Relações entre mundo rural e mundo urbano: evolução histórica, situação actual
e pistas para o futuro
Este texto tem como finalidade identificar linhas de intervenção que favoreçam
o estabelecimento de relações de maior complementaridade e simbiose entre os
mundos rural e urbano.1
Com este objectivo presente, efectua-se, num primeiro ponto, uma reconstituição
sintética das relações rural-urbano que historicamente dominaram nos países
europeus, de forma a salientar as principais inflexões ocorridas ao longo do
tempo e o seu significado.
Num segundo ponto, sublinham-se os traços mais marcantes das situações hoje
prevalecentes, interpretando-os à luz da breve reconstituição histórica
anteriormente apresentada.
Por último, no terceiro ponto, propõem-se algumas linhas estratégicas de
intervenção, visando o estabelecimento de uma nova geração de relações de
complementaridade entre o mundo rural e o mundo urbano.
Relações rural-urbano: uma história que importa compreender
A velha oposição entre o mundo rural e o mundo urbano: complementaridade e
simbiose?
Historicamente, o mundo rural destaca-se por se organizar em torno de uma
tetralogia de aspectos bem conhecida:
- uma função principal: a produção de alimentos;
- uma actividade económica dominante: a agricultura;
- um grupo social de referência: a família camponesa, com modos de vida,
valores e comportamentos próprios;
- um tipo de paisagemque reflecte a conquista de equilíbrios entre as
características naturais e o tipo de actividades humanas desenvolvidas.
Este mundo rural secular opõe-se claramente ao mundo urbano, marcado por
funções, actividades, grupos sociais e paisagens não só distintos mas, mais do
que isso, em grande medida construídos "contra" o mundo rural. Esta
oposição tende a ser encarada como "natural" e, por isso,
recorrentemente associada a relações de natureza simbiótica: campo e cidade são
complementares e mantêm um relacionamento estável num contexto (aparentemente?)
marcado pelo equilíbrio e pela harmonia de conjunto.
Mundo rural arcaico e mundo urbano-industrial moderno: complementaridade
e assimetria
A revolução industrial iniciada no século XVIII veio alterar a situação
anterior. Na realidade, a emergência de uma nova sociedade urbano-industrial
acarretou duas consequências principais para as áreas rurais. Por um lado,
inicia-se um acentuado processo de perda de centralidade económica, social e
simbólica por parte do mundo rural. Por outro lado, este tende a ser
globalmente identificado com realidades arcaicas, enquanto as aglomerações
urbano-industriais são vistas como o palco, por excelência, do progresso.
A relação rural-urbano não pode deixar de reflectir esta alteração profunda,
forjando-se novas complementaridades e modificando-se a sua natureza.
À produção de bens alimentares que se destinam agora, de forma crescente, a
abastecer mercados urbanos e ao papel de refúgio e segurança que as áreas
rurais sempre desempenharam em épocas de crise para as populações citadinas,
adiciona-se uma nova função-chave: a de fornecimento de mão-de-obra
desqualificada e barata para as actividades económicas em acelerado crescimento
nas cidades.
Simultaneamente, o facto de a expansão das infra-estruturas e dos equipamentos
de apoio à qualidade de vida dos cidadãos ser muito mais rápida nas
aglomerações urbanas reforça o papel das cidades como pólos de prestação de
serviços pessoais e sociais.
Diversificam-se, pois, as relações de complementaridade rural-urbano, ao mesmo
tempo que a sua tradicional natureza (aparentemente?) simbiótica vai dando
lugar a interdependências cada vez mais reconhecidas como assimétricas. Em
consequência, a cidade organicamente integrada em áreas rurais perde
importância relativa face à emergência de aglomerações urbano-industriais mais
"autónomas" e com maior capacidade de polarizar, do ponto de vista
funcional, as áreas envolventes.
Mudam-se os tempos, mudam-se as relações: a nova dicotomia pós-rural/urbano
A industrialização da agricultura, particularmente visível a partir do final da
2.ª Guerra Mundial, veio introduzir uma nova inflexão importante, ao fracturar
o mundo rural em duas realidades bem distintas: o mundo rural moderno e o mundo
rural tradicional. Pela primeira vez na história da humanidade, a oposição
rural-urbano começa a não ser vista como a mais decisiva, na medida em que a
modernidade deixa de constituir um exclusivo das áreas urbanas.
