Velhice, solidariedades familiares e política social: itinerário de pesquisa em
torno do aumento da esperança de vida
Nos dias que correm é impreterível reflectir, de modo mais insistente, sobre os
impactes do envelhecimento demográfico das populações e sobre as profundas
mudanças que, simultaneamente, têm vindo a ocorrer nas sociedades industriais
modernas, como é a nossa. Estas têm sido de tal forma rápidas e, em muitos
casos, inesperadas, que necessitamos de permanente pesquisa e discussão. O
debate profícua fonte de inspiração é, neste caso, essencial, na medida em
que estudiosos e políticos se confrontam, muitas vezes, com diferentes modos de
explicação do mundo. Os primeiros procuram interpretar os factos a partir de
causas gerais sem nunca se misturarem com os assuntos em questão. Os segundos,
que vivem por entre o descosido dos factos jornalísticos e a parcialidade dos
acontecimentos em que estão envolvidos, tendem, geralmente, a reduzir a
explicação global à singularidade da parcela do conhecimento que detêm. A
definição de políticas de velhice, a partir de uma formulação mais rigorosa e
objectiva dos problemas do envelhecimento e da análise exaustiva da diversidade
de realidades sociais, poderá proporcionar as correcções necessárias para que
as futuras gerações de idosos possam vir a viver melhor do que as que as
antecederam.
O problema social que representa a velhice nas sociedades modernas é um exemplo
paradigmático da forma como certas perspectivas, científicas e não científicas,
podem contribuir para o deformar através da difusão de ideias e representações
já construídas do que é a velhice. As "pessoas idosas" enquanto
estereótipo socialmente produzido e facilmente reconhecível enquadram uma
categoria de indivíduos, cujas propriedades, relativamente homogéneas, são
normalmente identificadas com isolamento, solidão, doença, pobreza e mesmo
exclusão social. Nesta perspectiva comum, as pessoas idosas são consideradas
como indivíduos isolados, permanecendo oculta a dimensão familiar da
identidade, da existência. A lógica repousa na percepção da pessoa idosa
enquanto agente de acção social apartado dos laços sociais inerentes à
instituição familiar a que pertence e no quadro das relações tradicionais de
amizade e de vizinhança. Esta avaliação, que decorre da posição que os agentes
sociais ocupam relativamente às situações problemáticas porque existem
situações problemáticas de isolamento, solidão, doença e carências afectivas e
materiais , impõe-se com maior visibilidade social e, desse modo, adquire as
condições para se apresentar como propriedade comum e dominante da categoria
dos indivíduos denominados idosos.
Em grande parte, tal facto deve-se a erros de perspectiva. Uma das formas de os
ultrapassar é colocarmo-nos de modo diferente e, através de outros pontos de
vista, observarmos a realidade com outros contornos, a partir de outras
configurações.
É esse o itinerário que pretendo aqui prosseguir.
Abordagem crítica da análise demográfica do envelhecimento
O primeiro dos pontos de vista é o que proporciona a perspectiva científica da
demografia sobre o envelhecimento das populações, um ponto de partida essencial
para a formulação problemática da velhice na actualidade. É do conhecimento
geral que o envelhecimento das populações, que se processa já a um ritmo
acelerado, tem tendência a acentuar-se, não só no topo, com o aumento dos mais
velhos, mas também na base, com a redução dos mais novos. Esta "involução
demográfica" enquadra-se na tendência dominante da dinâmica das populações
dos países desenvolvidos e, a seu tempo, da população mundial.
Um tal processo representou uma verdadeira revolução demográfica com efeitos no
equilíbrio proporcional dos grupos etários. A tendência, que se tem manifestado
de forma crescente, é para um desequilíbrio considerável entre as gerações, ou
seja, o aumento dos mais velhos é relativamente empolado pela redução dos mais
novos, contribuindo, desse modo, para o agravamento do desequilíbrio
intergeracional.
Ao longo deste século fomos passando de um sistema demográfico tradicional para
um sistema demográfico moderno, período ao longo do qual a mortalidade desceu a
níveis nunca antes registados e o declínio da fecundidade ultrapassa já os
cenários mais pessimistas das projecções demográficas. O excessivo declínio da
fecundidade, que ocorre em alguns países europeus os países de sul da Europa,
Alemanha e Áustria , é preocupante em relação ao equilíbrio futuro das
gerações. Há casos, como o das populações italiana e espanhola, onde a
fecundidade desceu para, aproximadamente, uma criança por mulher, ou seja,
metade do necessário à renovação das gerações.1 A redução crescente dos
nascimentos equivale à redução das proporções de jovens, enquanto o aumento
relativo dos restantes grupos etários irá, a médio prazo, afectar de novo o
equilíbrio intergeracional pela correspondente redução dos jovens adultos e dos
adultos activos. Este segundo impacte do declínio da fecundidade, ao contrário
do primeiro, que proporcionou a redução dos encargos públicos com a educação,
interfere directamente nos fluxos das quotizações da população que contribui
para o sistema. São mais inactivos a receber e menos activos a quotizar-se,
estes tendo que contribuir com uma parcela maior dos seus rendimentos para
garantir o funcionamento do sistema.
