Home   |   Structure   |   Research   |   Resources   |   Members   |   Training   |   Activities   |   Contact

EN | PT

EuPTHUHu0873-65292001000200002

EuPTHUHu0873-65292001000200002

National varietyEu
Year2001
SourceScielo

Javascript seems to be turned off, or there was a communication error. Turn on Javascript for more display options.

Consequências do realismo na construção de teoria sociológica

Just don't get too complicated, Eddie (Sociology). When a man gets too complicated, he is unhappy. And when he is unhappy, his luck runs out. (Raymond Chandler) Os sociólogos voltaram, uma vez mais, aos debates metateóricos sobre a sua disciplina, em termos de crise, de objectivos e propósitos fundamentais, de núcleos e identidades.1 Vê-se hoje defendida com frequência a ideia de que, internamente, o campo se está a tornar demasiado fragmentado e de que,externamente, a procura de conhecimento sociológico está a diminuir. A nível interno, a disciplina é marcada pelo que Donald Levine (1997: 1) chama "confusão pluralista". Segundo Irving Horowitz, "a sociologia degenerou em puro empirismo, deixando de ser guiada por perspectivas teóricas credíveis" (em Giddens, 1996: 2). Na Suécia, Göran Ahrne (1997: 225) declara que "decorre na sociologia um processo de fragmentação, abrangendo teorias e métodos, tal como objectos de estudo" e, na Noruega, Fredrik Engelstad (1996: 225) escreve que a sociologia está "encurralada entre compromissos políticos, por um lado, e uma pseudofilosofia atraente, por outro". Entretanto, em Inglaterra, Nicos Mouzelis (1995: 6) lamenta que "a teorização sociológica tenha dado lugar a discussões amadoras sobre temas ontológicos/epistemológicos e a tentativas de reduzir o estudo das sociedades complexas a investigações sobre a linguagem, o discurso, os textos, o inconsciente, entre outras". Barry Barnes (1995: 1) assinala o desânimo provocado pelo facto de aquilo que actualmente existe como teoria sociológica ser "uma imitação de teoria, um substituto para a teoria, uma amálgama de crítica, filosofia, taxonomia, história, biografia de teóricos, ou seja, praticamente tudo excepto teoria propriamente dita".

Como consequência, a sociologia parece envolta num processo de fragmentação.

Claro que este espectro de direcções pode ser entendido como algo interessante e enriquecedor, um sinal de que a disciplina está na ordem do dia, mas pode também ser visto como um fenómeno negativo, ou mesmo redutor, no sentido em que uma possível identidade da disciplina parece dissolver-se. Neste artigo, irei abordar a questão nesta segunda perspectiva, tomando a fragmentação da sociologia como um problema. Relativamente, quer ao problema, quer a possíveis soluções, sustento duas convicções: · a sociologia precisa decididamente de uma nova filosofia da ciência que contribua para a sua estabilização, sobretudo fornecendo bases para a criação de uma plataforma comum e de um objectivo partilhado pelos diversos sociólogos.

· O calcanhar de Aquiles da sociologia contemporânea consiste no seu fraco desenvolvimento teórico, pelo que a disciplina deve ser reforçada no que respeita à teoria sociológica(não se limitando a adaptar teorias de outras disciplinas).2 Torna-se, pois, imprescindível que a sociologia procure ser uma ciência explicativa, empenhando-se num aprofundamento do conhecimento teórico.

Para isso, é fundamental, primeiro que tudo, uma elaboração teórica do objecto da sociologia, entendido como demarcação e definição de uma realidade cuja teoria sociológica pretende explicar, que não é necessariamente a mesma que a realidade espontaneamente observada, mas que tem a ver com objectos de estudo ou modelos específicos.3 Nas páginas que se seguem, voltarei um pouco atrás, começando por algumas considerações sobre a relação actual entre a sociologia e as filosofias da ciência. Posteriormente, preocupar-me-ei em apresentar uma filosofia alternativa, ou metateoria, para a sociologia, baseada no realismo crítico, mas a que chamei "realismo causal" como se verá adiante, o realismo causal pode ser visto como uma subcategoria do realismo crítico. Por fim, serão enunciadas e discutidas algumas implicações do realismo causalna sociologia, dando particular importância à construção de uma estratégia que aumente a ambição e a capacidade da sociologia em desenvolver teoria.

Devo ainda referir que, originalmente, a ideia deste artigo seria apresentar uma linha de pensamento, mantendo-se à parte de pequenos detalhes, possíveis objecções, e por fora. (Parafraseando Nietzsche: disponho-me a filosofar com um machado, não com pinças). Contudo, algumas discussões sobre este tema mostraram-me que isso é praticamente impossível: objecções-tipo surgem frequentemente, desviando o debate dos tópicos centrais. Por conseguinte, este artigo inclui um denso conjunto de notas finais dedicadas à consideração de alguns comentários críticos. Talvez deva também mencionar que nada de novo será apresentado seguidamente. Pelo contrário, orientado pelas duas proposições acima enunciadas, dedicar-me-ei a reorganizar peças de um velho puzzle.

Filosofias da ciência e sociologia A filosofia de uma ciência constitui a sua superestrutura específica, no sentido em que determina um quadro teórico através do qual a ciência em questão é apreendida e compreendida e os critérios científicos são formulados. Uma estrutura teórica envolve, simultaneamente, limitações e potencialidades.

Define aquilo que é ou não científico, bem como aponta os métodos legítimos, os tipos de soluções adequadas, os problemas relevantes, etc.; em suma, apresenta um conjunto de critérios, regras, questões e modos de procedimento. Além disso, e utilizando a terminologia de Imre Lakatos (1970), uma filosofia da ciência pode, durante uma fase, desempenhar uma influência estimulante numa determinada disciplina, passando posteriormente a ter efeitos de estagnação ou até de degeneração.

O positivismo lógico, formulado pelo Círculo de Viena durante os anos 20, constituiu uma forte reacção ao neo-romantismo e às tendências especulativas que marcaram o século XIX, muito influenciados por Hegel. Colocando a ênfase na verificabilidade empírica, contrapôs-se assim à pura divagação metafísica.

Neste sentido, impulsionou o progresso científico, limitando o alcance do discurso científico e abrindo, paralelamente, um enorme campo de possibilidades através da importância dada à ancoragem empírica. Contudo, numa fase avançada do século XX, o positivismo nas ciências sociais passou a ser sinónimo de observação, quantificação e medição, com frequência como se fossem "auto- suficientes" na sua justificação. Ser científico tornou-se uma limitação associada a um determinado método, segundo o qual a estatística e os programas informáticos avançados se assumem frequentemente enquanto valores principais da pesquisa. (Na verdade, a ênfase colocada nas medições e nos números, proposta por Hume, Kelvin e outros "antimetafísicos", parece ter sido transformada numa nova doutrina científico-social. Como se a estratégia de Hume (1748/1999), bem patente no neologismo "Contém esta teoria algum raciocínio abstracto relacionado com quantidades ou números? Não então, atirem-na à fogueira", tivesse sido convertida em "Se não é possível quantificar um dado fenómeno, quantifiquem-no de qualquer maneira"). Uma das principais explicações para esta tendência reside no desenvolvimento, na área da informática, de sofisticados programas de análise de dados que reduziram a metodologia quantitativa a um ramo da estatística. O resultado parece ser que, como assinala Aage Sörenssen (1998: 238), "a sociologia quantitativa é actualmente menos informada teoricamente e menos relevante para o progresso teórico do que era três décadas atrás". Paradoxalmente, a ambição antimetafísica ou positivista de ser científico acabou assim, em algumas situações, por engendrar o seu contrário.

A crítica ao positivismo, a partir dos anos 60, pode ser compreendida de diversos modos, por exemplo, com base em variáveis socioeconómicas, mas reflecte também o facto de, em muitas áreas, o positivismo ter deixado de contribuir para o progresso científico, estabelecendo-se como uma metateoria dogmática que conduz à estagnação. As reacções antipositivistas pretendiam assim libertar as ciências dos estereótipos acerca de uma base observacional objectiva e neutra, de modo a permitir o desenvolvimento de teorias que "produzissem" novos tipos de observação, quer nas ciências sociais, quer na física quântica. As críticas empiristas de Thomas Kuhn e, sobretudo, de Paul Feyerabend ao positivismo e ao racionalismo crítico transformaram-se em filosofias da ciência extremamente relativistas, por vezes interpretadas como uma afirmação de que vale tudo, sendo possível que "cem flores desabrochem".4 Ainda que muito tenha acontecido desde os anos 70, estas duas tradições que, muito genericamente, resumo aqui ao positivismo e a um conjunto de relativismos epistemológicos continuam a dominar o campo da sociologia, constituindo pólos opostos entre os quais se posicionam as discussões acerca da natureza e do projecto da disciplina. O positivismo está assim inexoravelmente associado ao que Dag Österberg (1988) chama "estatísticas sociais", e que segundo o autor devem ser diferenciadas da sociologia com ambições explicativas. O relativismo desembocou em pós-modernismo, pós-estruturalismo, construtivismo social e análise discursiva, nas suas versões linguística ou cultural. Comum a todas estas correntes está a não aceitação de qualquer critério científico, por vezes pondo mesmo em causa a ligação entre os sistemas conceptuais científicos e a realidade exterior. Nestes últimos casos, a ciência é entendida enquanto um conjunto de discursos envolvendo conceptualizações de objectos inexistentes ou construídos durante o processo científico; o referente acaba por ser apenas mais uma construção reificante.

Devemos não esquecer que, apesar destas considerações, é extremamente difícil precisar o que na verdade defendem as correntes "positivistas" ou "ultra-relativistas", visto ambas serem intrinsecamente vagas.5 Porém, de acordo com a minha perspectiva, o ultra-relativismo deve ser entendido, em muitos aspectos, como uma reacção ao positivismo, ou pode até ser visto como a face oposta do mesmo. A nível metodológico, temos assim, por um lado, a análise de variáveis empíricas e mais genericamente uma ênfase nos métodos quantitativos e, por outro, análises discursivas, de teor narrativo, valorizando os métodos qualitativos. Ambas comportam imensas limitações. Se, num caso, os objectos não-observáveis são ignorados, no outro, qualquer análise do social baseia-se obrigatoriamente nas motivações subjectivas da acção. Em termos epistemológicos, enquanto uma corrente demarca o conhecimento científico de todas as outras formas de conhecimento, a outra nega a existência ou mesmo a possibilidade de qualquer demarcação; enquanto uma proclama a superioridade da ciência, a outra sublinha a relatividade e, em última instância, a igualdade de todas as formas de conhecimento. Em termos ontológicos, enquanto uma tradição é fenomenológica, a outra tende a aproximar-se do idealismo. Por fim, na dimensão política, tanto os primeiros positivistas como os relativistas contemporâneos vêem-se a si próprios enquanto radicais, se bem que é discutível que o sejam.

