Risco cultivado no consumo de novas drogas
Novas drogas associadas a novas práticas de consumo tornam necessário recolocar
questões antigas de uma nova forma, à luz da complexidade das sociedades
contemporâneas.
Apesar de ao longo dos tempos, em todas as culturas, ter sido corrente a
utilização de várias substâncias com o poder de aliviar o sofrimento e de
modificar o humor, os consumos têm vindo a generalizar-se e a intensificar-se.
Na era da globalização e do consumismo, também os consumos de drogas se têm
vindo a massificar, mas estão também mais diversificados.1
Existe, com efeito, um conjunto de substâncias tóxicas ilícitas cujo consumo
essencialmente recreativo tem sido mais visível (e crescente) nos últimos anos:
as chamadas designer drugs (Godinho, 1995). Trata-se sobretudo de substâncias
sintéticas (anfetaminas, alucinogéneos e outras), cuja composição resulta da
investigação laboratorial.
Uma das mais conhecidas é o Adam, X, E, ou ecstasy nome pelo qual é mais
conhecida a substância química MDMA (metilena-dioxi-meta-anfetamina), que terá
surgido num laboratório alemão em 1913 como supressor do apetite. Apresenta-se
sob a forma de um comprimido ou pastilha, geralmente com um símbolo gravado,
podendo ocasionalmente aparecer também em pó.
Embora a composição química desta substância seja conhecida, as suas
propriedades psicoactivas são únicas. O seu uso inicial, ligado ao tratamento
psiquiátrico, demonstrou que as alterações do estado de consciência
experienciadas não eram facilmente controladas. O ecstasy passou a ser
considerado uma droga poderosa e perigosa e o seu uso terapêutico proibido.
Sendo uma substância ilegal, os seus fabricantes não estão sujeitos a
regulamentação ou controlo de qualidade. A única forma de descobrir exactamente
o que contém um dado comprimido e em que quantidade, é testá-lo
laboratorialmente. Assim, apenas é possível dizer o que deveria conter um
comprimido de ecstasy e aquilo que pode conter um comprimido de ecstasy.2
Deveria conter MDMA, MDA (metilena-dioxi-meta-anfetamina) ou MDEA (metilena-
dioxi-etil-anfetamina). São substâncias similares entre si e muitos dos
consumidores não conseguem distingui-las. Mas a composição pode ser outra. Em
alguns comprimidos testados foram encontradas outras substâncias psicoactivas,
geralmente anfetaminas (speed), LSD (dietilamida de ácido lisérgico), 2-CB (4-
bromo-2,5-dimetoxifenetilamina), cafeína, efedrina, cetamina, aspirina e outros
medicamentos (na composição ou simplesmente passados como ecstasy), atropina,
4-MTA (4-metiltioanfetamina), DXM (dextromethorphan)
Trata-se de um conjunto de substâncias que não interessa agora definir em
termos químicos e psicoactivos, mas que representam alterações àquilo que se
espera de um comprimido de ecstasy. Por isso, são frequentes as questões dos
consumidores relacionadas com as variações dos efeitos esperados e com reacções
colaterais inesperadas. A este tipo de questões a única resposta possível
parece ser mesmo o teste laboratorial, pois embora os comprimidos pareçam
iguais a sua composição pode ser diferente.
Os consumos destas substâncias surgem fortemente associados à música e à dança.
São, pois, particularmente populares nas rave party, mas também nas discotecas.
O presente artigo pretende dar conta dos resultados mais importantes de uma
pesquisa, cujos principais objectivos foram perceber melhor estes consumos e
contextos, mas também os consumidores.3
Eixos teóricos
Ao longo da história acreditou-se na possibilidade de alcançar, para além da
consciência, um universo sentido, mas que não se podia ou conseguia tocar. Os
químicos que alteram a forma como percepcionamos o mundo têm desempenhado um
importante papel nesta busca.
É, pois, possível identificar uma relação dialéctica que se estabelece entre os
diversos elementos implicados nos consumos (Chaves, 1998). Um primeiro conjunto
de elementos corresponde às características do grupo dos consumidores, às
supostas razões desse consumo, sua natureza e extensão. Um segundo conjunto é
referente aos contextos específicos associados. E um último é relativo à
selecção que os indivíduos fazem das diversas substâncias psicoactivas
disponíveis no mercado em função de um processo reflexivo desenvolvido na
relação com grupos de pertença e de referência, estilos de vida, valores,
crenças, objectivos, entre outros.
Partiu-se por isso, neste estudo, da seguinte ideia: as mudanças nos sistemas
social, económico e cultural, cada vez mais globais, complexificam a relação
tripolar entre consumidor / substância / contexto de consumo. A análise centra-
se nas práticas de consumo de novas drogas.
A orientação teórica deste trabalho resultou, pois, da combinação de várias
dimensões e conceitos de modelos propostos no âmbito de diversas regiões
teóricas. Da articulação do objecto recortado com as propostas dos vários
autores, importa distinguir, por imposição do trabalho analítico, três domínios
de análise principais: os consumidores, os contextos de consumo e as práticas
associadas aos consumos.
Risco e estilos de vida na modernidade: os consumos
O forte dinamismo que caracteriza o mundo moderno é visível no ritmo da mudança
social, que é mais rápido do que em qualquer outro sistema anterior. Mas também
na profundidade com que afecta as práticas sociais e os modos de comportamento
pré-existentes (Giddens, 1994). As práticas associadas aos consumos de
substâncias psicoactivas conhecem hoje formas e usos que as distinguem das
anteriores: massificaram-se, banalizaram-se, acentuou-se e generalizou-se a
conotação negativa que lhes é associada, e são essencialmente protagonizadas
por jovens.
Situamo-nos, pois, nos envolvimentos da modernidade, designadamente naquilo que
Giddens refere como os ambientes de risco e os estilos de vida. O autor
identifica em circunstâncias da modernidade um clima de indefinição em que
parecem não existir possibilidades pré-definidas, encontrando-se todas em
aberto. Este clima de risco leva a um questionamento permanente Que fazer?
Como agir? Quem ser? (Giddens, 1994: 63) face ao qual se deve adoptar uma
atitude calculadora em relação às possibilidades de acção, positivas ou
negativas, com as quais somos continuamente confrontados. Neste sentido, a
noção de risco torna-se central, o que significa que as necessárias escolhas de
estilos de vida acentuam as diferenças entre os riscos voluntariamente corridos
e os que decorrem dos constrangimentos da vida social.
Entende-se aqui estilo de vida como um conjunto mais ou menos integrado de
práticas que um indivíduo adopta, não só porque essas práticas satisfazem
necessidades utilitárias, mas porque dão forma material a uma narrativa
particular de auto-identidade (idem: 73). Desta forma, os estilos de vida
traduzem-se em práticas rotinizadas, que se incorporam em hábitos de vestir,
práticas alimentares, modos de agir, espaços.