Segundo previsões médias das Nações Unidas, até 2050, os países da Europa do
sul, com a excepção de Portugal, deverão apresentar as mais altas proporções de
pessoas com 65 e mais anos (Desesquelles, 1998). Esta evolução pode ser
avaliada a partir dos seguintes exemplos: a Suécia, que tem uma estrutura
etária já bastante envelhecida 17,3% de pessoas acima dos 65 anos , em 2050
aumentará essa proporção para 22,4%. Por seu lado, a Itália e a Espanha que, em
1995, partem com níveis de 15% e 16%, atingirão 35,7% e 34,6%, respectivamente,
em 2050. O acentuado desequilíbrio dos países do sul deve-se aos baixos níveis
atingidos pela fecundidade no presente, apesar de a construção dos cenários
publicados pelas Nações Unidas se basear na hipótese positiva da subida da
fecundidade até ao nível de substituição das gerações. Entre os países
desenvolvidos, a Itália, a Espanha, o Japão e a Grécia virão a ser,
provavelmente, as nações mais velhas, com proporções de idosos acima dos 30%.
Segundo as mesmas fontes, em alguns destes países, a população com mais de 85
anos aumentará para mais do dobro, no mesmo período (FNUAP, 1998).
Em suma, no que respeita aos comportamentos demográficos relativos à
natalidade, mortalidade e movimentos migratórios, as sociedades tradicionais e
as sociedades modernas representam "tipos ideais"contrapostos, isto
é, elevados níveis de mortalidade e de natalidade e estruturas demográficas
jovens, opõem-se hoje a baixos níveis de mortalidade e natalidade e estruturas
demográficas envelhecidas. Foi especialmente ao longo das últimas quatro
décadas que os progressos foram mais espectaculares e que estas distinções se
acentuaram. As probabilidades de morte na infância e na adolescência baixaram a
ponto de se tornarem imperceptíveis pela estatística. A mortalidade concentra-
se agora nas idades avançadas. Uma tal evolução contribui duplamente para
empolar o envelhecimento: há mais gente a sobreviver e aumentou o termo final
de vida média.
O envelhecimento demográfico é também a característica dominante da população
portuguesa. Uma avaliação numérica deste processo pode ser retirada das
seguintes comparações: em 1900, apenas 5,7% da população total tinha mais de 65
anos. Em 1950 esta proporção aumentou ligeiramente para 7% e presentemente a
proporção praticamente duplicou para 14%. Esta diferença, proporcional do
início para o final do século, representa, em termos absolutos, que o número de
homens cuja idade ultrapassa os 65 anos foi multiplicado por 4,5 e o das
mulheres por 5,0. Por cada 100 homens desta idade, em 1900, encontramos 455, em
1999. Do mesmo modo, a cada 100 mulheres, nessa data, correspondem agora 500
(Fernandes, 1997).
É a probabilidade de poder sobreviver por mais tempo que faz aumentar o número
dos idosos em termos absolutos. As mulheres sobrevivem mais do que os homens e
esse facto faz com que a velhice seja essencialmente uma velhice no feminino.
Em 1998, 17,3% das mulheres tinham mais de 65 anos e apenas 12,9% dos homens
tinha ultrapassado esta idade. E, se considerarmos a relação entre os grupos
etários nos extremos da pirâmide etária, jovens e idosos, constatamos que por
cada 100 jovens do sexo feminino existem já 109 mulheres com mais de 65 anos
(INE, 1999).
Estamos perante transformações estruturais que, quando associadas às mudanças
de comportamento face à nupcialidade e à família, conduzem a configurações
familiares bem distintas das que encontramos no passado. As trajectórias de
vida mais longas e as perturbações das idades da vida afectam não só as
consciências individuais como o modo como os indivíduos se relacionam na teia
das relações estritas do seio familiar. As idades e os ciclos de vida sofrem
perturbações que põem em causa o nosso conhecimento construído e a forma como
ele interfere nas estratégias individuais e colectivas face à velhice e ao
envelhecimento.
Caminhamos seguramente para uma sociedade diferente da que conhecemos até agora
e onde os padrões institucionais de actuação terão que se adequar às mudanças
indeléveis proporcionadas pela revolução silenciosa do sistema demográfico. Mas
serão os indicadores que utilizamos adequados para avaliar a evolução das
estruturas demográficas e o peso do envelhecimento das populações? Até que
ponto o limiar instituído e consensual a partir do qual construímos a categoria
dos idosos, os 60 ou 65 anos, se adequa às características das sociedades
modernas? A definição destas categorias decorre directamente da determinação
oficial da idade de acesso à reforma, que é o resultado de processos históricos
que envolvem conflitos entre o estado, as instâncias empregadoras e as
organizações sindicais, representantes dos trabalhadores.