Começa, assim, a ganhar consistência uma nova dicotomia pós-rural/urbano, que
valoriza antes a oposição existente entre um mundo moderno (que pode ser
urbano-industrial ou rural) e um mundo arcaico (predominantemente rural). É
verdade que continua a persistir a ideia de que o mundo rural se encontra num
processo estrutural de marginalização económica, social e simbólica. Mas a
forte mercantilização da produção agrícola em massa vem deslocar a fronteira
das grandes oposições, chamando a atenção para o facto de nem todas as áreas
rurais estarem condenadas aos processos de agonia do "velho" mundo
tradicional.
Neste novo contexto, a relação rural-urbano bifurca-se, dando origem a uma
partição das áreas rurais em função da sua proximidade (física mas também
funcional e socioeconómica) aos principais centros urbanos. A diferenciação
entre áreas rurais "centrais", "periféricas" e
"marginais" ou ainda a designação de "áreas rurais
profundas" evidenciam, com clareza, esta nova situação.
Entre os centros urbanos e as áreas rurais "centrais" ou
"periféricas" prossegue a tendência anterior de diversificação de
relações de complementaridade desenvolvidas num quadro fortemente assimétrico.
Pelo contrário, entre o mundo urbano e as áreas rurais "marginais" ou
"profundas" as relações de complementaridade activa vão-se
dissipando, já que estas últimas, alvo de uma sangria continuada de pessoas e
recursos e com condições de acessibilidade particularmente desfavoráveis, pouco
interesse despertam nos citadinos.
A invenção do mundo rural não agrícola: redescobrir velhas complementaridades,
gerir espaços patrimoniais de baixa densidade
Nos anos 80 assiste-se à invenção social de uma nova realidade: o mundo rural
não agrícola.Esta perspectiva introduz elementos novos no modo de encarar os
mundos rural e urbano, em si e na forma como se relacionam.
Em primeiro lugar, rompe-se explicita e deliberadamente com dois dos elementos
da tetralogia secularmente associada ao mundo rural: a sua função principal não
tem de ser necessariamente a produção de alimentos e a actividade predominante
pode não ser agrícola. Esta disjunção entre mundo rural e agricultura é
assumida como possível e até desejável, como a política comunitária de set
aside ou a proliferação de parques naturais em áreas anteriormente agricultadas
bem o demonstram.
Em segundo lugar, a valorização da dimensão não agrícola do mundo rural é
socialmente construída a partir da ideia de património. Verifica-se, de facto,
a ocorrência de três tendências que, por motivos parcialmente autónomos,
convergem num mesmo sentido:
- movimento de renaturalização, centrado na conservação e protecção da
natureza, aspectos agora hipervalorizados no âmbito do debate sobre os
processos de desenvolvimento sustentável;
- a procura de autenticidade, que leva a encarar a conservação e a protecção
dos patrimónios históricos e culturais como vias privilegiadas para valorizar
memórias e identidades capazes de enfrentar as tendências uniformizadoras
desencadeadas pelos processos de mundialização;
- a mercantilização das paisagens, como resposta à rápida expansão de novas
práticas de consumo decorrentes do aumento dos tempos livres, da melhoria do
nível de vida de importantes segmentos da população e, como consequência, da
valorização das actividades de turismo e lazer.
Em terceiro lugar, deve referir-se que esta nova visão do mundo rural assume
como inevitáveis e correctas as práticas de pluriactividade e de pluri-
rendimento das famílias camponesas, há muito identificadas por numerosos
investigadores, enquadrando-as numa estratégia mais ampla de transformação do
mundo rural em espaços multifuncionais com valor patrimonial. Abre-se, assim,
um novo debate: as actividades que contribuem para manter vivo o mundo rural
devem ser remuneradas não apenas pelo seu valor económico mas também pelas
funções sociais e ambientais que asseguram.
Finalmente, e em quarto lugar, a problemática do mundo rural profundo foi sendo
crescentemente abordada à luz de uma nova concepção: a dos espaços de baixa
densidade, não só física,associada ao despovoamento intenso que caracteriza
estas áreas, mas também relacional. Populações envelhecidas, empresas de
reduzida dimensão e com funcionamento atomizado, ausência de movimentos
significativos de associativismo ou ainda instituições públicas pouco dinâmicas
transformam estas áreas em espaços sem a "espessura" social,
económica e institucional necessária para suportar estratégias endógenas de
desenvolvimento sustentadas no tempo.
A ideia de um mundo rural não agrícola que importa preservar ou que se vende
em virtude do seu valor patrimonial vem alterar, uma vez mais, as relações
urbano-rural. Pelo menos ao nível simbólico e do discurso político, a
"cidade" ou melhor, a franja mais escolarizada da população urbana
recupera o velho mundo rural, crescentemente reduzido, no entanto, a um dos
elementos da velha tetralogia que tradicionalmente o caracterizou: a paisagem.
