o Reino Unido começou a receber
imigrantes extra-europeus, e que se prolonga até aos dias de hoje, nos dois
países. Se, particularmente no caso norte-americano, e face às circunstâncias
históricas conhecidas, era praticamente inevitável que essas noções entrassem
na teoria sociológica, a sua posterior cristalização na sociologia anglo-
saxónica em geral acabou por ter os mesmos efeitos negativos de outros
discursos institucionais racializados.
Na medida em que se confirmam e reforçam reciprocamente, e estruturam de forma
decisiva o pensamento comum, esses vários discursos, sociologia incluída, geram
um efeito de coro, em que todas as relações sociais envolvendo indivíduos e
grupos racialmente diferentes são entendidas, exclusiva ou principalmente, como
relações raciais; ou seja, eles funcionam tendencialmente, para usar de novo a
célebre formulação de Merton, como uma profecia que se cumpre por si própria.
Ao definir-se tão generalizadamente a realidade em termos raciais, são os
próprios contextos do racismo que são alimentados.
Desde os anos 80, a atribuição de estatuto analítico a noções como raça ou
relações raciais tem sido objecto de críticas crescentes, dentro da própria
sociologia de língua inglesa, estando em curso um debate sobre o assunto, no
qual se tem destacado o próprio Robert Miles. Na sua perspectiva, "os
cientistas sociais prolongaram, perversamente, a vida de uma ideia [a de raça]
que devia ter sido explícita e consistentemente confinada ao caixote de lixo
dos termos analiticamente inúteis"; em vez de se explicar como é que a
ideia de raça se torna objecto de um processo de construção social, ela é
tomada como "um facto social explicativo de outros factos sociais"
(Miles, 1989: 72-73). Não se demarcando do senso comum racializado, ou
confirmando-o mesmo de forma explícita, a utilização sociológica da noção de
raça, diz ainda Miles, acaba por apoiar, indirectamente, a própria ideologia
racista (Miles, 1993a: 47).17
É na sequência destas críticas que Miles defende, então, o abandono daquela
noção e propõe, como alternativa, o mencionado conjunto tripartido de conceitos
formado por racismo, entendido como ideologia e preconceito da superioridade/
inferioridade de base biológica e/ou cultural, racialização e racismo
institucional. Nessa alternativa, e deixando de lado para já os problemas que
envolvem a ideia de racismo institucional, ficam, no entanto, por discutir as
relações de proximidade entre racismo e racialização, nomeadamente, se parte
daquilo que é tomado somente por racialização não é já uma forma de preconceito
racial propriamente dito.
Independentemente de significar só racialização, no sentido que lhe é dado por
Miles, ou de ser mais do que isso, a permanência de representações sociais,
espontâneas e elaboradas, que tomam como base a distintividade racial, deve ser
salientada em contraponto à ênfase que as novas definições de racismo colocam
na ideia de que os conteúdos da ideologia e do preconceito racistas são cada
vez mais culturais e cada vez menos raciais. Mesmo nos casos em que não se
exclui da definição do novo racismo a componente especificamente racial (Vala,
Brito e Lopes, 1999), ela não deixa de ser colocada em segundo plano face à
dimensão étnico-cultural. Ora, sem negar importância a essa nova configuração
ideológica que é o racismo "culturalizado" e subtil, o que se pode
concluir da persistência de tantos discursos racializados, especialmente no
mundo anglo-saxónico, mas certamente não só aí, é que os conteúdos propriamente
raciais da ideologia e do preconceito racistas estão longe de estar esgotados.
Dir-se-ia, assim, para encerrar este ponto, que, se nas actuais definições de
racismo há, por um lado, um problema de inflação conceptual, alargando-se a
aplicação do conceito a domínios que já não são os seus, por outro lado, há um
problema de esvaziamento conceptual, já que parece subestimar-se a persistência
de maneiras de pensar que continuam a ter como primeira referência as
características raciais de determinadas populações. A posição de Collette
Guillaumin (1993: 149-151), segundo a qual o racismo banal ou comum é, afinal,
um sincretismo, em que não se faz distinção entre o somático e o simbólico,
entre o biológico e o cultural, constitui provavelmente a abordagem mais
equilibrada da questão, valendo a pena que a actual pesquisa empírica pudesse
prosseguir.
Ainda que a ideia de hierarquização de raças, característica da ideologia
racista clássica, tenha sido abandonada, como se viu, pelas formulações
ideológicas mais recentes, faz sentido continuar a reter essa ideia na
definição de racismo enquanto preconceito comum, alargando-a, é certo, à
hierarquização também de diferenças étnico-culturais.18 O que cabe dentro dos
limites do preconceito racial é essa crença numa relação de superioridade e
inferioridade entre categorias raciais e culturais diferentes, e a consequente
avaliação negativa, preconcebida e sistemática, dos considerados inferiores.
Estender a definição do conceito à valorização por cada uma dessas categorias
dos seus traços culturais distintivos, ou mesmo à mera percepção social cruzada
das suas diferenças, apenas lhe retira utilidade analítica. Além de se chamar
racismo a algo que não o é, deixa-se na sombra, ou tende a subavaliar-se, o que
nas representações e discursos quotidianos há de racismo flagrante.
Racismo enquanto prática social
Nenhuma discussão do conceito de racismo pode estar completa sem se considerar
a terceira das suas dimensões enunciadas no princípio, ou seja, o racismo
enquanto prática de discriminação. Se bem que, na acepção originária, racismo
se referisse apenas à ideologia da hierarquização racial das capacidades e
competências humanas, o conceito foi-se progressivamente alargando de forma a
designar igualmente, quer o preconceito racial, quer a discriminação de
indivíduos ou grupos em função da sua distintividade racial e/ou étnica.
Os problemas de delimitação e especificação conceptual, que vimos colocarem-se
no plano do racismo-ideologia e do racismo-preconceito, põem-se de maneira
ainda mais notória quando se trata de definir racismo como prática. À tendência
igualmente forte para a inflação conceptual soma-se agora uma maior
discrepância entre definições. Se, quando se fala de ideologia e preconceito
raciais, a generalidade dos autores está de acordo quanto à existência de um
novo racismo de tipo subtil e culturalizado, quando passamos para o campo dos
comportamentos sociais verificamos que se está longe de qualquer consenso
teórico.
Para além de definições diferentes do que são ou não práticas racistas, há
concepções largamente discordantes quanto ao próprio modo como as três
dimensões do racismo se articulam entre si. Há quem entenda a ideologia e o
preconceito raciais como meros instrumentos simbólicos de legitimação de
relações de dominação historicamente situadas, sejam elas de tipo esclavagista,
colonialista ou capitalista; há quem considere que práticas, por um lado, e
dimensões simbólicas, por outro, têm autonomia de expressão, podendo
manifestar-se umas sem que as outras estejam presentes; há, ainda, quem adopte
definições tão "estruturais" que a questão da eventual autonomia das
dimensões constitutivas do racismo nem sequer se coloca.
A principal linha de clivagem teórica na definição do racismo enquanto prática
é introduzida pela ideia de racismo institucional, surgida nos EUA nos anos 60,
e adoptada generalizadamente pela sociologia de língua inglesa até à
actualidade. Mais do que falar em discriminação racial, praticada por
indivíduos ou grupos concretos, em circunstâncias determinadas, contra outros
indivíduos ou grupos concretos, o conceito de racismo institucional desloca o
centro da definição do plano individual/grupal para o plano do sistema ou da
estrutura social como um todo.
Na sua formulação inicial, proposta pelos activistas negros norte-americanos do
movimento Black Power, Stokely Carmichael e Charles Hamilton, o racismo
institucional era definido por oposição ao chamado racismo individual.19 Este
último designava actos de discriminação declarada por parte de determinados
indivíduos ou grupos isolados contra pessoas racialmente distintas. Mais
importante do que essa modalidade de racismo seria, no entanto, segundo os
autores, o racismo encoberto e difuso, inscrito na generalidade das
instituições sociais, as quais, por acção ou omissão, contribuem para manter um
grupo racialmente definido, neste caso a população negra dos EUA, numa posição
de exclusão e subordinação social (Miles, 1989: 50-51).