Além disso, pelo menos hoje em dia, o positivismo é frequentemente conotado com o elitismo e com o etnocentrismo, enquanto a não aceitação relativista da possibilidade de um conhecimento superior parece minar todas as possibilidades de uma crítica racional da sociedade, conduzindo-nos de volta aos velhos tempos do "poder absoluto e inquestionável". No seu último livro, Feyerabend (1995: 152) é explícito quanto a estas duas limitações: "O objectivismo e o relativismo não são apenas vulneráveis enquanto filosofias, mas fornecem também orientações desadequadas para um entendimento cultural bem sucedido".

Requisitos metateóricos O quadro atrás descrito leva-me pois a considerar que, actualmente, tantoo positivismo como o ultra-relativismo têm consequências negativas para o desenvolvimento da sociologia. Deve-se notar que ambas as correntes são inspiradas por ciências e filosofias exteriores à sociologia, em parte por influência de uma concepção das ciências naturais(aliás, bastante mal informada), em parte devido à filosofia pós-estruturalista de raiz neo-kantiana ou nietzscheana. Contudo, urge à sociologia pensar seriamente no seu próprio projecto a partir dos seus conhecimentos e necessidades. Através dos tempos, a sociologia conquistou uma maturidade que lhe permite hoje em dia impor-se autonomamente, assegurando ao seu conhecimento uma certa especificidade. Neste sentido, torna-se necessária uma concepção de sociologia enquanto ciência que não impeça quer a investigação quer a imaginação sociológica, e que, ainda assim, promova uma certa unidade em torno de determinados objectivos gerais.

Nenhuma das filosofias da ciência existentes permite responder a esta necessidade, daí que seja preferível utilizar o conceito de "metateoria", localizado a meio caminho entre a filosofia geral das ciências e uma dada ciência em particular. Concretamente ao nível da sociologia, que tipo de exigências devem ser requeridas a uma superestrutura desse género? De seguida, desenvolvo três requisitos que, na minha perspectiva, são fundamentais: Uma metateoria deve ser tão simples e directa quanto possível, sem com isso deixar de ser sofisticada, isto é, tomando obrigatoriamente em consideração as descobertas básicas da filosofia da ciência, como a tese da dependência teórica dos factos, da existência de paradigmas ou da inexistência de critérios absolutos de verdade e de selecção das teorias, e relacionando-as com as condições e necessidades da disciplina empírica. Afirmar que uma metateoria sociológica deve ser simples e directa significa que não deve conduzir a intermináveis estudos filosóficos, mas sim constituir uma plataforma que oriente os investigadores relativamente ao objectivo geral da sua disciplina (ver a continuação abaixo). A sociologia é uma disciplina intelectual e deve, na verdade, continuar a sê-lo, mas fundamentalmente dentro do seu próprio domínio demasiada diversidade implica uma complexidade impossível de gerir, acabando a disciplina por run out of luck.

Uma metateoria sociológica deve, tendo em conta a situação fragmentada que caracteriza o presente da disciplina, permanecer imparcial face às teorias e métodos existentes, ou seja, deve defender o pluralismo teórico e metodológico.

Simultaneamente, deve também definir objectivos e condições gerais para a disciplina, mantendo-se à parte de teorias e métodos específicos.

Uma metateoria deve enfatizar a dupla relevância, disciplinar e social, das investigações sociológicas. Podemos imaginar estes dois objectivos enquanto pólos de um continuum. As pesquisas sem relevância social lidam com enigmasinternos e esotéricos. Ainda que em alguns casos esse tipo de investigações também seja crucial, o corpo principal da sociologia deve incidir sobre temas de importância social e política. No pólo oposto, situam-se trabalhos sem relevância disciplinar, como relatórios públicos ou artigos politicamente influentes, escritos por sociólogos, mas nos quais não é possível discernir quaisquer competências sociológicas em última instância, qualquer pessoa os poderia ter elaborado. A maior parte dos estudos sociológicos deve assim encontrar uma posição de equilíbrio entre estes dois pólos.

Realismo causal Permitam-me, neste momento, uma breve apresentação daquilo que designei por "realismo causal". A denominação permite distinguir esta proposta de outras teorias, rotuladas de realismo ingénuo, realismo empírico, realismo científico, neo-realismo ou realismo crítico. Apesar das inúmeras influências, nomeadamente do realismo crítico, a alternativa que apresento comporta algumas diferenças significativas.6 Começarei então por enunciar os princípios gerais do realismo causal. Posteriormente, desenvolverei três dos seus conceitos principais: causalidade, mecanismo e realidade estratificada.7 Por fim, procurarei discernir algumas das consequências relativas ao modo como a sociologia deve ser concebida, bem como relativamente às áreas de pesquisa fundamentais, de acordo com esta metateoria e com os seus conceitos-chave.

Princípios do realismo causal Os debates filosóficos a propósito das múltiplas variantes do realismo (ou materialismo) e do idealismo parecem perpetuar-se e, na verdade, não existe qualquer método, filosófico ou de outra natureza, que lhes possa pôr um ponto final. Manter-me-ei assim afastado deste debate interminável, enunciando os três princípios ou axiomas do realismo causal: 1    princípio ontológico: existe uma realidade independente das nossas representações ou da nossa consciência dela; 1a    princípio ontológico para as ciências sociais: existe uma realidade social independente das nossas representações ou da nossa consciência dela; 2    princípio epistemológico: é possível adquirir conhecimentos relativos a essa realidade; 3    princípio metodológico: todo o conhecimento é falível e corrigível.

Voltarei a estas questões mais tarde. Por agora, é importante assinalar que o princípio 1 pretende colocar um ponto final nas discussões gerais sobre se existe realmente uma sociedade, se ela apenas é produto exclusivo da mente humana e por adiante. Todavia, este princípio não pressupõe que apenas exista a dimensão "material". Basta recordarmos a definição durkheimiana de factos sociais. A realidade social é material e mental. Por outro lado, o princípio 2 responde às questões sobre a possibilidade genérica da sociologia, declarando ou assumindo que teorias como as de Marx, Weber, Durkheim ou outras mais actuais dizem realmente qualquer coisa acerca dos seus objectos de estudo; ou seja, afirma a existência de um conhecimento sociológico genuíno. Por fim, o princípio 3 toma em consideração os progressos da filosofia da ciência durante as últimas décadas, nomeadamente os referidos princípios da indeterminação, dependência teórica, inexistência de critérios de veracidade absolutos, a existência de paradigma, entre outros. Além disso, o princípio 3 admite que os conceitos científicos possam não ser construídos a partir de um referente externo ou real. No entanto, a questão referencial não é uma questão axiomática ou filosófica que possa ser resolvida a priori,como parecem acreditar muitos dos defensores do construtivismo social. Pelo contrário, é algo que deve ser minuciosamente investigado a nível empírico, caso a caso.

Causalidade A resposta mais simples à questão do objectivo último da ciência é a de que procura fornecer explicações causais de efeitos. Os efeitos podem ser virtualmente qualquer coisa e dizer respeito a fenómenos como o sol desaparecer no horizonte, pedras caírem ao chão, grupos sociais cooperarem ou competirem, pessoas adoecerem, estarem alegres, etc. As explicações podem ser de vários tipos, desde complicadas equações matemáticas a simples declarações de que um determinado acontecimento precedeuum dado efeito.

Apesar de poder parecer evidente, na verdade, esta afirmação é extremamente controversa no âmbito da sociologia. As razões desta polémica emanam de anteriores filosofias da ciência. (Realmente, do ponto de vista do senso comum, uma das ideias mais notáveis, quer na filosofia da ciência tradicional, quer na sua versão moderna, é a dupla negação, positivista e fenomenológica, do conceito normal de causalidade). O conceito positivista de causa a teoria da regularidadedesenvolveu-se a partir do famoso tratado de David Hume, que define causalidade enquanto a associação entre fenómenos observáveis, de acordo com a conhecida expressão: diz-se que o fenómeno A constitui a causa para o fenómeno B, se e se A e B estiverem ligados no tempo e no espaço, A ocorrer antes de B e existir uma relação constante entre causa e efeito, A e B.

Relativamente à sociologia, isto conduziu a que sobretudo após o aparecimento dos programas informáticos de longo alcance - a análise causal se tenha tornado equivalente ao cálculo da covariação entre variáveis quantitativas, ou seja, à definição de até que ponto a variação em A (C, D, E, , x) origem à variação em B. Esta concepção de causalidade é, em primeiro lugar, discutível por razões meramente teóricas, em segundo, restringe a sociologia a um conceito muito limitado de causalidade e, em terceiro, existem concepções causais alternativas perfeitamente plausíveis (Ekström, 1994).

Além disso, definir causalidade enquanto regularidades entre fenómenos observáveis implica rejeitar as teorias sociais clássicas, bem como grande parte da sociologia contemporânea. Marx, Weber, Durkheim, Parsons, entre outros, trabalharam com entidades não observáveis geradoras de efeitos observáveis. O conceito marxista de relações de produção específicas ou a noção de Freud acerca do inconsciente dizem respeito a estruturas que envolvem mecanismos causais. Isto para explicar que somos obrigados a rejeitar a maior parte do pensamento sociológico, a não ser que alarguemos o nosso conceito de causalidade. De passagem, pode-se notar que, de acordo com o conceito positivista de causalidade, também uma grande parte das ciências naturais não seria aceitável, incluindo a lei da gravidade e a teoria da selecção natural.

Ambas se referem a entidades não observáveis capazes de gerar efeitos observáveis. Para mais, segundo a minha perspectiva, mesmo as teorias clássicas da sociologia não directamente associadas a análises causais trabalham implicitamente com modelos causais. Por exemplo, as "genealogias" de Foucault, as suas análises da(s) história(s) da loucura, do conhecimento, das punições ou do amor, não são mais do que tentativas originais de identificar conjuntos muito alargados de estruturas sociais que dão origem a fenómenos particulares. Tal como este modelo explicativo de Foucault, muitos outros modelos causais poderiam facilmente ser descritos.

