Os ofícios de marcar o corpo: A realização profissional de um projecto
identitário
Introdução
Na segunda metade do século XIX, sujeitos extensivamente tatuados marcavam
presença regular em freak shows de circos e feiras itinerantes,
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ao lado de anões, gigantes, gémeos siameses, mulheres barbadas e outras
bizarrias corporais e curiosidades animais. Com o surgimento da máquina
eléctrica em 1881, pela mão de Samuel O'Reilly, a execução da tatuagem torna-se
tecnicamente mais fácil e menos dolorosa, favorecendo a sua relativa
popularização em contextos sociais restritos, não apenas em termos de
clientelas, mas também enquanto meio de vida para alguns.
Uma prática que era sobretudo itinerante e amadora começa então, na viragem
para o século XX, a sedentarizar-se, a profissionalizar-se e a difundir-se
comercialmente num meio de becos e de facadas (Rio, s/d: 18), bairros pouco
reputados onde os estúdios de tatuagens se fixavam emparedados com prostíbulos.
Aí se recrutava maioritariamente a sua clientela, constituída por figuras
sociais associadas à boémia e à marginalidade: marinheiros, estivadores,
prostitutas, ex-reclusos, membros de gangs e máfias, a par de outro tipo de
malandros (Atkinson, 2003: 39; Fisher, 2002: 93; Peixoto, 1990). De estatuto
social homólogo ao do seu público, a tatuagem começa por ser profissionalmente
dispensada por rufiões tipicamente oriundos de meios operários e populares, sem
qualquer tipo de vocação e/ou socialização artística.
Hoje, as marcas corporais voluntárias saíram da economia marginal e informal
onde estavam acantonadas, passando a integrar o mundo altamente competitivo da
indústria de design corporal. Praticamente inexistentes há duas décadas atrás
em Portugal, os estúdios de tatuagem ebody piercingproliferaram na paisagem
urbana do país a partir da década de 1990, instituindo uma oferta cada vez mais
numerosa e profissionalizada, alimentada por uma procura maior e cada vez mais
socialmente diversificada (Fortuna, 2002; Ferreira, 2004a). Se no início dos
anos 90 apenas duas casas de tatuagem dividiam a clientela lisboeta (Bad
Bonnes Tatoo e El Diablo), hoje são dezenas os estúdios de tatuagem e body
piercing abertos em Portugal, já não apenas concentrados em Lisboa, mas também
dispersos pelos seus arredores, bem como no restante território português.
Este fenómeno sucede a par do crescimento de outras actividades de produção e
manutenção da imagem corporal integradas nas novas economias urbanas (Ball,
Maguire e Macrae, 2000: 281), também descritas como economias hedonistas ou
seja, economias fundadas na exploração da aparência e da experiência corporal,
sob a forma de produção, comercialização e consumo de bens e actividades ao
serviços do lazer e prazer de corpos de sonho, no seu todo ou nas suas mais
ínfimas partes (Sharp, 2000; Seale, Cavers e Dixon-Woods, 2006; Sheper-Hughes,
2001).
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Tendo por referência dominante o ideal mediatizado de corpo jovem, estas
novas economias são, em larga medida, juvenilizadas. E são-no não apenas na
medida em que privilegiam como consumidores-alvo segmentos sociais que
pretendem aceder ou manter a imagem corporal de uma condição juvenil,
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mas também porque nos seus dispositivos de produção e comercialização são
geradas possibilidades de profissionalização e de integração de mão-de-obra
juvenil.
Trata-se de novas formas ocupacionais surgidas em sectores do mercado de
trabalho concernentes à mercantilização do corpo, à construção do estilo e à
estimulação dos sentidos, que oferecem aos mais jovens novas e atraentes
expectativas de emprego. Os perfuradores do corpo, na sua versão de tatuador ou
body piercer, integraram as fileiras destes novos trabalhadores do estilo
(Ball, Maguire e Macrae, 2000: 282), a par de outros profissionais da indústria
do design corporal. Neste cenário, as práticas de marcação corporal vêm
instituir-se não apenas como possibilidades imagéticas no espaço da estilização
corporal de muitos jovens (Ferreira, 2004b), mas também como possibilidades
concretas e sedutoras no horizonte de expectativas laborais de alguns deles
(Ferreira, 2006).
O significado do trabalho nos ofícios de marcar o corpo
O alargamento de uma vasta indústria de consumos culturais especificamente
dirigida a jovens e consumida pelos mesmos (ou por quem pretende aparentar-se
como tal) veio propiciar o alargamento homólogo das possibilidades de
determinados tipos de consumo/lazer se tornarem, potencial ou efectivamente,
formas de trabalho ou lugares de emprego sedutores, sonhados como tal no
horizonte de expectativas laborais de muitos e cada vez mais jovens. É o caso
das práticas musicais ou das práticas de produção do corpo, nomeadamente a
tatuagem e o body piercing (Pais e Blass, 2004). A envolvência juvenil nestas
práticas começa com frequência por ser meramente lúdica, com o simples
objectivo de preencher tempos livres ou de exprimir um visual pessoal, podendo,
com o tempo, começar a ser ponderada como possibilidade concreta de
profissionalização, seja sob a forma de biscate
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(temporário) ou decarreira (de futuro), garantindo a realização integral de uma
política de vida marcada pela divergência da normatividade (Ferreira, 2007).
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Há muita gente a querer fazer tatuagens, há muita gente a querer fazer
piercings, só naquela de não quero ter um trabalho das nove às cinco! ( )
Montes de vezes, os miúdos quererem levar uma vida alternativa, muita louca, e
ganhar dinheiro! [Aparece cá malta a querer aprender? Muita?] Muita, muita,
muita, muita. ( ) Vêm cá muitas vezes. [Profissional de body piercing,
estudante universitária, 27 anos]
Iniciados como consumidores rituais de marcas corporais e terminando a marcar o
corpo dos outros como meio de vida, estes jovens acabam por obter na sua
actividade profissional uma peculiar fusão entre identidade e trabalho, entre o
projecto de vida que construíram a partir da esfera do lazer e do consumo e o
meio de vida necessário para a sua manutenção. Essa simbiose é tanto mais
interessante quanto, entre estes jovens, o mundo do trabalho tende a ser
percepcionado (por quem ainda não o integra) e vivido (por quem o integra fora
da zona de gostoque partilha) como um domínio social habitualmente prescritivo
e constrangedor da assunção dos projectos de marcação corporal, expressão
privilegiada da autenticidade e singularidade dos seus portadores.
Daí as atitudes perante o trabalho destes jovens surgirem eminentemente
clivadas em função de já trabalharem, ou perspectivarem vir a trabalhar, dentro
ou fora da cena com a qual se identificam. Para os que trabalham ou pensam
vir a trabalhar fora dela, o trabalho tende a ser a esfera da vida social onde
mais profundamente sentem (ou prevêem sentir) a descoincidência entre o self
que projectam e desejam para si próprios e o papel estatutário que lhes é
exigido no desempenho laboral. A distância de papel entre o self representado
no espaço de trabalho e o self projectado na vida privada é grande. No
desempenho do papel laboral, tendem a assumir um habitus defensivo, adoptando
estratégias de gestão social da visibilidade do projecto corporal e de
determinados atributos e gostos inerentes à sua identidade, estratégias essas
que impregnam as relações laborais de dissimulação ou falta de confiança. Nesta
dimensão da vida, esses jovens sentem que a sua autenticidade dificilmente será
assumida na íntegra, com sinceridade,
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ou que, se tal acontecer, correm o risco de sobre si recaírem os efeitos
estigmáticos resultantes dos tradicionais preconceitos e estereótipos associado
às figuras sociais extensivamente marcadas.
Entre os jovens que trabalham out scene, as relações laborais tendem a ser
entendidas, portanto, como um obstáculo ao reconhecimento e à expressão de uma
subjectividade livre e autêntica. O trabalho que exercem ou que perspectivam
vir a exercer é por eles valorizado, sobretudo, em termos instrumentais ou
extrínsecos, no sentido que Herzberg (1978) dá aos termos: embora grande parte
do tempo quotidiano desses jovens seja dedicado à actividade laboral ou à sua
preparação no futuro, o trabalho é por eles entendido, em grande medida, como
um instrumento para retirar o rendimento necessário ao posterior financiamento
de bens e serviços de consumo, esses sim, propiciadores de realização pessoal e
social. Em contraposição, o tempo de lazer é representado como um tempo de
liberdade, evasão e realização pessoal, sendo largamente investido de um ponto
de vista expressivo e convivial.
Os depositários desta postura são, sobretudo, jovens oriundos de famílias
materialmente mais desfavorecidas, com trajectórias escolares muitas vezes
caracterizadas pelo abandono desqualificado,
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e coincidente integração no mercado de trabalho, com o objectivo inicial de
obter algum dinheiro de bolsopara realizar os seus consumos expressivos. São
geralmente absorvidos por um segmento do mercado de trabalho que não oferece
mais do que lugares contratualmente precários e pouco exigentes do ponto de
vista qualificacional, entre os quais saltitam em regime de intensa
rotatividade. Mas mesmo entre os jovens com trajectórias pautadas pelo sucesso
escolar, designadamente consagradas através da entrada na universidade, esta
opção é perspectivada de um ponto de vista instrumental: a universidade serve-
lhes como meio para a obtenção de um diploma que os credencie para o exercício
de uma profissão e facilite o seu acesso a um meio de vida melhor remunerado.
Até uma certa idade, até começar a trabalhar, não tinha muitas posses, a minha
mãe é que me sustentava os estudos. Não quis saber dos estudos, tenho até ao
sétimo ano unificado. ( ) Não quis saber dos estudos porque comecei a trabalhar
cedo [15 anos], nunca tive muitas posses. ( ) Eu, se quisesse ter uns ténis de
marca, já podia ter uns ténis de marca, porque até então nunca tinha tido nada
de marca. ( ) O primeiro trabalho foi numa fábrica de alumínios. ( ) Depois da
fábrica de alumínios trabalhei numa surf shop ( ) Depois de trabalhar aí fui
trabalhar nesses seis, sete meses, para uma fábrica de envelopes. ( ) Fiquei
nessa fábrica um ano mais ou menos. Saí dessa fábrica ( ) e comecei a minha
vida de estafeta. ( ) Depois corri vários trabalhos como estafeta, mas estive
um mês em cada sítio. ( ) Agora estou nesta editora, numa editora de livros
Estou a tratar do armazém e da reposição de livros. ( ) Houve trabalhos que eu
não referi porque não valia a pena, foram tipo três semanas, duas semanas. ( )
Depois, nos tempos livres, temos que nos sentir bem seja a fazer aquilo que
for, seja a limpar a minha casa de banho, seja a fazer música, tenho que me
sentir bem, tem que me apetecer fazer ( ), independentemente se dão futuro ou
não. ( ) Vou sempre tentar jogar até conseguir chegar aonde eu quero, que é a
música. ( ) Vai ser difícil, mas vou chegar lá, tenho muita esperança nisso.
Não tenciono trabalhar em armazéns e coisas do género para o resto da minha
vida. E trabalhar para os outros muito menos. Se não conseguir a música, hei-de
trabalhar por conta própria. [Fiel de armazém, 7.º ano de escolaridade, sexo
masculino, 23 anos]
Mais ou menos favorecidos, o sonho profissional destes jovens seria aceder a
formas de trabalho criativo, autónomo e expressivo, de maneira a obter uma
vivência integral dos valores inscritos no seu próprio projecto identitário.