Existe, pois, uma pluralidade de escolhas de estilos de vida. Mas Giddens fala
ainda de sectores de estilo de vida, para designar uma parte do espaço-tempo
total das actividades de um indivíduo, dentro da qual é levado a cabo um
conjunto relativamente consistente e ordenado de práticas. Por exemplo, aquilo
que se faz em certas noites da semana, ou aos fins-de-semana, por contraste com
outros momentos da semana.
Bourdieu (1979) considera que as variações de estilos de vida entre grupos são
traços estruturantes elementares de estratificação. Isto é, o planeamento de
vida e as escolhas de estilo de vida constituem cenários que ajudam os agentes
a dar forma às suas acções. Para todos, as possibilidades de vida condicionam
as escolhas de estilos de vida, e as escolhas de estilo de vida são
frequentemente usadas de modo activo para reforçar a distribuição das
possibilidades de vida construção criativa e distintiva de estilo de vida.
Nesta linha, as práticas de consumo das novas drogas parecem corresponder a
opções de estilos de vida que, por sua vez, se inscrevem em sectores de estilos
de vida mais ou menos alargados no total do espaço-tempo, e que se apresentam
como distintivos face aos restantes momentos. Os padrões de estilo de vida
podem, por vezes, incluir a rejeição mais ou menos deliberada de formas de
comportamento e de consumo mais vastamente difundidas e a consequente adopção
activa de certo tipo de riscos, sendo importantes para a valorização dos riscos
em si mesmos. Assim, iniciar um consumo conhecendo os riscos para a saúde, pode
demonstrar uma certa audácia que o indivíduo considera psicologicamente
compensadora. No entanto, pode-se iniciar voluntariamente o consumo de uma
substância e esse consumo acabar por ganhar um carácter compulsivo.
A emoção das actividades de risco, que Giddens designa por risco cultivado,
envolve várias atitudes discerníveis: exposição voluntária ao perigo,
consciência dessa exposição e expectativa mais ou menos consciente de o
ultrapassar.
O sujeito-agente
A imagem que genericamente se tem dos consumidores de drogas (reforçada pelos
mass media) é uma construção social baseada nos seus aspectos mais típicos.4
Essencialmente, corresponde a um sujeito-actor, que é vítima da substância,
dos traficantes, da família, do sistema, etc. A perspectiva aqui proposta
representa uma inversão face a esta imagem mais comum.
Para poder procurar novas formas de interpretação sobre estes consumidores,
parte-se da percepção de que se trata de sujeitos-agentes, capazes de
atribuírem sentido às suas acções e opções. Importam, aqui, as dinâmicas
implicadas nos estilos de vida associados aos consumos de novas drogas
dinâmicas de acção, interacção e mesmo motivacionais.
A percepção das perspectivas dos consumidores sobre as suas vidas e das
significações que guiam as suas práticas de consumo traduzem o conjunto das
razões para a acção e são uma parte integrante da reflexividade exercida sobre
essa acção (Giddens, 1994). Entender o comportamento como um devir, aberto às
diversas possibilidades e sujeito à reflexividade produzida pelos indivíduos,
implica ter também em conta que essas possibilidades podem compelir para modos
de conduta alternativos.
Heritage, citando Garfinkel, destaca o facto de o agente social responder ao
comportamento, aos sentimentos, motivos, relações e outras características
socialmente organizadas da vida ao seu redor por ele percebidas, mas também à
normalidade percebida desses eventos (1999: 333). As subculturas do uso das
drogas assentam em formas existenciais e sistemas de normas socialmente
entendidas como desviantes e, por isso, em tensão com os sistemas dominantes.
Taylor, referido por Giddens (1994), defende que, de modo a termos uma ideia de
quem somos, temos de ter uma noção de como nos tornamos no que somos, e de para
onde vamos. É neste sentido que Giddens refere a construção reflexiva do self
no mundo actual, face a circunstâncias de incerteza que se traduzem numa
diversidade de possibilidades de opção (daí a importância das noções de
confiança e de risco). Ao forjarem as suas identidades pessoais, e
independentemente do carácter dos seus contextos de acção específicos, os
indivíduos também contribuem para promover influências sociais com
consequências e implicações globais. O movimento associado à rave party e à
dance music pode ser entendido nesta relação das implicações globais dos
contextos específicos.
Contexto e significado
A globalização pode ser definida como a intensificação das relações sociais de
escala mundial, relações que ligam localidades distantes de tal maneira que as
ocorrências locais são moldadas por acontecimentos que se dão a muitos
quilómetros de distância, e vice-versa. Este processo é dialéctico porque a
transformação local faz parte da globalização tanto como a extensão de ligações
sociais através do tempo e do espaço (Giddens, 1994).
Num cenário marcado pela urbanidade o consumo de novas drogas traduz uma faixa
específica de comportamentos urbanizados, aliados a espaços determinados, com
relativa visibilidade pública.5 No âmbito concreto desta pesquisa importam os
espaços de lazer com actividades associadas a estas drogas: comércio, consumo,
diversão as discotecas.
Perceber estes espaços no mosaico de interdependências corresponde a perceber
os modos interaccionais específicos aí gerados. Mas permite também perceber a
construção social desses espaços que resulta da apropriação que deles se faz.
Os contextos formam cenários de acção a cujas qualidades os agentes recorrem
para orientar o que fazem e dizem uns aos outros. Isto implica que o
significado de algo só faça sentido por referência a um contexto. Noutros
termos, os contextos dos eventos fornecem recursos para a sua interpretação.
A organização das cadeias de interacção indicia as acções incorporadas, que se
traduzem nas características dos diversos grupos e das suas práticas sociais.
Com uma disposição ordenada no tempo e no espaço os processos interactivos
permitem aos indivíduos regionalizar, rotinizar, ritualizar e categorizar as
suas actividades conjuntas (Giddens e Turner, 1999). A regionalização pressupõe
regras, concordância e interpretação quanto a quem ocupará determinado espaço,
quem deterá um espaço desejável e quem poderá mover-se pelo espaço. A
regionalização de actividades é bastante facilitada quando acções conjuntas são
rotinizadas, quando os indivíduos fazem mais ou menos as mesmas coisas
(movimentos, gestos, palavras, etc.), ao mesmo tempo e no mesmo espaço.
Na análise destes cenários, assumem um papel particular a música e a dança. Na
visão de alguns autores que se têm dedicado ao estudo da expressão musical, a
pessoa está repleta de instintos, de influxos, de impulsos, de tensões, de
desejos, de emoções e de sentimentos, necessitando de os satisfazer e de os
expandir livremente (veja-se, por exemplo, Sousa, 2000). As discotecas, ao
facultarem os meios para que o possa fazer e a motivação que permite
ultrapassar a natural situação inibitória inicial, proporcionam a expressão de
tudo aquilo que se acumula no mais íntimo do ser. Sendo essa expressão
correspondente a uma exteriorização pessoal da vida interior, ela é
necessariamente diferente em todas as pessoas.