Esta perspectiva vai deixando, ainda que de forma implícita, um indício claro:
é na procura urbana que parece residir o essencial da evolução futura das áreas
rurais onde a actividade agrícola orientada para o mercado não alcança uma
expressão significativa.
Aprender com a história: a situação actual
A evolução sumariamente apresentada nos pontos anteriores permite identificar
com maior clareza as situações-chave que as relações mundo rural-mundo urbano
revelam hoje:
- a fronteira mais relevante separa espaços directamente integrados na área de
influência das grandes cidades e espaços marginais a essa influência, não
coincidindo, portanto, com a tradicional dicotomia urbano-rural ou, na sua
versão mais simples, cidade-campo;
- as realidades actualmente designadas por "regiões urbanas" incluem
espaços urbanos, suburbanos, rurais agrícolas e rurais não agrícolas,
articulados sistematicamente entre si, nuns casos de forma conflituosa
(suburbanização depredadora de usos do solo e património não urbanos, por
exemplo) mas noutros de forma simbiótica (corredores verdes, regeneração
urbanística e socioeconómica de espaços construídos tradicionais, etc.),
recuperando-se, nestes últimos, algumas componentes da complementaridade que
caracterizou a relação tradicional urbano-rural;
- omundo rural exterior às "regiões urbanas" defronta-se com uma
contradição evidente: a valorização simbólica e política que lhe é hoje
atribuída no contexto dos discursos patrimonialistas contrasta com a
fragilidade de meios efectivamente mobilizáveis nesse sentido, com a escassez
de resultados entretanto obtidos (a mero título de exemplo, veja-se o impacte
reduzido das iniciativas de turismo rural, tanto em termos de criação de
emprego como de geração de rendimentos adicionais para as famílias) e com a
estreita dependência de práticas de consumo urbanas cuja durabilidade está
longe de corresponder a uma realidade incontroversa.
As situações detectadas apontam para uma conclusão aparentemente incontornável:
o futuro dos "mundos rurais" decide-se, no essencial, em sede urbana.
Se contra factos não há argumentos, então a questão a colocar parece ser a
seguinte: como gerir a procura e a oferta urbanas a favor dos vários mundos
rurais?
Para uma nova relação entre o mundo rural e o mundo urbano: algumas pistas
A construção de uma nova relação rural-urbano desenvolvida na óptica dos
espaços rurais poderá assentar em dois objectivos de âmbito geral:
- consolidar relações de proximidade mutuamente benéficas e de natureza
sinergética em detrimento de relações assimétricas e predadoras do mundo rural;
- transformar as cidades em pontes efectivas entre as áreas rurais e o mundo
exterior.
Enunciado de um ponto de vista económico, o primeiro aspecto corresponde ao
esforço de transformar a massa crítica de recursos urbanos (humanos,
institucionais, físicos, etc.) em externalidades positivas que as populações e
as organizações do mundo rural conseguem parcialmente internalizar.
De facto, sendo a baixa densidade física e relacional um dos problemas
principais de grande parte das áreas rurais, importa rediscutir a questão das
condições de acesso a infra-estruturas, equipamentos, serviços e competências
cujo grau de especialização é incompatível com uma localização rural ou, pelo
menos, com os tradicionais padrões dispersos de distribuição geográfica. Este
aspecto é tanto mais importante quanto ele hoje se coloca, já, para
equipamentos relativamente banais: veja-se, a título de exemplo, o caso das
escolas do 1.º ciclo de escolaridade obrigatória, alvo de um processo de
encerramento que, nalgumas áreas, se pode mesmo considerar como generalizado.
Neste contexto, falar de condições de acessoa infra-estruturas, equipamentos,
serviços e competências implica uma atenção particular a todas as iniciativas
que favoreçam o estabelecimento de redes individuais e institucionais, a
mobilidade de pessoas, bens e conhecimentos e o desenvolvimento de soluções
locais multiuso. Só assim a inexistência de limiares mínimos de funcionamento
por escassez de recursos e de procura poderá ser, senão superada, pelo menos
minimizada.