Na medida em que o grupo em causa conheça, historicamente, um quadro de
desfavorecimento social continuado, isso só pode resultar de dinâmicas
estruturais mais amplas do que os meros actos racistas individuais, e são essas
dinâmicas que o conceito de racismo institucional pretende descrever. Numa fase
em que os estudiosos do racismo estavam ocupados, essencialmente, com a
investigação sobre os preconceitos raciais, numa perspectiva sobretudo
psicossociológica, o conceito de racismo institucional teve forte impacto
académico, além de político, entrando a partir daí na terminologia corrente da
sociologia anglo-saxónica (Miles, op. cit.: 51).
Com alguma oscilação no sentido dado à palavra institucional, que pode designar
mais estritamente organizações, ou mais latamente estruturas sociais, a
definição hoje usada não difere, no essencial, da estabelecida nos anos 60. Na
fonte de referência neste domínio, que é o Dictionary of Race and Ethnic
Relations(Cashmore, 1996a), pode ler-se que racismo institucional designa
"as operações anónimas de discriminação em organizações, profissões ou
mesmo em sociedades como um todo". Elas são anónimas na medida em que os
indivíduos podem negar a acusação de racismo e ilibarem-se a si próprios de
responsabilidades. No entanto, diz-se ainda, "se um padrão de exclusão
persiste, então as causas têm de ser procuradas nas instituições de que esses
indivíduos fazem parte, nos pressupostos não expressos sobre os quais essas
instituições baseiam as suas práticas e nos princípios não questionados que
elas possam usar" (Cashmore, 1996b: 169).
Não se trata, portanto, estritamente de discriminação racial, que é o sentido
mais corrente que o racismo enquanto prática tem fora do mundo de língua
inglesa. Racismo institucional é mais do que isso. Como se pode ler ainda no
citado dicionário, que, de resto, dedica apenas uma pequena entrada ao conceito
de discriminação racial, o uso deste termo "diminuiu em anos mais
recentes, à medida que racismo e racismo institucional passaram a ser
correntemente usados para designar tanto pensamentos como acções"
(Cashmore, 1996c: 305-306). Por outras palavras, discriminação racial é, para
os que adoptam a perspectiva do racismo institucional, um conceito demasiado
fraco e parcelar, que não capta a raiz do problema.
Não é difícil perceber que se está, uma vez mais, perante uma definição em que
o risco de inflação conceptual é muito alto. Mesmo um autor como Robert Miles,
que, embora de forma mais restrita, não deixa de usar o conceito de racismo
institucional, alerta para o sentido inflacionado que o uso corrente do
conceito geralmente tem na literatura sociológica.20 Na ausência de uma
especificação rigorosa da ideia de racismo institucional, diz Miles, o que se
tem é um conceito teleológico de racismo, em que a sociedade é global e
intrinsecamente racista e não pode, portanto, haver nenhuma acção que não o
seja, excepto talvez a revolução, desde que "não seja feita por
brancos". O conceito pressupõe, assim, aquilo que devia ser demonstrado,
em cada caso particular (Miles, 1989: 56).21
Há, no entanto, quem ache a própria ideia de racismo institucional ainda
insuficiente para explicar a produção e reprodução da desigualdade racial, e
considere especialmente enganadora a distinção entre racismo institucional e
racismo individual. A já citada Philomena Essed, por exemplo, propõe, em
alternativa a esse par, o conceito de racismo quotidiano, no sentido de
atravessar as fronteiras entre as abordagens estrutural e interaccionista do
racismo, e de ligar os detalhes das micro-experiências ao contexto estrutural e
ideológico em que elas tomam forma (Essed, 1991: 288).
Falar em ser-se ou não racista, diz a autora, simplifica o problema. Embora
sejam indivíduos os agentes do racismo, "o que interessa são as práticas e
respectivas implicações, não a psique desses indivíduos" (idem: viii). Não
é só nos contextos institucionais, por um lado, e nos preconceitos dos
indivíduos, por outro, que o racismo se manifesta. Ele está inscrito na própria
multiplicidade dos contextos quotidianos, onde o racismo, mais do que se
configurar como acontecimento ou conjunto de acontecimentos isolados e
singulares, se constitui como "um complexo de práticas cumulativas",
que "se tornam parte do que é visto como normal' pelo grupo
dominante" (idem: 288).
A definição maximalista de Essed é também, recorde-se, a de Teun van Dijk, para
quem, como vimos, o racismo atravessa todos os níveis institucionais e pessoais
da sociedade. Já não se trata, portanto, de localizar o racismo nas
instituições ou nos comportamentos e discursos individuais e grupais, mas sim
de o considerar encravado na própria estrutura global da sociedade (Dijk,
1987).
Chegamos assim a um ponto em que o racismo é um sistema sem actores, um
processo sem protagonistas. São as sociedades que são racistas,
independentemente de os indivíduos terem ou não preconceitos, discriminarem
racialmente ou não. Dito por outras palavras, todos são
"objectivamente" racistas, embora ninguém seja individualmente
responsável ou responsabilizável por esse facto. Este hiperestruturalismo, que
parece reentrar na sociologia pelo lado das questões étnicas e raciais depois
de ter sido centrifugado, já há bastante tempo, pela análise de classes, é
obviamente insustentável. Segundo estas formulações não pode, na prática, não
haver racismo, seja no plano da ideologia e dos preconceitos, como vimos
anteriormente, seja agora no plano das práticas sociais.
Importa não confundir esta perspectiva com o problema da possível solução de
continuidade entre preconceito e discriminação, que Merton colocava nos anos
40, referindo-se às situações, empiricamente determináveis, em que, mesmo sem
serem preconceituosos, alguns indivíduos podem praticar a discriminação
racial.22 Michel Wieviorka, cujo modelo de análise será comentado mais à
frente, encontra um laço próximo entre a interpretação maximalista do racismo
institucional, que rejeita, e essa formulação mertoniana, dizendo que ambas
dissociam o actor do sistema (Wieviorka, 1991: 123).
Trata-se, contudo, de ideias muito diferentes. Quando Merton diz que se pode
discriminar racialmente mesmo sem preconceitos, não é por considerar que o
racismo está no sistema social como um todo, independentemente dos indivíduos.
Ele está a referir-se, antes, a contextos localizados de interacção em que isso
acontece por pressão social imediata, como é o caso do comerciante branco que
não atende negros no seu estabelecimento, não porque tenha preconceitos, mas
porque entende que os seus clientes não o aceitariam. Merton está, portanto, a
chamar a atenção para processos sociais específicos e não a qualificar a priori
a sociedade como racista.
Mas o que torna mais evidente que não se está a falar da mesma coisa é o facto
de o modelo mertoniano incluir possibilidades que os defensores da versão mais
radical do conceito de racismo institucional nunca subscreveriam. A tipologia
de Merton, que visava denunciar atropelos à norma "oficial" norte-
americana do igualitarismo, cruza a dimensão das atitudes e a das práticas,
sendo que, na primeira dimensão, pode ou não haver preconceito e, na segunda,
pode ou não haver discriminação. Resultam daí quatro perfis-tipo, que Merton
designa por liberais absolutos (não têm preconceitos nem discriminam), liberais
relativos (têm preconceitos, mas não discriminam), não liberais relativos (não
têm preconceitos, mas discriminam) e não liberais absolutos (têm preconceitos e
discriminam).23
Ora, para aqueles que entendem o racismo como estando fatalmente inscrito nas
instituições e no sistema social como um todo, só existem não liberais,
absolutos ou relativos. Não ter preconceitos nem discriminar, ou ter
preconceitos mas não discriminar, são hipóteses que não colocam, uma vez que
essas hipóteses decorrem de uma perspectiva teórica que não define o racismo
como intrínseco ao "sistema", mas antes como um complexo de atitudes
e comportamentos contextualizado histórica e socialmente.
O já citado mecanismo da profecia autocriadora descreve justamente processos em
que preconceito e discriminação se alimentam reciprocamente, sustentados por
"factos" que são produto de uma situação falsamente definida como
real. O exemplo dos operários negros impedidos pelos seus pares brancos de se
sindicalizarem, com o argumento de serem fura-greves, mas que, pelo contrário,
só acabam por se tornar fura-greves porque não lhes é permitido aderir a
sindicatos, é um dos que ilustra melhor a circularidade desse jogo de
alimentação recíproca e a perversidade das suas consequências (Merton, 1968
[1949]: 518-519). Como refere Peter Berger, nesta mesma óptica, "a coisa
mais terrível que o preconceito pode fazer a um ser humano é fazer com que ele
tenda a tornar-se aquilo que a imagem preconceituosa diz que ele é" (1986
[1963]: 116).