Podem identificar-se na música várias dimensões (Zenatti, 1994: 9-10):
* a dimensão psicofisiológica, porque o som se repercute no corpo e a música
implica movimento no tempo e no espaço;
* a dimensão emocional, porque traduz mensagens, desperta emoções, gera
comunicação;
* a dimensão cultural, porque é uma prática social, é característica de cada
povo e produz conhecimento;
* a dimensão estética, como arte em si própria, que contém, traduz e desenvolve
o processo criativo e os valores estéticos.6
Desta forma, a música liga-se à motricidade, aos sentidos, à afectividade.
Aliada à dança traduz uma forma de expressão em que o indivíduo participa e
cujos efeitos pode modificar, ampliar ou reduzir através da acção de
substâncias psicotrópicas.
Estes eixos teóricos de análise têm o objectivo de fundamentar teoricamente a
análise das práticas associadas aos consumos das novas drogas a partir do
sentido que os próprios actores atribuem a essa acção e dos espaços onde têm
lugar.
Eixos de análise
Foi intenção da pesquisa a que se reporta este artigo identificar e
caracterizar as novas drogas, os contextos sociais e práticas do consumo e os
grupos de consumidores. Partindo precisamente destes últimos, e tendo em conta
as suas relações com o sistema social, económico e cultural, procurou-se
reconstituir o espectro de significados atribuídos pelo consumidor aos seus
próprios consumos. Tudo isto, em contextos específicos de espaços que são
utilizados mas também co-construídos pelos seus utilizadores.
No entanto, por um lado, o significado que o indivíduo atribui à substância
encontra-se profundamente associado a todos os elementos que, de forma mais ou
menos consciente, lhe permitem constituir a sua identidade social. Por outro
lado, esses tipos de consumo encontram-se, muitas vezes, imersos simplesmente
em desejos de pertença a grupos específicos de consumidores baseados em
crenças, valores, expectativas associadas ao consumo e efeitos das substâncias;
em síntese, baseados em estilos de vida.
Campo de observáveis e metodologia de observação
De um modo geral, as experiências de consumo das novas drogas são realizadas
colectivamente e os contextos sociais mais associados a estes consumos são as
discotecas particularmente nas rave parties. Assim, a investigação decorreu
no terreno do próprio utilizador de drogas. São, no entanto, espaços com pouca
visibilidade e difíceis de captar. As análises dinâmicas destes grupos
específicos são ainda dificultadas pelo seu carácter fechado, associado às
condutas socialmente reprovadas e legalmente penalizadas.
Ultrapassar estes obstáculos passou pela utilização composta de vários recursos
metodológicos, de carácter qualitativo, ligados à etnografia.7 Recorrendo à
observação participante, a informantes privilegiados, a intermediários
técnica da bola de neve e à familiarização do investigador com o contexto,
nomeadamente através da participação informal em situações variadas. Isto
traduz uma atitude naturalista, o que significa perceber o objecto no sistema
onde é identificado e do qual faz parte, recorrendo a posições perceptivas
proximais.
O campo de observáveis desta pesquisa foi constituído por indivíduos
frequentadores de festas, ou que se encontram (ou encontraram) de alguma forma
ligados a estes eventos, em discotecas da zona Centro Coimbra, Leiria,
Marinha Grande, S. Pedro de Moel, Caldas da Rainha. Foram, assim, realizadas 20
entrevistas, entre Fevereiro e Abril de 2002.
A análise a seguir resulta já da interacção entre a informação das entrevistas
e a que resultou dos outros recursos já referidos.
Ambientes de consumo
A prática de sair à noite constitui, geralmente, um acto colectivo, partilhado
por grupos de referência [Pais (org.), 1999]. Neste sentido, os locais de
encontro, convívio e sociabilidade são importantes na definição e
caracterização dos novos consumos.
Estes espaços recreativos constituem-se como espaços de socialização, na medida
em que favorecem a interacção entre pares. Mas também porque, aqui, os jovens
agem de acordo com uma ordem ou sistema de valores que tende a diferir dos
predominantes na esfera familiar (Calafat, 1999).
Quando os jovens se reúnem para sair à noite, escolhem os locais que mais se
adaptam às suas expectativas estéticas e hábitos recreativos. Cada espaço
permite e sugere um número de actividades ou um estilo de entretenimento, que
se traduz numa oferta adaptada às exigências dos clientes.
No âmbito desta pesquisa os espaços recreativos que interessa referir são
sobretudo os bares, as discotecas e as festas. Trata-se de espaços com forte
presença da música e da dança. A decoração é muito específica e ao definir
aquele espaço procura demarcá-lo de cada um dos outros. Pode ainda haver festas
temáticas, geralmente promovidas por marcas de bebidas energéticas ou
alcoólicas.
Assim, a identificação com os lugares motiva as escolhas individuais e de
grupo. E essa identificação passa pelos diversos componentes do ambiente
daquele lugar: a decoração, a música, os outros que também frequentam, a
dinâmica proposta, etc.
As parties rave, dance, dj são eventos cuja organização pode acontecer numa
determinada discoteca, mas também pode ocorrer noutro espaço criado para o
efeito, como tendas, ou para isso adaptado, por exemplo pavilhões ou castelos.
No âmbito dos novos consumos aqui considerados importa ainda destacar a
recriação adaptada destes ambientes em festas particulares, com um carácter
mais íntimo, restrito e limitado a um determinado grupo. Geralmente em casas
alugadas para o efeito.
O quadro 2 sintetiza a análise relativamente aos tipos de consumo e estilos de
vida.
Ecstasy?
Embora a mais conhecida seja o ecstasy, o grupo designado por novas drogas é
bem mais abrangente e engloba outras substâncias. Trata-se sobretudo de
substâncias sintéticas (anfetaminas, alucinogéneos e outras) cuja composição
resulta da investigação laboratorial.
Apesar de uma primeira pesquisa, ainda exploratória e documental, ter revelado
um número praticamente infinito de substâncias, nenhum dos entrevistados
demonstrou ter conhecimento acerca desta variedade na oferta de produtos.