Seria obter uma ocupação ou um emprego que lhes permitisse conciliar, ou
melhor, entrosar a vida profissional com a imagem, atitudes e práticas sociais
que adoptaram na sua esfera privada, por forma a conseguir realizar uma
simbiose total entre as esferas da produção e do consumo/lazer, e chegar à
realização plena dos respectivos projectos de identidade e de estilo de vida.
Daí o elevado valor que atribuem a actividades profissionais onde as suas
marcas corporais possam ser publicamente assumidas, apreciadas e reconhecidas,
como as actividades desenvolvidas no campo da música, por exemplo, ou da
produção da imagem com a qual se identificam.
Na cena profissional, embora me mantenha numa firma há oito anos, na boa, tás
a ver, pá, não me considero em nada realizado. ( ) Eh pá, eu gostava mesmo de
fazer era que a música me desse dinheiro. Outra coisa, olha, não me importava
de tatuar, tás a ver. Não me importava , ou não me importava de fazer
piercings. ( ) Pá, curtia ter uma cena dentro do meu estilo, se pudesse ganhar
a vida com os meus gostos. Eh pá, foda-se! Isso é o sonho de qualquer um!
[Electricista na construção civil, 8.º ano de escolaridade, 28 anos]
Como refere Helena Abramo, está-se longe do universo da marginalidade da
juventude dos anos 70, que havia buscado um rompimento com a mediocridade por
meio de diversas fugas (para fora da família, para fora do sistema produtivo,
para fora da cidade, para fora da racionalidade), e que havia dirigido seus
movimentos para a natureza e para os céus, os nirvanas de vários tipos. Hoje,
os jovens adeptos de grupos de estilo com vivências e aparências mais
extravagante continuam trabalhando, ou procurando emprego, vivendo e estudando
como antes (Abramo, 1994: 146-147). No entanto, ao contrário do que a autora
pressupõe, ainda que muitas vezes o desenvolvimento e a performance estilística
desses jovens se mantenha na esfera do lazer e do consumo, as suas expectativas
laborais passam, em grande medida, pela permanência no sistema produtivo e
institucional através de actividades que permitam a articulação com a sua zona
de gosto e necessidades expressivas.
Entre aqueles que conseguiram fazer da sua paixão pelas tatuagens e body
piercing uma actividade profissional, o facto de cultivarem um estilo de vida
celebratório, assente numa ética hedonista e convivial, não compromete a
existência de uma forte ética de dedicação ao trabalho, concretizada num largo
investimento de tempo e energia na actividade laboral. Trata-se de um
investimento muito positivamente valorizado, na medida em que conseguiram
transformar essa esfera da vida num pólo de realização e expressão pessoal, aí
prolongando práticas, valores e atitudes habitualmente restritos à esfera do
lazer e do consumo.
É notória a dedicação destes jovens à actividade laboral in scene, um trabalho
que lhes absorve grande parte do tempo e lhes exige disciplina, empenhamento,
brio, muitas vezes até sacrifício ou abnegação (ao exigir o trabalho aos
sábados, por exemplo). Mas também, em compensação, um trabalho que lhes faculta
um amplo sentimento de gratificação identitária e satisfação material,
permitindo-lhes a conservação a tempo inteirode um sentido de autenticidade e
singularidade, a manutenção de um elevado padrão de consumo, bem como o prazer
da expressão criativa e pessoal, desfrutado e reconhecido no âmbito de uma
intensa rede de convivialidade. Ou seja, acabam por conjugar na sua actividade
valores tradicionais da esfera do trabalho, com as expectativas expressivas e
pessoais que ambicionavam realizar.
Fico aqui sábados, domingos, feriados, percebes? ( ) Porque isto realmente me
dá muito gozo, percebes? O dinheiro é uma coisa que vem depois. Primeiro o
gozo, percebes? [Gerente de estúdio de tatuagem e body piercing, 9.º ano de
escolaridade, sexo feminino, 39 anos]
Isto é tão complicado, esta onda da tatuagem e do piercing! As pessoas, às
vezes, até podem pensar que isto é uma vida alternativa muito louca, mas não é!
Isto é tatuagens das zero horas à meia-noite, aos fins-de-semana, percebes?
[Profissional de body piercing, estudante universitária, 27 anos]
Está-se perante a assunção de uma ética que não desvaloriza o trabalho, mas que
relativiza o seu valor e reactualiza o seu significado, onde as características
extrínsecas e as funções instrumentais do trabalho (como o rendimento, a
estabilidade ou a segurança, por exemplo), sem serem denegadas, tendem a ser
preteridas em relação às suas características intrínsecas e funções
expressivas. O que acontece é uma ressemantização do conceito de trabalho,
levando muitos jovens a sonhar com o prolongamento à esfera laboral da vivência
e celebração dos valores que partilham na sua esfera privada e lúdica da vida:
a expressão, a criatividade, a autenticidade, o prazer, a realização pessoal
que proporciona.
Vidas de artífice da marcação corporal: motivações, circunstâncias
e trajectórias
Fazer das marcas corporais um métier representa uma forma de concretizar em
pleno um estilo de vida pautado pelos valores da liberdade, tolerância,
autonomia, prazer, autenticidade e singularidade, possibilitando um meio de
subsistência lucrativo que não compromete a distintividade individual e a
expressão imagética do self. O mercado é florescente e, apesar de rejeitarem o
materialismo que identificam na cultura de consumo, a rentabilidade é uma das
motivações para enveredarem por este caminho profissional, que consideram
lucrativo. A onerosidade das marcas corporais é um facto constantemente
relembrado pelos entrevistados, quer profissionais, quer apenas consumidores.
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Isto paga-se, as tatuagens pagam-se caras, os piercings nem tanto, não é? Mas
as tatuagens pagam-se bastante caras. [Professora no ensino secundário,
licenciatura, 32 anos]
Sendo um trabalho disponível aos excessos imagéticos cometidos pelos seus
praticantes, serve os propósitos de realização integral de uma subjectividade
que se conhece e se pretende reconhecida na sua distintividade perante o
banal e o estereótipo dos visuais dominantes, e que, por isso mesmo, vê na
dimensão profissional um entrave à sua plena assunção e reconhecimento social.
Constitui, portanto, um meio de vida que permite aos seus protagonistas fugir
das coações sociais que confinam as imagens corporais associadas ao exercício
de actividades profissionais mais tradicionais, possibilitando-lhes a assunção
e a manutenção de uma identidade coerente, estável e durável na esfera laboral,
sem ter que sair de si durante uma fase da vida ou uma parte do dia.
Eu, talvez porque tenho uma profissão que me deixe ser eu, posso dar mais azo a
isso tudo e me modificar. [Gerente de estúdio de tatuagem e body piercing, 9.º
ano de escolaridade, sexo feminino, 39 anos]
Eu sou um bocadinho um exagero. Também me é mais fácil fazer estas coisas. E as
outras pessoas também têm aquelas condicionantes de trabalhos, que eu não
tenho, não é? [Profissional de body piercing, 9.º ano de escolaridade, sexo
feminino, 34 anos]
É na perspectiva da capacidade de assunção social da imagem associada a
determinado projecto identitário e estilo de vida, que actividades
profissionais que permitem a manutenção ou a exploração dos limites das imagens
corporais, como é o caso da prática de tatuar e de perfurar o corpo alheio, são
hoje altamente valorizadas e expressivamente investidas por quem as adopta
enquanto recursos na construção de um self distintivo. Aliás, um dos aspectos
chave das novas economias urbanas identificado e analisado por Ball, Maguire
e Macrae (2000) é justamente o papel particular das competências e atributos de
aparência e apresentação habitualmente exigidas aos seus trabalhadores
efectivos ou potenciais, o que remete nitidamente para a valorização e
operacionalização do suporte corporal enquanto capital específico, capital
físico (Shilling, 1991), neste caso, mais na sua natureza imagética que
cinética.
O corpo extensivamente marcado destes jovens não só não fica sujeito a viver na
penumbra da sua actividade laboral, como, pelo contrário, passa a ser altamente
valorizado e susceptível de ser profissionalmente capitalizado como catálogo de
trabalho, espécie de obrigação do produtor face à expectativa esperada no
consumidor. Apesar de afirmar socialmente uma estética divergente da norma da
estética corporal dominante, também o corpo marcado dos jovens tatuadores e
body piercers acaba por estar sujeito a uma disciplinana imagem publicamente
apresentada enquanto cartão de visita da actividade profissional. Ainda que de
aparência indisciplinada, o corpo do profissional da marcação corporal está
comprometido com uma determinada ordem imagética, orientada por critérios
estéticos de não conformidade com as normas dominantes.
Desta forma, o jovem extensivamente marcado não apenas tem a possibilidade de
prolongar na sua vida social a respectiva identidade imagética, como até dela
consegue retirar dividendos simbólicos e financeiros: por um lado, fá-la operar
como facilitadora de cumplicidades estéticas e éticas com as suas clientelas
mais rituais, potenciando uma relação de fidelização; por outro, com ela sugere
expertise e dá confiança ontológica aos consumidores ainda não iniciados.
No meu trabalho, é sempre importante eu mostrar certo tipo de visual. ( ) A
primeira impressão conta muito. ( ) A impressão que a pessoa tem que dar a
outra que entra na loja, é que é uma pessoa que está dentro do assunto. ( )
Tenho a obrigação de mostrar pelo menos qualquer coisa para dar confiança às
pessoas. [Profissional de body piercing, 8.º ano de escolaridade, sexo
masculino, 23 anos]
Para este género de actividade convém uma pessoa servir de mostruário para a
própria actividade em si. Provavelmente as pessoas confiarão ou estarão mais à
vontade com alguém que os tem, porque serve de exemplo. E serve também como
forma de deixar a pessoa mais à vontade. [Profissional de body piercing,
frequência universitária, sexo masculino, 25 anos]
A sua opção por este tipo de ofícios não decorre, todavia, de uma escolha
previamente preparada e pré-determinada no seu horizonte de expectativas
laborais. Não se sonhou, desde cedo, ser tatuador ou body piercer, ao contrário
das mais clássicas profissões de natureza artística, onde muito cedo se
descobrem e encaminham as vocações.
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Raramente o jovem tem, a priori, como objectivo de vida, tornar-se tatuador ou
body piercer profissional. Perante a perspectiva ou a vivência efectiva de
trajectórias laborais marcadas por experiências de intensa rotatividade,
precariedade, risco de discriminação e insatisfação pessoal, a hipótese de vir
a tornar a sua paixão de consumo numa fonte de rendimento regular e proveitosa
começa a vislumbrar-se, a dado momento das vidas destes jovens, como uma
alternativa viável à instabilidade laboral, ao desemprego e ao emprego
desconsolador.
Mesmo para os potenciais ou efectivos portadores de formação artística, a
tatuagem constitui uma opção de carreira sedutora perante as dificuldades de
integração sentidas em outros campos da produção cultural, onde as
oportunidades de trabalho simultaneamente criativo e lucrativo são muito
limitadas (como a pintura ou a escultura, por exemplo, ou até mesmo a música,
área cujos canais de difusão e de profissionalização são igualmente difíceis de
aceder). Daí muitas vezes esses jovens acabarem por renunciar à sua prévia
carreira formativa, beneficiando, ainda assim, de todo um capital de formação
visual e técnica gráfica importantes no métier de tatuador.