Consequentemente, a noção alternativa defendida neste artigo concebe a causalidade de um modo mais aberto e "permissivo". Não será este o espaço adequado para entrar em pormenores sobre esta questão, mas parece-me importante reter algumas ideias. Em primeiro lugar, a causalidade não deve ser definida enquanto regularidades universais e normativas entre duas observáveis, A e B. Podemos entender essa definição apenas como um dos pólos de um continuum, em que a outra extremidade será algo como "em certas circunstâncias, é provável que B ocorra", e que diz respeito a situações em que, por exemplo, uma relação causal apenas algumas vezes se estabelece. A primeira forma de causalidade ocorre quase exclusivamente na física, as restantes ciências registam poucas ou nenhumas leis de validade universal. Como assinala Clark Glymour (1983: 127), a ciência, na sua generalidade, consiste em explicações causais sem a forma de leis. Em segundo lugar, em termos práticos, a causalidade ocorre na forma de tendências, em parte porque outras causalidades podem neutralizá-la, levando a que efeitos esperados ou efeitos encadeados não se manifestem necessariamente a nível empírico. Por exemplo, um programa de racionalização lançado por uma empresa pode ser neutralizado por um forte sindicato de trabalhadores. O corpo humano é frequentemente atacado por perigosas bactérias, as quais, em geral, são neutralizadas pelo sistema imunitário. As tendências existem mesmo que os efeitos sejam anulados. Uma base geral para compreender os conceitos de causalidade e de probabilidade, nos sentidos que aqui são defendidos, é magistralmente sintetizada por Karl Popper (1990) na expressão "um mundo de propensões". Em terceiro lugar, particularmente nas ciências sociais, devemos admitir o conceito de "poder causal" como dizendo respeito a uma capacidade ou disposição de um objecto ou actor. Uma bomba possui a capacidade ou poder de explodir. Um ser humano que trabalhe constitui um poder causal. Caso se encontre desempregado ou não esteja a trabalhar, isso não significa que não possua o poder causal, ou a capacidade latente, de trabalhar (Sayer, 1992). A capacidade intrínseca juntamente com a situação externa gera a propensão. Em quarto lugar, possivelmente como forma de fazer sobreviver a concepção positivista de causalidade enquanto associação constante, os textos sociológicos encontram-se repletos de termos de relação apelativos como "influência", "afecta", "surge associado a". Contudo, estes termos não devem ser vistos enquanto soluções inadequadas, mas sim como indicações de problemas que precisam de ser examinados mais em pormenor. Uma terminologia mais directa, que incentivasse termos "ousados" como "causa", poderia ser útil para focar o debate na natureza das relações.

Assim, o conceito de causalidade está intimamente relacionado com os de compreensão e explicação.8 Uma regularidade observada por exemplo, que os jovens provenientes de grupos sociais desfavorecidos seguem menos frequentemente estudos superiores ou que, pelo desempenho de tarefas idênticas, as mulheres auferem salários mais baixos que os homens, em ambos os casos apesar da igualdade formal não corresponde como tal a uma explicação. Para compreender regularidades deste género, é pois necessário identificar os mecanismos sociais que determinam a manutenção das desigualdades reais. A maior parte das vezes, isto implica ir além da descrição das regularidades visíveis, empregando métodos não estatísticos, de modo a analisar componentes que podem contribuir para os fenómenos que estamos a estudar. Como comenta Nancy Cartwright (1983: 10): "Se nos restringíssemos às leis de associação, encontraríamos no comprimento da sombra uma explicação tão credível para o tamanho da haste da bandeira como o contrário".

Sintetizando esta síntese: em vez de nos basearmos numa rígida filosofia positivista de causalidade, tentando posteriormente integrar o cepticismo e a dúvida, poderá ser mais apropriado partir do princípio 2 acima enunciado. Isto implica reconhecer que a sociologia é realmente susceptível de produzir e expressar conhecimentos genuínos acerca da realidade social e, em seguida, reflectir sobre a questão: nesse caso, que tipo de mundo, que tipo de causalidade e que instrumentos explicativos devem ter lugar? Partimos assim do próprio conhecimento sociológico e não de princípios filosóficos. Isto significa que a sociologia não deve ignorar o conceito de causalidade devido à definição positivista, pois o positivismo não detém o monopólio sobre este conceito. Pelo contrário, a sociologia deve aceitar relações causais tais como causalidade estrutural, causalidade expressiva, causalidade recíproca, ciclos causais retroactivos, causalidade intencional, causalidade funcional e por fora. Na verdade, se queremos continuar a reflectir acerca da sociologia enquanto ciência, conceitos tradicionais como causalidade, mecanismo, explicação, cumulatividade, entre outros do mesmo género, devidamente redefinidos, são indispensáveis.

Em termos ontológicos, esta posição implica que tanto o observável, como a capacidade causal constituam critérios de existência, sendo esta uma das principais razões para a denominação "realismo causal".

Mecanismos A realidade encerra uma infinidade de processos causais. Uma ciência natural ou social não tem capacidade, nem pretensão, de descrever ou explicar todos eles.

Nenhuma ciência natural pode prever onde vai pousar uma folha levada pelos ventos de Outono. Aliás, como mostraram os teóricos do caos, os movimentos de uma borboleta na China podem provocar precipitação em Lisboa. Assim, o objectivo das ciências naturais não é mais do que procurar identificar os mecanismos básicos e duradouros nos quais assentam os fenómenos observados. As ciências sociais encontram-se na mesma situação. Uma pessoa que passeia pelas ruas de uma cidade é influenciada por inúmeros factores carros em circulação, montras sugestivas, outras pessoas com quem conversar. A tarefa da sociologia não pode ser a descrição desta panóplia de factores, mas, à semelhança das ciências naturais, a identificação das estruturas e mecanismos relativamente duradouros que, numa maior ou menor escala, produzem os fenómenos observados, o que coincide, por exemplo, com as análises da interacção social de Erving Goffman, centradas especificamente nos mecanismos que regem os comportamentos típicos nos encontros de rua.

Os mecanismos encontram-se incorporados nas estruturas, isto é, são "estruturalmente dependentes". Uma estrutura é uma configuração de elementos relativamente duradoura. Uma configuração específica de elementos determina que alguns acontecimentos sejam possíveis, prováveis ou necessários, enquanto outros são impossíveis ou implausíveis. No caso das ciências naturais, podemos dizer que um mecanismo é aquilo em que sebaseia e sobre o qual se debruça uma lei natural. Por exemplo, o mecanismo de "atracção" é a base da lei da gravidade. Por outro lado, nas ciências sociais, um mecanismo pode ser aquilo que está na base de uma associação estatística. Se for descoberto que penas duras e longas têm como consequência, a longo prazo, o aumento das disposições para o crime, as condições e processos que originam esta situação constituem o mecanismo ou mecanismos, e faz parte da tarefa do criminologista explicar esta relação, através da identificação dos mecanismos que produzem o referido efeito. Um mecanismo pode assim ser definido como o modus operandi que faz com que uma situação se transforme (ou não) numa outra.

Realidade estratificada Como afirmou Louis Althusser, para o positivismo a realidade apresenta-se plana e homogénea, enquanto na verdade é profunda e complexa. Deste modo, o positivismo concebe a realidade como uma superfície constituída por fenómenos identificáveis e observáveis de uma maneira sistemática e relativamente não problemática. Ao longo da história da filosofia, esta ontologia monista foi inúmeras vezes posta em causa, além de que o próprio desenvolvimento da ciência se encarregou frequentemente da formulação de propostas ontológicas alternativas.

Apesar de se distinguir das ciências naturais em muitos aspectos, parece óbvio que a sociologia deve ainda assim empenhar-se num estudo aprofundado dos métodos e das construções teóricas das ciências naturais, de modo a inspirar-se e a aproveitar alguns modelos para a sua própria actividade. De seguida, irei apresentar uma descrição sumária do desenvolvimento histórico das ciências naturais, preocupando-me posteriormente em estudar o processo análogo ocorrido no âmbito da sociologia.

Outrora o objecto de estudo de um cientista natural era a natureza. Ele era sempre um homem apreendia assim inúmeros aspectos relativos aos mistérios da natureza, desde as reacções químicas ou a vida dos insectos às dinâmicas gerais do universo. Gradualmente, a especialização e a divisão em disciplinas foi substituindo esta competência enciclopédica até ao cenário actual, em que a natureza se encontra segmentada por um vasto conjunto de áreas temáticas e subáreas, correspondendo a um igualmente vasto conjunto de especializações e subespecializações académicas. Esta divisão não é arbitrária, ou seja, não é apenas um efeito da competição académica e de decisões políticas. Pelo contrário, parece existir uma razão histórica, lógica, ou mesmo ontológica, para essas divisões.

Esta razão consiste na ideia de que a natureza se divide por níveis. Primeiro a matemática, em seguida a física, a química e a biologia. Estas categorias genéricas podem ser divididas em subcategorias, dando origem a uma estratificação evolucionista da natureza em diversos níveis: subatómico, atómico, molecular, celular, orgânico, etc. A lógica é, primeiro que tudo, que cada nível é uma condição necessária para a existência dos níveis superiores; não existem flores sem células, nem células sem moléculas, tão-pouco moléculas sem átomos. Em segundo lugar, que os níveis inferiores podem proporcionar explicações parciais para os níveis superiores. Em terceiro, que os níveis superiores detêm uma relativa autonomia face aos inferiores, isto é, as leis ou os fenómenos empíricos registados a um determinado nível não são totalmente redutíveis aos níveis inferiores. Cada nível tem uma existência sui generis.

Por fim, que os níveis superiores constituem as plataformas ou ambientes dos níveis inferiores, podendo mesmo ter um certo impacto causal nos fenómenos registados nestes últimos.

Esta perspectiva do objecto das ciências naturais, que pode ser designada por ontologia de níveis (Bunge, 1973; Johansson, 1989) ou por ontologia irredutível, centra-se na práxis da ciência moderna, marcada por uma forte divisão do trabalho pelos diferentes tipos de estruturas, mecanismos causais e observações. Neste sentido, distingue-se claramente das numerosas tentativas de reduzir a realidade a um nível último, características dos reducionismos mecânicos do princípio do século XIX, que desembocaram na noção de uma linguagem científica únicaproposta pelo positivismo lógico. Os reducionistas tentavam assim encontrar a fórmula básica, a lei a partir da qual todos os aspectos da realidade pudessem ser derivados, o último de todos os níveis.

Esta breve retrospectiva tem como objectivo mostrar que a sociologia moderna se situa numa posição paralela à das ciências naturais nos princípios do século XIX, i. e., no ponto de ruptura entre o conhecimento enciclopédico e o reducionismo. Actualmente, existe uma forte convicção, difundida na maior parte das ciências sociais, segundo a qual a realidade social pode ser reduzida a um nível, a uma fórmula. Permitam-me que cite alguns exemplos a este respeito.

Karl Popper (1969: 98) explica a sua versão do individualismo metodológico da forma bem conhecida que passo a enunciar: Todos os fenómenos sociais, e especialmente o funcionamento de todas as instituições sociais, devem ser compreendidos enquanto resultado das decisões, acções, atitudes, etc., dos indivíduos, e por conseguinte nunca nos devemos contentar com explicações em termos dos supostos "colectivos".