Mas a abordagem mertoniana sublinha igualmente as situações, relativamente
comuns, em que, mesmo existindo preconceito, não acontecem práticas de
discriminação. Merton não está, de resto, sozinho neste ponto. Robert Miles, no
quadro da crítica ao entendimento maximalista de racismo, retoma este problema,
chamando a atenção para a complexidade das inter-relações entre crenças e
práticas e entre consequências pretendidas e não pretendidas da acção social.
Não havendo uma conexão lógica entre ideias e acções, acrescenta, "uma
análise da prevalência de crenças racistas pode revelar-se um guia muito pouco
fiável da extensão de comportamentos discriminatórios, e vice-versa"
(Miles, 1989: 60).
O que a descontinuidade entre preconceito e discriminação revela, acima de
tudo, é a importância decisiva, quer dos controlos sociais externos, quer do
autocontrolo socialmente incorporado, que penalizam, não só os preconceitos
enquanto tais, mas, mais ainda, a sua conversão em práticas discriminatórias.
Merton assinalava-o já com clareza, dizendo que a profecia autocriadora no
campo racial só funciona "na ausência de controlos institucionais
deliberados", acrescentando que, "apesar dos ensinamentos de
psicólogos amadores, o pânico e a cega agressão racial não estão arraigados na
natureza humana", mas são tipos de conduta "em grande parte
produzidos pela estrutura modificável da sociedade" (Merton, op. cit.:
530-531). Outros autores aprofundaram, depois, a análise das relações entre
preconceito, discriminação e controlo social, mostrando que esse controlo é
importante para prevenir a transformação de preconceitos em discriminação, mas
também para prevenir a possibilidade desta última degenerar em violência racial
(Simpson e Yinger, 1965: 13-16).
Reencontramos, assim, a questão da normatividade social anti-racista, bem como
a sua subestimação pelas definições inflacionadas de racismo, agora no plano
das práticas. A incorporação dessa norma pelas sociedades ocidentais
contemporâneas, solidamente traduzida em termos políticos, legais e culturais,
não pode ser descartada da especificação conceptual do racismo, como se não
existisse.
O que ela significa, usando ainda os termos estritos da tipologia mertoniana, é
que nessas sociedades predominam os liberais, absolutos ou relativos, em
proporção certamente muito maior do que na sociedade norte-americana dos anos
30 e 40 sobre a qual Merton escreveu. Não o ter em conta, ou subvalorizá-lo, é
não perceber a diferença que vai de uma sociedade onde a discriminação racial
era legalmente apoiada para outra em que ela é culturalmente penalizada e
punida pela lei.
Um dos principais, senão mesmo o principal argumento invocado por aqueles que
defendem que as práticas racistas vão para além de actos individuais ou grupais
de discriminação e devem ser procuradas no próprio edifício institucional da
sociedade, é o do desfavorecimento socioeconómico de muitas minorias étnicas e
raciais nos países ocidentais. Essa condição desfavorecida seria a melhor prova
da lógica institucional e estrutural do racismo, produzindo e reproduzindo
desigualdades, segundo critérios de pertença racial ou étnica. Dito de outro
modo, seria o racismo o primeiro factor responsável pelo perfil de classe
globalmente desprivilegiado dessas minorias.
Não estando em causa que há, nesses países, minorias cujos contrastes sociais
"para baixo" com as populações envolventes são um facto facilmente
comprovável, o que falha naquele argumento é que, por um lado, abstrai da
diferenciação classista intra e inter-minorias, incluindo as chamadas
"minorias intermédias" (Ward, 1996); por outro lado, confunde
frequentemente discriminação social, no sentido de desigualdade de
oportunidades em função da pertença de classe, com discriminação racial. Esta
segunda falha é, de resto, a que gera em grande parte a primeira, uma vez que a
perspectiva do racismo institucional é quase sempre cega às classes, vendo
apenas a questão racial, entendida como dimensão exclusiva da dinâmica das
desigualdades.
Vejamos o caso norte-americano, tomado, consciente ou inconscientemente, como
arquétipo em muitas interpretações deste tipo, quer no espaço europeu, quer
noutras partes do mundo. No final da segunda década do século XX, Park dizia já
que, se na sua origem as relações raciais no sul dos EUA podiam ser
representadas por uma linha de cor horizontal, com os brancos em cima e os
negros em baixo, com "o desenvolvimento de classes industriais e
profissionais na raça negra, a distinção entre as raças tende a tomar a forma
de uma linha vertical" (Park citado por Wieviorka, 1991: 46). Na década
seguinte, Warner retoma e especifica essa ideia, representando graficamente a
linha de cor como uma diagonal que separa duas estratificações sociais
completas, uma branca e outra negra, embora a classe alta negra se situe abaixo
da classe média branca (idem: 47).24
A noção de linha de cor, mesmo que cada vez mais vertical, era a forma de
traduzir analiticamente uma lógica continuada de segregação racial, que tendia
a manter separadas as duas estratificações. Foi essa lógica, de resto, que
levou vários autores a importar o conceito de casta para o estudo das relações
sociais entre brancos e negros, nessa época, e muitos outros a negar que a
ideia de melting pot fosse a metáfora adequada para descrever o processo de
construção da sociedade americana.25 Contudo, apesar da segregação, o percurso
da população negra nas décadas seguintes foi, efectivamente, de progressiva
diferenciação classista interna, mais nos contextos urbanos do norte, mas
também no sul ex-esclavagista (Simpson e Yinger, 1965: 246-259).26
Nos anos 60 e 70, sob o impulso democratizador trazido pela luta dos movimentos
negros pela igualdade de direitos e consequentes medidas legais e políticas
anti-discriminação, a distância entre brancos e negros, apesar de se manter
significativa, reduziu-se consideravelmente, em termos económicos, sociais e
políticos, embora mais depressa numas dimensões do que noutras (Farley, 1984:
194-206). Neste novo quadro, é a própria ideia de uma linha de cor, mesmo que
vertical, a deixar de fazer sentido, já que a prática de discriminação e
segregação racial deixa de fazer parte do ordenamento jurídico das relações
sociais.
Particularmente marcantes, a este respeito, foram os trabalhos de William
Julius Wilson, especialmente o livro The Declining Significance of Race,
publicado em 1978. Perante sinais de que a diferenciação classista interna da
população negra se parecia polarizar cada vez mais entre, por um lado, uma
classe média e uma classe alta em crescimento consolidado e, por outro lado,
uma subclasse cada vez mais excluída e guetizada, Wilson rejeita firmemente que
a situação dessa subclasse possa ser explicada pelo factor racial, ou seja, que
ela possa ser entendida como consequência de racismo institucional.
Se, na ocasião em que se formaram, os guetos negros foram, sem dúvida, a
tradução espacial de uma lógica de discriminação racial fortemente enraizada na
sociedade norte-americana durante décadas, a partir dos anos 70 do século XX a
reprodução da pobreza e da exclusão social nessas zonas, classificadas como
hiperguetos (Wacquant e Wilson, 1993), pouco ou nada tem já a ver com relações
raciais. A subclasse negra dos hiperguetos não é produto da discriminação
racial, mas de factores como a segmentação do mercado de trabalho, reforçados
pelos múltiplos efeitos de auto-reprodução que uma vida social tão guetizada
tende a gerar.27 O problema não é o racismo, mas a exclusão socioeconómica. Se
não fosse assim, não se compreenderia a existência de classes médias e altas em
crescimento, ou seja, de uma divisão estrutural da população negra (Wilson
citado por Wieviorka, 1991: 113-116).
Vale a pena dizer que a abordagem de Wilson (que tem a "agravante" de
ser ele próprio negro) suscitou críticas generalizadas, por vezes violentas, da
parte dos muitos seguidores da perspectiva até aí dominante, que tudo tendia a
interpretar em termos estritamente raciais, fazendo total economia de outros
processos e dimensões das desigualdades.
Os mais brandos afirmam que ele não dá devida conta da "discriminação
sofrida pelos afro-americanos de classe média e, mais importante do que isso,
que negligencia a dimensão da experiência e a construção racial do outro"
(Schutte, 1995: 338), ou que o seu livro é, quanto ao racismo, "a mais
notável das más interpretações bem intencionadas" (Bowser, 1995: xii).