Eu trabalhei quinze anos com moda, e nunca na minha vida tinha pensado nisto,
percebes? E é engraçado, porque começou da gente se conhecer [ela e o actual
companheiro, na altura designer gráfico], e por começarmos a estar os dois, e
acabou por ser uma coisa a dois. ( ) Juntámos às tatuagens umas roupas Eu
tinha uma sócia, ele tinha um sócio. ( ) Pronto, [ele] tirou o curso de
aerógrafo, montes de coisas, trabalhava num ateliê de design e publicidade, e
foi muito mais fácil de chegar à tatuagem. Quando começou a tatuar, claro,
começou durante uns bons tempos em casa. Tem uma vivenda e tal, tatuava em
casa. Até que surgiu a ideia: ah, vamos abrir uma loja. [Gerente de estúdio de
tatuagem e body piercing, 9.º ano de escolaridade, sexo feminino, 39 anos]
Por outro lado, é quase sempre acidentalmente que a perfuração corporal, na sua
versão tatuagem ou body piercing, é encontrada como alternativa ocupacional
viável. A entrada profissional neste circuito é relativamente casuística e
impelida por uma série de contingências situacionais. Mais do que a obsessão,
são as circunstâncias (Melo, 1988)
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que, a dada altura das respectivas trajectórias de vida, impelem jovens já
extensivamente marcados a descobrir a sua inclinação para este tipo de
práticas, bem como os talentos particulares que as envolvem, levando-os a
equacionar a sua possibilidade enquanto forma de subsistência, possibilidade
laboral vantajosa, meio de manutenção e de celebração de um estilo de vida.
Eu gostava muito de tatuagens, como tu sabes. ( ) E tinha uma tatuagem que não
gostava, uma dessas feitas em Londres, que queria tapar. E fui então à B. B.
Comecei a dar-me bem com eles, porque comecei a querer mais coisas e mais
projectos e não sei quê. ( ) E então demo-nos imediatamente bem. E, de repente,
houve necessidade de alguém para fazer body piercing, e eu nessa altura não
estava a fazer nada. Só tocava, mas já estava a ficar um pouco farta também. E
surgiu essa oportunidade Era preciso alguém. E em conversa de café, que foi
mesmo conversa de café, eu disse eh pá, olha, eu acho que se calhar isso até
eu gostava de fazer!, mas mesmo sem segundo sentido nenhum. E eles apanharam a
frase e disseram-me Então é mesmo assim, vais para casa, pensas , foi quase
isto. E em quinze dias eu estava em Londres, estava a aprender, e depois
comecei logo a trabalhar. Portanto, foi mesmo assim, não foi nada, nada, nada
pensado. [Profissional de body piercing, 9.º ano de escolaridade, sexo
feminino, 34 anos]
Ainda que, num primeiro momento, as trajectórias de vida destes indivíduos
possam revelar alguma dessocialização relativamente ao mundo do trabalho,
orientada por uma forte ética convivialista e hedonista que os leva a diferir a
inserção profissional e a prolongar o mais possível a sua condição juvenil, num
segundo momento a trajectória profissional desenvolve-se segundo um modelo de
busca autónoma (Pais, 2001: 411), onde se descobrem vocações e se potenciam
capitais vários, acumulados sobretudo (mas não exclusivamente) em socializações
de rua, mais intersticiais que institucionais.
Capitais culturais que integram competências técnicas e estéticas adquiridas
por osmose através da convivência com o circuito da perfuração corporal
enquanto consumidor, através de experiências profissionais anteriores, ou ainda
através da frequência de cursos e/ou disciplinas artísticas ou para-artísticas
no sistema formal de ensino. Mas também capitais sociais que integram toda uma
rede de relações acumuladas no âmbito das sociabilidades microgrupais de que
estes jovens foram participando, capital esse que vai servir de espaço social
de publicitação e recrutamento de clientelas. É no cruzamento da vivência
desses contextos particulares de vida, caracterizados pela proximidade de
mundos alternativos e socialmente circunscritos a espaços microculturais, que
estes jovens começam por delinear as suas estratégias de inserção profissional,
induzindo atitudes específicas perante o trabalho.
Os tatuadores e body piercers da nossa praça, sobretudo aqueles que estiveram
na génese deste movimento em Portugal, nos idos anos 80 e 90, são indivíduos
que, efectivamente, desde a sua adolescência, seguiram rotas de ruptura, de
desvios múltiplos, itinerários de vida que habitualmente não são encarados como
os caminhos mais apropriados. Tais itinerários abrangem três tipos
relativamente distintos de trajectórias sociais: um primeiro tipo corresponde a
uma trajectória de exclusão social, efectiva ou iminente, a qual implica o
abandono precoce e desqualificado da escola por parte do jovem, decorrente de
uma trajectória educativa relativamente mal sucedida, com o objectivo de vir a
ganhar algum dinheiro de bolso que lhe permita aceder a pequenos sonhos de
consumo e se autonomizar perante uma família de origem dotada de poucos
recursos materiais e culturais, frequentemente pouco estruturada do ponto de
vista afectivo, ou já decomposta do ponto de vista social.
No decorrer deste tipo de trajectória, estes jovens defrontaram-se com uma
intensa rotatividade entre trabalhos pouco qualificados e precários, alternando
com períodos de desemprego, muitas vezes aproximando-se tangencialmente ou
chegando mesmo a mergulhar em várias formas de delinquência, não só como modo
de celebrar a vida, mas também de ganhá-la. Para os jovens que já tinham
enveredado por trajectórias de exclusão, a opção laboral pelos ofícios de
marcar o corpo acaba por funcionar como forma de se reconciliarem socialmente,
de se (re)adequarem ao sistema de que tanto se demarcam, aproveitando, contudo,
as brechas que nele abrem para a produção de modos de vida escapatórios.
Vim para cá [para Portugal] com 9 anos e estive em casa da minha madrasta, no
Bairro Alto. ( ) O meu pai foi no 25 de Abril. ( ) Ele teve que fugir para a
África do Sul, ou seja, estive 18 anos sem o ver. ( ) A minha mãe ficou em
Moçambique, ela já não sai. ( ) Nunca tive esse contacto directo com os
familiares, prontos, mas tive com outras pessoas e que para mim foram os meus
familiares. Mas, claro, eles não eram ninguém para se oporem a nada daquilo que
eu ia fazer. ( ) Mais tarde, realmente já estava mesmo a precisar, já estava
com dois anos seguidos a dormir na rua, dois Invernos que eu passei e que não
desejo a ninguém, e eu Tive mesmo que me pirar para casa dos meus tios. ( )
Estudar, estudei só até ao 8.º e marimbei-me. Marimbei-me da escola. Ao fim ao
cabo, comecei muito cedo a trabalhar, e depois comecei a ter aquela coisa de
dinheiro no bolso, ninguém me agarra! ( ) E depois comecei a entrar em em
ondas também assim um bocado um tanto ou quanto que não me levavam mesmo já a
querer estudar. E então borrifei-me para escola. Prontos, comecei naquelas
ondas das ganzas e, prontos. ( ) [Em termos profissionais] Posso dizer que sou
o homem dos sete ofícios ( ) Eu comecei a trabalhar para uma marcenaria aos 12
anos ( ) Depois passei por estucador, estive numa casa de alumínios, e depois
da casa de alumínios voltei novamente para marcenaria, não a mesma, mas outra.
Saí daí e fui para uma anodização, depois saí da anodização, voltei outra vez
para uma casa de alumínios. ( ) E depois, mais tarde, fui trabalhar para uma
fábrica de material eléctrico. E depois saí, porque aquilo, entretanto, fechou
E fui trabalhar para uma fábrica de tectos falsos. ( ) E depois assim que saí
dessa casa voltei novamente para uma marcenaria. E depois saí daí, e estive
bastante tempo parado, estive para aí coisa de dois, três meses parado e e
comecei a pensar Não, vou montar qualquer coisa, porque eu já estou farto de
estar a trabalhar para os outros! Então, mas eu tenho muita coisa na minha
cabeça que eu sei fazer, porque é que eu não hei-de fazer alguma coisa que
tenha a ver comigo?! Ou seja, depois fui trabalhar para as obras e consegui
orientar uns dinheiros a mais, comparado com aquilo que era o ordenado mínimo.
Então foi daí que me lancei. Lancei-me e comecei mesmo a fazer tatuagens.
[Tatuador, 8.º ano de escolaridade, 24 anos]
Outro tipo de itinerário de vida encontrado remete para uma trajectória de
desajustamento social, a qual implica uma deriva, um saltitar constante do
jovem entre várias áreas vocacionais, cursos e/ou empregos, sempre sentidos
como pouco estimulantes, muitas vezes comprometedores da sua ética de vida e
incompatíveis com o seu projecto corporal, identitário e de estilo de vida. A
escola, no início da adolescência, é vivida como uma instituição prescritiva,
que entra em confronto com uma ética de vida que valoriza a liberdade de acção,
o prazer e o gosto pessoal. Mesmo quando é oriundo de famílias altamente
escolarizadas, a escola tem pouca relevância, no que respeita aos seus aspectos
formais e curriculares, no mundo social real dos jovens com este tipo de
trajectória. Por consequência, o desinteresse pelas matérias e o absentismo
escolar, embora sem redundar inevitavelmente em insucesso e abandono, passa a
fazer parte dessa trajectória. A vivência escolar é feita, sobretudo, nos
interstícios da instituição, ou seja, nos espaços de convivialidade e de
experimentação que proporciona, os quais frequentemente se prolongam para fora
dos limites físicos da escola.
Neste contexto, com a cooperação tácita ou negociada por parte de uma família
economicamente estável e que deposita expectativas no futuro do jovem, este não
abandona a escola e procura sucessivamente encontrar uma opção escolar e/ou
laboral que satisfaça as expectativas dos pais e, simultaneamente, os seus
próprios anseios de realização expressiva. Tentando supri-los pelo lado do
consumo, o jovem entrega-se a alguns biscates de forma instrumental, de forma
a ganhar algum dinheiro de bolso, entre os quais a perfuração do corpo. Até
equacionar esta possibilidade enquanto carreira profissional viável,
relativamente estável e durável, prazerosa e lucrativa, conciliando um projecto
laboral e de vida.
Até ao 10.º ano era um aluno excelente. Depois, começaram a surgir outros
interesses e deixei de ser o aluno excelente e passei a ser um aluno medíocre,
que quase não ia às aulas, que chegava aos pontos e descarregava aquilo que
sabia, tirava umas notas relativamente altas em relação ao resto da turma, mas
todos os professores diziam que podia fazer melhor se me empenhasse. Depois,
quando cheguei à universidade, meteram-se as drogas à mistura, meteram-se as
mulheres à mistura e descambou completamente ( ) Lá está, o estudo, não é só o
gosto pelo saber, é também o ter de saber certas e determinadas coisas que nos
são impostas, e é com isso que me dou mal. ( ) [ foste para a faculdade ] Fui,
mas fui por imposição do estereótipo, lá está! O primeiro [curso] porque eu
sou o chamado pára-quedista universitário foi estudos europeus na
Universidade Moderna. Não tinha absolutamente nada a ver comigo, mas como uma
das disciplinas que eles pediam era inglês e era das que eu tinha, lá fui.