Estas categorias oficiais, conhecidas e reconhecidas, conferem legitimidade às
imagens e representações tradicionais de velhice construídas ainda num passado
recente, onde indivíduos de 60 ou 65 anos teriam provavelmente alcançado a
"idade da velhice". Os estudos demográficos sobre o envelhecimento,
ao utilizarem indicadores construídos a partir da definição de um limiar fixo
da categoria dos idosos, colaboram na promoção e no reforço do fenómeno do
envelhecimento como tendência que se pretende exactamente contrariar. Os
estudos demográficos, enquanto trabalhos científicos validados com a chancela
das instituições académicas, apresentam cenários, construídos com o rigor dos
modelos matemáticos, mas onde o futuro se projecta comprometido com a evolução
das estruturas demográficas que, perante um envelhecimento inelutável e a
impossibilidade de alterar o peso relativo das pessoas idosas, nos lançam na
resignação e no pessimismo.
Eis-me chegada a uma questão fundamental: até que ponto, por trás da
continuidade enganosa das categorias estatísticas não se encontra uma realidade
que mudou? Até que ponto a idade da velhice não foi afastada do limiar
socialmente instituído e remetida para mais tarde?
Os dados da demografia e os conhecimentos médicos dão-nos elementos suficientes
para o afirmar positivamente. Os aumentos progressivos da esperança de vida à
nascença, que, em Portugal, em 1998, atingiu já 71 anos para os homens e 79
anos para as mulheres (INE, 1999), representam conquistas substanciais que se
traduzem em probabilidades de sobrevivência elevadas. Do conjunto dos
indivíduos nascidos no mesmo ano, 75% dos homens e 89% das mulheres chegam a
completar os 65 anos. Em 1960, apenas 60% dos homens e 73% das mulheres
atingiam este patamar etário.2 Nos nossos dias, ao atingir os 65 anos, as
mulheres têm ainda a probabilidade de vir a viver por mais 18 anos e os homens
por mais 15 anos. As diferenças acentuam-se quando consideramos o sexagésimo
aniversário e comparamos os dados mais recentes com um período mais longínquo
(figura_1). Em 1930, cerca de metade das mulheres (55,7%) e dos homens (47,8%)
chegavam a completar os 60 anos. Em 1991 é quase a totalidade dos indivíduos
que pertencem à mesma geração (91% das mulheres e 81% dos homens) que completam
o sexagésimo aniversário.
Figura 1Proporção de sobreviventes ao sexagésimo aniversário, segundo o sexo, de
1930 a 1991
Estamos então em condições de afirmar que os sexagenários de hoje, que dispõem
de maiores probabilidades de sobrevivência, têm mais saúde, mais meios
económicos, culturais e sociais, maior difusão de infra-estruturas de apoio
médico-sanitário e diversidade de terapêuticas médicas. Em consequência de
todos estes factores, dispõem de mais anos para viver. Dispõem também de um
capital de informação incomparável, que deverá ter maior impacte nas gerações
mais jovens. Poderemos afirmar que, a manterem-se as mesmas condições, as
gerações futuras virão a estar mais bem apetrechadas para superar algumas das
dificuldades encontradas pelas actuais gerações que, em alguns importantes
aspectos como a conquista do direito a uma pensão de reforma , superaram as
que as antecederam.
"Velhos reformados" ou "velhos" e "reformados"?
Coloca-se-nos aqui uma nova questão: o que é então ser velho nas sociedades
modernas?
A velhice, como categoria social, pode dizer-se que ficou institucionalmente
fechada nas fronteiras de um limiar de idade fixo, cujo acesso é reforçado pela
detenção de uma pensão de reforma. Esta definição institucional não tem sido
adaptada às transformações sociodemográficas mais recentes, e tem mesmo vindo a
ser reforçada com a institucionalização das pré-reformas. Ao passar à categoria
de reformado, o "jovem velho" encontra as condições para adquirir as
propriedades que são socialmente imputadas à velhice. Perde o estatuto social
atribuído a partir do trabalho profissional a reforma é também uma forma de
exclusão social e adquire o estatuto desvalorizado de "reformado".