Os mais radicais dizem que a sua análise é uma "versão menos
reaccionária" da "ideologia da subclasse", que só serve para
legitimar, nos EUA como no Reino Unido, um estado minimalista, a
impossibilidade da segurança social e o controlo social sobre as minorias
negras (Keith e Cross, 1993: 11-13), ou que Wilson está para os anos 80 como
Park esteve para os anos 40, ambos camuflando o racismo, e que o reconhecimento
profissional e público alcançado pelo seu trabalho se deveu, sobretudo, à
"conformidade com as ideologias dominantes" (Stanfield II e Dennis,
1993: 5-6).28
A subavaliação das dinâmicas classistas e da sua importância para a
especificação rigorosa do que é ou não racismo é particularmente visível em
alguns autores, cujas perspectivas de análise revelam uma verdadeira obsessão
com a questão racial.
Num estudo comparativo sobre a situação das populações negras nos EUA e no
Reino Unido, Stephen Small, embora reconheça plenamente o crescimento do número
de negros em posições de classe média e alta, passa rapidamente por cima do que
isso significa do ponto de vista da redução das desigualdades raciais, para
perguntar se esse aumento é "uma bênção ou uma maldição" e se
"ajuda ou impede o progresso de outros negros no sentido da
igualdade". Ignorando, aparentemente, que esse mesmo crescimento é a
melhor resposta às questões que coloca, o autor continua perguntando até que
ponto os negros de classe média, com base numa "identidade comum
racializada", contribuirão para a luta mais global travada pelos operários
negros e pelos negros desempregados, pagando o "Imposto Negro", ou se
agem, primária ou exclusivamente, em termos de interesses de classe (Small,
1994: 110-113).29
Dir-se-ia, portanto, que algo não está bem na realidade social, quando os
negros, ao contrário do que seria normal e desejável para o autor, não agem em
termos exclusivamente raciais, antes se orientando por outras pertenças e
referências. O equívoco da formulação de Small, quanto a uma aliança racial dos
negros independentemente da respectiva condição de classe, fica à vista se a
aplicarmos, segundo a mesma lógica racializante, aos brancos: será que a classe
média e a classe alta brancas estarão interessadas em contribuir para a luta
mais global dos operários e dos desempregados brancos pela igualdade?
Outro exemplo desta forma de pensar totalmente racializada e cega às classes,
pode encontrar-se, para um contexto histórico e social muito diferente, num
conjunto de trabalhos recentes sobre os negros na sociedade brasileira
(Heringer, 1995; Guimarães, 1995; Vieira, 1995). O objecto central desses
trabalhos é o das condições de consolidação e actuação do movimento anti-
racista no Brasil, tido como um país onde o racismo é "a maior das
tragédias" e, "hoje mais do que nunca, impede o progresso e o
desenvolvimento social da maioria negra brasileira" (Vieira, op. cit.:
227).
A racialização da análise começa logo com a própria ideia de uma "maioria
negra brasileira". Contestando os 46% de negros contabilizados pelos
recenseamentos oficiais, Vieira afirma que os "brasileiros-africanos"
são, de facto, entre 68% a 75%, na medida em que se devem aí incluir todos
aqueles que têm ascendência africana (idem: 227, nota 1). Trata-se, portanto,
da inversão completa da clássica imagem da "gota de sangue" usada por
Roger Bastide para marcar a diferença entre as sociedades norte-americana e
brasileira, e segundo a qual, nos EUA, uma pessoa com uma gota de sangue
africano é considerada negra, enquanto no Brasil uma gota de sangue branco
basta para se ser considerado branco (Bastide, 1973: 16-18).
Numa postura fortemente americanizada, que transpõe, de forma artificial,
perspectivas e categorias analíticas entre experiências históricas totalmente
diferentes, defende-se que o anti-racismo no Brasil deve passar pela
autoconsciência racial dos negros, apoiada na "cultura africana-brasileira
do candomblé, da capoeira e dos afoxés", mas também no legado "negro-
atlântico" formado pelo "movimento dos direitos civis nos Estados
Unidos, a renascença cultural caribenha e a luta contra o apartheid na África
do Sul" (Guimarães, op. cit.: 224). Os brasileiros-africanos deviam tomar
como exemplo, em particular, o processo de desmantelamento do ex-regime racista
sul-africano, já que ele mostra o que "uma maioria negra persistente pode
fazer" (Vieira, op. cit.: 235).
O que perturba estas considerações, e os próprios reconhecem-no, embora a
contragosto, é justamente o factor classe social, ou seja, o facto de aquilo
que atribuem exclusivamente a práticas racistas generalizadas se dever, em
grande medida, a processos de discriminação social e não racial. Como nota um
deles, "o maior problema do movimento negro na luta contra o racismo no
Brasil é que muitos negros não entendem que a sua situação desfavorável é
devida à discriminação, desigualdade e preconceito raciais", dos quais é
"difícil dar conta no meio do que parece ser uma pobreza universal"
(Heringer, op. cit.: 204-205). Mais explícitas ainda são as palavras de Vieira,
quando diz que muitos brasileiros acreditam em duas "teorias
ultrapassadas", a da harmonia racial e a de que a desigualdade dos negros
se deve apenas a factores de classe, especialmente "aqueles poucos que
conhecem mobilidade social, sobretudo através da música e do desporto"
(op. cit.: 234-235).
Trata-se de perspectivas de análise que padecem, em suma, de dois males. Por um
lado, ao subscreverem uma versão brasileira da dita "morte das
classes" decretada mais habitualmente noutros pontos do planeta
(Pakulski e Waters, 1996) , descartam um factor que continua a ser central na
estruturação da desigualdade nas sociedades contemporâneas, com ou sem
diversidade racial; por outro lado, aplicam a uma experiência histórica
radicalmente diferente categorias analíticas racializadas que, mesmo na sua
sede norte-americana de produção, têm, como vimos atrás, evidentes limitações.
Dir-se-ia que, diferentemente do exemplo norte-americano, o quadro racial
brasileiro está muito próximo do que pode chamar-se, glosando Merton, uma
profecia autocriadora invertida, ou seja, se as pessoas não definem as
situações como raciais elas tendem a não se tornar raciais na suas
consequências.
O problema da transposição mecânica de categorias e perspectivas de análise
entre espaços e tempos muito diferentes não se coloca, aliás, apenas para um
caso tão singular como o brasileiro. Podemos perguntar até que ponto essa
transposição é válida, mesmo entre a experiência norte-americana e a europeia.
Para um autor como Miles, por exemplo, essa importação teórica tem interesse
muito reduzido: "um conceito de racismo formulado por referência a um
único exemplo histórico (os EUA) e acriticamente aplicado a outro (Reino Unido)
tem um grau de especificidade que limita seriamente o seu alcance
analítico" (Miles, 1989: 60).
Não podem, por isso, deixar de soar estranhas ideias como a de "comunidade
negra na diáspora", que alegadamente aproximaria os negros norte-
americanos, os do Reino Unido e muitos outros pelo mundo (Small, 1994: 208); ou
altamente questionáveis teses como a de que as diferentes expressões históricas
e nacionais do racismo (Brasil, EUA, África do Sul, Reino Unido, Europa
Ocidental, Caraíbas) estão num processo de convergência porque "as formas
de organização social e económica que o racismo suporta" vão também
convergindo num "sistema económico mundial pós-moderno" (Bowser,
1995: 299).
No que respeita ainda à articulação entre desigualdades de classe e
desigualdades raciais, importa dizer que não se defende aqui a total redução
analítica das segundas às primeiras, o que representaria, afinal, a mera
inversão das perspectivas que acabámos de criticar. Trata-se de duas dimensões
de análise autónomas, que se podem combinar entre si de mais do que uma
maneira. A dupla desvantagem, racial e de classe, é uma delas. Os migrantes
africanos inseridos nos segmentos precários do mercado de trabalho em Portugal,
por exemplo, terão uma condição ainda mais desfavorecida do que os portugueses
com idêntica localização laboral, na medida em que sejam vítimas de
discriminação racial, o que acontece com alguma frequência, em termos de
salários, horários ou noutras condições de exercício da actividade
profissional.