Existem diferentes pastilhas para provocarem diferentes sensações: ou para
estar bem com a namorada, ou para estar uma noite inteira a dançar, ou para
conversar o problema é que ( ) nunca se sabe o que está lá dentro. [M, 29
anos, ex-dj]
Há muita coisa, aquelas com vários símbolos e cores doves, golfinhos, trevos,
etc. são coisas diferentes. Cada uma tem várias substâncias misturadas e quem
toma não faz a mínima ideia do que contém. Experimenta, e gosta da sensação,
por isso repete ou vai experimentando outras [M, 26 anos, empregado de café]
Os efeitos que provoca assumem para os consumidores uma importância maior do
que o conhecimento da sua composição. Mas, mesmo sabendo que cada pastilha
resulta da composição de várias substâncias químicas trabalhadas em
laboratório, privilegiam-se sempre as sensações. Vários entrevistados referiram
mesmo ser preferível nem saber quais os químicos contidos nas pastilhas
Este desconhecimento da composição das pastilhas é aparentemente partilhado,
também, por aqueles que as vendem. Por isso, os jovens entrevistados referiram
que só experimentando se percebia que tipo de sensações provocava uma
determinada pastilha. Desta forma, é possível identificar diferenças, umas
que são visíveis, no formato, nos símbolos, nas cores, e outras que são
sentidas, traduzidas em diferentes propriedades psicotrópicas. No entanto,
essas diferenças não parecem encontrar correspondência num padrão que permita
associar um determinado símbolo e cor a um determinado conjunto de efeitos.
A pessoa vai experimentando e logo se vê; nunca se encontram iguais sobretudo
de festa para festa. Algumas pessoas optam pelas cores, outras pelos símbolos.
Túlipas, smiles, ferraris, rolls roice, in iang, tele tubies, etc. apesar do
símbolo podem ter várias cores e efeitos penso que as cores devem variar com
as reacções químicas dos produtos. Vão aparecendo cada vez mais coisas e mais
fortes. Fazem pior, também. [M, 23 anos, estudante universitário]
A composição química destas pastilhas só pode ser eficazmente revelada em
laboratório. E os resultados são, por vezes, surpreendentes:
Por exemplo, uma análise de laboratório feita a duas ou três pastilhas mostrou
que estas continham: soro fisiológico, um produto para os bebés respirarem
melhor (umas saquetas de pó para dissolver) e uma gota de LSD. Com esta
composição o efeito não será grande, tem de se meter outra(s).
Cada vez está a ser mais barato e a quantidade reduz o preço. Alguns fazem
experiências e as cobaias é que experimentam; quando se volta a comprar diz-se
que aquelas não bateram ou bateram de mais e não se fazem mais ou altera-se a
fórmula, mas, entretanto, já se consumiram todas! [M, 28 anos, ex-proprietário
de discoteca]
Mas a composição pode ser mais ou menos caseira!?
São fáceis de fazer, basta ter a fórmula, MDMA em pó e outros químicos, formas
é fácil arranjar na Internet. Depois, há pessoas que estudam ciências, química
Depois há receitas caseiras, com coisas que temos em casa e que dá para fazer
pastilhas. [M, 23 anos, estudante universitário]
Esta nebulosa em torno das pastilhas dificulta a diferenciação até ao nível
da sua nomeação. Daqui resulta que ecstasy seja sinónimo de pastilha, mais do
que a designação de um produto químico (MDMA).
Reflexividade dos consumos
Os lazeres dos jovens espaços, actividades e consumos remetem-nos para uma
vivência alternativa à normalidade diurna, vivência essa marcada por valores
como a liberdade, o hedonismo, a afirmação, a integração, a rebelião, a
comunicação.
Neste sentido, o que leva um jovem a iniciar os consumos de substâncias
psicotrópicas é a curiosidade, a aventura, a procura de prazer, o desejo de
experimentar as sensações que ouve descrever.
Era irreverente e tinha curiosidade. Mas tinha medo da morte, gostava de viver.
( ) Amigos arranjaram e deram-me. Sou dj, era a droga da moda dentro de uma
elite, porque a música de dança não passava em muitos espaços. E como apareciam
associadas, tinha curiosidade. [M, 25 anos, dj]
Esta transcrição expressa ainda a importância do grupo de pertença, ideia que é
reforçada noutras entrevistas. Mas a importância do grupo na iniciação vai para
além da influência. A interacção com amigos consumidores permite obter
informação e esclarecimento. Ao assistirem aos consumos vão fazendo uma
aprendizagem para iniciarem as suas próprias experiências, durante as quais
recebem apoio e acompanhamento. Trata-se de um apadrinhamento que permite
organizar o processo que conduz à pertença a uma subcultura da droga (Xiberras,
1996).
Experimentei com 21 anos, por curiosidade. Soube por amigos mais velhos, do bar
onde trabalhava. Pessoas viajadas
Era uma droga só mais falada em Lisboa e no Porto, mais para o espírito que
para o corpo era uma ideia que despertava curiosidade!
Antes de experimentar fui preparado durante um mês: explicaram-me os efeitos
que tinha, as experiências que tiveram, boas e más. Assisti às pessoas a
tomarem, conversavam comigo, mas alteradas é natural, aquilo altera.
Um dia, numa festa particular, numa casa, com pessoas mais velhas eu era o
mais novo e era tratado como se fosse da família. Música ambiente. Eu estava no
sofá, deram-se e disseram: se quiseres tomas, se não quiseres não tomas. Eu
tomei.
Tive um determinado tipo de educação, que não quer dizer que seja o certo, mas
para o que vejo noutras pessoas, posso dizer que tive sorte. [M, 24 anos,
barman]
Comecei muito novinho e com pessoas adultas que me explicaram. Não tive
problemas. Antes de meter a primeira pastilha estive uma noite inteira a ouvir,
já com uns copos valentes, em festas particulares, vivendas. Tive a sorte de
ter duas senhoras (com 30 e tal anos) que me disseram o que era e os efeitos. É
diferente de sair com alguém que te dá uma pastilha e tu tomas porque estás na
onda
Acho que foi por isso que nunca tive consumos excessivos. [M, 28 anos, ex-
proprietário de discoteca]
Após o início dos consumos de pastilhas desencadeia-se um conjunto de
dinâmicas que geram percursos diferenciados dos consumidores. Cessam os
consumos, mantêm-se ocasionais ou aumentam, conjugando-se com outros
(policonsumo).
Para isto muito contribui a forma como os consumidores desenvolvem o seu olhar
no que respeita aos próprios consumos e às suas expectativas de vida. Podem
estar plenamente de acordo com o facto de as sensações sentidas serem
artificiais. Podem ainda mostrar-se ambivalentes, procurando entender os
efeitos e as sensações dos consumos numa relação de custo-benefício. Podem,
finalmente, estimar ter encontrado a verdadeira forma de estar e de viver,
devolvendo aos não consumidores o sentido da artificialidade.
Clarificando:
Uma primeira atitude é a decisão de interromper os consumos, o que implica um
corte com os ambientes e com algumas pessoas também.