Em suma, todo o social deve ser explicado a um nível individual. Uma posição antagónica encontra-se, por exemplo, no estruturalismo de Michel Foucault (1968: 203): Não é o homem em si mesmo que pensa, mas que é pensado pelo sistema de pensamento em que acontece estar inserido, não é ele que fala mas que é falado pela sua língua nativa, ele não determina, antes é determinado pelos sistemas sociais, económicos, políticos a que pertence. Estas estruturas dinâmicas são seu guia e seu destino.

Deste modo, o jovem Foucault coloca entre parêntesis os sujeitos individuais: tudo é explicado pela estrutura.

Estas duas posições exemplificam, respectivamente, o reducionismo descendente e ascendente. Podem assim ser vistas como pólos opostos do continuum entre micro e macrossociologia, continuando muito em voga nos dias que correm. Se é verdade que as perspectivas colectivistas e holistas predominaram na década de 70, desde os anos 80 que o individualismo metodológico ganhou ascendente. Talvez o melhor exemplo desta última tendência sejam as teorias de Gary Becker, James Coleman e a teoria da escolha racional.

Um tema similar refere-se à chamada problemática da acção-estrutura.

Possivelmente a via mais frequente para tentar resolver este problema envolve a sugestão de uma posição intermédia ou de síntese. Um dos exemplos mais familiares a este respeito é a teoria da estruturação, desenvolvida por Anthony Giddens, que através da fórmula "a estrutura é simultaneamente a condição e o resultado da acção social" pretende alcançar um equilíbrio entre actores e estrutura através da inclusão de ambos os lados da dicotomia. O mesmo se aplica ao conceito de habitus, de Pierre Bourdieu, que se limita a reformular um problema analítico. Como mostrei num outro contexto, fórmulas deste género não resolvem o problema, apenas o disfarçam através de uma nova terminologia. Em vez da análise de um problema complexo, estes textos apenas nos obstruem a vista (Brante, 1989).

O realismo causal e a sociologia Tendo enunciado uma base metateórica, passo agora à apresentação de uma estratégia que visa melhorar a teoria sociológica. Tal como os reducionistas do século XIX, muitos dos meta-sociólogos modernos parecem empenhados em encontrar a fórmula básica e abrangente através da qual todos os fenómenos sociais possam ser explicados. Na minha opinião, estas tentativas de reduzir ou sintetizar tudo não têm resultados produtivos e estão, provavelmente, votadas ao fracasso.

Constrangem o sociólogo a partir do momento em que o transformam num malabarista com demasiadas bolas para manejar, demasiado para incluir na fórmula. Sugiro assim que, de um modo análogo ao das ciências naturais, procuremos estabelecer uma estratificação por níveis do objecto de estudo da sociologia. À imagem dos cientistas naturais, que conseguiram compartimentar o "tecido contínuo" da natureza em áreas de investigação produtivas, os cientistas sociais deveriam tentar especificar o seu ângulo de análise através da segmentação do "tecido contínuo" da sociedade, de acordo com os seus blocos constitutivos.

A estratégia alternativa que proponho combina os conceitos de causalidade, de mecanismos e de sociedade enquanto realidade estratificada. Em primeiro lugar, se tomarmos em linha de conta investigações desenvolvidas hoje em dia por sociólogos e separarmos intuitivamente os níveis de análise implícitos nessas pesquisas, chegamos à conclusão que a sociologia produz conhecimento a variados níveis. A questão passa então a ser quantos níveis conseguimos identificar.9 Possivelmente, investigações no futuro irão distinguir sete, catorze ou, quem sabe, trinta e seis diferentes níveis do social. Esta ideia será adiante ilustrada através da distinção de cinco níveis na sociologia contemporânea, segundo o princípio de Occham. Em segundo lugar, abstraindo-nos dos vários níveis, que formular uma proposta geral de sociologia teórica aplicável aos diversos níveis. De acordo com isto, proponho que o objectivo último da sociologia seja identificar as estruturas sociais albergando mecanismos causais que geram efeitos empiricamente observáveis. Combinando estes dois passos, será possível chegar à conclusão que cada nível envolve estruturas específicas e relativamente autónomas, e que o objectivo da teoria sociológica é mapear os respectivos mecanismos, para cada estrutura, de modo a poder explicar os fenómenos sociais.

Esta definição do propósito da sociologia corresponde, em traços gerais, às definições que Roy Bhaskar avança para o objecto e para o papel da sociologia.

De acordo com Bhaskar (1989: 71-72), o objecto da sociologia são as relações sociais, e o seu papel é explicar a reprodução e transformação das relações sociais. (Concordo com a afirmação de Bhaskar de que é demasiado restritivo estudar apenas as relações entre entidades. O conteúdo das entidades as componentes que constituem a estrutura é relevante e deve ser incluído no objecto de estudo. No esboço que se segue, parto da concepção de Bhaskar mas defendo que o conteúdo das componentes constitutivas varia consoante a natureza do nível específico). Assim, cada um dos níveis seguintes envolve relações entre certos tipos de componentes específicas.

A sociologia a diversos níveis Nível internacional. Trata das relações entre componentes tais como as nações, as empresas e organizações multinacionais, frequentemente abordadas numa perspectiva global. Este nível tem sido desenvolvido através de investigações sobre os conflitos e a paz, o sistema-mundo, a globalização, as relações entre centro e periferia, a dependência, o imperialismo e o colonialismo. Shmuel Eisenstadt, Immanuel Wallerstein, Theda Skocpol, Charles Tilly e Manuel Castells constituem bons exemplos de sociólogos influentes neste nível.

Nível interinstitucional (na prática, sobrepõe-se geralmente ao nível nacional). Estuda as relações entre componentes tais como as instituições ou organizações, quase sempre a partir de teorias sobre o desenvolvimento histórico e social. O objectivo é assim descrever e, em traços gerais, identificar lógicas institucionais numa perspectiva societal. São, por exemplo, analisadas estruturas económicas, políticas ou ideológicas, através dos conceitos de modo de produção e formação social, ou das relações entre estado, mercado e sociedade civil, ou ainda através do estudo das funções das instituições, como no esquema "AGIL" de Talcott Parsons ou no modelo "grid-group" de ligações entre a lógica institucional e a cosmologia, da autoria de Mary Douglas. Inúmeros autores clássicos elaboraram trabalhos a este nível, nomeadamente, Norbert Elias, Jürgen Habermas e Nicklas Luhmann.

Nível institucional. Analisa as relações entre componentes tais como as posições de status formais e informais, os papéis sociais e as posições em todo o tipo de redes sociais, desde complexas hierarquias das empresas ou do sector público, a grupos e famílias. A teoria burocrática de Max Weber deu origem a uma linha de pesquisas, designada por sociologia das organizações, que procura dar conta das relações internas e externas, bem como dos modos de funcionamento das organizações. A teoria contingencial, a teoria tecnológica, a teoria garbage can ou o neo-institucionalismo são bons exemplos deste tipo de pesquisas. Algumas figuras proeminentes a este nível são Pierre Bourdieu, Robert Merton, Joan Woodward, Charles Perrow, James March, Johan Olsen e Mark Granovetter.

Nível interindividual. Inclui as relações entre indivíduos em interacção directa ou face-a-face. Apesar dos primeiros desenvolvimentos a este respeito terem surgido pela mão do interaccionismo simbólico, a "descoberta" deste nível, bem como a principal elaboração teórica sobre os seus mecanismos fundamentais, devem ser atribuídos a Erving Goffman. Segundo Goffman, a interacção é responsável por uma ordem sui generis, regulada por leis e estruturas específicas. Assim, as interacções podem ser entendidas enquanto rituais, dotados de uma vida própria e que produzem aquilo a que Goffman chama unio mystico. Esta tese tem sido abordada em diversos campos, como na etnometodologia ou na análise sociológica da conversação, tendo como objecto de estudo as condições e regras necessárias para a interacção quotidiana entre indivíduos. Neste sentido, pode-se considerar que o programa de pesquisa de Goffman tem sido continuado por autores como Randall Collins, Anne Rawls ou Jonathan Turner.

Nível individual. Debruça-se sobre as relações entre componentes interindividuais e sobre a forma como tais estruturas constituem a base para a autonomia individual e para o desenvolvimento da criatividade. O exemplo mais corrente deste nível são as pesquisas sobre o self social, nomeadamente a teoria de Mead acerca das relações entre o "eu", o "mim" e o "outro generalizado" ou a teoria da dissonância cognitiva de Festinger. Neste nível deveriam também ser incluídas as teorias pós-modernas da formação da identidade, bem como as noções de natureza humana e de indivíduo moderno, fundamentais para a sociobiologia e a teoria da escolha racional.

Recentes contribuições para o nível individual foram elaboradas por Margaret Archer, Jon Elster e Norbert Wiley, entre outros.

Obviamente, integrando outras disciplinas, esta tipologia pode ser alargada com a formulação de níveis superiores, em direcção à antropologia, e inferiores, a caminho da psicologia e da biologia. Além disso, não devemos esquecer que, dado que deriva de uma identificação das principais áreas de pesquisa em torno das quais os sociólogos se organizam, esta divisão por níveis não é meramente indutiva, mas sim historicamente fundamentada. Por exemplo, tendo em conta as tendências contemporâneas associadas ao processo de globalização e observáveis, e que se manifestam nas redes económicas globais, no crescente intercâmbio cultural e nos novos sistemas legais internacionais (como a União Europeia), é possível que a importância e o interesse do nível nacional diminuam, aumentando a ênfase no nível global.

Por outro lado, é possível conjugar o eixo vertical dos níveis com um eixo horizontal, através da aplicação dos conceitos de estrutura e cultura, sistema- estrutura-agente ou estrutura-discurso-actor a cada um dos níveis, obtendo assim uma tabela de 10 ou 15 campos, que procura reflectir o facto de a sociologia incluir um lado objectivo, um outro subjectivo e ainda um outro de acção.10 O resultado seria algo semelhante ao que procuramos ilustrar na figura 1.

Figura 1 - Matriz de análise

A autonomia dos níveis A hipótese de pesquisa em que se baseia a divisão acima apresentada é a de que cada nível é dotado de uma existência sui generis. Uma primeira evidência que sustenta esta conjectura está simplesmente relacionada com o modo como a sociologia contemporânea se organiza e estrutura em torno de diferentes níveis, entendidos como envolvendo objectos relativamente autónomos e não redutíveis. A autonomia dos níveis reside assim na existência, em cada um deles, de mecanismos causais não redutíveis de interesse particular para a sociologia.