Mas a "idade da velhice" (Bourdelais, 1993), essa tem ultrapassado os
limiares convencionais e avançado ao sabor das flutuações do alongamento da
vida.3 A idade de ser velho, a idade em que se começam a perder capacidades
essenciais e se regista uma deterioração do estado geral de saúde surge mais
tarde, sem que institucionalmente se tenham alterado os limiares convencionados
há mais de um século. O alongamento da vida, que continua a fazer-se de modo
mais atenuado, tem repercussões no próprio conceito de velhice. Os ganhos em
tempo de vida reportam-se sobre a fase final do ciclo de vida.
Recentemente, alguns estudos levados a cabo nesta matéria têm-se debruçado
sobre a esperança de vida com e sem incapacidade.4 O objectivo consiste em
avaliar as conquistas quantitativas em anos de vida com saúde, ou seja, sem
contrair incapacidades. Os resultados apontam para diferenças importantes entre
homens e mulheres. Os primeiros, cujo limiar de esperança de vida à nascença é
inferior ao das mulheres, usufruem de mais elevada esperança de vida sem
incapacidade.
Estamos próximos de um limiar difícil de ultrapassar e a consciência desse
facto tem orientado as investigações para os aspectos diferenciais do aumento
da esperança de vida em todas as idades, consoante as categorias
socioprofissionais e as condições gerais de existência.
Num estudo realizado no Canadá, em 1978, foi possível relacionar a esperança de
vida, com e sem incapacidade, com o rendimento (Robine, 1997). Os
investigadores puderam observar que, nos escalões mais baixos do rendimento, a
esperança de vida sem incapacidade ficava pelos 50 anos, enquanto nos mais
elevados subia até aos 64 anos. Quanto à esperança de vida à nascença, os
primeiros sobrevivem até aos 67 anos e os segundos até aos 73 anos. São
diferenças significativas que remetem para a complexidade das estruturas
sociais onde os recursos económicos e culturais se distribuem de forma desigual
colocando os indivíduos em diferentes posições face à velhice e face à morte.
A característica generalizante dos indicadores demográficos como é o da
esperança de vida à nascença , cujos valores médios têm sofrido grandes
alterações, como temos vindo a referir, esconde diferenças e variações bastante
maiores quando avaliados no interior das categorias socioprofissionais. As
variações médias que apresentámos são ainda assim suficientes para nos levar a
questionar a pertinência do limiar de idade fixo, os 65 anos, base da definição
de uma categoria estatística de organização da informação, por sua vez
reconhecida como categoria social, a das "pessoas idosas".
A "idade da reforma", que coincide com a definição institucional da
velhice, os 65 anos na maior parte dos países europeus, tem sido objecto de
grandes debates políticos entre as organizações sindicais de trabalhadores e os
governos responsáveis pelos sistemas de segurança social, nomeadamente no que
concerne ao eminente desequilíbrio entre quotizantes e beneficiários e à
necessidade de o minimizar adiando a idade limite de reforma.
De facto, a idade da reforma tem sido antecipada com a cessação precoce de
actividade através, entre outras medidas, da atribuição de pré-reformas. Estas
têm representado um poderoso instrumento manipulado pelas empresas para
alcançarem reduções nos encargos com o pessoal e promoverem a renovação das
competências dos trabalhadores ajustadas às exigências dos mercados. Para a
aceitação destas medidas têm contribuído as orientações levadas a cabo pelos
sindicatos que, de modo geral, procuram antecipar o momento de os trabalhadores
acederem a um "salário sem trabalho". Mas também para o beneficiário,
o trabalhador, a reforma representa uma espécie de prémio conquistado com os
anos que já trabalhou. No caso dos trabalhadores mais jovens, ou menos idosos,
com menos tempo de trabalho acumulado, a negociação, mediatizada pela
atribuição de uma indemnização monetária, é normalmente o mecanismo eficaz para
a passagem à reforma.
A idade da reforma e a idade da velhice deixaram de ser coincidentes apesar de
a reforma, na sua génese, estar indissociavelmente incorporada à velhice
enquanto fase da vida onde se manifestava incapacidade para o trabalho. Velhice
e reforma dissociaram-se e passaram a representar duas dimensões da realidade,
duas realidades distintas onde ainda restam algumas homologias e, por vezes,
coincidências. Esta segmentação vem, de resto, pôr em causa alguns dos
pressupostos iniciais que fundamentavam a legitimidade da reforma face à
velhice. Em primeiro lugar, o pressuposto da solidariedade social, princípio
universal que sustenta o funcionamento das sociais-democracias e o alargamento
dos direitos sociais no estado-providência. Este é um dos princípios em que
assentam os sistemas de segurança social, assim como os objectivos e as
finalidades que fundamentaram o surgimento das primeiras pensões. A antecipação
da reforma para idades que rondam os 50 anos encaminha para situações de
dependência e, de certa forma, exclusão social, indivíduosfisicamente aptos a
desenvolver uma actividade, que passam a usufruir, por bastante tempo, dos
benefícios de um salário sem trabalho, cujo pagamento é garantido pelas
quotizações dos trabalhadores no activo. Neste novo cenário, deparamos com a
existência de uma "idade nova" (Gaullier, 1988), ou seja, uma nova
fase do ciclo de vida, situada entre o fim do trabalho e a velhice propriamente
dita.