Há dois anos afastei-me do ambiente para parar de consumir. Sempre que consumia
procurava aquele estado de espírito que sentia no início. Actualmente já só dá
uma sensação de peso de consciência, mal-estar. As mais fortes, mais químicas,
deitam mesmo uma pessoa abaixo. Das últimas vezes que consumi, depois, andava
irritado, mal com tudo e com todos e comigo próprio. Não compensa e cortei
radicalmente. Há sempre aquela coisa do antigamente, aquele bichinho, mas não
tem nada a ver. [M, 26 anos, empregado de café]
Outro tipo de atitude remete para uma continuidade nos consumos, caracterizada
por alguma ambiguidade entre os efeitos nocivos e as sensações agradáveis
provocados pelas substâncias psicotrópicas.
Já não se usam rituais nessas coisas. Antes enquadrava-se mais no ideal das
pessoas. O ideal do início perdi-o também, porque se o mantivesse tinha que
deixar de consumir porque não tinha as pessoas com quem partilhar. Portanto, a
pessoa tem de se adaptar, e também tomo as pastilhas que digo que não prestam.
Não deixo de tomar porque a pessoa está sempre na esperança E como eu senti
coisas muito boas
Passei uma fase em que tomava tantas pastilhas que cheguei a um ponto em que a
realidade já estava distorcida, daquilo que eu era, pensava e dizia. Senti
isto. Cheguei a um ponto, pensei: algo está mal, já nem sei de que lado é que
estou. Entrei em depressão, auto-recriminei-me um bocado. Altera a pessoa. ( )
E nota-se, a nível físico nem por isso, não se deixa de trabalhar nem de fazer
o que tem a fazer, mas anda-se perdido. Tomava só nas festas, mas há festas
onde a gente quiser. É um bocado assim.
Deixei de tomar. Agora, tomo quando me apetece; às vezes lá exagero Deixei de
ir a festas como ia, vou quando acho que vale a pena. E quando vou a festas
consumo, se não o que é que uma pessoa ia lá fazer? não dá para ter uma
conversa, está tudo para o mesmo. [M, 24 anos, barman]
Finalmente, pode identificar-se a referência ao recurso às drogas como
apresentando vantagens para o indivíduo que o impedem de querer abandonar os
consumos e que lhe dificultam também o entendimento de um modo de vida sem
drogas.
As pastilhas dão-nos uma nova perspectiva de vida, vêem-se as coisas de forma
diferente, parecem mais reais. Quem diz o contrário nunca experimentou, se
experimentassem repetiam. [F, 20 anos, empregada de bar e estudante]
Cada vez que meto uma pastilha sinto que sou diferente dos outros todos. Claro
que isso é importante para mim, detesto sentir-me mais uma Faz-me impressão
pensar que há pessoas que só vivem com o seu lado racional, quando se mete uma
pastilha o efeito está lá e não se pode fazer nada para o controlar, é
libertador. [F, 19 anos, estudante]
Quando se está com a moca vê-se tudo com uma luz diferente, não se tem passado
nem futuro, vive-se o momento presente. Somos mais do que nós próprios e com
prazer e divertimento. Quando se está em grupo, as sensações são partilhadas. E
há tempo e disposição para essa partilha. Noutros grupos falta tempo e o que
partilhar, ( ) porque todos andam a correr e a pensar no futuro [M, 21 anos,
desenhista de moldes]
Importa daqui destacar que as drogas podem contribuir para a estruturação da
identidade do indivíduo, expressa no carácter reflexivo dos consumos. Ou seja,
todas as actividades quotidianas e as suas circunstâncias são reflexivamente
automonitoradas e essa monitoragem tem características discursivas.
É neste sentido que devem ser entendidas as interpretações discursivas dos
actores sobre a natureza e as razões do seu comportamento, enquanto
consumidores de substâncias psicoactivas (Giddens, 1994).
A construção de alternativas
Os espaços de lazer referidos e os consumos associados referenciam estilos de
vida que se inscrevem em lógicas alternativas de libertação e de identificação.
Em conjunto parecem funcionar como um catalizador para que a juventude e a
liberdade se unam, na expressão de Ramirez citado por Pais (1999: 254).
Traduzem a procura de um escape ao quotidiano, uma forma de criar e expressar
independência face ao grupo familiar, um interesse em atingir estados mais
elevados de bem-estar e de realização, uma forma de ultrapassar inibições e de
facilitar a comunicação. O que significa que os consumidores não se entregam
apenas a práticas de intoxicação, antes, enquanto grupo, desenvolvem um ponto
de vista interior expresso na pertença a um universo ou cultura alternativa
(Xiberras, 1996).
Há um aumento das sensações de bem-estar, de confiança em si próprio, de
optimismo, de divertimento, de energia, de felicidade, de poder, de prazer Se
podes ampliar os prazeres normais da vida, porquê continuar a recusar? [M, 22
anos, empregado de café]
A maior parte dos utilizadores de substâncias psicoactivas entrevistados
consomem-nas dentro de padrões controlados, apesar disso sujeitando-se aos
riscos inerentes ao seu consumo. Como, por exemplo, a diminuição da intensidade
das sensações em função da continuidade dos consumos.
Nas sociedades modernas complexas, altamente diferenciadas, existem múltiplos
grupos sociais com normas próprias (Becker, 1991). Os grupos de consumidores de
psicotrópicos não implicam apenas a entrega às práticas de intoxicação.
Implicam também, e sobretudo, pertencer a um universo ou cultura alternativos.
As socializações que envolvem o consumo de drogas prendem-se, essencialmente,
com a sua função de lubrificante social8 e remetem para uma rentabilização em
termos psicossociais dos efeitos psicotrópicos. Ou seja, os consumidores
pretendem rentabilizar a desinibição e as facilidades comunicativas enquanto
efeitos das pastilhas, para além dos próprios consumos.
O ecstasy dá aquilo que as pessoas não têm hoje em dia: além de terem
autoconfiança e gostarem delas próprias é terem alguma coisa em que se
realizem. Ou trabalham, ou estudam, porque a sociedade assim os obriga, mas
depois querem é extravagância, e encontram isso neste tipo de drogas, porque as
leva para outro mundo completamente diferente. [M, 28 anos, ex-proprietário de
discoteca]
Modifiquei-me muito para o meu próprio bem, a nível social, a nível de
liberdade de expressão, de liberdade mental. Ajudou-me imenso.
Era uma pessoa retraída, passei a dizer o que queria sem medos nenhuns mesmo
quando não consumo! Levei as pessoas a gostarem de mim e a respeitarem-me como
eu sou. Não tem a ver com a droga, mas com a minha pessoa e tornei-me assim com
o ecstasy. Senti coisas que não achava capaz de sentir e essencialmente dizer
coisas que não era capaz de dizer. Tento sempre ir buscar um bocadinho disso.