O desenvolvimento de relações de proximidade mutuamente benéficas e de natureza
sinergética pressupõe a capacidade de conciliar uma articulação territorial
(coesão) e uma articulação funcional (integração) entre centros urbanos e áreas
rurais envolventes. Estas duas articulações, que se deverão reforçar
reciprocamente, pressupõem a capacidade de actuar aos seguintes níveis:
- adoptar a perspectiva de "bio-região", em que os espaços naturais
asseguram continuuns rural-urbano não apenas por razões estéticas e de fruição
visual das populações citadinas mas, factor mais importante, como garantia de
funcionamento de processos ecológicos básicos (ciclo hidrológico e respectivas
redes de drenagem, por exemplo), isto é, como medida cautelar de preservação de
ecossistemas e de sustentabilidade ambiental;
- estimular a construção de imagens mentais e representações sociais que
considerem os centros urbanos e as áreas rurais vizinhas como uma mesma região
cognitiva, evitando que se generalizem as concepções de "cidades
fortaleza", aglomerações bem integradas em redes nacionais e mesmo
internacionais mas isoladas das suas envolventes imediatas, e, no pólo oposto,
de áreas rurais intersticiais, de natureza inevitavelmente residual e com
escassa visibilidade própria;
- garantir a oferta pública de serviços especializados úteis às populações e
organizações das áreas rurais em condições de fácil acesso, tanto do ponto de
vista físico (acessibilidade) como social (mobilidade, "proximidade
cultural") e económico (custos de deslocação e de comunicação);
- estimular e facilitar a construção de parcerias de proximidade que constituam
redes de produção e disseminação de informação, aprendizagens e conhecimentos
estrategicamente relevantes para as populações e as organizações das áreas
rurais;
- recorrer, de forma sistemática, às potencialidades das novas tecnologias de
informação e comunicação, tanto ao nível da prestação dos serviços públicos
universais (telemedicina, ensino pré-escolar, formação de adultos, etc.) como
de iniciativas visando objectivos de coesão social (integração cívica dos
jovens) ou de competitividade económica (telecentros rurais, comércio
electrónico de produtos regionais, etc.), numa óptica que concilie o
relacionamento à distância com o contacto presencial;
-garantir uma articulação eficiente entre políticas de ordenamento do
território e conservação da natureza, de desenvolvimento rural, de
desenvolvimento regional e de desenvolvimento urbano, nomeadamente em torno dos
conceitos de cidade média e de rede urbana complementar;
- conceber uma logística para o mundo rural capaz de articular, selectivamente,
aspectos dos pontos anteriores em função das prioridades e das potencialidades
de cada área.
Por comparação com o passado recente, torna-se evidente que a reformulação das
relações que se estabelecem entre os mundos rural e urbano depende,
crescentemente, da capacidade de identificar e concretizar soluções
organizacionais adequadas.
O exemplo das escolas do 1.º ciclo de escolaridade obrigatória, pelo seu nível
básico, constitui, uma vez mais, uma boa ilustração dos problemas em causa.
Face à drástica diminuição da procura, decorrente do envelhecimento das
populações, e ao padrão de grande dispersão geográfica que caracteriza este
tipo de estabelecimentos, a reorganização da rede escolar constitui um
imperativo impossível de ignorar. A solução "tradicional" de prover
localmente serviços de natureza universal dá agora lugar a um outro tipo de
abordagem, de maior complexidade. Na realidade, a reconfiguração da rede
escolar do 1.º ciclo deverá conciliar um leque diversificado de estratégias:
encerramento de estabelecimentos, recentralização em escolas com melhor
acessibilidade, constituição de redes de escolas próximas com base na
mobilidade de docentes e/ou alunos, integração em equipamentos multiuso
(infantário, centro de dia, centro de saúde, ), etc.
Esta abordagem implica uma visão de conjunto das áreas geográficas de
intervenção, uma forte capacidade de diálogo institucional e ainda a existência
de condições humanas, técnicas e financeiras de monitorizaçãodas soluções
concretizadas.
A ênfase atribuída à componente organizacional e institucional impõe, ainda,
que se abandonem as abordagens tradicionais baseadas exclusivamente numa óptica
de procura ou de oferta.
No primeiro caso, em que as iniciativas se desenvolvem como resposta a procuras
expressas, corre-se o risco de inviabilizar o surgimento de qualquer novo
empreendimento, dada a debilidade sociocultural, económica e demográfica que
caracteriza um grande número de áreas rurais. Nesta situação, prevalece a
lógica de mercado em detrimento de uma perspectiva de necessidades sociais.
No segundo caso, a concretização de projectos voluntaristas que ignoram as
condições reais da procura local leva a situações de sobre-equipamento e de
esbanjamento de recursos públicos. Nesta perspectiva, valoriza-se demasiado o
impacte espontâneo da oferta sobre a procura, ignorando quer os pressupostos de
mercado quer a óptica das necessidades sentidas por populações ou organizações
com características e motivações que importa conhecer previamente.
A alternativa a estas duas abordagens reside na gestão da procura. Importa
alterar atitudes e comportamentos por parte das pessoas e das organizações e
melhorar as condições reais de acesso, não apenas físico (distância geográfica
e distância-tempo) mas também económico (distância-custo) e social (distância
cultural), a infra-estruturas, equipamentos e serviços não locais mas de
proximidade sub-regional ou até regional.