Arrependi-me. ( ) Depois estive dois anos em Castelo Branco na área de tradução
e relações internacionais, com uma componente de tradução bastante mais forte
do que de relações internacionais. E depois fartei-me de Castelo Branco e fui
parar ao ISLA, também num curso de tradução ( ) Tenho o primeiro ano, não
tenho canudo nenhum ( ) Mas não é nada que eu não tenha em mente um dia mais
tarde vir acabar, este ou aquele ou aqueloutro curso. Mas não é prioridade
neste momento. ( ) Já fiz tudo, desde obras, já trabalhei como pintor, já
trabalhei como servente de pedreiro, já descarreguei camiões, ou seja, já
estive na estiva, já lavei pratos, já andei a distribuir publicidade nas caixas
do correio, já fiz tradução, já passei trabalhos a computador, já fiz uma série
de coisas ( ) [Sempre expedientes para arranjar algum dinheiro ] Pois, exacto,
claro Cá em Portugal e lá fora no estrangeiro. Em Inglaterra. ( ) Aí mesmo por
necessidade, senão passava fome e acabava na rua. Caso contrário, em casa dos
meus papás há comida na mesa e roupa lavada [Profissional de body piercing,
frequência universitária, sexo masculino, 25 anos]
Por fim, encontramos ainda um itinerário de vida que envolve um forte
compromisso por parte do jovem com uma trajectória de formação artística,
frequentemente na área das artes visuais, que pode girar em torno da frequência
de cursos profissionais, médios e/ou superiores de pintura, designgráfico ou
fotografia, por exemplo, valência formativa que tende a ser mais encontrada
entre os tatuadores, mas que não lhes é exclusiva. Continua a ser uma
trajectória que, apesar de centrada no âmbito artístico e da produção cultural,
não deixa de ser marcada pela rebeldia perante as prescrições da instituição
escolar e a vivência hedonista e convivial dos seus interstícios, bem como a
intermitência entre a frequência da escola e de actividades laborais precárias.
O ofício de tatuador e/ou de body piercer pode surgir, no âmbito destas
trajectórias, quer sob a forma de carreira futura (situação que se destaca no
caso da tatuagem), enquanto forma de capitalizar competências artísticas
adquiridas formalmente numa área criativa ainda pouco explorada, quer sob a
forma de biscate temporário para desenrascar uma conjuntura, ou seja, para
obter algum rendimento enquanto a formação artística não é finalizada e não se
está em condições de iniciar o trajecto profissional nesta área (mais frequente
no caso do body piercing).
Eu nunca gostei de estudar, lá está! ( ) Estava nos Olivais, sim! [depois mudei
para a António Arroio ] Porque eu depois também tinha que mudar para algum
sítio. E porque era a única escola que tinha as áreas que eu queria. Hoje em
dia já há muitas, mas dantes, na minha época, havia pessoal que vinha do
Algarve e do Porto e não sei quê para estudar ali. Eu, de facto, fui para
cinema e fotografia, e era o único sítio. Depois também me revoltei com a
escola e tudo também, por causa da matemática e da físico-química, e dessas
coisas todas. Porque eu estava ali e tinha aqueles ideais todos artísticos, não
é? E achava incrível ter de estudar aquelas disciplinas muito chatas, que eu
achava que não me iriam servir nunca de nada. E depois também acabei por só
fiz o 10.º ano, depois deixei de estudar. E foi quando então fui para Londres e
não sei quê. ( ) Toda a minha juventude fui bailarina, bailarina clássica, não
cheguei a profissional, estava no pré-profissional. ( ) E depois comecei a não
me identificar muito com aquilo, comecei a fumar charros e a beber copos e a
ter uns amigos um bocado diferentes, e aquilo era muito, muito, muito, muito
rígido, não era? Muito, muito, muito, muito rígido. E de vez em quando ia para
lá assim meio estranha e distraidíssima e não sei quê, e desisti. ( ) Fazia
fotografia, e fui para o Ar.Co à minha conta, porque aquilo já era caro naquela
altura, e ele [o pai] sempre achou que não, porque não tinha futuro! Não tinha
futuro, a fotografia não tinha futuro. ( ) Depois desisti, porque não tinha
dinheiro. ( ) De resto, a nível de profissões, eu tenho feito tudo, estou
sempre a dar grandes reviravoltas. ( ) Depois ia e vinha para Londres, ia e
vinha para Paris, depois então [Em Paris fizeste o quê?] Nada, gatunagem pura
e simples, vida de rua, do mais Posso mesmo dizer que os meus amigos eram
todos delinquentes de primeira. Foi uma experiência muito engraçada, que não
deixava para trás de modo algum. Nunca fiz nada. Andava por lá e divertia-me
bastante. E depois vim ( ) E quando vim arranjei um emprego ( ) Foi um
emprego muita giro, que eu aprendi muito e adorei, em que trabalhei ainda
foram uns bons quatro anos numa galeria de arte. ( ) Depois retomei o
trabalho no E. D., e passados uns meses a B. B. Ainda coincidiu durante uns
tempos, durante um bom tempo. Só quando isto começou a tomar as proporções que
tu sabes, é que então não dava para as duas coisas, e como é óbvio, desisti,
estava ali empregada de balcão, não é? [Profissional de body piercing, 9.º ano
de escolaridade, sexo feminino, 34 anos]
Apesar de bastante diversificadas, as circunstâncias que enformam as
trajectórias destes jovens têm em comum uma vivência de rua, implicada numa
ou em várias cenasou ondas juvenis, onde os jovens começam por experimentar
neles próprios e, por vezes, nos seus pares algumas versões mais exacerbadas de
corporeidade, fora das tradicionais convenções físicas e simbólicas que regulam
e disciplinam socialmente os corpos. É nesses contextos sociabilísticos que o
gosto pelo consumo de marcas começa a desenvolver-se, transformando-se em
projecto de corpo e de identidade. Em alguns casos, o gosto pelo consumo vai
mais longe e transforma-se em gosto pela produção, quando o jovem intenta
processos de aprendizagem e estratégias de profissionalização.
Aquilo que era apenas uma prática de consumo passa a ser encarado como uma
carreira profissional alternativa (Craine, 1997), uma opção escapatória quer
às carreiras desviantes (Becker, 1963) ou carreiras de lazer (MacDonald e
Shildrick, 2007) que se abriam como possibilidade de modo de vida no âmbito de
trajectórias marcadas por sucessivos fenómenos de exclusão social da sociedade
institucional (da família, da escola, do trabalho) e de concomitante inclusão
em redes e circuitos sociais alternativos e subterrâneos; quer às encruzilhadas
profissionais vividas no âmbito de trajectórias caracterizadas por
desajustamentos sociais sucessivos ou por formações artísticas sem grandes
perspectivas laborais.
Lá está, foi uma luz que me acendeu assim. Ao princípio eu perguntava sempre
Eh pá, porra, deixa-te de merdas! E o que é que eu vou ser? E o que é que eu
vou ser? Porra!! Eu ando sempre na rua, ando sempre bêbado, ando sempre maluco,
grupos para aqui e para ali, curto!! Mas o que é que eu vou ser? O que é que eu
quero ser? E, ao fim ao cabo, sabia de muitas coisas que eu podia ser, e tinha
dinheiro para me poder meter em qualquer negócio que eu quisesse, só que nunca
me deu, porque não me dizia nada directamente. Era daquelas coisas que eu, eh
pá E a tatuagem foi daquelas coisas que eu disse, assim que eu comecei a
tatuar ( ) Acho que é aquilo que tem a ver comigo e com o que eu me identifico
mais. ( ) Porque eu posso trabalhar e fazer aquilo que eu quero, tenho o meu
aspecto e não, prontos, é ( ) é esta a imagem que eu quero ser. ( ) Já estava
com aquilo na cabeça: não vou mais trabalhar para os outros! Ou seja, se eu
me vou mutilar todo e se vou fazer isto assim e assado, é porque eu estou a
escolher um modo de vida. ( ) Só quero fazer aquilo que me está a apetecer,
aquilo de que eu gosto! ( ) É o meu vício, é tatuar. É daquelas coisas que eu
gosto mesmo muito, e tenho prazer! [Tatuador, 8.º ano de escolaridade, 24 anos]
Às portas de um mercado de trabalho saturado, lotado, e que os discrimina,
patologiza e receia, tatuadores e body piercers crêem que, ao optar por este
rumo de vida, seja na forma de carreira ou de biscate improvisado, deixam de
ter grandes possibilidades de reversibilidade na trajectória. O compromisso com
a divergência corporal e com a dissidência social que advém dessa escolha é por
eles percebido como uma viragem sem retorno na política e no estilo de vida.
Ora, se tal situação, à partida, poderia ser percepcionada pelos próprios como
um facto limitativo do seu futuro, acaba por ser extremamente valorizada.
Na medida em que percepcionam as convencionais estruturas do mercado de
trabalho como espartilhos institucionais da sua forma de ser, de se apresentar
e de se representar socialmente, a opção laboral pela perfuração corporal
representa o compromisso integral com uma estética e uma ética de vida, uma
escolha que garante uma coerência, estabilidade e durabilidade identitária
pouco provável de conseguir através de empregos out scene. Daí que o momento da
tomada de decisão por essa opção corresponda, frequentemente, a uma etapa do
projecto corporal desses jovens em que muitas das tatuagens e outras marcas já
previstas começam a exceder os limites corporais potencialmente disfarçáveis
com o uso de indumentária.
Na altura, quando eu pensei em fazer esta tatuagem [na cabeça], foi exactamente
porque me tinha apercebido que iria conseguir, nos anos futuros, conciliar a
minha vida de eterno adolescente, se assim quiseres, com o aspecto profissional
do piercing. Ou seja, o facto de poder estar a fazer algo de que eu gostava
realmente, e que me permitia levar a minha vida sem problemas. Ou seja, eu
conseguiria conciliar as duas coisas: o útil e o agradável. Então aí, a minha
máscara, esta, que é a minha máscara, ia ter razão de ser. ( ) Nesta altura já
eu me começava a sentir dono de mim mesmo, não tinha que receber pressões
externas, não tinha que me preocupar com o que é que vai ser de mim daqui a
uns anos quando eu precisar de arranjar emprego?! ( ) E não me enganei! Não
me enganei de forma alguma. Está provado que, se eu quiser, posso viver
perfeitamente com aquilo que o piercing dá. ( ) O facto de eu ter descoberto o
body piercing permitiu-me, permite-me ainda, praticar aquilo que gosto, fazer
aquilo que gosto em termos daquilo que é o invólucro ou a apresentação do
visual. Agora, é verdade que algures ao longo da linha, comprometemo-nos de tal
maneira que já não podemos voltar atrás. [Profissional de body piercing,
frequência universitária, sexo masculino, 25 anos]
Neste cenário, a passagem destes jovens pelas ditas ondasou cenasjuvenis,
enquanto fase de descarrilamento juvenil que acaba, mais tarde ou mais cedo,
por voltar a entrar nos eixos, acaba por não ser tão fugaz, esporádica ou
fortuita quanto se poderia à partida prever. Ao contrário do que Maffesoli
pressupõe, o ingresso precoce em universos neotribalistas, no caso dos jovens
profissionais entrevistados, acabou por resultar em progressoao longo das suas
trajectórias de vida (2004: 149), onde um compromisso cada vez mais empenhado
com uma política de vida dissidente e um estilo de vida celebratório se foi
forjando e expressando corporalmente.
As artes dos ofícios de marcar o corpo: talentos, aprendizagens e disciplinas
O reconhecimento social dos artífices do corpo enquanto artistas e
profissionais no circuito da marcação corporal, implica a avaliação da
qualidade da performance da inscrição no corpo de outrem na sua dupla dimensão
de exercício estético e de conduta de risco. Essas dimensões envolvem a posse
de conhecimentos específicos ou, na acepção de Giddens (1995 [1990]),
desistemas periciais associados a cânones técnicos e artísticos, bem como a
saberes e disciplinas de natureza clínica e sanitária. A dimensão de exercício
estético é particularmente valorizada no caso da tatuagem, forma cultural sobre
a qual decorre, a partir do circuito onde é produzida e comercializada, um
processo de dignificação e legitimação simbólica enquanto forma artística.