[M, 24 anos, barman]
Do ponto de vista individual, o uso de drogas parece estar ligado a um
ultrapassar das experiências negativas (dor, medo, cansaço, dúvida, desespero,
etc.) e a um impulsionar das emoções positivas (procura permanente de estados
de euforia e de prazer). Daqui resulta um estímulo das características de
dependência que, no entanto, não são reconhecidas pelos entrevistados (Torres,
1999).
Não é um vício. Vício é quando a gente está a fazer as coisas e não sabe
porquê, nem sequer pensa nisso. Quando vou a uma festa penso, penso se tenho
alguma coisa para fazer no outro dia, é preciso descansar. Os casos complicados
passam um bocado pela pessoa, que quando vê que se está a complicar deve parar
como eu.
Para o pessoal novo é super normal ir para as festas ao fim-de-semana e ir para
o trabalho de semana. Continuam com a mesma vida a mesma conversa: festas e
mocas. Acho que este ritmo afasta, se calhar, as pessoas da realidade mundana
em que nós estamos. Se calhar não olham para o telejornal, não sabem o que é
que se passa; eventos culturais, ninguém vai; cinemas, ninguém vai. Se calhar
todos vão a estas festas porque preferem a estar num bar onde não conhecem
ninguém ou a estar em casa sozinho
É preciso dizer não, saber estar sozinho, também. Já perdi muitos amigos assim.
Mas há os amigos-amigos e os amigos-da-droga. [M, 24 anos, barman]
A identificação de diferentes grupos que frequentam estes ambientes de lazer é
algo que não merece muita atenção por parte dos indivíduos entrevistados.
Apenas um aponta alguns traços distintivos, que as pessoas tendem a manter
noutros contextos.
Importa realçar que os estilos de vida construídos a partir de bases
alternativas apresentam, ainda assim, um risco que é calculado e controlado.
Os espaços e ambientes
A organização e apropriação do espaço é um dos meios para apreender a
identidade e relação dos grupos sociais que aí se encontram. Os espaços dos
novos consumos e de lazer têm a propriedade de se encontrarem em relação com
todos os outros, ao mesmo tempo que suspendem, neutralizam e invertem o
conjunto de relações que esses outros espaços manifestam (Silvano, 2001: 73).
Neste sentido, considerando o espaço como expressão de possibilidades
colectivas, importa aqui destacar o facto de os consumos terem uma expressão
predominante em festas de acesso mais ou menos restrito mas que tende a
extravasar esse domínio, passando para o quotidiano.
Estes espaços e ambientes de lazer constituem-se, assim, como verdadeiros
territórios psicotrópicos, funcionando como atractores e concentradores de
indivíduos com um interesse comum: as pastilhas (Fernandes, 1998).
Práticas tóxicas
A existência de práticas sociais voluntárias que visam efeitos precisos,
sobretudo no que diz respeito à alteração dos estados de consciência e ao
ultrapassar de barreiras sociais (comunicação, inibição, relacionamento), foi
bastante notória nas entrevistas.
Sobretudo quando se referem à forma como a banalização (como foi caracterizada)
destes consumos extrapolou os espaços e ambientes iniciais. Mas também na forma
como alguns medicamentos são usados para fins recreativos. E mesmo na perda dos
ideais associados ao ecstasy (droga do amor), mais presentes no início dos
consumos.
A questão parece prender-se com os objectivos pretendidos: bem-estar individual
e social. Ilusão que parece resultar do facto de os consumos serem partilhados
em grupo, num mesmo espaço e contexto.
Trata-se de um conjunto de práticas tóxicas que se traduzem em actividades que
visam possibilitar os meios para alterar os estados de consciência e de humor.
Estes meios passam pelas pastilhas de ecstasy, mas também pela conjugação de
outras substâncias policonsumos: cocktails de medicamentos com ou sem
bebidas alcoólicas.
Nestas práticas tóxicas o que importa é encher a cabeça!
Novos consumos em ambientes de lazer: risco cultivado
As diferentes dinâmicas de transformação dos consumos e as tendências que elas
provocam na evolução dos ambientes de lazer configuram um quadro diversificado
e, por vezes, contraditório de condições de existência e modos de vida dos
jovens. Essa diversidade cruza-se com os sistemas valorativos que os jovens
constroem e que se expressam nos ambientes de lazer, nas actividades
recreativas e nos consumos psicotrópicos associados.
A apreensão destes aspectos revela-se, então, de particular importância no
entendimento das relações entre as mudanças sociais globais e a complexificação
da trilogia consumidor / substância / contexto de consumo. A análise da
informação fornecida pelas entrevistas (tratada de forma mais sistemática no
ponto anterior) evidencia alguns aspectos essenciais que importa aqui destacar,
articulando com os três eixos de análise definidos.
Os consumos inscrevem-se em ambientes de risco da modernidade, com reflexos nos
estilos de vida dos jovens. Giddens (1994) identifica nos contextos da
modernidade tardia novas formas de fragmentação e dispersão, donde resulta um
clima de indefinição em que todas as possibilidades se encontram em aberto.
Isto é, ambientes de risco onde se inscrevem as escolhas e a construção de
estilos de vida.
Os consumos de substâncias sintéticas inscrevem-se no que Giddens chama
sectores de estilos de vida, na medida em que correspondem a um conjunto de
práticas que têm lugar numa parte do total de espaço-tempo do jovem,
correspondendo a certas ocasiões, por contraste com as restantes. Geralmente
são noites de fins-de-semana em que são promovidas as festas da malta nova
(como dizia um dos entrevistados) rave parties, dance parties, dj parties,
etc.
A massificação e banalização dos consumos nos últimos dez anos no nosso país
presente no discurso dos entrevistados e em autores como Viana (2002)
encontra também expressão na própria atitude face a esses consumos e às
substâncias, traduzindo-se na ideia de ausência de relação problemática com a
droga que se distancia do estereótipo do toxicodependente. Antes, acentua a
valorização de uma imagem de jovialidade, energia, moda, diversão com amigos.
Ou seja, os consumos recreativos de drogas sintéticas referem-se a um tipo de
comportamento social que ocorre geralmente em contexto grupal, associado a
ambientes festivos, espaços formais e informais de música e dança. Trata-se
pois de motivações para o consumo que assentam em determinados tipos de
interacções sociais e actividades lúdicas, com o propósito de gerar
relaxamento, desinibição, euforia e diversão.
Todos os entrevistados legitimaram a experiência e a continuidade deste tipo de
práticas. Paralelamente, revelaram a consciência da carga negativa e desviante,
em termos sociais e legais, associada aos comportamentos de consumo de
psicotrópicos. O que reflecte uma certa ambiguidade normativa. Mas a
relatividade do desvio remete-nos ainda para o facto de que, especificamente no
caso destes consumos, o desvio corresponde a uma escolha do actor social, é
voluntário. E é valorizado enquanto tal, porque se considera psicologicamente
compensador. A aceitação do risco é também um dos requisitos da excitação e da
aventura.