Não se pode é presumir que o facto de os migrantes africanos terem essa
localização profissional é, em si mesmo, sinónimo de discriminação racial ou de
racismo institucional no mercado de trabalho. A ser assim, ficaria por explicar
porque é que tantos portugueses partilham essa situação, porque é que outros
migrantes africanos ocupam posições profissionais de classe média, para não
falar dos casos em que a sobre-exploração laboral é imposta, não por
portugueses, mas por outros migrantes africanos, mais antigos e com posições de
poder no mercado informal de trabalho.
Como refere ainda Miles, nesta mesma linha, e a propósito do caso inglês,
"se o racismo é definido como uma prerrogativa dos brancos e como a
consequência de todas as acções que suportam a subordinação dos negros, não é
claro como se poderia conceptualizar a situação duradoura de desvantagem
económica dos assalariados negros (muitas vezes mulheres) das pequenas mas
crescentes burguesia e pequena burguesia negras no Reino Unido" (Miles,
1989: 55). Do mesmo modo, seria necessário explicar porque é que, "apesar
de um nível similar de tratamento discriminatório, certos segmentos da
população asiática têm taxas de desemprego muito baixas (mais baixas do que a
da população autóctone) e certos segmentos da população caribenha têm níveis de
desemprego muito elevados" (idem: 56).
Em síntese, o desfavorecimento social de membros de minorias étnicas ou raciais
não é necessariamente consequência de racismo, e a medida em que pode ou não
sê-lo é uma questão de pesquisa empírica e não um pressuposto teórico. A
crescente diferenciação classista interna dessas minorias desmente, por si
própria, qualquer relação linear entre racismo e condição de classe, mostrando,
pelo contrário, cada vez maior descoincidência entre linhas de diferenciação
social e linhas de diferenciação étnico-racial.
Deixando de lado o caso norte-americano, onde, mesmo para a minoria negra, essa
descoincidência se começou a desenhar há mais tempo, pode dizer-se, para o caso
europeu, que o exemplo dos países onde a migração tem já algumas décadas mostra
justamente que a composição classista das populações migrantes se vai tornando
mais heterogénea à medida que se prolonga o tempo de residência e se sucedem as
gerações ou, dito de outra forma, à medida que essas populações se vão tornando
elas próprias mais autóctones.
Sem pretender entrar aqui na discussão sobre as causas históricas da formação
do racismo enquanto padrão ideológico e de comportamento, importa ainda dizer
que a progressiva diferenciação classista das minorias étnicas e raciais no
mundo ocidental a que poderíamos somar também, noutro plano, a sua
progressiva miscigenação com as populações autóctones , põe em causa aquele
que é, provavelmente, o seu princípio de explicação mais corrente, a saber, a
ideia de que é o capitalismo que engendra o racismo e de que este desempenha,
no quadro das sociedades capitalistas, a função precisa de legitimar
ideologicamente a sobreexploração de minorias étnicas e raciais pelas classes
dominantes.
Essa é a tese de autores actuais, como Wallerstein, para quem o racismo é a
"fórmula mágica" que favorece os objectivos de maximização da
acumulação do capital e, ao mesmo tempo, de minimização dos custos que ela
implica (1988: 48), mas que tem reconhecidamente como fundador o trabalho de
Oliver Cox, quarenta anos antes.30 Aí, Cox criticava, por um lado, a aplicação
do conceito de casta ao estudo das relações raciais nos EUA, feita por Lloyd
Warner ou John Dollard, por exemplo, e, por outro lado, usava a teoria das
classes sociais, na sua versão marxista estrita, para explicar o preconceito
racial. Este seria, assim, uma "atitude social propagada pela classe
exploradora com o objectivo de estigmatizar um determinado grupo como inferior,
de modo a que a exploração, quer do próprio grupo, quer dos seus recursos, ou
de ambos, possa ser justificada" (citado por Miles, 1993a: 32).
Outros autores, já citados, como van Dijk (1993: 283-292) ou Bowser (1995: 285-
309), retomam o argumento, numa versão ainda mais linear. Seriam agora as
elites dominantes brancas que, como forma de legitimarem a sua dominação,
segregariam e reproduziriam o racismo, de cima para baixo, moldando as
representações e discursos da grande maioria da população, em sociedades onde,
a julgar pelo modelo teórico implícito nos trabalhos referidos, para além de só
haver elites e massa, existiria um rigoroso traço horizontal a separar maioria
e minorias.
Poderíamos ainda filiar nesta linha de explicação a conhecida formulação de
Pierre Bourdieu segundo a qual não há um racismo, mas racismos, tantos quantos
"os grupos que têm necessidade de se justificarem existir como existem, o
que é a função invariante dos racismos". O racismo propriamente dito,
defende Bourdieu, não se distingue, na sua lógica fundamental, do chamado
"racismo da inteligência", próprio de uma classe dominante cuja
reprodução depende, em parte, da transmissão de um capital cultural, herdado e
incorporado, e por isso aparentemente natural e inato (1980: 264), nem das
justificações construídas em torno de outras formas de dominação.
É claro que não se pode desligar analiticamente o racismo, enquanto ideologia,
preconceito ou prática, das relações de poder que se estabelecem em cada
sociedade concreta. Historicamente, o colonialismo, a sociedade segregacionista
do sul dos EUA até meados do século XX ou o regime de apartheid sul-africano,
são exemplos que mostram como o racismo foi uma articulação coerente entre
construções simbólicas e práticas sociais, reciprocamente alimentadas entre si
e traduzidas na efectiva subordinação social, cultural e política de grupos
racialmente definidos. Nessa medida, a formulação de Bourdieu, em particular,
sem o simplismo e com maior alcance analítico do que as anteriormente citadas,
é certeira, pelo menos em parte.31
O que já não se pode dizer é que esse princípio explicativo se aplica à
situação das minorias étnicas e raciais nas sociedades ocidentais
contemporâneas, justamente porque, na generalidade dos casos, essas minorias
estão longe de constituir agregados homogéneos em posições socialmente
subordinadas. Além das já mencionadas minorias intermédias frequentemente
constituídas por migrantes de origem asiática com capital económico suficiente
para trabalharem por conta própria , as minorias negras têm-se, como vimos,
diferenciado progressivamente nas várias dimensões constitutivas das condições
de classe. Se as relações de poder nos diversos domínios da vida social não se
estruturam de acordo com linhas raciais, ou seja, se, do ponto de vista
classista, há nas minorias, como na maioria, dominados e dominantes, a
explicação do racismo como justificação ideológica de uma dominação de classe
deixa de fazer sentido.
Mesmo que não se esteja de acordo em catalogar como "populismo
teórico" as posições que vêem no racismo "a ideologia espontânea dos
dominantes", em contraposição ao "povo bom e inocente" que não é
portador senão de "um racismo segundo" (Taguieff, 1991: 28-29), há,
além do mais, que reconhecer, em diversas circunstâncias históricas, não só um
mas vários protagonistas de classe do racismo, não se cingindo, portanto,
apenas ao racismo dos dominantes.
O racismo das classes populares é um deles. Identificado em diversos países
europeus na actualidade (Wieviorka, 1991b; Dijk, 1987: 387), Portugal incluído
(Vala, Brito e Lopes, 1999: 186, 196), é uma variante de racismo que,
salvaguardada a distância histórica e social, era já apontada, com contornos
particulares, por Max Weber para os estados do sul dos EUA, durante o século
XIX. Na época da escravatura, dizia Weber, os brancos pobres (poor white trash)
eram "os verdadeiros portadores da antipatia racial totalmente estranha
aos donos das plantações porque a sua honra social dependia directamente da
desclassificação dos Negros" (1995 [1922]: 133-134). Autores como Myrdal
(cit. em Wieviorka: 1991: 53-54) ou Parsons (1975: 77) retomaram e reforçaram,
ao longo do século XX, o diagnóstico weberiano.
O outro é o racismo pequeno-burguês e das classes médias, em geral. Pierre
Bourdieu, no início dos anos 80, menciona-o como um racismo de tipo elementar,
vulgar, de ressentimento (op. cit.: 267), e Michel Wieviorka, mais tarde, fala
de uma deriva das camadas médias, nas quais se abre espaço para sentimentos
racistas, face a uma imigração "percebida como ameaça étnica e religiosa
(1991: 179). Ainda em França, mas em tempos mais recuados, é também nos
sectores sociais intermédios que Jean-Paul Sartre localiza os protagonistas do
anti-semitismo. Ao contrário do meio operário, onde "quase não se encontra
anti-semitismo", diz Sartre, a maioria dos anti-semitas está "nas classes
médias, ou seja, entre os homens que têm um nível de vida igual ou superior ao
dos judeus" (1999 [1954]: 41-42).