Trabalhando com um procedimento expressivo ainda, em grande medida, sujeito aos
cânones do sistema de classificação simbólica e de judicação estética próprios
do paradigma da arte clássica, espera-se de um bom tatuador, em termos
estéticos, que consiga transpor para a epiderme a ideia conceptualizada pelo
cliente. O tatuador é o concretizador do imaginário do cliente, da sua
originalidade conceptual, funcionando o rigor no pormenor e o realismo como
características estéticas mais valorizadas no reconhecimento da artisticidade
da obra (em contraposição ao que reconhecem como alguns excessos
abstraccionistas ou conceptuais). Tal como os clássicos do naturalismo, quanto
mais próximo da realidade conseguir ser o trabalho do tatuador, mais
considerado será no interior do circuito profissional. E se for à vista, isto
é, se demonstrar capacidade de concretização imediata, de improvisação, sem
passar previamente por um molde em papel, mais talento lhe é atribuído.
Os principais requisitos periciais para vir a ser um bom tatuador decorrem
directamente dos próprios critérios de legitimidade artística da tatuagem,
exigindo-se ao profissional, fundamentalmente, que tenha uma mão firme e domine
as técnicas do desenho. Tal como no sistema da arte clássica, o talento é
visto como um dom, sendo conotado com o jeito para o desenho. Esse talento
reveste-se de uma precisão de relojoeiro na reprodução epidérmica do desenho
projectado, tanto mais quanto os seus traços são encarados como definitivos.
Qualquer um de nós podia fazer piercings, mas nenhum de nós pode fazer
tatuagens se não tiver um perfil de desenho muito forte. ( ) Oh pá, porque a
arte é aquilo que tu vês, que tu transpões de um papel para a pele e que fica
igual. ( ) Preocupam-se com aquelas esculturas horríveis, eu acho, uma pedra
sobre pedra, que lindo! É Escultura!. Mandam-me duas latas de tinta para a
parede Arte! Tão giro! E porque é que olhas para aquilo? Eu não vejo nada!
Eu fazia aquilo, qualquer um de nós aqui fazia aquilo! É arte! ( ) Por
exemplo, tu viste aquela perna, é de um realismo muito forte. Há pessoas que
não fazem aquilo, não é? ( ) Pronto, pessoas que chegam aqui com sonhos que não
sabem explicar, eles [os tatuadores] transpõem para o papel, pá, a ideia das
pessoas: é mesmo isto, só que eu não encontrava em lado nenhum! [Gerente de
estúdio de tatuagem e body piercing, 9.º ano de escolaridade, sexo feminino, 39
anos]
As competências dos tatuadores, contudo, não estão confinadas à sua perícia
figurativa com agulhas de pistola. A esta competência estética, acrescem
competências de ordem técnico-expressiva relativas à definição dos contornos
e sombreados, à solidez e brilho das cores utilizadas, à adequação do desenho,
na sua dimensão e características particulares, à anatomia específica do corpo
do cliente , bem como ainda competências colaterais ao exercício estético da
actividade, como sejam as de ordem sanitária, comunicacional e empresarial.
Um artista na tatuagem é assim, logo que expresse o tipo de trabalho que tu à
partida idealizas, para mim é um bom tatuador. ( ) Agora, a maneira como o
fazem, a higiene que têm, todo o tipo de cuidado que têm com o trabalho, a
maneira como deixam o cliente à vontade, isso também é importante. Todo esse
tipo de qualidades elege qualquer um como bom tatuador. [Cozinheiro, frequência
universitária, 28 anos]
A estas competências, adquiridas em contextos de socialização e formação
múltiplos, há ainda que juntar a capacidade criadora do tatuador, ancorado nas
idiossincrasias pessoais que o indivíduo mobiliza e faz jogar no seu trabalho
de criação, processo de personalização expressiva que, em última instância, irá
definir um estilo pessoal. Como no maneirismo seiscentista, a tatuagem pode ser
identificada como sendo executada à maneira de. É justamente na perspectiva do
respeito pela dimensão autoral patente em cada estilo pessoal que, no universo
dos tatuadores, existe tacitamente instalada uma regra fundadora da sua
deontologia profissional: a de nunca acabar os trabalhos iniciados por outros
tatuadores, de forma a respeitar o estilo dessoutros e, sobretudo, não
comprometer a singularidade já reconhecida ao seu próprio estilo. Nestes casos,
a hipótese artisticamente mais séria será cobrir a anterior tatuagem com uma
inteiramente nova.
Todos os tatuadores têm o seu estilo, não é? Mesmo uma pessoa a desenhar não é
igual, não há pessoas que desenhem da mesma maneira. E com os tatuadores é
exactamente a mesma coisa. Todos eles têm o seu estilo. ( ) Então é preferível
uma pessoa ter uma certa continuação. ( ) Às vezes chega-me aqui uma pessoa e
diz-me eu fiz um trabalho, mas não foi feito aqui, e agora queria acabá-lo.
Nós não acabamos esse trabalho. Podemos fazer outro trabalho diferente, mas não
acabamos esse trabalho, porque isso é um trabalho feito por outra pessoa. Nós
não temos o direito de estragar um trabalho que está feito por outra pessoa. E
é uma certa norma que as casas têm tendência a cumprir. É daquelas coisas que
não é preciso estar escrito em lado nenhum, não é lei nenhuma, não é, mas que é
uma norma que as pessoas cumprem. [Profissional de body piercing, 8.º ano de
escolaridade, sexo masculino, 23 anos]
Mais artífice do que artista, do body piercer são esperadas, fundamentalmente,
competências periciais de natureza técnica que incluem, sobretudo,
conhecimentos teóricos de anatomia e conhecimentos práticos sobre procedimentos
de pequena cirurgia, higiene hospitalar e primeiros socorros, ficando a
dimensão estética em grande medida reduzida à apreciação da conformidade entre
as características do objecto incorporado (no seu volume, forma e cor) e as
características da zona corporal a incorporar.
Se houver uma pessoa que chegue aqui e me perguntar qual é o piercing que lhe
fica melhor no umbigo, eu posso dar-lhe a minha opinião. ( ) Às vezes as
pessoas não têm muito bem a noção dos piercings que escolhem. ( ) Mas o
piercing não é só a parte do furo, é tudo o que envolve o material todo, desde
material que é preciso esterilizar, a material que não vale a pena esterilizar,
que é logo deitado fora que é o caso das agulhas que te furam, que são
deitadas fora para uma embalagem para depois levar para uma farmácia. ( ) Uma
pessoa nunca sabe quem é que vem fazer o piercing, nunca sabe se tem doenças
contagiosas, se não tem doenças contagiosas. Portanto, há sempre o máximo de
segurança, e há normas de segurança que as pessoas têm sempre que cumprir.
[Profissional de body piercing, 8.º ano de escolaridade, sexo masculino,
23 anos]
Na medida em que são práticas corporalmente invasivas, a tatuagem e o body
piercingnão são inócuas de riscos se não forem praticadas mediante rigorosas
regras de assépsia. Os profissionais da marcação corporal lidam frequentemente
com sangue e outros fluidos de desconhecidos, pelo que, sem meticulosas
precauções de higiene e esterilização, determinadas doenças podem ser
transmitidas de um cliente a outro ou ao próprio profissional por negligência
deste último (Greif, Hewitt e Armstrong, 1999; Millner e Eichold, 2001).
É nesta perspectiva que se denota no discurso social produzido e reproduzido a
propósito da tatuagem e body piercing uma forte ênfase na sua dimensão de
conduta de risco e, consequentemente, na necessidade de competências e
disciplinas profissionais que acautelem a higiene e saúde pública nos estúdios
onde são exercidas. Programas, reportagens e discursos quotidianos (incluindo
os dos próprios profissionais, bem como os sítios dedicados a este tipo de
práticas na Internet), são em grande medida focalizados na questão dos riscos
de saúde que a incorporação deste tipo de marcas implica, destacando o perigo
de contrair doenças infecto-contagiosas, de contrair infecções, ou de ter
reacções aos materiais ou tintas introduzidos na epiderme.
O recente renascimento da tatuagem e body piercing, com a sua integração nas
indústrias de design corporal, consequente profissionalização dos seus
praticantes e alargamento social das respectivas clientelas, veio nessa medida
integrar um aparatoso processo de higienização (Costa, 2004) e medicalização
(Albuquerque de Braz, 2006; Siorat, 2006) dessas práticas. Tais processos
traduzem-se quer na preocupação dos produtores com a construção de uma imagem
de assépsia sobre os seus estúdios, equipamentos e procedimentos, quer na
utilização e prescrição de produtos medicinais utilizados durante e após a
intervenção,
11
uma mais-valia simbólica na legitimação social da sua actividade e respectivos
resultados estéticos.
O estúdio deve espelhar as regras básicas de assépsia, o que faz com que, em
muitos deles, os seus responsáveis tenham o cuidado de, aos clássicos elementos
de uma estética neobarroca habitualmente dominantes na sua decoração, juntar
outros elementos que remetem para um cenário medicalizado e moderno: um cenário
que transpareça higiene, assépsia e vigilância clínicas, por forma a combater a
imagem da actividade como trabalho sujo, a credibilizar a reputação do
estúdio e dos respectivos profissionais, e a conceder um maior nível de
confiança ontológica às novas clientelas levadas pelo recente renascimento das
marcas corporais. É nesta medida que muitas vezes se encontra o body piercer
ou, por vezes, até o tatuador, dotado de toda uma parafernália paramédica,
desde a maca ou a marquesa à bata branca, das luvas às máscaras cirúrgicas,
evocando a respeitabilidade e a credibilidade social conferida às práticas
invasivas efectuadas pela medicina convencional.
Hoje, numa área onde não há qualquer tipo de legislação que regule este tipo de
práticas,
12
é relativamente fácil um qualquer iniciado encomendar o material necessário
para tatuar ou perfurar a pele, e instalar-se por conta própria. Situados num
circuito altamente competitivo, muitos profissionais destacam a questão da
desregulação da sua actividade, e insurgem-se contra esse vazio legislativo em
Portugal, onde qualquer um pode exercer práticas de marcação corporal sem o
mínimo de competências e condições sanitárias. Os ofícios da perfuração
corporal continuam a carregar com uma reputação negativa, e essa situação
contribuiu para a reprodução social do estigma historicamente enraizado que
persegue os seus praticantes.
Eu acho que em Portugal está tudo um bocado errado porque não há legislação da
parte da saúde que exija aos estúdios seja o que for, tás a ver? Isto é tudo
uma balda, cada um faz aquilo que quer, se a gente quisesse não tínhamos sequer
uma desinfecção nenhuma aqui no estúdio, ou quem diz aqui diz noutro lado. Não
somos obrigados a nada! Fazemos porque evidentemente achamos que é necessário,
mas há pessoas que não acham que seja necessário. [Profissional de body
piercing, estudante universitária, 27 anos]
As condições sanitárias e de assépsia em que as actividades são exercidas
constituem, assim, um importante motivo de combate para inúmeros profissionais,
preocupados com a má imagem veiculada por certos amadores (os scratchers),
aparentemente mais ciosos dos lucros que da integridade física dos seus
clientes, a trabalhar em condições de higiene muito duvidosas, com equipamento
suspeito, etc., situação que acaba por conotar negativamente a própria
actividade. A reputação do estúdio e dos profissionais que nele trabalham
também é construída a partir da minimização do risco implicado na prática
profissional, e não é do interesse de nenhuma das partes, produtores e
consumidores, que haja razões para que se estabeleça qualquer espécie de
desconfiança. Daí a urgência destes artífices na institucionalização de uma
ética profissional, nomeadamente sob a forma de legislação, reguladora de
competências e disciplinas técnicas e sanitárias, sujeitas a vigilâncias
apertadas e sanções jurídicas.