Só esta visão poderá evitar a falsa alternativa entre duas opções extremas:
manter, a qualquer preço, iniciativas sem qualquer viabilidade económico-
financeira ou encerrar e impedir a criação de novas estruturas incapazes de
sobreviver em termos de mercado.
O exemplo do serviço de transporte posto gratuitamente à disposição das
populações por algumas grandes superfícies comerciais localizadas em áreas
rurais ou em aglomerados urbanos de média e reduzida dimensão constitui um
exemplo que, neste contexto, merece ser considerado relevante. Mas muitas
outras soluções, de natureza mais ou menos complexa, podem igualmente ser
invocadas, confirmando que a dimensão organizacional tende a ganhar um
reconhecimento indiscutível enquanto factor viabilizador de iniciativas que
façam reverter para o mundo rural os benefícios das economias de escala e de
gama que apenas os centros urbanos podem garantir.
O segundo objectivo geral transformar as cidades em pontes efectivas entre as
áreas rurais e o mundo exterior - constitui, afinal, o corolário da afirmação
anterior.
O essencial das instituições de interface, sejam elas públicas, associativas ou
privadas, localiza-se em áreas urbanas. Da mesma forma, as principais infra-
estruturas de internacionalização privilegiam as cidades.
É verdade que os meios urbanos não detêm o exclusivo da implantação deste tipo
de instituições e infra-estruturas. Mas não é menos certo que a sua existência,
e sobretudo a sua convivência, é estruturalmente urbana. Assim sendo, uma
relação de complementaridade menos assimétrica e mais simbiótica entre as
populações e as organizações dos mundos rural e urbano implica que os meios
urbanos funcionem como veículo redistribuidor entre as áreas rurais e o mundo
exterior, tanto de forma ascendente (condições de mobilidade e de acesso a
mercados distantes) como descendente (condições de atracção e de disseminação
ao nível local).
Esta função redistributiva dos meios urbanos em relação a pessoas e
organizações localizadas em áreas rurais depende grandemente da disponibilidade
evidenciada por parte das instituições existentes para integrarem, nos seus
perfis de competências e nos seus programas de actividade, as necessidades e os
interesses do mundo rural.
Neste contexto, a missão extensionista, que tão útil se revelou no que se
refere às actividades agrícolas, é importante mas insuficiente. De facto, o
patamar de exigência nos dias de hoje deve ser outro: colocar na agendadas
instituições de sede urbana os problemas do mundo rural. Ora todos os estudos
de agenda-setting mostram que o papel dos órgãos de comunicação social e dos
movimentos de opinião pública é decisivo para que determinados assuntos ganhem
não só visibilidade mas também notoriedade, reconhecimento social e
credibilidade.
Identificamos, assim, novos elementos que, não sendo exclusivamente urbanos,
aqui encontram, no entanto, condições mais favoráveis para se desenvolver:
comunicação social e opinião pública. Esta é, talvez, a última fronteira capaz
de travar a multiplicação de mundos rurais marginais ou agonizantes. De facto,
o essencial das intervenções assinaladas ao longo do terceiro ponto deste texto
pressupõe uma cultura cívica favorável ao mundo rural, não apenas de forma
platónica e nostálgica, mas de um modo pragmaticamente capaz de servir as
necessidades de quem aí vive e trabalha.
Neste sentido, é possível defender que os meios urbanos serão uma ponte entre
as áreas rurais e o mundo exterior, tanto mais eficiente quanto conseguirem
transformar-se em focos de uma cultura de ruralidade susceptível de contribuir
não só para consolidar a visão patrimonialista actualmente dominante mas,
também, para a ultrapassar, reintroduzindo a componente produtiva com a
centralidade que esta merece.
Notas
1 Este texto tem uma dupla origem: por um lado, traduz algumas das ideias
expostas numa comunicação apresentada no Congresso Internacional de Geografia
Rural "O mundo rural: desafios para o século XXI", organizado pela
Faculdade de Letras da Universidade do Porto em 21-23 de Outubro de 1999; por
outro lado, corresponde a um conjunto de notas redigidas a pedido da equipa
portuguesa responsável pelo estudo de avaliação intercalar do programa de
iniciativa comunitária "Leader II". Aos coordenadores de ambas as
iniciativas agradeço terem-me "obrigado" a sistematizar algumas
ideias que até aí não passavam de intuições e hipóteses pouco organizadas.
Agradeço ainda a Aida Valadas de Lima os comentários efectuados a uma primeira
versão deste texto.