O que se pode concluir destes exemplos, que se reportam a contextos históricos
e sociais muito diferentes, mas sempre em sociedades capitalistas, não é,
obviamente, que todas as classes sociais são racistas, mas que os protagonistas
do racismo podem estar nos mais variados lugares da estrutura social. Eles
servem para mostrar que, assim como não há uma relação linear e exclusiva entre
capitalismo e racismo, também não é possível estabelecer uma relação única
entre classes dominantes e ideologias ou práticas racistas. Trata-se de um
princípio de explicação que tem demasiadas excepções para fazer regra, quer no
passado, quer, sobretudo, nas sociedades contemporâneas.32
Dadas as limitações da argumentação dos que defendem o que se considerou serem
definições inflacionadas de racismo, será caso para dizer, então, que o racismo
enquanto prática se cinge sempre a comportamentos individuais e de grupo e que
nunca alcança expressão institucional?
Não está em causa que a discriminação racial, para além de actos individuais
mais ou menos isolados, possa inscrever-se nas orientações de determinadas
instituições e, por essa via, condicionar de forma difusa e indirecta as
práticas de vários dos seus agentes. Apesar dos valores culturais e das normas
legais anti-racistas que prevalecem nas sociedades ocidentais em geral,
escolas, empresas, forças de segurança, entre outros, podem, de facto, em
determinadas circunstâncias, ser lugar de práticas discriminatórias. Não é por
isso, no entanto, que se deve considerar racista o próprio conjunto da
organização social, como fazem os defensores do conceito de racismo
institucional.
Mas a melhor resposta à questão colocada acima é a que decorre de algumas
propostas de Michel Wieviorka (1991), que, sem cair no maximalismo da ideia de
racismo institucional, chama a atenção para as circunstâncias em que o racismo
pode ser objecto de processos de institucionalização e, desse modo, atingir uma
gravidade social que transcende a dos meros actos isolados. A referência a
essas propostas finalizará a especificação que aqui se procurou fazer do
conceito de racismo nas suas três dimensões constitutivas, ou seja, ideologia,
preconceito e discriminação.
Wieviorka identifica, por um lado, o que chama "formas elementares de
racismo", a saber, preconceito, discriminação, segregação e violência, e,
por outro lado, e esse é o ponto que interessa destacar, distingue quatro
níveis de expressão possível do racismo, não necessariamente sempre presentes
infra-racismo, racismo fragmentado, racismo político e racismo de estado (1991:
83-85).33
No primeiro nível, o do infra-racismo, observa-se a presença de doutrinas, a
difusão de preconceitos e opiniões, mais xenófobos do que propriamente
racistas, pode haver violência, mas apenas pontual, e as práticas de
discriminação e segregação têm também carácter localizado. Todas estas formas
elementares aparecem, além disso, largamente desarticuladas umas das outras. No
segundo nível, embora ainda fragmentado, o racismo tem uma expressão mais clara
e afirmativa. As ideologias racistas estão mais difundidas e têm mais meios de
difusão, a violência é mais frequente, a discriminação e a segregação mais
marcadas, sem que, no entanto, se possa falar de articulação entre essas várias
formas elementares de racismo.
Uma mudança qualitativa opera-se quando o racismo passa para o nível político,
ou seja, quando ele se torna o princípio de acção de uma força política. Nesse
estádio, essa força política "capitaliza as opiniões e os preconceitos,
mas também os orienta e desenvolve; reclama-se de elementos doutrinários, que
deixam de estar marginalizados; dota-se de intelectuais orgânicos; inscreve-se
numa tradição ideológica, ou funda-a, ao mesmo tempo que apela no sentido de
medidas concretas de discriminação ou de um projecto de segregação
racial".
O último e quarto nível, finalmente, é aquele em que o próprio estado se
organiza a partir de orientações racistas, em que os que o dirigem tudo
submetem a essas orientações: "a ciência, a técnica, as instituições, mas
também a economia, os valores morais e religiosos, o passado histórico, a
expansão militar", desenvolvendo "políticas e programas de exclusão,
destruição ou discriminação maciça". O nazismo na Alemanha ou o apartheid
sul-africano são exemplos históricos desse racismo estatal, que é, portanto, um
"racismo total". (op cit.: 85)
É justamente nesse salto de um plano não-político, o dos dois primeiros níveis,
para um plano político, o dos dois últimos, que o racismo assume formas
institucionalizadas, não se reduzindo apenas a acções de indivíduos, grupos ou
instituições isoladas, mas configurando-se como um fenómeno de proporções mais
graves, por via da intervenção de "agentes de institucionalização
activa". O mais inquietante numa sociedade, diz então Wieviorka, não é a
existência de um racismo difuso, mesmo que solidamente constituído, mas a
existência de actores políticos susceptíveis de fazer o racismo passar a linha
que faz dele "uma força de mobilização colectiva, capaz, por ela própria,
eventualmente, de ir até ao poder de estado" (idem: 89).
Além de estabelecer com rigor as condições em que ele pode tornar-se objecto de
institucionalização, este modelo analítico permite também especificar o
problema da articulação entre as dimensões representacionais do racismo e o
racismo como prática. Só quando o racismo se torna político, pela acção desses
agentes de institucionalização activa, é que ideologia, preconceito e
discriminação racial tendem a convergir num padrão articulado, que pode
encontrar protagonistas nos mais variados sectores da sociedade.
Noutras circunstâncias, as que correspondem aos dois primeiros níveis
identificados por Wieviorka, o infra-racismo e o racismo fragmentado, há, no
entanto, solução de continuidade entre aquelas três dimensões, algo que as
definições inflacionadas discutidas atrás não concebem. Para estas, ou há
sempre estreita articulação e alimentação recíproca entre ideologia,
preconceito e prática, ou, então, o racismo está tão profundamente inscrito na
sociedade que esse problema nem sequer é equacionado, sendo certo que toda a
gente, excepto as minorias em questão, é protagonista do racismo.
Resta dizer que o modelo proposto por Wieviorka, embora visivelmente marcado
pela experiência da sociedade francesa e, particularmente, pela expressão
política que aí atingiu um partido como a Frente Nacional, tem uma validade
mais geral como quadro de referência para o estudo sociológico do racismo nas
sociedades contemporâneas. Sendo este um fenómeno indesejado e condenável a
todos os títulos, não há, contudo, nenhuma razão para lhe dar um tratamento
diferente do que deve ter qualquer outro que a sociologia tome como objecto.
Mais do que de ideologização e inflação de conceitos, em suma, a compreensão
sociológica do racismo precisa de especificação teórica e investigação empírica
rigorosas.
Notas
1 Ver Taguieff (1987: 130-138) e Miles (1993b: 160-161).
2 Sínteses das ideias e elementos biográficos sobre estes e outros autores na
mesma linha de pensamento podem ser encontrados em Fontette (1981: 43-72) e
Taguieff (1987: 299-307; 338-347).
3 Alguns elementos de síntese sobre o pensamento racialista europeu em
diferentes domínios do saber, nos séculos XVIII e XIX, podem encontrar-se em
Marques (1995) e Dias (1995); sobre o mesmo processo, nos domínios particulares
da biologia e da antropologia física, ver Vieira (1995).
4 Sobre Francis Galton e o eugenismo ver Shipman (1994: 100-109). Em termos
mais globais, o trabalho de Shipman faz uma apresentação e discussão detalhadas
sobre o caminho percorrido pelo conceito de raça no domínio das ciências
naturais. Para uma identificação genérica de alguns dos termos dessa discussão,
em particular na biologia e na antropologia, ver AA.VV. (1997), O que é a Raça?
Um Debate entre a Antropologia e a Biologia,Lisboa, Espaço Oikos, .
5 elaboração dessas declarações, particularmente a primeira, de 1950, não
esteve isenta de polémica científica. A crítica de biólogos e antropólogos
físicos, de que ela confundia raça enquanto facto biológico e raça enquanto
fenómeno sociológico, levou à mobilização de uma segunda comissão de peritos,
que produziu outra declaração, logo em 1951. Ver sobre isto P. van den Berghe
(1996) e Shipman (1994: 141-153), esta última relatando também episódios de
conflitualidade pessoal e de reputação profissional em torno do trabalho dessas
comissões. Os textos integrais das declarações, a composição das comissões, bem
como artigos individuais de alguns dos cientistas que participaram directamente
na sua elaboração, ou que para isso foram consultados, encontram-se em AA.VV.