(Deste modo, ou consideramos que milhares de sociólogos estão totalmente equivocados, ou pelo menos devemos admitir que a conjectura formulada tem algum fundamento).

Vulgarmente, os sociólogos que estudam estas questões identificam três níveis, denominados micro, meso e macro. A minha opção por um modelo de cinco níveis baseia-se nas seguintes razões. Os indivíduos não existem no vácuo, mas são, em grande medida, produtos do social. As atitudes, intenções, disposições, habitus, etc. as características sociais dos indivíduos são inscritas por meio da socialização. Este self social é um produto, mas também uma matéria- prima, um ponto de partida para explicar a acção social, razão pela qual constitui, por si próprio, uma área de pesquisa. Além disso, é também a causa para o facto de tantos sociólogos terem tentado separar as componentes sociais das naturais na constituição do ser humano. Estudos sobre o indivíduo enquanto conjunto de elementos intra-individuais, focando-se especialmente nos mecanismos causais inerentes e causais entre componentes sociais e de outra natureza, fazem assim parte daquilo que designo por nível individual.

Por outro lado, "o social" é incorporado no decurso da interacção com outros seres sociais, tais como os pais ou os pares. A interacção entre indivíduos é outra área que tem sido muito estudada por sociólogos, em parte devido ao facto de a interacção per se parecer dar origem a um tipo particular de comportamentos, orientados por normas e regras próprias, muitas vezes ritualizados, governando-se assim por mecanismos específicos. Por conseguinte, optou-se por distinguir também um nível interindividual.

As características dos indivíduos são, em muitos casos, geradas e definidas pelas suas relações. Neste sentido, é impossível a um indivíduo ser pai sem filhos, marido sem mulher, empregado sem patrão ou governante sem governados.

Estas relações ou papéis antecedem os indivíduos, que os ocupam isoladamente por algum tempo, e perduram após o seu desaparecimento. O facto de estas relações serem anteriores e posteriores a um determinado indivíduo confere-lhes um estatuto ontológico especial e não redutível. Em virtude de estas relações definirem e influenciarem as propriedades dos indivíduos, podemos considerar que possuem poder causal.11 Consequentemente, as relações cristalizadas em instituições, tais como a família ou a burocracia, constituem estruturas relativamente sólidas. É perfeitamente admissível estudá-las per se, omitindo os indivíduos concretos que neste momento as ocupam, ou seja, é possível abstrair-se dos indivíduos e das interacções directas e estudar os padrões específicos que caracterizam uma instituição como a família. A este nível, podemos analisar as relações causais típicas, distinguindo as estruturas familiares, por exemplo, as relações patriarcais e de autoridade. Situamo-nos assim no nível que designei por institucional.

A relação familiar típica constitui aquilo a que muitas vezes chamamos uma instituição social. Esta instituição encontra-se enraizada em outras relações institucionalizadas o trabalho, a escola, os media e os sistemas de normas, como as normas familiares. Assim, dado que a instituição família é uma das inúmeras instituições, podemos abstrair-nos um pouco mais (ou subir mais um nível) e estudar as relações entre a instituição família e as outras instituições, sem invocar os papéis específicos que a família encerra, isto é, podemos estudar relações entre relações institucionalizadas. Aqui situamo-nos no nível interinstitucional ou nacional.

É a este nível que, classicamente, se situam as considerações acerca do "social". Em muitas tradições, o estado-nação é visto como a unidade básica da análise sociológica, caracterizado por um território definido, uma identidade cultural e política, uma economia auto-suficiente, um sistema legal unificado, formando assim um sistema autónomo. Actualmente, o desenvolvimento mundial subentende a emergência de um outro nível, passando a ser conceptualizado como autónomo o nível internacional ou global. Diversos estudos recentes procuram formular um novo "paradigma global" (serão certamente paradigmas), cujo objecto de estudo envolve estruturas, culturas e actores internacionais e autónomos. Apesar dos esforços da escola multiculturalista, o papel da família numa nova ordem global continua por explorar.

A teoria que acabei de desenvolver não é mais, afinal, que uma codificação daquilo que os sociólogos realmente fazem. Os níveis podem ser estudados, e são na verdade estudados, como relativamente autónomos, pois incluem estruturas que envolvem mecanismos específicos com capacidade causal. Estes objectos de estudo não podem, contudo, ser totalmente reduzidos, por exemplo, a um conjunto de elementos individuais.12 Utilizando uma análise a diversos níveis deste género, juntamente com o reconhecimento de que cada nível contém características específicas, muitos dos debates metateóricos contemporâneos sobre a relação entre micro e macro, tal como sobre variadas reduções de um ao outro, poderiam ser resolvidos, dissolvidos ou, pelo menos, adiados. Se estiver correcta a afirmação de Jonathan Turner (1988) de que o problema micro-macro não pode ser resolvido enquanto se souber tão pouco sobre cada um desses níveis, estudos centrados na identificação de mecanismos causais referentes aos vários níveis podem fornecer pistas importantes para a resolução desses enigmas.

Os autores clássicos da sociologia, quer os mais antigos, quer os mais recentes, têm sido frequentemente interpretados como procurando criar perspectivas consistentes e abrangentes que incluam tanto o nível macro, como o nível micro. Neste sentido, Marx foi criticado por não ter desenvolvido teoria na área da psicologia social; Mead foi desvalorizado por não considerar o contexto, o "pano de fundo", em que decorrem as interacções; e Parsons foi acusado, em artigos como "Bringing men back in" de George Homans, de não compreender que os actores são "pessoas de carne e osso". Contudo, presume-se que Parsons sabia disso, mas o seu objecto de estudo não incidia sobre esse nível, centrando-se mais ao nível da teoria dos papéis, ou seja, no nível institucional. Do ponto de vista do realismo causal, deve-se entender o artigo de Homans não como uma crítica directa a Parsons, mas como uma declaração de que, naquela época, os outros níveis estavam muito pouco desenvolvidos. Expressando-o de uma forma mais drástica: no objecto de conhecimento do nível institucional, os indivíduos não surgem como personalidades singulares, mas apenas como ocupando posições ou executando determinados papéis. Isto significa que aquilo que constitui o "actor" na figura atrás apresentada varia consoante o nível. Por exemplo, nas teorias sobre instituições, o termo actores designa acções institucionalizadas, tais como o desempenho de papéis específicos, enquanto as teorias que exploram as estruturas e desenvolvimentos na esfera internacional colocam nações, empresas multinacionais, exércitos e afins como actores principais.

Uma divisão por níveis facilita a comparação sistemática entre o potencial explicativo das várias tradições, em cada um dos níveis, e torna absurdas as discussões sobre os méritos de tradições sociológicas que se focam em diferentes níveis. Por exemplo, torna-se supérfluo debater, entre o funcionalismo e o interaccionismo simbólico, qual dos dois constitui a perspectiva sociológica correcta. Basicamente a sua força reside em diferentes níveis. Do mesmo modo, as controvérsias contemporâneas acerca das teorias do poder, das teorias dos regimes patriarcais, etc., podem ser consideravelmente esclarecidas se aceitarmos que o poder e a opressão sexual são fenómenos que se estabelecem, simultaneamente, a um nível global, nacional, institucional, interpessoal e individual. Consequentemente, são resultado de vários poderes causais, isto é, são causalmente sobredeterminados. Disputas acerca de que poder deve ser definido, por exemplo, como recurso latente accionável ou como capacidade de fazer outra pessoa agir contra a sua vontade, perdem também a sua pertinência, considerando uma divisão razoável entre níveis. Em termos gerais, pode-se dizer que os fenómenos sociais que a sociologia estuda e. g., a estratificação, as classes, os discursos, o poder, o género, as profissões, o bem-estar, a doença, o trabalho e por fora são processos que actuam e podem ser estudados a todos os níveis, ainda que através de diferentes ferramentas conceptuais e metodológicas.

As últimas considerações têm implícita a ideia de que a teoria sociológica nunca se refere directamente à realidade tal como esta se manifesta a nível imediato, mas sim a objectos de conhecimento, elaborações teóricas. Isto é bastante óbvio nas ciências naturais, onde objectos idealizados são utilizados enquanto pontos de referência (tais como o movimento sem fricção, o movimento no vácuo, temperatura de zero absoluto, etc.), isto é, o "objecto" não existe na realidade. A importância de estarmos cientes desta diferença é drasticamente expressa por Bourdieu quando afirma que, para o sociólogo, a familiaridade com o universo social é o obstáculo epistemológico por excelência. A partir desta ideia, teorias bem sucedidas poderão ser aplicadas de forma a explicar (parcialmente) a realidade.

A relatividade dos níveis No quadro de análise acima apresentado, os mecanismos podem classificar-se em dois tipos. Por um lado, temos aqueles mecanismos que concedem autonomia a cada um dos níveis, por outro, os mecanismos que ligam esses níveis. Não cabe aqui discutir estes últimos, todavia a título de ilustração podemos referir o conceito clássico de socialização, termo que engloba vários mecanismos poderosos que ligam os indivíduos aos outros níveis e que, desta forma, contribuem para a manutenção da ordem e da integração social. (Na verdade, existe mesmo uma disciplina que se dedica exclusivamente a estas ligações: a psicologia social). Permitam agora que me abstraia um pouco mais e sugira uma forma de compreender, em termos gerais, a relação entre níveis.

Utilizemos as seguintes denominações: o nível que pretendemos estudar designamos por (E); todos os níveis inferiores a esse (I); e aqueles que se situam em níveis superiores (S). Referindo-se às ciências naturais, Arthur Stinchcombe declarou que os mecanismos causais de nível (E) podem ser identificados através de uma análise das componentes de nível situadas no nível (I). Certas formas de interacção nos mercados, talvez em particular os comportamentos assumidos nos mercados abastecedores (devido à sua proximidade com um "mercado ideal") podem ser compreendidos através da teoria da escolha racional. Outras interacções, por exemplo, os comportamentos no mercado conjugal, precisam possivelmente de basear-se em pressupostos diferentes acerca dos mecanismos que governam as componentes da estrutura. Uma questão interessante no discurso de Stinchcombe refere-se ao facto de os pressupostos assumidos relativamente ao nível (I), ou seja, as componentes da estrutura que pretendemos estudar, não terem que estar em total acordo com a pesquisa realizada a esse nível. O autor estabelece uma analogia com as ciências naturais. Certas teorias estabelecidas, como a lei de Boyle, entram em desacordo com teorias modernas sobre os movimentos moleculares. Ainda assim, estas leis são aplicadas desde que os desvios no nível inferior (I) sejam demasiado pequenos para terem alguma relevância no nível (E). De forma idêntica, segundo Stinchcombe, qualquer bom estudante de mestrado em psicologia demonstra facilmente que os pressupostos sobre a racionalidade individual em que se baseiam economistas e sociólogos estão errados, mas simultaneamente "o pressuposto da racionalidade coloca um economista em posição de explicar algumas facetas dos comportamentos de mercado" (Stinchcombe, 1991: 368). Uma simplificação dos níveis inferiores, ainda que dentro de limites razoáveis, pode assim ser útil para o processo de explicação do nível sobre o qual versa uma determinada pesquisa.