Ainda que não institucionalizado, existe um conjunto de disciplinas
implicitamente aceites entre os profissionais mais reputados no circuito da
marcação corporal em Portugal, que vem a consubstanciar-lhes, tacitamente, um
código de ética profissional. Inclui, sobretudo, regras do foro higiénico e
sanitário, quer relativas aos equipamentos e procedimentos com que lidam
quotidianamente nos estúdios, quer relativas aos direitos e deveres que
enformam a relação do profissional com o cliente. A obrigação de passar ao
cliente a informação necessária acerca das precauções e procedimentos a ter com
a sua nova marca, nomeadamente nos primeiros tempos, em que o processo de
cicatrização se desenrola, no sentido de prevenir eventuais focos de infecção e
ter a melhor cicatrização possível, são pontos de honra na sua prática
profissional.
Para além desta regra básica que concerne a pós-intervenção, o profissional
tenta ele próprio definir e gerir a situação de interacção à partida, de forma
a evitar eventuais problemas no desempenho da sua actividade. Fá-lo mediante a
clara imposição de algumas disciplinas sobre o comportamento do cliente,
normalmente expostas nas salas de espera dos estúdios, como a definição etária
para ser intervencionado sem a prévia autorização parental (presencial ou por
escrito), a recusa de intervencionar indivíduos que demonstrem estar sob o
efeito de substâncias alcoólicas e/ou psicotrópicas, o direito que se reservam
de recusar fazer determinados trabalhos estética ou ideologicamente contra os
seus próprios valores, a recusa em continuar trabalhos começados por outros
tatuadores (que preferem tapar e fazer um novo trabalho), ou ainda a recusa ou,
pelo menos, a chamada de atenção para os riscos sociais que advêm de tatuar
definitivamente zonas do corpo normalmente descobertas, como as mãos ou a face,
o que pode ser interpretado como uma irresponsabilidade do próprio tatuador,
evitando assim uma imagem pública negativa que pode comprometer a sua reputação
enquanto profissional.
Perante este cenário, pode-se tomar a tatuagem e o body piercing como práticas
de modificação corporal in-disciplinadas: in-disciplinadas no sentido em que,
quando utilizadas extensivamente no corpo, tendem a integrar projectos que
propõem um modelo de corporeidade dissidente perante os modelos legítimos de
corporeidade; in-disciplinadas porque excorporam um modelo de corporeidade que,
embora dissidente, converge nos códigos simbólicos que o produzem como nomos
alternativo entre os seus usuários, não deixando de ser um modelo de
corporeidade também sujeito a convenções e regras operativas que o regulam
socialmente, quer na esfera do consumo, quer da própria produção, disciplinas
essas que funcionam como importante pólo de avaliação do desempenho
profissional e artístico dos profissionais entre pares.
O reconhecimento profissional do tatuador ou do body piercer não passa
necessariamente pela obtenção de qualquer tipo de formação certificada,
situação, aliás, praticamente inexistente no circuito. Embora a prática do body
piercingjá demonstre algum grau de institucionalização a este nível, com a
oferta, no estrangeiro, de cursos de curta duração vocacionados para a
transmissão de conhecimentos básicos em anatomia, técnicas de execução e regras
de assépsia em pequenas intervenções corporais, os profissionais entrevistados
que os frequentaram tendem a desvalorizar esta modalidade formal de
aprendizagem relativamente às aprendizagens decorrentes das suas experiências
concretas. Desses cursos valorizam, fundamentalmente, o certificado que
ratifica a sua frequência, o qual é habitualmente exposto numa parede visível
do estúdio onde trabalham, como forma de credenciação junto do cliente,
concedendo uma aparência de legitimidade formal e institucional da prática que
pode tranquilizar este último.
Quando comecei a fazer, fui autodidacta. Tive formação depois, quando fui a
Inglaterra, mas já foi por auto-sugestão, ou seja, porque havia, e porque há
muita gente a entrar nos estúdios e a perguntar onde é que aprendeste, como é
que fizeste, e tal. E não há profissionais, ou não há mais profissionais, em
Portugal, que tenham diplomas. Do meu conhecimento, creio que não há. Talvez
porque é mais um ponto de valorização em relação aos outros. [Profissional de
body piercing, frequência universitária, sexo masculino, 25 anos]
Isto é uma arte liberal, isto é uma arte que não tem Não temos nenhuma ajuda,
lá tá, não temos nenhuma escola que fundasse isto e que desse a conhecer a
quem quisesse aprender, para depois podermos usufruir daquilo que aprendemos
ali. Não temos essa coisa cá, isto ainda anda assim um bocado abandalhado. ( )
Ou seja, se não souber fazer e não tiver ninguém que lhe ensine, tem que ir lá
para fora, aprende e vem para cá, e vai fazer aquilo que aprendeu. Ou então tem
que estar ao pé de alguém, ou ter jeito para aquilo e desenrascar-se conforme
sabe. [Tatuador, 8.º ano de escolaridade, 24 anos]
A aprendizagem é tendencialmente realizada segundo um modelo autodidacta, não
um autodidactismo heróico tradicionalmente celebrado nos circuitos artísticos
de visão mais romântica, que aspira à total autodeterminação e autonomia na
aquisição de conhecimentos, resistindo e recusando as formas de aquisição de
conhecimento, mas um autodidactismo de busca autónoma, característico dos
mundos artesãos, onde as formas tradicionais de aquisição e reprodução de
competências nunca foram institucionalizadas, ou seja, controladas e
reproduzidas por instituições socialmente reconhecidas e legitimadas para tal
(Bézille, 2003). No circuito da perfuração corporal, as competências começam
por se adquirir no terreno, pela frequência do circuito, na observação directa,
in loco, de profissionais na sua prática concreta. É relativamente frequente,
no caso dos body piercers, estes procurarem vários estúdios e profissionais
deste ofício no sentido de experimentarem em si mesmos várias técnicas de
abordagem e de interacção com o cliente, de execução da perfuração, de tipos de
material utilizado, etc. Aprende-se em interacção com quem sabe, olhando, para
depois tentar reproduzir e aperfeiçoar na prática concreta.
Para que tal aconteça, os jovens com intenção de se instalar profissionalmente
procuram ser ajudantes ou aprendizes de quem já está instalado ou, situação
mais frequente, autopropõem os seus serviços sobre voluntários que recrutam
entre as suas redes de sociabilidade amical, gratuitamente ou fazendo-se pagar
substancialmente menos que nos estúdios. O acesso relativamente facilitado aos
materiais e equipamentos necessários, e o facto de a intervenção profissional
ser dispendiosa para o bolso de muitos jovens, deixa uma larga margem de
manobra aos exercícios de experimentação autodidacta, nos ensaios sobre si
próprio, sobre couro de animais e/ou, sobretudo, entre amigos. Muitos
tatuadores e body piercerscomeçam, assim, nos corredores das suas escolas ou
nas ruas dos seus bairros a perfurar o corpo dos companheiros que o permitem,
relação que oferece vantagens recíprocas: o objectivo de oferecer a alguns
leigos mais próximos um serviço que, de outro modo, seria bastante mais
dispendioso, permite ao próprio usufruir de uma boa ocasião para treinar e
tentar melhorar gradualmente a sua técnica.
Comecei primeiro a frequentar as casas dos outros. Depois veio o gosto pela
aprendizagem, quis aprender a fazer. E então aí tive obrigatoriamente que
participar daquele círculo, porque era ali que eu ia aprender e era ali que iam
surgir as oportunidades e que eu ia começar a aperceber-me como era o mercado e
como é que funcionava tudo isto. ( ) E também porque poderia estar a ver o que
é que se estava a fazer, deitado, a olhar, a ver o que é que se estava a
passar. ( ) Queria ver também como é que elas trabalhavam, qual é que era a sua
ordem de trabalhar, os instrumentos que utilizavam Então, fui correndo os
vários profissionais do mercado da altura, também para aprender o que é que se
devia e o que é que não se devia fazer. ( ) [Depois] Fui ensinado por uma
pessoa que eu conhecia já de há uns anos e que também estava a desenvolver esta
actividade. Tinha estado em Londres a aprender, veio para cá, e instalou-se
numa casa de tatuagens. E eu, também aí, com ele, comecei a arranjar os meus
próprios clientes, que se dispunham a ser as minhas cobaias, entre aspas. Eu
fazia-lhes o furo com a orientação desta pessoa, que estava ao meu lado e que
possuía o material para que eu pudesse fazer as coisas, e as pessoas que
serviam de minhas cobaias pagavam por isso um preço muito mais reduzido. ( )
Foi assim até ter o meu próprio espaço e até ter o meu próprio material e
começar a fazer os meus próprios piercings. [Profissional de body piercing,
frequência universitária, sexo masculino, 25 anos]
A aprendizagem através da interacção continuada com um profissional mais
experiente e reputado, mediante a instituição de uma relação mestre-iniciado, é
uma situação privilegiada no processo de socialização no papel de perfurador do
corpo, especialmente no caso da tatuagem. A proximidade com o mestre na sua
actividade providencia ao jovem iniciado todo um conjunto de conhecimentos
sobre as oportunidades financeiras e criativas oferecidas pelas actividades de
perfuração que, de outro modo, seria bastante mais difícil de obter, não só nos
seus aspectos mais técnicos, como nos aspectos mais logísticos (contactos com
fornecedores, carteira de futuros clientes, etc.). No entanto, ainda que muitos
jovens se esforcem por tentar obter uma aprendizagem junto de alguém que tenha
já um estúdio e reputação, a aceitação por parte deste segmento é muito
difícil. Formar iniciados é uma tarefa incómoda para quem já tem uma reputação
consolidada, na medida em que a procura de marcas é, actualmente, crescente,
mas as clientelas não se permitem facilmente oferecer a um debutante.
Por outro lado, a reticência da elite dos tatuadores em formar os mais jovens é
ainda fundamentada no facto de, num meio altamente competitivo como é o da
marcação corporal em Portugal, estarem a formar potenciais focos de
concorrência. Na medida em que a formação de um aprendiz se faz a partir de uma
forte conivência com o profissional, trata-se de uma relação que implica
partilhar técnicas e segredos de estilo através do trabalho em conjunto, num
domínio onde a arte e a técnica se combinam subtilmente, e onde o profissional
é cioso da autoria do seu traço, da sua forma de desenhar, ou de perfurar.
Implica ainda partilhar uma carteira de clientes, já que o acolhimento do
noviço na equipa do estúdio é feito, geralmente, na condição de ser pago à
comissão sobre o trabalho dos clientes menos fiéis à casa, com projectos
técnica e esteticamente menos exigentes. Daí que os tatuadores mais velhos e
reputados, mais experimentados e conhecidos não estejam pelos ajustes em
partilhar os seus segredos técnicos e artísticos, bem como os seus capitais
simbólico e social com alguém que, mais tarde ou mais cedo, se pode autonomizar
e constituir num pólo de forte concorrência.