(1970), Raça e Ciência, São Paulo, Editora Perspectiva, 2 volumes.
6 Para inventariação e comentários a esses conceitos, e respectivas referências
bibliográficas, ver Pettigrew e Meertens (1993), Wieviorka (1991: 90-91), Miles
(1989: 62-66), Ponterotto et al. (1993: 16-19). Pierre Bourdieu assinala também
essa mutação ideológica, dizendo que actualmente "a pulsão racista não
pode mais exprimir-se senão sob formas altamente eufemizadas" (1980: 265).
7 Claude Lévi-Strauss é um dos poucos cientistas sociais que foi convidado, por
mais de uma vez, a dar o seu contributo especializado nas já referidas
iniciativas da UNESCO de luta contra o racismo. O ensaio "Raça e
História" (Lévi-Strauss, 1980), publicado pela primeira vez em 1952, por
solicitação daquela instituição, foi seguido, duas décadas depois, por um outro
texto, "Raça e Cultura" (Lévi-Strauss, 1983: 21-48) apresentado na
conferência inaugural do Ano Internacional de Luta contra o Racismo,em 1971.
Além de criticar o já mencionado "abuso de linguagem" na definição de
racismo, nesse segundo trabalho o autor chamava a atenção que, para lutar
contra o racismo, não chegava repetir sempre os "mesmos argumentos contra
a velha antropologia física, as suas medições de esqueletos, as suas aferições
de cores de pele, olhos ou cabelo", e que essa luta pressupunha um
"diálogo largamente aberto com a genética das populações",
argumentação que lhe valeu, como conta o próprio, fortes críticas e antipatias
(op. cit.,1983: 13-16). Algumas dessas críticas, e respectivas referências
bibliográficas, podem ser encontradas em Taguieff (1987: 81-82, 246-248).
8 Sobre os termos "etnismo" e "etismo" ver Taguieff (1991:
46).
9 Importa assinalar que, no plano metodológico, o trabalho de Dijk não está
também isento de vulnerabilidades. A sua evidência empírica não é constituída
pelas múltiplas formas de comunicação interpessoal quotidiana propriamente
ditas, mas sim por entrevistas, feitas na Califórnia e na Holanda, "tão
naturais e informais quanto possível, mas que nos permitiam controlar
parcialmente os tópicos étnicos' que queríamos analisar". Apesar do
carácter indirecto e muito mediado da sua operacionalização empírica, Dijk
afirma que essas entrevistas "são suficientemente semelhantes às conversas
espontâneas para permitir conclusões acerca da natureza da conversação do dia-
a-dia sobre grupos étnicos minoritários" (idem: 18).
10 A estratégia argumentativa que consiste em descartar a investigação feita
por colegas por não ser suficientemente crítica ou radical não tem, como é
evidente, nada de científico, além de que é muito pouco ética e deontológica.
Trata-se, no entanto, de um expediente relativamente comum neste domínio de
trabalho, sobretudo nos EUA. Stanfield II e Dennis (1993), por exemplo, na
introdução a um volume onde reúnem diferentes contributos tendo em vista a
"inovação metodológica" no estudo das questões de raça e etnicidade,
não hesitam em desqualificar alguns trabalhos marcantes de sociólogos norte-
americanos, clássicos e contemporâneos, com o argumento de que o reconhecimento
profissional e público que obtiveram se deve "mais à sua conformidade com
as ideologias dominantes do que a qualquer pertinência metodológica". Se
as metodologias tradicionais forem devidamente repensadas e revistas, e se se
desenharem e aplicarem outras novas, acrescentam, "começaremos a ver as
questões étnicas e raciais tal como elas são na realidade". Os resultados
podem não ser agradáveis, dizem ainda, "mas ao menos estaremos a dizer a
verdade" (1993: 6-7). É contra este tipo de ambiente académico que Pierre
van den Berghe (1993), um dos autores incluídos num volume de testemunhos
biográficos sobre a pesquisa clássica em relações raciais nos EUA, organizado
pelo mesmo Stanfield II (1993), reage vivamente: "a psicopatologia da
culpa racial americana tem consequências devastadoras para o discurso
intelectual, bem como para as relações sociais em geral. O facto, por exemplo,
de a interpretação do que cada um diz estar contaminada pela pigmentação de
quem o diz impede a liberdade de discurso, ou seja, afecta o próprio fundamento
daquilo que é a universidade" (237).
11 Sobre a temática do anti-racismo numa "perspectiva mundial" ver
Bowser (1995). Vários estudos sobre o tema no contexto inglês podem ser
encontrados em Braham, Rattansi e Skellington (1992). Para uma desenvolvida
análise crítica dos discursos anti-racistas, nomeadamente sobre os seus pontos
de convergência com as novas formas de racismo cultural, ver Taguieff (1987).
12 A Holanda é justamente um dos países que, de acordo com os estudos de
Pettigrew e Meertens, tem uma norma anti-racismo flagrante "mais forte e
mais profundamente estabelecida" (op. cit.,1993: 125).
13 Vala, Brito e Lopes concluem, no estudo já citado, que há uma correlação
negativa entre grau de escolaridade e racismo flagrante, mas que essa
correlação não se verifica no caso do racismo subtil (op. cit.,189). Esse
resultado, a que se junta um outro, segundo o qual uma escolaridade alta,
combinada com conservadorismo político, facilita a adesão ao racismo mais
tradicional, leva os autores a dizer que se deve matizar essa correlação
negativa entre as duas variáveis comprovada por vários outros estudos (idem:
150). Deve notar-se, no entanto, relativamente ao primeiro dos dois resultados
citados, que ele não poderá deixar de reflectir, pelo menos em parte, o
problema da inadequação de vários dos indicadores usados na "escala de
racismo subtil", como foi dito anteriormente. Para um estudo recente, na
região de Lisboa, em que mais uma vez se confirma a relação inversamente
proporcional entre informação e preconceito racial, no seio de uma população
estudantil, ver Dias, Ferrer e Rigla (1997).
14 Robert Miles, que atribui o primeiro uso do conceito a Frantz Fanon, embora
com um significado diferente do actual, diz que ele é usado por alguns autores,
como Michael Banton, para designar o modo como as teorias de classificação das
raças do século XIX foram utilizadas para categorizar populações. Na medida em
que o conteúdo ideológico da noção coincide com esse "racismo
científico", racialização é sinónimo de racismo. Num sentido mais lato de
categorização social corrente, racialização não significa, no entanto,
necessariamente racismo (1989: 73-74; 1996: 307-308).
15 Vale a pena fazer também aqui menção ao tipo particular de discurso
racializante, simultaneamente intelectual, literário e político, que foi,
especialmente no mundo francófono, o do movimento da Negritude, liderado, a
partir do final dos anos 30, pelo poeta Aimé Césaire, oriundo da Martinica, e
pelo também poeta, político e, mais tarde, presidente do Senegal, Leopold
Senghor. O objectivo era a redescoberta e valorização dos "valores
africanos", como forma de contrariar a imagem negativa que o racismo dava
dos negros. A principal crítica dirigida a esse movimento foi, justamente, a de
que ele se limitava apenas a inverter os termos desse racismo branco. Jean-Paul
Sartre, em particular, no ensaio que serviu de prefácio à Anthologie de la
Nouvelle Poésie Nègre et Malgache, publicada por Senghor em 1948, questionou
expressamente o "racismo anti-racista" da Negritude, o que causou
grande consternação junto dos líderes do movimento. Sobre estas e outras
referências ao tema ver Carrilho (1975, especialmente pp. 170-176).
16 Para uma apresentação e discussão dos argumentos a favor e contra o uso de
estatísticas raciais ver Gordon (1992).
17 A crítica que Miles faz ao paradigma das "relações raciais" e aos
seus efeitos perversos de alimentação do racismo, outros fazem-na a propósito
da utilização pelas ciências sociais de conceitos como etnia e grupo étnico,
vistos como meros substitutos eufemizados da noção de raça. Assim, seria no
quadro da generalização desses conceitos nos discursos científicos, mas também
noutros discursos institucionais, que o pensamento racista se deslocaria
progressivamente de "ideias sobre a raça' para ideias sobre as diferenças
culturais e étnicas" (Vala, Brito e Lopes, 1999: 137-141).