Gostaria de acrescentar à teoria de Stinchcombe a afirmação de que o nível (S), situado acima do nível (E), reveste-se também de enorme importância causal, fornecendo o contexto do fenómeno que se pretende explicar. A partir do nível (S) podemos, por intermédio das teorias sociológicas, chegar às dimensões que constituem o quadro de referência para os acontecimentos do nível (E), enquanto o nível (I) nos permite identificar as dinâmicas através das quais o processo se materializa (Brante, 1994).

Assim, as relações entre níveis podem ser resumidas em três conceitos cruciais, um para cada nível: componente (I), estrutura (E) e contexto (S). O erro do individualismo metodológico é reduzir os níveis (E) e (S) ao nível (I), ao passo que o erro do holismo é reduzir (E) e (I) a (S).

Sintetizando, de acordo com o realismo causal, a tarefa fundamental do desenvolvimento teórico em sociologia é: a) identificar os mecanismos específicos de cada nível; e b) identificar os mecanismos que articulam os vários níveis. Enquanto a primeira explica a autonomia dos níveis, a segunda explica o modo como os processos micro influenciam as situações macro e vice- versa.

Um exemplo do nível interpessoal A fase seguinte desta apresentação do realismo causal e da divisão em níveis seria ilustrar cada nível com exemplos da teoria sociológica. A escassez do espaço disponível impossibilita esse passo, contudo talvez seja interessante uma breve referência a um exemplo do nível cuja autonomia é provavelmente mais difícil de compreender: o nível interpessoal.

Tal como foi anteriormente referido, muitos dos fenómenos sociais são passíveis de análise a todos os níveis. Fenómenos como o poder, a estratificação, as classes, a dominação masculina, o trabalho, o mercado, as profissões, etc., manifestam-se em todos os níveis, embora assumam expressões distintas em cada um deles, sendo estruturados por processos específicos e devendo por isso ser analisados através de métodos diferentes. Um exemplo referido é a instituição da família. A família é um fenómeno global, com um longo passado de constantes mudanças; foi e continua a ser a principal instituição de socialização primária; está cercada e regulada por leis e normas informais; consiste num conjunto relativamente definido de papéis e posições de status; é central no que concerne à interacção interpessoal e em pequenos grupos; e é dotada de um considerável poder causal sobre o desenvolvimento da personalidade dos indivíduos.

A família enquanto sistema de interacção foi analisada na sociologia através de conceitos como pares de papéis, tríades de papéis, complementaridade, alternativamente como instituição de opressão, e por adiante. Hoje em dia, porém, o nível interpessoal da família é, sobretudo, analisado por psicólogos e terapeutas familiares, não enquanto fenómeno clínico, mas também em termos teóricos. Segue-se uma simples ilustração do processo típico de análise: A mulher, que pretende menos intimidade, afasta-se. O homem, desejoso de mais intimidade, irrita-se e critica-a. Quanto mais ele se irrita, mais ela se afasta. Quanto mais ela se afasta, mais ele se irrita De fora, observamos uma interacção circular constante, na qual as tentativas de resolver o problema apenas dão origem a que o problema se agrave (citação de Helgesson, 1996: 75, ligeiramente modificada).

Casos deste género podem ser analisados como processos de retroacção, como exemplos de causalidade recíproca, entre outras interpretações. A questão que pretendo focar é que existe um contexto institucionalizado (S), que pode ser denominado casamento ou relação de casal institucional, e que torna o processo possível. A ordem institucional fornece as macrocondições para a existência do processo. Além disso, existem duas componentes, dois indivíduos socializados, que asseguram as dinâmicas ou a energia do processo. Todavia, o processo em si mesmo é compreensível no seu próprio nível, ou seja, é a interacção per se, as reacções às acções do outro, que constituem a estrutura responsável por conduzir o casal para um círculo vicioso, um sistema auto-suficiente. Uma conversa pode constituir um unio mystico, encerrando os seus participantes num jogo ritualizado. Neste caso, o critério de autonomia pode ser que cada participante leve a cabo acções diferentes daquelas que assumiria noutro contexto ou isoladamente. A própria interacção e o acesso partilhado aos "factos da situação" (incluindo temperamentos emocionais, normas, regras, etc.) possuem as suas características específicas que condicionam os participantes. Por outras palavras, a estrutura não pode ser completamente compreendida caso seja reduzida à instituição família (S) ou às características individuais dos participantes (I) foi a interacção enquanto tal a geradora do efeito. Utilizando a apropriada observação de Anne Rawls (1987: 145): "Goffman argumenta que existem factos sociais que não são causados pela rotina, nem definidos pela estrutura social, nem derivam dos indivíduos".

Síntese e conclusão A sociologia é uma disciplina intelectual e deve, na verdade, continuar a - lo. Porém, o problema que se coloca é se devemos focar demasiado a nossa atenção em discursos filosóficos acerca, nomeadamente, das possibilidades do conhecimento. Existe o risco de se desembocar numa situação idêntica à daquele paciente de Freud que passava o dia a limpar os óculos e acabava por nunca os usar. É devido a esta razão que, hoje em dia, a simplicidadeem termos metateóricos se apresenta como uma boa estratégia. Uma boa razão para defender a simplicidade foi enunciada por Chandler, outra é a de que a sociologia é uma área tão complexa que os seus investigadores não devem desviar-se demasiado dos objectivos centrais aliás, dois domínios que requerem um forte investimento intelectual podem ser demasiado.

Esta questão pode ser colocada de outra forma. A proposta sugerida neste artigo supõe que uma metateoria sociológica não deve começar com a questão epistemológica: "o que podemos nós conhecer com certeza, dado que por vezes as nossas impressões sensoriais nos iludem e que estamos presos às nossas categorias linguísticas, teorias e expectativas?" Em vez disso, proponho: "em que deve consistir aproximadamente a realidade, admitindo que os sociólogos produzem realmente conhecimento acerca dela?" Enquanto a primeira questão nos remete para o campo dos  ismos e das logias da filosofia clássica, a segunda proporciona estudos mais empíricos e desenvolvimentos teóricos. "Primeiro a ontologia, depois a epistemologia" podia, desta forma, ser um bom lema para a metateoria contemporânea.

Ao longo deste artigo foram sendo referidos de passagem diversos temas, pelo que pode ser útil proceder a uma síntese das questões fundamentais. Em primeiro lugar, opôs-se o realismo causal ao positivismo e ao ultra-relativismo.

Obviamente, devemos reconhecer o enorme valor de ambas as propostas a análise quantitativa de variáveis tal como a descrição factual minuciosa, as narrativas, os esquemas interpretativos e as grandes classificações são pressupostos necessários à maioria das ciências. Contudo, o argumento aqui defendido é que as inclinações actuais tendem a obscurecer o objectivo último da sociologia, a produção de explicações causais para os fenómenos sociais. Por conseguinte, devem ser vistas como actividades auxiliares úteis, conduzidas por uma sociologia que busca as causalidades, e não como objectivos finais por si próprias. Além disso, devido às suas conotações misteriosas e à sua indefinição geral, quer o positivismo, quer o ultra-relativismo, tendem a precisar de desmesurados estudos filosóficos. Pelo contrário, o realismo não é abrangido por estas implicações, visto os seus pressupostos gerais não serem contra- intuitivos, mas facilmente aceitáveis do ponto de vista do senso comum. (Na verdade, penso que o incidente de Sokal nunca teria ocorridono âmbito de uma plataforma científico-social realista).

O termo "realismo" foi empregue para designar certas proposições ontológicas, especialmente a de que a sociologia tem um objecto exterior ao discurso sociológico. A posição aqui sustentada defende assim uma perspectiva realista relativamente às entidades sociais, mas não em relação às teorias e modelos sociológicos. Isto é, "factos sociais" tais como organizações, famílias, interacções, indivíduos, entre outros, existem, são reais e influenciam o comportamento humano. Qual das teorias ou modelos de realidade existentes é mais verdadeira ou fornece melhores explicações, isso é outra questão. Na situação actual, dado que não existe um conceito universal de verdade, mas apenas alguns paradigmas incomensuráveis (os factos teoricamente dependentes, entre outros), uma metateoria deve permanecer agnóstica no que concerne à selecção de teorias, ou seja, recomenda-se um pluralismo teórico dentro dos limites acima enunciados.13 O realismo implica também uma posição epistemológica que assuma a possibilidade de, pelo menos em parte, podermos aceder à realidade social, construindo a seu propósito conhecimento válido, ainda que falível. Uma boa expressão do princípio básico de uma epistemologia realista é referida por Jane Azevedo (1997: 65) da seguinte forma: "a validade do nosso conhecimento pretende ser, pelo menos parcialmente, determinada pelo modo como o mundo se apresenta".

Na expressão "realismo causal", o termo "causal" é utilizado de forma a sugerir uma orientação geral para a investigação sociológica, nomeadamente, a identificação de mecanismos geradores. Não devemos esquecer que esta sugestão implica que o conceito de causalidade seja resgatado à tradição positivista. Na verdade, o conceito de causalidade aqui apresentado difere em muito da definição positivista, visto ser consideravelmente mais aberto, admitir causas não observáveis, causalidades estruturais, causas que nunca se manifestam em efeitos observáveis, causas que surgem apenas uma vez, talvez até causalidade funcional, etc.14 Na segunda parte, comecei por abordar o debate permanente entre individualismo metodológico e holismo, micro e macrossociologia. Através de uma analogia com as ciências naturais, sugeri que uma forma de evitarmos esses dilemas é simplesmente começar por aceitar aquilo que se tem feito na sociologia contemporânea, isto é, que uma enorme quantidade de trabalho tem sido desenvolvido a vários níveis, produzindo conhecimento relevante e explicações plausíveis. Se aceitarmos esta ideia, uma divisão em níveis acaba mais ou menos por sugerir-se a si mesma. Portanto, na minha perspectiva, a sociologia do novo século seria beneficiada se recorresse a uma ontologia de níveis e procurasse identificar objectos de estudo específicos de cada nível. Isto significaria que, no âmbito da sociologia, novos objectivos de pesquisa teoricamente informada seriam desenvolvidos para cada nível. Uma divisão por níveis possibilitaria que o sociólogo se focasse, mais exclusivamente, nos problemas do nível em que pretende trabalhar. Além disso, facilitaria a comparação entre modelos explicativos do mesmo nível, impulsionaria a cumulatividade e conduziria a um aprofundamento das várias teorias. Deste modo, se tivermos como base comum uma metateoria que, não sendo complicada, se ajuste às necessidades da disciplina e lhe forneça uma orientação clara e estável, é possível que a sociologia inverta a sua posição actual, defensiva e fragmentada, adoptando um papel mais interventivo e socialmente relevante. Aliás, se a sociologia pretende evitar a perda da sua autonomia, reduzindo-se a estatísticas sociais e/ou etnologia e/ou quase-filosofia, é indispensável expandir as suas ambições.