É neste sentido que se pode considerar que associado a estes consumos existe um
risco cultivado. A nível emocional o risco cultivado envolve três tipos
fundamentais de atitudes:
* exposição voluntária ao perigo, expressa no sentimento de curiosidade;
* consciência dessa exposição, notória na identificação das consequências
cardiológicas e neurológicas das substâncias sintéticas e das incertezas face
à sua composição;
* expectativa mais ou menos consciente de o ultrapassar, presente na atitude de
quem se afastou para evitar os consumos, mas também de quem continua ou só
reduziu insistindo na busca de sensações mais elevadas.
A abertura de possibilidades de escolhas interage com a pluralização dos
contextos de acção e daí parece resultar que o espaço-tempo destas actividades
se dilata. Passando em alguns casos a assumir-se como verdadeiros estilos de
vida por exemplo, o estilo de vestir que se encontra em festas de discoteca é
o mesmo que se encontra no dia-a-dia de quem as frequenta, ou a coincidência de
estilos de música que se ouve no carro e na discoteca ou nas festas. Mas mesmo
aqui a atitude remete ainda para a noção de risco cultivado. Sobretudo porque
se mantém a premissa relativa à expectativa de ultrapassar os perigos.
Esta postura pode ter a ver com diversos factores, nomeadamente com o facto de
os relatos de problemas associados às drogas sintéticas chegarem essencialmente
através dos mass media, logo, o efeito de proximidade psicológica não se faz
sentir, são apenas notícias. Outro dos factores pode ter a ver com os relatos
mais próximos que se ouvem não estarem relacionados, de forma directa e
inequívoca, com os consumos veja-se o exemplo do álcool, cuja associação com
o ecstasy começou por ser proibida e hoje é prática corrente.
De facto, as consequências são difíceis de determinar porque não serão lineares
ou directas, antes vão ser influenciadas por outros factores individuais
(psicológicos, genéticos e sociais) de quem consome. Isto introduz grandes
variações e dificuldades acrescidas na determinação dos factores de risco
associados a uma substância. Dificuldade acrescida ainda pelas incertezas
quanto à composição química de cada pastilha (ainda que aparentemente iguais
na forma, símbolo e cor).
Relativamente a estas questões alguns entrevistados consideram o volume de
informação suficiente. No entanto, reivindicam menor repressão e maior
acompanhamento, designadamente criando condições para que as pastilhas
pudessem ser analisadas e a sua composição determinada. Geralmente esta prática
só se verifica após rusgas e apreensões, e se algumas revelam ser apenas
aspirinas, outras há que na sua composição incluem estricnina. Mas, se estas
questões se agudizam neste tipo de substâncias, delas não são exclusivas e
colocam-se também para drogas como a cocaína, heroína ou haxixe, onde também há
produtos de corte (pó de talco ou Aspegic, por exemplo).
Considerar o sujeito como agente significa, em termos de análise, dar atenção à
significação que os próprios atribuem às suas práticas e, mais especificamente,
às dinâmicas implicadas nos estilos de vida associados aos consumos dinâmicas
de acção, interacção e motivacionais.
Os comportamentos encontram-se abertos às diversas possibilidades e são
sujeitos à reflexividade produzida pelos indivíduos. Neste sentido, os modos de
conduta alternativos, nos quais se inscrevem as subculturas do uso de drogas,
encontram-se em tensão com os sistemas de normas dominantes. Por isso são
conotados negativamente face à normalidade percebida. Esta carga negativa é
identificada, mas não aceite pelos entrevistados, como atrás se referiu.
A percepção diferenciada em função da posição ocupada face a uma ordem e
sistema de valores familiares resulta do significado particular que adquirem as
práticas para quem as protagoniza. Esse significado, por vezes, resulta da
interacção entre os próprios indivíduos e o acto enquanto símbolo referência
ao longo das entrevistas ao ideal e ao bem-estar relacionado com o ecstasy.
Com efeito, o facto de esta substância ser encarada como facilitadora da
comunicação faz com que assuma um papel determinante na interacção que se
desenvolve naqueles espaços. E esta mais-valia comunicacional e relacional é
vista como um valor a perpetuar para além dos consumos, da duração dos efeitos.
Aliás, no espaço dedicado a perguntas e respostas do site ecstasy. org é
precisamente essa a indicação dada:
aprende com a experiência: reflecte como te sentias com o E e o que está
diferente, depois tenta reter a mesma perspectiva sem a droga.9
Xiberras (1997) identifica duas orientações típicas que resultam dos efeitos
das substâncias e também traduzem uma determinada pertença: a utopia da
criatividade ou a procura de paraísos artificiais; o pesadelo da morte ou
a confrontação com infernos artificiais. Os consumos de pastilhas parecem
apontar mais no sentido da primeira das orientações definidas pela autora. O
facto de esta droga não apresentar síndromes de abstinência comparáveis com
outras (das quais a heroína é o exemplo extremo), acentua o carácter voluntário
dos consumos assente na referida busca de um estado mais elevado de bem-estar
consigo próprio e com os outros. Por isso o ideal aproxima-se mais dos paraísos
artificiais do que dos infernos.
A construção reflexiva da identidade pessoal pode identificar-se no discurso
dos indivíduos ao questionarem e até redefinirem as suas práticas e consumos.
Isto representa alterações nas suas disposições para agir face às pastilhas,
definidas em função de uma diversidade de possibilidades e incertezas
confiança e risco.
Para Giddens, somos a primeira geração a viver numa sociedade cosmopolita
global. As megafestas a que se tem vindo a fazer referência podem ser
entendidas como expressão da relação de fenómenos globais com contextos
específicos, onde os indivíduos constroem as suas identidades pessoais. Para
ilustrar importa realçar o facto, referido com frequência nas entrevistas, de
algumas das primeiras pastilhas experimentadas serem trazidas por pessoas
viajadas.
Pretendia-se aqui apreender o projecto dos actores, manifesto naquilo que lhes
dá sentido as suas crenças e os seus objectivos. Importa pois destacar, como
exemplo, o facto de alguns entrevistados optarem a certa altura por uma
diminuição do consumo devido a um aumento do empenho e do grau de exigência na
sua actividade profissional. Ou o medo, também referido; medo de morrer, medo
das reacções que as drogas provocam.
Importa referir ainda, como exemplo da reflexividade exercida sobre a acção, as
metas de tipo não material que algumas das entrevistas tão bem revelam.
Sobretudo ao referirem que melhoram as capacidades comunicacionais, relacionais
e auto-estima. Ou quando referem a constante busca da sensação inicialmente
sentida, explicando a dificuldade em repetir tal sensação com as alterações das
pastilhas e esquecendo que nos efeitos psicotrópicos as alterações dos
consumidores também interferem naquele que é o efeito final.