[Comecei a aprender] com pessoas que eu conhecia e que na altura eram militares
( ) Eu fui observando, e assim que eu consegui captar tudo aquilo que eu
observei, fui fazer. ( ) Já tinha feito umas quantas tatuagens a uns amigos
meus, e então foi aquela coisa de decidi mesmo: Não, eu vou montar [o meu
negócio], vou ter que aprender! E tive depois também a chance de conhecer o
H., que foi uma pessoa excepcional comigo, e que me ensinou bastante dentro
daquilo que eu já sabia, e o que faltava desenvolver e ensinou-me. Depois do
que ele me ensinou e aquilo que eu tenho estado fazer estou muita bem! ( )
Aquilo que ele me ensinou tem bastante valor para mim. São segredos que
prontos, lá está, de tatuadores para tatuadores todos escondem, todos escondem
os seus segredos, não é? ( ) Cá a maior parte dos tatuadores andam na onda do
eu sou eu, e isto daqui não sai nada! É mesmo assim! ( ) Também temos que
estar a trabalhar e exercitar o trabalho. ( ) Nós, para aprender a tatuar,
picamos em peles, em couratos Nós começamos primeiro a trabalhar em couratos e
depois daí Eu, pessoalmente, posso dizer que não passei por essa fase, porque
passei logo directamente para a pele [humana]. [Tatuador, 8.º ano de
escolaridade, 24 anos]
Está-se, efectivamente, diante de um mundo exíguo, com estratégias de
fechamento que se pretendem estreitas, e onde se sente a forte presença de
lógicas de competição, concorrência e rivalidade entre pares pela disputa das
novas e pela manutenção das velhas clientelas, as quais, apesar de em
alargamento, continuam a ser parcas. Este contexto possibilita compreender que
a camaradagem e a cumplicidade não seja um pólo estruturante da cultura
profissional destes artífices.
Ainda que, por norma, até devido à exiguidade do universo da marcação corporal
em Portugal, os seus profissionais se conheçam pessoalmente de (con)vivências
anteriores, enquanto frequentadores de determinados circuitos nocturnos ou de
eventos (como concertos de determinados estilos de música),
13
raramente partilham, contudo, relações de amizade, desenvolvendo uma
interacção mínima entre si. É uma actividade que tende, portanto, a ser
bastante individualista e secretista. Suspeitando que outros tatuadores possam
ter acesso aos segredos que definem o seu sistema pericial e fundamentam a
singularidade do seu estilo próprio, o profissional reputado tende a enveredar
por uma estratégia de gestão dos potenciais recursos humanos no seu estúdio,
bem como de fidelização da clientela que cai nas suas mãos.
Legitimação artística do ofício de tatuador e relação com a clientela
Apesar de continuar a ser privilegiada a aprendizagem com os tatuadores mais
experientes e mais reputados, a forma como os novos tatuadores hoje entram na
carreira profissional também se alterou com os tempos. Uma das dinâmicas
subjacentes ao renascimento da tatuagem tem sido, justamente, a emergência da
luta simbólica pela sua dignificação, legitimação e reconhecimento enquanto
forma de arte, processo esse protagonizado, em grande medida, por acção dos
novos actores deste circuito profissional.
Do lado do consumo, indivíduos oriundos de uma posição socioeconómica mais
elevada que os tradicionais clientes, dispondo de maior prestígio social, de
uma mais elevada capacidade financeira e de, ao valorizar a função estética da
tatuagem sobre a sua dimensão afiliativa ou grupal, partilhar o interesse do
tatuador em criar desenhos únicos e inovadores, ganhando assim a legitimidade
cultural de uma classe média urbana e qualificada, seguindo o padrão de outras
formas culturais como o jazz, o cinema, a fotografia, os designs ou mesmo o
graffiti.
Do lado da produção, até pelo tipo de trajectória social que alguns dos recém-
tatuadores apresentam pontuada, como vimos, por experiências de formação em
várias áreas artísticas , estes novos protagonistas vieram introduzir uma
diversidade muito considerável de possibilidades estilísticas na tatuagem,
elevando o grau de exigência estética da iconografia marcada, e enfatizando nas
avaliações de qualidade deste meio de expressão não apenas a competência
técnica, mas também a inovação do conteúdo do design. Concomitantemente, vieram
também reivindicar cada vez mais a institucionalização social da sua área de
actuação enquanto disciplina técnica e meio de expressão artística,
nomeadamente dentro do sistema de ensino.
14
De facto, como se teve oportunidade de ver, hoje não chegam às profissões da
marcação corporal apenas jovens com trajectórias de exclusão ou desajustamento
social, situação típica no passado. Tal como já tem sido recorrentemente notado
noutros estudos sobre este universo (Atkinson, 2003; DeMello, 2000; Sanders,
1988; 1989), muitos dos profissionais que actuam agora em Portugal são jovens
que, a dada altura da sua trajectória escolar, enveredaram por formações
artísticas várias, frequentadores de escolas e universidades de Belas-Artes ou
Design. Insatisfeitos com as limitações expressivas das tradicionais artes
eruditas, bem como com as limitações impostas pelo campo artístico ao
desenvolvimento das suas carreiras, por um lado, e na posse de um largo capital
social subcultural acumulado desde a adolescência em contextos microgrupais,
por outro, alguns destes jovens artistas resolvem explorar o seu gosto pela
tatuagem como meio de vida e de produção criativa, um recurso que, largamente,
já haviam mobilizado para si próprios, enquanto consumidores.
Encontram na tatuagem uma forma de expressão gráfica original e pouco
explorada, disponível para caminhos mais iconoclastas, quer de um ponto de
vista estético, quer de um ponto de vista ético. Simultaneamente, uma
actividade suficientemente rentável e autónoma para permitir a realização de um
projecto de identidade e de vida enquanto artistas ou criadores. A
tentativa de realocamento cultural da tatuagem do lugar desvalorizado de
artesanato ou arte menor para nova forma de arte maior em busca de
legitimação sucede, portanto, paralela à tentativa de realocamento social dos
seus protagonistas, cada vez menos provenientes das margens sociais
relativamente aos mundos das artes.
Na base da decisão do jovem para enveredar pela tatuagem como meio de vida
começa por estar, efectivamente, a autopercepção de que possui uma forma de
talento artístico consubstanciado na clássica capacidade figurativa de
transposição do desenho para a pele com rigor e pormenor realista , reforçado
e legitimado no interior das suas redes de sociabilidade, entre amigos,
professores, clientes e, sobretudo, entre os seus pares no circuito
institucionalizado da marcação do corpo. Afastando-se das representações
negativas do tatuador como figura socialmente desviante e marginal, os novos
tatuadores tendem assim a reivindicar para si próprios o estatuto de artistas
e a apresentar (algum do) seu produto sob o título honorífico de obra de
arte, processo de legitimação sustentado por um sistema de acção colectiva que
integra vários agentes individuais e institucionais interessados (e crentes) na
compra e venda destes recursos enquanto objectos artísticos e, portanto,
orientados para a legitimação e caução cultural das suas respectivas
convenções.
Considero-me e consideram-me [um artista]! E eu, quer dizer, acredito mais
naqueles que me consideram a mim, no que naquilo que eu digo. Porque é aquilo
que os outros vêem e acham. Porra, tu realmente és um artista!, e aí sim,
distingue-se Isto é assim, só eu é que poderei reconhecer esse ponto. Ou eu,
ou qualquer tatuador. Porque não é apesar da pessoa estar de fora e saber
apreciar o desenho, depois nós temos as nossas contas, nós temos as nossas
contas [Tatuador, 8.º ano de escolaridade, 24 anos]
É neste contexto que se começam a tentar organizar espaços de partilha,
afirmação e legitimação cultural dentro do circuito da marcação corporal
profissional, como é o caso de espaços de interacção como associações ou
convenções nacionais e internacionais;
15
ou espaços de mediação discursiva, como as múltiplas revistas da
especialidade, ou os inúmeros sítios virtuais, entre motores de busca, páginas
pessoais ou blogs dedicados ao tema. Os primeiros, correspondem a espaços onde
os saberes-fazer (as pragmáticas que resultam dos saberes) de cada tatuador têm
oportunidade de se dar a ver e de serem socialmente reconhecidos e
artisticamente legitimados pelos pares,
16
podendo constituir acontecimentos potencialmente transformáveis em ocasiões
(Certeau, 1980), ou seja, momentos oportunos para produzir ruptura numa dada
trajectória, ou mudança no status quo do próprio circuito. Os segundos,
correspondem a espaços onde os saberes têm oportunidade de se articular em
discursos, uma caução teórica que faculta uma maioridade cultural às práticas
que têm por referência.
Neste processo de redefinição e deslocação estatutária da tatuagem na
hierarquia da legitimidade cultural, os seus profissionais contam ainda com a
cumplicidade social e simbólica de algumas instâncias pertencentes ao próprio
sistema artístico instalado, com principal incidência entre críticos e outros
mediadores discursivos responsáveis pela caução simbólica não apenas do
produto, mas também do próprio meio de expressão. Um sistema artístico que, a
propósito das fronteiras entre formas artísticas, tem sido recentemente
confrontado com a partilha de um amplo princípio inclusivo ou de banda larga
entre as suas mais novas gerações, o que implica uma larga aceitação por
defeitode formas expressivas potencialmente artísticas.
17
Sob a operatividade deste princípio, se bem que com resultados muito
diversificados, tem-se assistido a alguma porosidade no campo artístico, no
sentido da disseminação e multiplicação das expressões culturais na esfera (ou
na mira) da sua legitimidade, bem como da tentativa de equiparação das diversas
linguagens expressivas, consideradas mais em relações de complementaridade e
interpenetrabilidade do que numa configuração autonómica e hierarquizada. Já
estudos anteriores tinham detectado o pendor dos mais jovens artistas
portugueses para pensar arte como um universo sem grandes fronteiras ou rígidas
demarcações (Pais, Ferreira e Ferreira, 1995: 69), revalorizando uma reciclagem
universal das significações e objectos menores, perfilando novos horizontes e
territórios estéticos para a produção artística, e colaborando assim no colapso
das clássicas distinções que a polarizavam, como cultura cultivada versus
cultura popular, cultura de elite versus cultura de massas, artes
maiores versus artes menores, etc.
As preocupações de ordem estética e criativa têm-se estendido a várias
dimensões triviais da vida quotidiana, dilatando e deselitizando
significativamente o campo artístico, que tende a integrar, hoje, um sem-número
de actividades outrora impensáveis de considerar como arte. Tal porosidade na
entrada da banalidade na arte não acontece, contudo, sem tensões e polémicas
internas ao campo de produção cultural, devendo por isso ser pensada em termos
processuais e não em termos de situação instalada. O sistema da arte não perdeu
a sua natureza hierarquizante e hierarquizada e, não aceitando consensualmente
a atribuição do epíteto artístico a muitos procedimentos expressivos outrora
dominados, remete-os a uma espécie de limbo cultural, uma zona de incerteza a
que Bourdieu (1965) chamou esfera do legitimável(por contraposição às esferas
da produção cultural legítima e arbitrária), onde posições e postos estão mal
definidos.
Neste contexto de reciprocidade entre dinâmicas de porosidade artística e
estetização do quotidiano, o sistema das artes, enquanto sistema segmentado e
hierarquizado de acção colectiva que integra vários agentes e instituições com
papéis diferenciados desempenhados em esferas elas próprias diferenciadas
(Melo, 1994) começa, subtil e lentamente, a partir de alguns segmentos mais
iconoclastas e menos comprometidos institucionalmente, a reconhecer a
legitimidade de algumas artes de fronteira, nomeadamente de procedimentos
expressivosque jogam com as fachadas corporais (Pais, Ferreira e Ferreira,
1995: 73).