A partir da suposição de que "nada é tão prático como uma boa teoria", os avanços teóricos poderiam promover a transformação da sociologia numa ciência mais estratégica. Procurando partir desta ideia, uma divisão por níveis, associada a uma proposta causal, constitui provavelmente uma das chaves possíveis para a ruptura epistemológica necessária, caso a sociologia queira ultrapassar o estado actual de Naturphilosophie e tornar-se uma ciência genuinamente explicativa.

[tradução de Pedro Abrantes; revisão científica de António Firmino da Costa]

Notas 1    Na minha opinião, contudo, é errado dizer-se que a sociologia se encontra hoje num momento de crise aguda. A situação era aproximadamente a mesma dez, vinte ou trinta anos. Obviamente, tudo depende do modo como definimos o conceito de crise. Recorrendo à definição de Thomas Kuhn, não apenas a sociologia mas grande parte das ciências sociais estariam em crise mais de trinta anos. Como se sabe, a definição de crise de Kuhn constrói-se a partir da ciência normal. Durante uma crise, os cientistas começam a questionar os pressupostos básicos da sua disciplina, os seus pressupostos filosóficos e princípios metodológicos, começando a procurar paradigmas alternativos. A crise termina quando os fundamentos gerais da disciplina são de novo estabelecidos.

Assim, não julgo que a sociologia alguma vez tenha sido ou possa vir a tornar- se uma ciência normal, neste sentido. No entanto, é indiscutível que, no final dos anos 60, a sociologia foi marcada por uma certa anarquia filosófica, seguindo-se a emergência de uma série de sociólogos sob o lema "que cem flores desabrochem" uma ramificação de paradigmas da qual ainda não recuperámos.

2    A nossa identidade deixou de poder residir numa metodologia comum. Os métodos e técnicas de recolha de dados característicos da sociologia entrevistas e inquéritos, estatísticas oficiais, elaborações estatísticas, etc.

são hoje partilhados pela maioria das ciências sociais. Além disso, também não existe um objecto de estudo particular que assegure a identidade da disciplina. Os objectos de estudo da sociologia tais como organizações formais (ciência política), interacção (psicologia), artefactos culturais, experiências e afins (etnologia), opressão e pobreza (investigação em serviço social) são povoados por outras disciplinas. Assim, a nossa identidade reside, ou tem que residir, em perspectivas e quadros de análise particulares e nos nossos próprios modelos de explicação, isto é, nas teorias sociológicas.

3    Como todos reconhecemos hoje, a realidade é observada não directamente mas de forma mediata, pelo que se justifica o conceito de "objecto de estudo", também denominado "objecto mediado", "problemática", etc. Possivelmente o termo mais simples é "modelo", ainda que possa dar azo a mal-entendidos, visto "modelo" ser também utilizado para construções mais contingentes de sistemas conceptuais. "Objecto de estudo" diz respeito às imagens básicas e partilhadas de uma disciplina, constituindo a plataforma para o desenvolvimento de uma escola de investigadores. Assim, refere-se a algo que é teoricamente elaborado, não se reduzindo à realidade "espontaneamente observada". O objecto de estudo é um fundamento para a explicação; parafraseando Foucault, "permite a definição de domínios precisos nos quais as relações causais podem ser localizadas" (citado por Davidson, 1997: 13).

4    Especialmente Paul Feyerabend tem sido considerado como defensor acérrimo de um programa relativista e como responsável pela legitimação das subsequentes filosofias ultra-relativistas das ciências (sociais). No entanto, como é visível em pequenas observações incluídas em Against Method, de 1975, o próprio Feyerabend nunca acreditou no relativismo radical, um tema que, aliás, retomou mais pormenorizadamente no último volume desta obra, datado de 1993.

Basicamente, a sua posição assenta em dois pontos. Em primeiro lugar, ao contestar a crença na existência do método científico, o autor encontra o seu antídoto. Por exemplo, o slogan "vale tudo" não foi pensado para ser levado à letra mas sim para ser utilizado como um remédiocontra o racionalismo excessivo, um contrapeso à crença ingénua que está na origem da ciência ocidental. Deste modo, Feyerabend parece ter seguido o lema de Kirkegaard, segundo o qual para corrigir uma determinada tendência se deve exagerar ao máximo uma perspectiva na direcção oposta. Em segundo lugar, mostrou que se devia admitir que "vale tudo" caso se adoptasse uma perspectiva racionalistaséria e honesta para estudar a história da ciência, o que não se aplicava a Feyerabend, pois este considerava-se um realista.

5    Segundo um certo prisma, é óbvio que todos os sociólogos são construtivistas, e a sociedade inteira é uma construção. Isto é, se argumentarmos que a sociedade ou os fenómenos sociais são construídos, no sentido em que são criados pelo homem, ou que os seres humanos e as suas acções são indispensáveis para a existência da sociedade, tudo isto são verdades triviais e com as quais todos concordam. Se for defendida a ideia de que os factos científicos são construídos pelos seres humanos, no sentido em que uma linguagem (estabelecida pelo homem) é necessária para expressar esses factos, ou que as teorias influenciam aquilo que consideramos serem os factos, subscrevo-a integralmente. Por outro lado, se for afirmado que os factos científicos não são mais que construções, possíveis de reduzir a textos, instrumentos ou afins, terei que discordar. A composição dos factos científicos é produto de vários factores. Um deles é a realidade. Aliás, pode ser argumentado que a especificidade da ciência é precisamente que os seus vários métodos e instrumentos pretendem abrir janelas para a observação sistemática da realidade. O conjunto dos métodos científicos, juntamente com o sistema de normas da comunidade científica, é trabalhado para capturar e revelar a essência da realidade (acerca desta questão, ver também Azevedo, 1997). Além disso, concordo também com a afirmação de que não existem critérios científicos absolutos filosoficamente: os critérios científicos são valores que variam consoante os contextos sociais e históricos. Contudo, caso esta ideia seja interpretada como implicando que não existem meios de distinguir os conhecimentos verdadeiros dos falsos, ou mesmo que todos os tipos de conhecimento são igualmente bons ou maus, isto é, um total relativismo, deixo de concordar. Como Rorty (1982: 166) assinalou secamente: "O ‘relativismo' é a perspectiva de que as crenças sobre um certo assunto, ou possivelmente sobre qualquer assunto, são tão boas como quaisquer outras. Ninguém defende esta perspectiva". Na minha opinião, a versão mais interessante do construtivismo, passível de se tornar numa fértil hipótese sociológica, é a de que certos fenómenos e processos sociais são criados por pré-concepções. O exemplo mais famoso diz respeito às profecias auto-realizadas de Merton: se as pessoas acreditam que um banco vai falir, apressam-se a retirar o seu dinheiro dessa instituição, provocando a sua falência. Se as pessoas acreditarem que para conseguir bilhetes para um filme popular precisam de os comprar com antecedência, então terão mesmo que os comprar mais cedo, e por adiante.

Schelling (1998) discutiu e exemplificou estes mecanismos. Um mecanismo similar é descrito por Ian Hacking (1986), segundo o qual: "em alguns casos, as nossas classificações e as nossas classes conspiram de modo a surgirem associadas, configurando-se mutuamente". A constituição de partes da realidade, tais como os doentes mentais ou outros grupos, é gerada, em parte, consoante as categorias que utilizamos para as definir, distinguir ou abordar.

em 1928, W. I. Thomas marcou a agenda construtivista através da sua famosa afirmação: "se o homem define as situações como reais, elas são reais nas suas consequências". Porém, dado que é defensável apenas para alguns casos, esta proposição não deve ser considerada uma lei geral mas sim uma hipótese, passível de ser comprovada (ou não) na pesquisa empírica.

6    Segundo a minha perspectiva, o realismo crítico é, actualmente, a filosofia mais promissora para as ciências sociais, pelo que, no âmbito do presente artigo, poderia ter recorrido a este conceito. O problema do realismo crítico reside, não no seu conteúdo fundamental, mas na sua terminologia e em algumas das suas afirmações. O termo "crítico" serve para relacionar a ciência com um ideal emancipador. Contudo, nem Bhaskar nem outros defensores do realismo crítico conseguiram estabelecer uma ligação entre realismo ou ciência críticos e um programa político, seja ele socialista ou emancipatório.

Colocando de forma simples, a principal razão para isso é que não parece ser possível estabelecer tal associação, excepto no sentido geral de que o conhecimento adequado das condições e relações causais constitui um instrumento útil para alcançar certos objectivos desejados. E esse saber não é específico do realismo, nem de qualquer programa político particular. Ou seja, nem mesmo o realismo crítico consegue ultrapassar a divisão entre factos e valores. Além disso, o termo "causal" parece-me um prefixo melhor para o realismo, no sentido em que o reconhecimento ontológico dos mecanismos causais subjacentes, não observáveis e geradores constitui uma das fundamentais marcas distintivas do realismo, face a outras filosofias da ciência.

7    "Realidade estratificada" é também uma expressão muito utilizada para referir as diferenças entre a dimensão das experiências, a dos acontecimentos e a dos mecanismos. Existem vários outros conceitos cruciais do realismo, cujas implicações para a sociologia precisam de ser cuidadosamente estudadas, tais como os de sistemas abertos e fechados, relações intrínsecas e extrínsecas, emergência, mecanismo gerador ou outros uma sistematização destes conceitos encontra-se, por exemplo, em Collier (1994).

8    Não irei, neste artigo, examinar a relação entre compreensão e explicação, concordando com a ideia de Bourdieu de que "contra a velha distinção de Diltey, deve-se aceitar que a compreensão e a explicação são uma ", ou melhor, que a compreensão é o lado psicológico da explicação teórica.

9    É óbvio que as divisões em níveis têm sido discutidas no âmbito das ciências sociais. Durkheim separou a sociedade do indivíduo, Parsons distinguiu a personalidade, a sociedade e a cultura, Habermas diferenciou vida quotidiana (world-life) de sistema, Giddens contrapôs agência e estrutura e George Ritzer identificou 10 níveis diferentes, para mencionar alguns. Um dos problemas de algumas divisões por níveis tem a ver com o facto de não serem sistemáticas, ou seja, não se basearem numa dimensão, confundindo áreas substantivas com níveis analíticos. Ritzer, por exemplo, distingue o nível organizacional e o familiar.