A ténue fronteira que separa o trabalho do não trabalho introduz uma nova
problemática social. A generalização de pré-reformas e o desemprego prolongado
projectam os indivíduos para as margens de um envelhecimento precoce, de
marginalização social. O surgimento gradual de uma nova idade, que se situa
entre o fim antecipado do ciclo do trabalho e a velhice, é uma característica
nova das sociedades modernas, onde a obsolescência das competências é tanto
mais rápida quanto a velocidade da mudança, nomeadamente nos sectores de ponta
da economia. O "envelhecimento social", que tende assim a
generalizar-se, depende da perda de valor do capital de experiência acumulada,
capital esse em franca desvalorização dada a velocidade das transformações. São
novas relações que se estabelecem entre trabalho e reforma no final da vida
activa. Dois aspectos há a considerar:
· em primeiro lugar, a forma como o mercado de trabalho e os mecanismos de
protecção social interagem, estando estes em franca reestruturação, de modo a
regular a saída definitiva do ciclo de actividade e as implicações no tipo e
natureza do estatuto social e dos direitos acordados;
· em segundo lugar, a forma como estas alterações interferem e determinam a
reorganização dos ciclos de vida familiares em ordem à sua adequação às novas
realidades (Guillemard,1995).
As novas gerações não só percorrem trajectórias de vida mais longas como
passaram a estar expostas a maior diversidade de ocorrências sociodemográficas,
que contribuem para transformar a trilogia dos ciclos de vida em "idades
móveis" e "tempos incertos" (Gaullier, 1988).Esta flexibilidade
das idades é, segundo Xavier Gaullier (1999), a evolução inelutável da rigidez
actual. A velhice está de tal forma repleta de contradições que não pode
permanecer, como se encontra actualmente, dos 50 aos 90 anos. Não só pelas
consequências no equilíbrio financeiro do sistema de reformas como por motivos
de ordem psicológica e social, isto é, os anos vividos a mais não deverão ficar
remetidos apenas para o terceiro ciclo de vida. Mas a solução não consiste
simplesmente em mudar a idade da reforma para mais tarde, como tem sido
sugerido frequentemente. O problema é bem mais profundo e mais geral, e tem a
ver com "a localização das riquezas (emprego, tempos livres, formação,
salários e rendimentos sociais ) no conjunto do ciclo de vida ( )" (idem:
185). De modo global, a solução do problema remete para uma pluriactividade em
todas as idades, isto é, uma flexibilidade geral, imposta ou escolhida.
Desvinculada da idade da reforma, a velhice parece surgir agora, de forma mais
nítida, associada às incapacidades físicas, psíquicas e mesmo materiais que
surgem nas idades muito avançadas. São os "muito velhos" que absorvem
cada vez mais os recursos humanos e materiais disponíveis. O novo risco da
velhice, a "dependência", transformou-se, nos últimos anos, no grande
debate, no maior desafio. A dimensão dos problemas, a sua grande diversidade e
a ocorrência crescente de situações trazem para o fórum da discussão os vários
agentes envolvidos, que vão desde as famílias, passando por organizações
privadas e, por último, o estado enquanto produtor de políticas e principal
instância pública de resolução dos problemas sociais. Trata-se de avaliar
custos e encargos e dividir responsabilidades. As reservas de solidariedade
familiar e de vizinhança, as instituições que têm surgido ao longo dos últimos
anos e no decurso das políticas sociais de velhice lares, centros de dia,
apoio domiciliário parecem recursos insuficientes e, em certos casos, mesmo
desadequados às exigências e à dimensão do problema. Solidariedades familiares
e políticas sociais conjugam esforços de modo a encontrarem as melhores
soluções de encargo, porque é disso que se trata, com os custos mais reduzidos
para todos os lados.
Família, trocas intergeracionais e solidariedade formal
A família é o lugar primordial das trocas intergeracionais. É aí que as
gerações se encontram e interagem de forma intensa. É o lugar do don, da troca,
da entreajuda incondicional. As solidariedades familiares são uma fonte
inesgotável de entreajuda, apesar de se encontrarem expostas às perturbações
sociodemográficas das sociedades modernas. O alongamento da vida e a co-
longevidade das gerações que daí resulta, a diminuição da fecundidade e a
duração da procriação produziram novas estruturas de parentela e uma nova
matriz latente de inter-relações das quais apenas uma parte é efectivamente
activada. Aumenta o número de famílias trigeracionais, com desenvolvimento e
reforço do topo, chegando a haver mais avós do que netos. Esta estrutura
familiar multigeracional implica, não somente uma maior longevidade, mas também
fracas distâncias geracionais.