Por tudo isto, a constituição da identidade pessoal e da actividade quotidiana,
expressa nas escolhas de estilos de vida, deve então ser entendida no quadro
das novas formas de fragmentação, dispersão, abertura da vida social e da
pluralização dos contextos de acção. Gilberto Velho considera tratar-se de
projectos individuais elaborados dentro de um campo de possibilidades
(históricas, culturais e biográficas) expressos nos vários mundos ou esferas
sociais em que participam com maior ou menor grau de adesão, desempenhando
papéis e vivendo situações sociais específicas (1999: 22). Ao deslocarem-se
permanentemente entre ambientes e experiências variadas e por vezes
contraditórias, recebem estímulos diferenciados donde resultam fenómenos de
metamorfose social que se traduzem numa maior capacidade (a que Gilberto Velho
chama plasticidade simbólica) de se apoiarem em domínios diferentes para a
construção e consciência da sua identidade, de forma complexa e multifacetada
(Velho, 1994).
O contexto dos novos consumos e o significado que os indivíduos lhes atribuem
traduz uma faixa específica de comportamentos urbanizados. Trata-se de espaços
de lazer determinados, com visibilidade pública, onde têm lugar as actividades
associadas às novas drogas: comércio, consumo, diversão discotecas, festas.
Neste sentido, o contexto é o cenário de acção a que os indivíduos recorrem
para orientar a sua interacção com os outros. O que pressupõe a existência de
regras de ocupação e movimento nesse espaço. Este aspecto é particularmente
notório no que se refere à aquisição de pastilhas. Estas transacções são
efectuadas nos próprios espaços de lazer, através de redes de conhecimentos
contrariamente a outras substâncias, em que se recorre a outros códigos e
locais específicos (bairros, por exemplo).
O espaço fixa as características do grupo, o que pode explicar as diferentes
formas de vestir numa festa transe, por exemplo (Halbwachs, 1950; Silvano,
2001). Outro exemplo que ilustra esta ideia tem a ver com os bares que são
frequentados apenas por determinado grupo que se distingue por um conjunto de
características que vão desde a forma de vestir à música que ouvem ou às
práticas de lazer e consumos.
Elemento essencial destes cenários de lazer é a música, que através das acções
psicotrópicas das substâncias ingeridas pode ampliar ou reduzir os efeitos ao
nível da expressão, motricidade, sentidos, afectividade. Esta dupla relação da
música com as propriedades psicotrópicas das substâncias e com a própria noção
de lazer associado a estes ambientes foi traduzida por um dos entrevistados: A
música puxa mesmo pela moca.
Parece-nos, no entanto, que quer ao nível dos consumos, quer ao nível dos
contextos se está a verificar uma generalização. Ou seja, a especificidade de
determinados contextos dedicados a determinados consumos tende a esbater-se e a
atitude dos consumidores faz com que extravasem para outros contextos.
Sobretudo porque os indivíduos atravessam constantemente as fronteiras,
desempenhando diferentes papéis sociais, de acordo com contextos e situações.
Conclusão
A vida social encontra-se dividida entre o espaço e o tempo formais dedicados
ao trabalho, ao estudo, à família, e o espaço e tempo dedicados aos amigos, ao
grupo a que se pertence e à procura de actividades recreativas. Para muitos
jovens, a diversão e o lazer são o tempo de conhecerem o seu próprio grupo de
amigos e para apreciarem actividades associadas com a música e a dança. Estes
cenários enquadram ambientes de risco dentro dos quais os indivíduos podem pôr
em causa recursos e as suas vidas, através de actividades perigosas.
Os riscos voluntariamente corridos diferem daqueles que derivam dos
constrangimentos da vida social ou de outros estilos de vida adoptados. Porém,
esta diferenciação é pouco nítida, já que a adopção activa de certos tipos de
risco como o consumo de substâncias psicotrópicas pode passar pela
valorização desses riscos em si mesmos, demonstrando uma certa coragem. Assim,
no risco cultivado, a coragem é demonstrada como uma qualidade que é posta à
prova, porque deliberadamente confrontada com o perigo. Daqui resulta uma busca
de emoções fortes, de sensações de poder e, sobretudo, de contraste com a
rotina.
A progressiva relação dos jovens com as drogas legais e ilegais álcool,
pastilhas, etc. arrasta consigo, em simultâneo, um processo de
normalização desse uso, particularmente em certos ambientes. Neste sentido,
os jovens consumidores não se vêem a si próprios como tendo um problema de
drogas. É, pois, muito importante transformar a imagem que tradicionalmente se
associa ao consumidor de drogas como um elemento de ambientes marginais ou
(auto)excluído dos ambientes formais.
Por um lado, correr certos riscos na busca de um dado estilo de vida é aceite.
Por outro, os perigos que apresentam são vistos como demasiado remotos do meio
envolvente da pessoa para serem contemplados seriamente como uma possibilidade
real. Então, a emoção que se pode obter ao cultivar o risco depende da
exposição deliberada à incerteza, permitindo às práticas associadas aos novos
consumos em ambientes de lazer demarcar-se das rotinas da vida comum.
Situações destas tornam possível aos entrevistados a demonstração de coragem,
flexibilidade, habilidade e iniciativa, estando conscientes dos riscos
implicados no que fazem, mas usando-os para criarem algo que falta às
circunstâncias da sua rotina. Tal como refere Gilberto Velho, trata-se de
diversas dimensões, planos, mundos sociais que, através da acção dos indivíduos
que os atravessam, se tocam, cruzam, relacionam, mas que não se confundem;
antes ajudam a construir a sua identidade, complexa mas flexível. Ou, tal como
Giddens defende, o risco cultivado converge com algumas das orientações mais
básicas da modernidade: a capacidade de perturbar a fixidez das coisas, de
abrir novos caminhos.
Notas
1 Indicador desta massificação é a existência na Internet de diversos sites
relacionados com informações genéricas acerca de várias drogas ou sobre uma
substância em particular ex.: http://ecstasy.org
2 http://ecstasy.org/qanda/whatise.htlm
3 A pesquisa intitulada Novas drogas: risco cultivado foi realizada no âmbito
de um protocolo entre o CIES (Centro de Investigação e Estudos de Sociologia),
o IPDT (Instituto Português da Droga e da Toxicodependência) e a ESEL (Escola
Superior de Educação de Leiria).
4 Henriques (1999).
5 Urbanidade como forma de vida tendencialmente predominante e em construção
permanente no mundo ocidental (Fernandes, 1998: 23).
6 Tradução livre.
7 Tal como definida por Fernandes, 1998.
8 Na expressão de Pais (1999).
9 http://ecstasy.org/qanda tradução livre.