No entanto, a "família" constitui uma área de pesquisa que deve ser conceptualizada como uma forma de organização.

10    Estrutura social refere-se ao objecto de estudo clássico da sociologia: padrões relativamente duradouros entre "componentes" sociais, por exemplo, divisões do trabalho (diferenciação) ou relações de dominação e subordinação, poder, status e prestígio (estratificação). Esquema cultural diz respeito à chamada ideologia, Weltanschauung, cosmologia ou perspectiva: redes simbólicas de produção e reprodução de sentido. Enquanto a estrutura social constituiu o objecto de estudo, por exemplo, das tradições durkheimianas, parsonianas ou marxistas, a tradição weberiana, o interaccionismo-simbólico, a etnometodologia e, mais recentemente, os estudos culturais trataram sobretudo a questão do sentido social. Em geral, ambas as correntes têm definido os seus campos de investigação enquanto fenómenos relativamente autónomos.

Inversamente, a relação entre estrutura e cultura tem sido o foco de estudo tradicional da sociologia do conhecimento. Finalmente, actor, agente ou agência reporta-se às componentes dinâmicas de cada nível (indivíduos, organizações, estados-nação), estrutural e culturalmente contextualizadas. No vocabulário da teoria dos sistemas, a dependência mútua entre estas três entidades no seio de cada nível constitui a base para um quadro conceptual que permita estudar cada nível enquanto sistema relativamente autónomo.

11    Na sociologia contemporânea, afirmar que os níveis são autónomos não é a mesma coisa que dizer que os níveis são reais. Na minha perspectiva, contudo, nada pode ser autónomo se não for, em algum sentido, real. Logo, são os níveis reais? Em primeiro lugar, deve-se referir que o modo mais simples de escapar a esta questão é considerar, como Parsons, que os níveis são apenas "instrumentos analíticos". Essa resposta evita muitas críticas. No entanto, parece demasiado fácil deixar algumas perguntas por responder (por exemplo: como pode uma divisão analítica explicar alguma coisa?), pelo que não optei por essa via. O facto de esta questão continuar a ser um problema é bem patente no recente livro de Neil Smelser (1997), revelador de uma clara ambivalência. Por um lado, Smelser sustenta que "não considerar os constrangimentos dos níveis superiores da organização social é falhar enquanto sociólogo" (p. 47) e que "é impossível compreender e explicar acontecimentos, situações, processos ocorridos nas unidades inferiores, sem fazer referência às ordens superiores da organização social que os condicionam" (p. 31). Concordo. Porém, no mesmo parágrafo o autor afirma que "este reconhecimento não deriva de qualquer asserção especial da realidade, mas deve-se à necessidade de incluir construtos organizadores de nível superior para elaborar explicações compreensivas", e na página 29: "Os outros níveis da realidade são analiticamente tão importantes como em alguns casos até mais importantes que as pessoas" (itálicos acrescentados). Assim, para Smelser, as macroestruturas parecem ser criações quer analíticas, quer reais uma clara contradição dos vários sentidos destes termos. Após tomar contacto com este problema, tal como Parsons, Smelser opta pela saída mais fácil, a fuga: "não pretendo entrar em todas as controvérsias e mal-entendidos que têm rodeado estes termos ao longo dos tempos" (p. 47). Permitam-me que tente responder a esta questão, sem voltar aos velhos debates entre individualismo e holismo metodológicos e ontológicos, mas usando uma pequena analogia. Imaginemos um conjunto de fotografias e mapas se isto fosse uma aula, eu traria alguns acetatos que correspondem aos cinco níveis da sociologia que enunciei. Primeiro, pensamos assim numa imagem correspondente ao nível individual: um lisboeta típico sentado na esplanada do café A Brasileira, junto à estátua de Fernando Pessoa, no centro da cidade. A fotografia número 2 mostra, entre a multidão que atravessa o Rossio,dois transeuntes que se encontram e param para conversar, protagonizando assim "um encontro face-a-face, um ritual de interacção". A figura 3 é um mapa da cidade de Lisboa, onde se pode ver a sua organização institucionalizada: emergem os padrões de ruas, prédios, parques, pontes e rios a estrutura espacial da cidade torna-se visível. A figura 4 diz respeito a um mapa de Portugal, no qual Lisboa é assinalada e ligada ao resto do país por estradas e auto-estradas. Por fim, a figura 5 é um mapa-mundo em que Portugal e Lisboa são ligados ao resto do mundo por rotas aéreas ou marítimas, por satélites ou outros meios de comunicação, incluindo a Internet, a televisão e os telemóveis. A questão um pouco disparatada que se coloca é: qual das imagens é mais verdadeira? Qual delas representa um retrato mais adequado de Lisboa? A resposta é, obviamente, que todas são verdadeiras, todas representam a realidade e aquela que é mais adequada depende dos objectivos e interesses específicos. Nenhuma das imagens pode ser "reduzida" a outra; todas contêm informação e podem ser úteis para esclarecer situações práticas e para explicar acontecimentos ocorridos (ou não) em Lisboa. Gostaria de argumentar que os níveis sociológicos que sugeri têm um estatuto similar de existência. Por exemplo: numa cidade como Lisboa, somos forçados a seguir as estruturas da cidade não podemos passar por cima dos prédios e se tentarmos atravessar a Avenida da Liberdade às 5 da tarde, possivelmente acabaremos mortos ou na cama de um hospital. Logo, existe um número de normas materiais e espaciais que têm que ser seguidas ou, antes, existem objectos físicos que fazem com que nos movimentemos de uma certa maneira no espaço-tempo de Lisboa. Condições semelhantes prevalecem no espaço- tempo social, fazendo-nos, ou melhor, forçando-nos fisicamente a seguir regularidades e normas institucionais ("rotinas", "costumes") geradas socialmente. Se alguém viver em bigamia é preso, visto existir uma instituição chamada família suportada por leis repressivas.

Quem tiver comportamentos excêntricos ou desviantes acabará internado num hospital psiquiátrico. Na verdade, julgo ser este o principal sentido da recomendação de Durkheim: deve-se tratar os factos sociais como coisas. Assim, neste sentido, as macroestruturas são reais. Têm fortes consequências, especialmente visíveis quando são violadas. Exactamente como numa cidade, segue-se geralmente as vias sociais, torneia-se os edifícios/instituições ou entra-se neles, evita-se a polícia/ser excluído a vida é governada por estruturas externas, responsáveis por constrangimentos e possibilidades, sejam elas físicas ou sociais. Os movimentos individuais não podem ser compreendidos sem entrar em linha de conta com a estrutura física da cidade. De modo similar, os comportamentos individuais não podem ser compreendidos sem ter em conta as estruturas sociais. Esta é a razão pela qual as macroestruturas são reais e autónomas. Veja-se os textos do filósofo americano John Searle (1998), nos quais se propõe uma forma diferente de advogar a realidade dos "factos institucionais".

12    A expressão "conjunto de indivíduos" lembra-me imediatamente a velha discussão entre holismo e individualismo metodológico ou o debate anterior entre nominalismo e realismo conceptual. O argumento holista mais comum neste caso é sem dúvida a afirmação de que o todo é mais que a soma das partes, o que significa que, por exemplo, uma melodia não pode ser reduzida às suas notas, uma molécula não pode ser reduzida ao conjunto dos seus átomos, o comportamento de um leão não pode ser explicado pelas suas células, etc. Não entrarei nesta questão, porém, gostaria apenas de mencionar que, na minha perspectiva, o argumento mais forte deste debate é o de que os individualistas metodológicos não seguem o seu próprio dogma, ou seja, não reduzem os outros níveis ao individual, mas tentam ir mais além. Individuus significa indivisível, contudo os individualistas decompõem sempre esta entidade. Segundo o pós-modernismo, o indivíduo dispersa-se num conjunto de identidades fragmentadas; a socio-biologia representa-o através de mapas de DNA; para muitos investigadores em IA, o indivíduo limita-se a ser um computador peludo; para os defensores da teoria da escolha racional, reduz-se a uma soma de preferências, conhecimentos e lógica. Todas estas reduções baseiam-se em entidades intra-individuais não observáveis, pelo que o argumento ontológico de que "afinal, são apenas os seres humanos que agem, que podem ser observados, etc. " é apenas uma figura de retórica.

13    Os critérios científicos são valores que mudam consoante o contexto histórico e social. Contudo, a ausência de um referente arquimediano absoluto não implica que os critérios científicos sejaminúteis ou que todo o conhecimento devaser considerado equivalente. Significa antes que os critérios devem ser vistos como programas de pesquisa à maneira de Lakatos; os critérios podem ser úteis por algum tempo, relativamente a um determinado assunto.

14    Aceitando este conceito de causalidade, uma famosa diferença entre ciências naturais e sociais pode ser reformulada. As ciências naturais explicam os processos e estruturas materiais através de aparelhos conceptuais específicos de cada disciplina. Ao longo da história, novos conceitos emergem enquanto outros são preteridos. Uma primeira razão para alguns conceitos serem rejeitados tem a ver com o facto de eles não se revelarem indicadores de processos causais reais. Por exemplo, o conceito de flogisto foi rejeitado pela química nos finais do século XVIII. Este conceito encontrava-se desprovido de poder explicativo, dado que não designava um fenómeno material. Nas ciências sociais, pelo contrário, conceitos sem qualquer referência material podem ter um poder explicativo muito grande, visto que as crenças e as experiências são dotadas de poder causal. Por exemplo, um conceito como "Deus" refere- se a uma crença sobre algo que não existe. Simultaneamente, a crença em si mesma constitui um facto social com enormes repercussões históricas e sociais.

Por outras palavras, tanto os mecanismos causais mentais como os materiais fazem parte do objecto das ciências sociais, pelo que as explicações mentais, bem como as materiais, não são apenas bem-vindas mas necessárias. Esta é a perspectiva a partir da qual correntes sociológicas como o construtivismo social devem ser compreendidas, ou seja, enquanto teorias centradas na dialéctica entre a realidade material e a dimensão das crenças mentais ou conceptuais, no modo como se influenciam mutuamente e se constroem uma à outra.

O denominador comum de ambos é, precisamente, a causalidade, isto é, a forma como a realidade é construída pelos nossos pensamentos e vice-versa. O problema de algumas versões modernas do construtivismo é que são construções conceptuais demasiado focadas num dos lados, acabando por ceder ao mentalismo e ao idealismo.


Download text