Esta maior sobrevivência das gerações beneficia, no presente, de um aumento da
esperança de vida nas idades mais avançadas e de uma fecundidade precoce da
geração intercalar. O tempo que as distancia é menor do que virá a ser no
futuro e a permanência de quatro gerações em simultâneo repete-se em maior
número de casos. No entanto, é agora menos frequente a coabitação dos pais
idosos com os seus filhos adultos e, em contrapartida, maior a proporção de
idosos que vivem sós.
Em Portugal, segundo os últimos recenseamentos (1981 e 1991), a percentagem de
famílias onde não residem idosos baixou de 71% para 69%. Por seu lado, a
proporção das famílias com uma só pessoa, com idade superior a 65 anos,
aumentou de 7% para 8%. Também a percentagem do número de casos em que coabitam
dois idosos passou de 6% para 7%. Não são grandes alterações, mas indiciam o
sentido da mudança: maior autonomia das pessoas idosas, mas, provavelmente,
também maior isolamento face à família.
Quanto a este último aspecto, Portugal é dos países da UE, juntamente com
Espanha e Grécia, onde se registam menores proporções de idosos que residem
sós, apesar de este indicador ter evoluído de 17,5%, em 1981, para 18,5%, em
1991.5 É um ligeiro aumento que, apesar de revelar uma tendência para subir,
como seria de esperar, não altera a posição que Portugal ocupa em relação a
outros países da Europa do norte, onde vigoram sistemas de protecção social
"maduros", isto é, com uma implantação bastante mais longínqua do que
o nosso. A título de exemplo é de referir o caso extremo dos países nórdicos,
como a Finlândia e a Dinamarca onde, aproximadamente, 40% dos idosos residem
sós.
Pese embora esta avaliação quantitativa, que nos leva a considerar a tendência
para uma maior e mais efectiva autonomia das pessoas idosas é importante
reforçar o facto de que usufruem hoje de mais meios económicos, culturais e
sociais para preservar essa independência , não podemos deixar de avaliar as
consequências ao nível das relações entre as gerações. Como se estabelece a
solidariedade entre pais, filhos e netos na estrutura das relações baseada num
reforço da autonomia dos grupos domésticos? Isto é, como é que a reivindicada
autonomia dos membros da família se articula com a solidariedade
intergeracional?
Sobre esta questão, complexa e de difícil avaliação, convém clarificar
previamente o que entendemos por solidariedade e como se materializa ela nas
relações que se estabelecem entre as gerações, no espaço reservado da família.
Em primeiro lugar, é necessário referir que as solidariedades intergeracionais,
área de conhecimentos que deve a sua relevância aos trabalhos empíricos de
Louis Roussel (1976), Agnés Pitrou (1977), Catherine Bonvalet (1991), J.
Kellerhals (1987, 1988), entre outros, vieram restituir a parentela à família.
As investigações mais recentes têm demonstrado que as trocas e os laços que
unem os membros da parentela foram sendo, recentemente, redescobertos, após um
período em que, de algum modo, estiveram ausentes na maior parte dos trabalhos
baseados nas teses de nuclearização da família, isto é, com a suposição de que
os laços com a família de origem haviam sido rompidos com a industrialização
(Attias-Donfut, 1995). Estes estudos empíricos vieram mostrar até que ponto a
ideia da família/grupo doméstico, fechado sobre si próprio, isolado da restante
parentela, correspondia mais a uma radicalização excessiva da tese de Parsons
sobre a diferenciação social, do que à realidade. Talcott Parsons considerava
que os processos de industrialização segmentaram a família, primeiro isolando-
a da sua rede de parentesco e reduzindo as dimensões do grupo doméstico a um
lar conjugal com um pequeno número de filhos (citado por Segalen, 1999). É
ainda o mesmo autor que considera que a mobilidade social, condição e causa do
desenvolvimento económico, passava pela ruptura dos laços de parentesco. Apesar
de ter influenciado as investigações sobre a família ao longo das décadas de 60
e 70, e de ter contribuído para a difusão de um pressuposto de desaparecimento
do parentesco, a teoria parsoniana sobre a família começou a ser posta em causa
com o surgimento das investigações empíricas, já referidas, sobre as
solidariedades familiares, que provaram que as famílias nucleares não estavam
isoladas (idem). As famílias modernas organizam-se em torno de laços de
parentesco, construindo redes de relações através das quais circulam ajudas,
bens e afectos. O conceito de parentesco foi assim restituído aos estudos sobre
a família contemporânea.