18 A passagem para os preconceitos comuns das elaborações ideológicas racistas
mais subtis não é algo que se possa dar por adquirido. Como nota Pierre
Bourdieu, no texto já citado, as formas altamente eufemizadas do novo racismo
tornam-no quase "irreconhecível" e deixam os "novos
racistas" com um problema de comunicação da sua mensagem (op. cit.:265).
19 O livro de Carmichael e Hamilton intitula-se justamente Black Power: The
Politics of Liberation in America,e foi publicado em 1967.
20 Miles reserva o conceito de racismo institucional, num sentido mais estrito,
para designar dois tipos de circunstâncias. Por um lado, aquelas em que certas
práticas de exclusão, anteriormente justificadas por discursos racistas, deixam
de o ser, de forma explícita; por outro lado, aquelas em que "discursos
explicitamente racistas são modificados, de forma a eliminar o conteúdo racista
explícito, mas em que outras palavras transportam o sentido originário"
(1989: 84-85). Em qualquer dos casos, Miles toma como exemplo a legislação
britânica sobre estrangeiros e a sua evolução ao longo do século XX. Trata-se,
contudo, de uma definição que não é clara, que não é ilustrada por outros
exemplos, e sobre a qual, além disso, Miles não aprofunda muito a argumentação.
21 Um exemplo paradigmático de inflação conceptual é tomar-se como ilustração
inequívoca de racismo institucional (Cashmore, 1996b) o caso das oito
associações ambientalistas norte-americanas acusadas, em 1990, por um grupo de
activistas de direitos civis, de serem racistas nas suas práticas de
recrutamento, uma vez que, entre os seus responsáveis e técnicos, havia um
número muito baixo de negros, latinos e membros de outros grupos minoritários.
22 O texto em questão intitula-se "Discrimination and the american
creed" e foi publicado, em 1948, numa colectânea organizada por R. M.
MacIver, Discrimination and National Welfare, Nova Iorque, Harper and Brothers,
pp. 66-126. Uma rápida síntese do conteúdo deste trabalho pode ser encontrada
em Crothers (1994: 97-98).
23 Outros autores, como Allport ou Klineberg, retomaram, mais tarde, a
tipologia mertoniana (cf. Taguieff, 1987: 252-253).
24 Os trabalhos referidos são os seguintes: Robert E. Park (1982), "The
basis of race prejudice", The American Negro, The Annals of the American
Academy of Political and Social Sciences, vol. 140; W. Lloyd Warner (1936),
"American caste and class", American Journal of Sociology, vol. 42,
n.º2.
25 Vale a pena dizer que essas não foram, no entanto, as primeiras críticas de
que a noção de melting pot foi alvo. Os primeiros a atacá-la, e sobretudo o
processo que ela designava, foram, nas primeiras décadas do século XX, figuras
proeminentes dos meios racistas e eugenistas norte-americanos. Preocupava-os a
chegada de cada vez mais imigrantes europeus, já não exclusivamente membros da
"raça nórdica", mas sim italianos "predispostos a crimes de
violência pessoal" ou gregos e sérvios "desmazelados", que
ameaçavam de degeneração racial e cultural a sociedade norte-americana (cf.
Shipman, 1994: 111-114). Se a crítica posterior da ideia de melting pot tem
como argumento um défice de integração (o da população negra), a crítica
inicial, como se vê, toma como argumento o excesso de integração. Se o
tristemente célebre genocídio dos judeus pelos nazis alemães não bastasse, este
exemplo serve também para mostrar que, ao contrário do que as definições e os
estudos sobre o tema foram estabelecendo especialmente na sociologia de língua
inglesa, o racismo não é um fenómeno apenas de brancos contra negros. Robert
Miles, chamando justamente a atenção para a forma como a inflação conceptual do
racismo foi acompanhada por este "estreitamento do seu campo de
aplicação", refere, na mesma linha, que os migrantes irlandeses em
Inglaterra, no século XIX, eram também definidos como uma "raça
inferior"(1989: 52, 60).
26 O livro de E. Franklin Frazier, The Black Bourgeoisie: the Rise of the New
Middle Class, publicado em 1957, em Nova Iorque, pela editora Free Press, é o
primeiro trabalho exclusivamente dedicado à análise da diferenciação classista
interna da população negra norte-americana.
27 Vale a pena acrescentar aqui que, nos anos 80, o conceito foi objecto de
grande politização, em particular com a sua apropriação pelos discursos da
direita mais liberal, que passou a tomá-lo como sinónimo de dependência crónica
e usufruto indevido das prestações sociais do estado-providência. Por essa
razão, "alguns autores de esquerda recusam-se agora a usar o conceito, não
com base no facto de não descrever uma realidade, mas devido à associação que é
feita com críticas de direita à previdência social" (cf. Giddens, 1997:
126-129).
28 Para críticas adicionais e circunstanciadas a Wilson, nomeadamente ao seu
alegado papel de justificação do fim das medidas de discriminação positiva dos
negros, ver Steinberg (1997). Numa fase posterior, Wilson parece, no entanto,
ter visto a sua reputação mudar, mesmo nos círculos que antes o condenavam.
Depois de ter sido violentamente criticado pela Associação dos Sociólogos
Negros Norte-Americanos, nos finais dos anos 70, esta outorgou-lhe, no
princípio dos anos 90, a sua mais alta distinção (cf. Wieviorka, op. cit.:
116).
29 O "Imposto Negro" ("Black Tax"), segundo as próprias
palavras de Small, "refere-se à ideia de que os negros com sucesso deviam
contribuir em dinheiro ou em espécie para ajudar pessoas negras menos bem
sucedidas; que deviam pagar um imposto' que beneficiasse directamente os
negros pobres" (op. cit.:218).
30 (1948), Caste, Class and Race: A Study in Social Dynamics, Nova Iorque,
Doubleday.
31 Se tem o mérito de identificar um fundo comum a vários tipos de dominação, a
posição de Bourdieu não deixa, no entanto, de representar uma forma de inflação
e, ao mesmo tempo, de diluição conceptual. O racismo propriamente dito deixaria
de se distinguir de um "racismo" de classe ou de um
"racismo" de género, por exemplo. José Madureira Pinto considera-
a "uma posição extremada" (1994: 137) e Pierre-André Taguieff,
referindo-se especificamente ao contexto francês da década de 70 e citando
Bourdieu, entre outros autores, critica, mais genericamente, a tendência de
racização de múltiplas categorias sociais nos discursos correntes:
"jovens, idosos, desempregados, homossexuais, mulheres, patrões, judeus,
polícias, seriam categorizáveis como raças' ou como' equivalentes de
raças'" (1987: 54-55).
32 Importa ainda não esquecer que as explicações do racismo como produto do
capitalismo, e como justificação ideológica para a sobreexploração económica de
determinadas minorias étnicas ou raciais, deixam de fora todos aqueles casos em
que racismo coincide com extermínio dos que dele são alvo, como aconteceu com o
genocídio dos judeus pelos nazis alemães.
33 É de referir que também para o conceito de violência não faltam exemplos de
definições inflacionadas. Assim, a definição corrente, que designa acções de
ataque físico aberto a indivíduos, grupos e/ou aos seus bens, é contestada por
alguns autores por ser, ao mesmo tempo, demasiado restrita e demasiado lata.
Tomando como referência a sociedade inglesa, Barry Troyna (1996: 154-156) acha
essa definição demasiado restrita por não considerar outras formas de
violência, mais subtis mas "não menos intimidatórias", como "o
graffitiou outros insultos escritos, o abuso verbal, o desrespeito face a
diferenças em termos de música, alimentação, vestuário ou costumes, a má
pronunciação deliberada de nomes ou a imitação do sotaque". Considera-a,
por outro lado, demasiado lata porque trata por igual os ataques raciais,
independentemente da cor das vítimas e dos agressores. Troyna entende que os
ataques de brancos a negros não se podem equiparar aos que têm sentido
contrário, ou aos que ocorrem entre membros de minorias diferentes, porque os
primeiros fazem parte de uma "ideologia coerente de opressão", e
designar todos por igual significa não reconhecer a "assimetria de
relações" entre brancos e negros.