Recentemente, numerosos estudos têm revelado a importância e a diversidade das
trocas entre pais idosos, os seus filhos adultos e os netos (Attias-Donfut,
1995). As transmissões económicas e monetárias ocorrem, principalmente, em
sentido descendente, de avós para netos e de pais idosos para os seus filhos
adultos, ainda que os rendimentos dos primeiros sejam, em muitos casos,
inferiores. Não sucede o mesmo quanto a serviços prestados, cuja circulação se
processa generalizadamente nos dois sentidos. Entre as gerações extremas as
trocas são menos frequentes, mas continuam a ser apreciáveis e vão normalmente
dos jovens para os mais velhos (Attias-Donfut, 1995).
Mas como se processa este circuito de dádivas e retribuições (o don e o contre-
don, na acepção de Marcel Mauss), como são identificados pelos directamente
interessados? Segundo Claudine Attias-Donfut (1995), a identificação da
presença de um don na relação implica várias operações mentais que remetem para
a necessidade de abstrair da relação e referenciá-lo enquanto elemento
distinto. Quando as trocas não se inscrevem em rituais simbólicos, como
acontece com os presentes de Natal ou de aniversário, mas ocorrem na
normalidade da vida quotidiana, a dádiva dificilmente é apercebida igualmente
por quem dá e quem recebe. E mais difícil é esta percepção quando não se trata
de dádivas materializadas em objectos mas apenas de uma ajuda ou um pequeno
serviço. Para a mesma autora, as pessoas idosas que hoje usufruem uma reforma
confortável apoiam material e financeiramente os seus filhos e netos e recebem
destes ajudas sob a forma de serviços.
Os tipos de ajuda que se desencadeiam entre os membros da família, quer
provenham da geração intermédia para os seus pais idosos, ou dos pais mais
velhos para os filhos, têm normalmente origem no reconhecimento de uma
necessidade. Esta entreajuda intergeracional tem características multiformes e
desiguais ao longo do ciclo de vida familiar. Segundo Claudine Attias-Donfut
(1998), seguem as seguintes motivações:
· alógica das necessidades: as ajudas são orientadas em direcção aos membros da
família que se deparam com dificuldades;
· o laço de reciprocidade: as ajudas representam a liquidação de uma dívida
resultante de uma dádiva recebida anteriormente;
· a complementaridade com as ajudas públicas: as prestações sociais estimulam a
entreajuda familiar.
Mas as trocas intergeracionais, fruto da solidariedade familiar, não ocorrem
igualmente entre os membros da família. Segundo J. Kellerhals (1988), a
densidade média de activação da rede de entreajuda não ultrapassa os 25% dos
membros da família e constitui-se como uma espécie de carapaça em torno da
família nuclear. Esta rede é estruturada em linha vertical, isto é, entre pais
e filhos, situando-se, preferencialmente, na linhagem matrilateral.
Num estudo realizado em Portugal por Paula Martins Gil (1998), sobre o circuito
das trocas entre pais idosos, em relação de dependência com instituições, e os
seus filhos adultos, é posto a descoberto o predomínio dos afectos e dos bens
materiais que circulavam dos pais para os seus filhos adultos e, em sentido
contrário, o predomínio de cuidados instrumentais e de acompanhamento,
maioritariamente protagonizados pela componente feminina do grupo familiar.
Segundo a autora, esta "presença feminina caracteriza-se por ser muito
mais contínua e regular, traduzida por serviços, bens e suportes
materiais" (Gil, 1999: 106). Apesar das alterações estruturais dos últimos
anos, que colocaram as mulheres na senda da vida pública, elas continuam a
garantir o apoio familiar que antes lhes havia sido destinado ao mesmo tempo
que concorrem a uma actividade profissional.
As trocas intergeracionais continuam a ser um aspecto primordial das relações
familiares nas sociedades modernas e pós-modernas. O conteúdo e a intensidade,
o sentido dos fluxos são alguns dos aspectos a considerar na reconstituição das
relações entre as gerações. De modo geral, as trocas concretizam-se em torno do
domínio afectivo, da ajuda doméstica e financeira, da guarda das crianças e dos
cuidados gerais em caso de doença ou incapacidade. "Dá-se" e
"recebe-se" tempo de convívio e atenção, serviços de vária ordem e,
talvez o que mais facilmente se consegue contabilizar, ajudas financeiras e
presentes.
A estrutura das relações familiares tem sido perturbada pelo aumento de
rupturas matrimoniais e de novas conjugalidades. Estamos em condições de
afirmar que tais alterações produzem descontinuidades, incertezas e
indefinições nas idades da vida e nos ciclos de vida familiares. A família,
redefinida num enquadramento mais vasto apresenta-se mais facilmente numa
grande diversidade de formas de parentesco. As rupturas matrimoniais e as novas
conjugalidades vieram criar as condições para uma reestruturação das relações,
mais aberta, e com maior peso de imprevisibilidade. Para certas ideologias mais
conservadoras, estas transformações representam uma crise da família, de um
modelo de família nuclear e monolítica.
Ao contrário de uma certa visão parcial, partilhada pelos agentes sociais que
se ocupam da velhice, a denominada "crise da família" não destruiu o
capital de afectividade, fonte de entreajuda entre pais e filhos que se
relacionam agora de modo diferente daquele que conhecemos nas sociedades
tradicionais. A velhice adquiriu maior visibilidade com o aumento absoluto e
relativo do número de idosos e o prolongamento da terceira fase do ciclo de
vida. Aumentou também o número e a frequência de casos problemáticos de
isolamento e abandono que constituem um campo vasto de intervenção dos agentes
sociais. A "culpa da família" é a razão fácil a que se acomoda o
agente social para justificar a existência do problema. O sentimento de
culpabilização que daí decorre, especialmente para as mulheres, filhas ou
noras, sempre potenciais cuidadoras, não é desejável nem profícuo para a
resolução do problema. É necessário conhecer melhor os modos de solidariedade,
os tipos de entreajuda, as trocas entre as várias gerações, de modo a avaliar
as potencialidades das solidariedades familiares.
Em contrapartida, a solidariedade pública, formal, que está na base dos
mecanismos de protecção social, confronta-se com dificuldades em responder à
intensificação e diversidade dos problemas que decorrem da dependência na
velhice. Neste caso, o laço que une as solidariedades familiares e as políticas
sociais é evidente. Não existe uma solução única e definitiva dos problemas, e
a intervenção profissional dos agentes sociais é diferente das ajudas que podem
dispensar as famílias. Não só a solidariedade familiar intervém num registo
diferente do dos serviços públicos e profissionais, como a entreajuda, movida
pelo sentimento de afecto e obrigação, e a acção que desenvolve, é
caracterizada por maior flexibilidade e adaptabilidade, ao contrário das
intervenções públicas (Martin, 1995).
No cenário de envelhecimento futuro, é importante que as instâncias produtoras
de políticas sociais se preparem para as transformações que começaram a ter
lugar. Os apoios de tipo social que têm marcado as políticas na maior parte dos
países em que foram implementadas, como os centros de dia e os apoios
domiciliários, poderão deixar de ser a orientação essencial das políticas nas
futuras gerações de idosos. A velhice dependente vai ser o grande desafio já no
início do milénio. Em contrapartida, as próximas gerações virão mais bem
munidas para responder às dificuldades materiais e culturais, com maior sentido
de autonomia e uma mais poderosa consciência de cidadania, promotora de maior
capacidade de resolução dos problemas individuais e mesmo colectivos.
As políticas sociais vão ainda deparar-se com as dificuldades de gestão social
do não trabalho, transferindo para outras áreas alguns dos problemas que eram
atribuídos apenas aos idosos e aos deficientes. O desemprego prolongado,
associado à saída antecipada do ciclo de vida laboral, origina um mercado
potencial de indivíduos carenciados, que irá provavelmente mobilizar grande
parte dos recursos sociais que já não são absorvidos pelos idosos enquanto
potenciais beneficiários. Segundo Robert Castel (1995), a crise de futuro, que
já se iniciou, é uma crise que vem do centro como uma onda de choque que
atravessa a estrutura social. Caminhamos para uma desestabilização dos
estáveis, dos trabalhadores qualificados que se podem tornar precários. A
fragilidade social, o risco de exclusão, atravessa toda a sociedade, através da
perda de centralidade do trabalho e da degradação da condição salarial.
Mais do que o aumento do papel do estado devemos estar, sobretudo, atentos à
transformação das modalidades de intervenção. Diria que, num futuro já muito
próximo, a velhice não vai deixar de ser um problema social, mas ela vai deixar
de ser uma propriedade, menos conotada com necessidades materiais e sociais e
objecto de políticas sociais específicas, e mais com apoios médico-sociais
normalmente bastante sofisticados.
Notas
1 O Índice Sintético de Fecundidade (IST) nestes dois países é de 1, 2
crianças por mulher (Population et Societé, 1999).
2 Apesar de os indicadores mostrarem uma tendência crescente, Portugal,
juntamente com a Irlanda, apresentam os valores mais baixos da União Europeia
(As Gerações Mais Idosas, INE, série de estudos n.º 83, 1999).
3 Este conceito consiste na determinação de um indicador de idade fundado
sobre a probabilidade de sobreviver 5 ou 10 anos. Esta probabilidade é
calculada para toda a coorte, isto é, do nascimento até à idade x.
4 Em Portugal apenas foi realizado o estudo publicado em 2000 pelo INE.
5 Em 1991, a Espanha regista 16,6% e a Grécia 17,7% de idosos a residirem
sós. Para mais informação consultar As Gerações Mais Idosas, INE, 1999.