Tal vem acontecendo com o reconhecimento da tatuagem enquanto potencial meio de
expressão artística, hoje sujeito a um discurso de caução simbólica de ordem
estética sob a forma de discussões críticas e académicas, com direito a
visibilidade institucional em revistas da especialidade ou através da exposição
em museus e galerias, ou ainda à exploração da sua riqueza expressiva em outras
formas de arte, como o vídeo, a fotografia ou a performance (com a apropriação
deste tipo de recursos por parte da body art, por exemplo), quer sob a
perspectiva da revalorização do exótico, quer do regresso à tradição e da
recuperação da autenticidade das práticas da cultura popular (patente na
visibilidade dada, por exemplo, às tatuagem maori ou às old tattoos, muito
usadas no Ocidente em meados do século XX).
Ainda que, neste cenário, quem as execute tenda a fazer reconhecer-se como
artista, nem toda a tatuagem é, necessariamente, reconhecida como obra de
arte dentro do próprio circuito de produção. Se o procedimento pode ser
considerado uma técnica artisticamente utilizável, tal qualificativo não é
imediatamente transferível a todo e qualquer produto iconográfico fabricado
mediante a sua utilização. Como a pintura a óleo, desde o Renascimento é
considerada um procedimento artisticamente utilizável, o que não implica que
toda e qualquer pintura a óleo seja ou tenha sido socialmente codificada como
obra de arte.
Um dos requisitos indispensáveis para aferir da artisticidade da obra é a
originalidade que lhe é reconhecida, a inovação que o seu criador nela investe.
Daí que o processo de legitimação artística da tatuagem não entronque apenas no
realocamento dos seus novos protagonistas a partir da esfera artística,
enquanto detentores de formações gráficas especializadas e culturalmente
consagradas, mas também na tentativa de apresentá-la como meio de expressão
estética potencialmente inovadora, produtora de desenhos originais e criativos,
e não apenas como reprodutora de exemplares iconográficos previamente
instituídos, de valor estético limitado.
Quando se fala de tatuagem artística, já não se está na dimensão da mera imagem
padronizada, dos tradicionais flashes literalmente evocativos de valores ou
momentos patriotas, de compromissos amorosos, familiares ou militares. Estes
ficam a cargo dos iniciados ou dos que não têm outro interesse na tatuagem que
não o financeiro. Para os mais novos tatuadores abriu-se a era da ilustração
bio-gráfica autoral. Ao contrário dos velhos tatuadores, os mais novos tendem a
enfatizar os valores criativos sobre os económicos, tentando investir o seu
talento artístico sobretudo em desenhos não padronizados, originais ou, pelo
menos, pessoalizados em função da anatomia e do projecto iconográfico do
cliente. O processo de produção da tatuagem artística passa a ser apresentado
como um trabalho singular e original, em vez de se limitar à mera reprodução da
massa de réplicas de catálogo, dotadas de um reduzido valor estético e
económico.
O grande desafio hoje subjacente à carreira de um tatuador com ambições
artísticas é, assim, conseguir desenvolver um estilo pessoal que ganhe
visibilidade, estatuto, reconhecimento e reputação dentro do circuito,
sobretudo no circuito internacional,
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enquanto forma autoral. O facto de ser um trabalho único e executado por um
profissional já reconhecido pela singularidade do seu estilo, mesmo que
habitualmente não assinado (ainda que alguns já cheguem a fazê-lo), concede uma
aura singular, uma mais-valia artística ao corpo que o transporta, facilmente
transubstanciado pelo seu portador em valor de diferença, de idiossincrasia
pessoal. Possuir no corpo uma obra de determinado tatuador é, no dizer de
Sanders, equivalente à posse de um Picasso noutra esfera artística (1989:
177).
A dimensão autoral da tatuagem, enquanto procedimento expressivo com pretensões
à obtenção de uma legitimidade artística, vê-se contudo comprometida pelo lugar
que a acção do cliente adquire sobre o respectivo processo de produção. O
laboratório de fantasias em que se converte o corpo marcado não está
subordinado apenas à mão e à criatividade do tatuador. O ritual da marcação
corporal não é solitário e autónomo, mas implica um trabalho de
intersubjectividade entre o agente tatuador e o agente tatuado, não só a fonte
de receitas do primeiro, mas também a sua tela. O facto de a tatuagem depender
de um suporte vivo do qual o agente perfurador não é o proprietário, concede ao
cliente um lugar central, enquanto inevitável participante em todo o processo
que subjaz à sua produção, desde o acto da respectiva encomenda, à sua
conceptualização projectual, nos motivos iconográficos, cores, dimensões e zona
corporal a inscrever, configurando uma especificidade desse meio de expressão
gráfica.
Ora, a representação socialmente mais enraizada e difundida de arte pressupõe
a criatividade e originalidade do autor, bem como o total controlo sobre o
processo de produção da respectiva obra, o que implica, por sua vez, na senda
da tradição cultural romântica, a denegação da dimensão económica que lhe está
subjacente e cujos interesses poderiam comprometer a concretização daqueles
valores. Ainda que a rentabilidade da actividade não seja narrada como sendo a
principal motivação para se dedicar profissionalmente à perfuração corporal, os
jovens profissionais ou com aspirações de profissionalização não escapam à
expectativa de rentabilidade do seu negócio.
O facto de procurarem a dignificação e legitimação da tatuagem enquanto forma
de arte, processo muitas vezes associado a um certo discurso de denegação do
económico próprio do mundo das artes mais tradicional (Bourdieu, 1977), não
implica, por parte dos tatuadores, o não reconhecimento da sua actividade
enquanto prestação de serviços que, inevitavelmente, envolve um jogo de oferta
e procura que resulta numa transacção comercial com uma vantajosa mais-valia,
nomeadamente no contexto actual, onde encontram entre as suas novas clientelas
zonas de gosto esteticamente sofisticadas e com suficientes rendimentos para
trabalhos extensivos.
Felizmente, o nosso cliente não é assim, o nosso cliente vem, paga. ( ) Ele
sabe o que é que pagou, e portanto para ele não foi o dinheiro. Ele pagou para
uma coisa que vai ficar no corpo dele, e que ele olha para aquilo e acha que é
arte. ( ) Repara, o preço do nosso trabalho, não é só o trabalho, é o teu
prestígio, o prestígio que tu tens, e é tudo! Porque aqui as pessoas não correm
riscos de infecções, nem nada disso. E as pessoas vêem: saem dali de dentro, é
tudo partido, deitado fora na frente delas, tudo, tudo, tudo, como é posto tudo
de novo na frente delas. [Gerente de estúdio de tatuagem e body piercing, 9.º
ano de escolaridade, sexo feminino, 39 anos]
Nesta perspectiva, a especificidade conferida do lugar social destacado que a
acção do cliente detém no processo de produção da obra vem fundamentar algumas
resistências provenientes do velho mundo das artes consagradas
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ao reconhecimento consensual da tatuagem enquanto procedimento expressivo
legitimamente artístico. Isto, claro está, para além de a sua expressão
socialmente mais visível recobrir os formatos mais comerciais, padronizados, os
tradicionais flashes,sujeitos a um sistema de produção em série, de tipo
artesanal e comercialmente orientado, onde o desejo de maximizar o lucro requer
da parte do tatuador uma considerável cedência no controlo sobre o seu
trabalho, submetido à procura das suas clientelas mais recentes, de gostos mais
convencionais e menos heterodoxos.
Porque é assim: eu tenho que me limitar pelas ideias dos outros. E há alguns
traços que não têm nada a ver com aquilo que me vai na cabeça. Mas prontos, de
qualquer das maneiras, não é por aí que nós vamos estar a fazer porcaria!
[Tatuador, 8.º ano de escolaridade, 24 anos]
Com efeito, os jovens tatuadores entrevistados não têm pejo em reconhecer que,
na grande maioria das vezes, o desempenho rotineiro da sua actividade se resume
à prestação de um serviço comercial, um trabalho estético solicitado sob a
forma de encomenda que é, em grande medida, executada sob a orientação da zona
de gosto do cliente. Neste sentido, a actividade do tatuador não será muito
diferente da de outros produtores de fachadas, como qualquer cabeleireiro ou
maquilhador. O estrangulamento estrutural a que o tatuador com pretensões
artísticas está sujeito pelo facto de não existir em Portugal um verdadeiro
campo ou artworld específico da tatuagem,
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com a grandeza e um grau de estruturação suficientemente estável, duradouro e
apelativo para suscitar um mais fácil escoamento de veleidades autorais, mas
apenas um circuito que é, em grande medida, comercial, acarreta, efectivamente,
uma larga margem de soberaneidade e controlo do cliente no processo de produção
da obra que é inscrita sobre o corpo de que é proprietário.
A fricção entre a lógica económica e a lógica propriamente cultural, entre o
velho imperativo da denegação do económico e da genuinidade do trabalho
artístico fricção interiorizada e mimetizada a partir do velho mundo das
artes consagra- das , é tanto mais sentida pelos tatuadores quanto mais estes
se sentem à mercê do actual cliente típico dos estúdios de tatuagem e body
piercing, aquele que, em grande medida, alimenta a procura deste circuito
profissional: indivíduos que têm uma familiaridade mínima com os processos de
produção da tatuagem e as suas novas possibilidades estilísticas, e que, até
por uma série de receios que se prendem com a permanência deste meio de
expressão, se apropriam das marcas corporais segundo uma lógica de ordem
experimental, reduzida, mimética, consumista e padronizada.
Sob o risco de ficar na periferia do mundo comercial da tatuagem, mesmo os
tatuadores portugueses mais reputados acabam por sentir alguma tensão entre os
papéis de artista criativo e de artista executor, sujeito ao gosto e
expectativas implícitas na encomenda do cliente. Daí que tentem gerir um
compromisso entre ambos os papéis. A relação com o cliente é necessariamente
pautada por um estilo interactivo e de permanente negociação (Irwing, 2000),
por um esforço de colaboração onde se sucedem inúmeros compromissos entre a
criatividade e a técnica do tatuador, e os desejos do cliente, muitas vezes
ainda relativamente difusos em termos de desenho e localização. Neste processo
abrem-se muitas possibilidades à intervenção do tatuador, sob a forma de
conselhos e sugestões, a nível técnico, da adequação do desenho ao local do
corpo que se quer preencher, da coerência do projecto em função de outros
desenhos que já existam, etc. Mesmo o trabalho proveniente de catálogos costuma
exigir algum grau de colaboração entre o artista e o cliente.
Da situação de intersubjectividade construída entre tatuador e tatuado resulta
uma espécie de artisticidade mútua (Sanders, 1989), de co-autoria, onde o
tatuador tenta adaptar a ideia gráfica do cliente às técnicas e materiais
disponíveis, à sua fisiologia própria, utilizando os contornos naturais do
corpo para potenciar a dinâmica pictórica da tatuagem, bem como, em última
instância, ao seu estilo próprio, quando este já se encontra consolidado ou em
vias de o ser. Todo esse trabalho de background não é necessariamente entendido
como sendo negativo por parte do tatuador, potenciando um certo gozo em todo o
processo de preparação e reflexividade que a decisão de tatuar um desenho
exige.
Tu tens uma ideia que às vezes não consegues transmitir directamente, a não ser
que faças tu próprio o esboço da tatuagem que queres fazer. A ideia é sempre:
isto fica melhor nesta posição, isto ficará melhor naquela, isto mais subido,
isto mais descido Mas serão no caso dele ele nunca disse não a um tema que
eu lhe tivesse dado. A única coisa que ele me deu foi uma sugestão para poder
ficar melhor ou pior, naturalmente sempre na tentativa do melhor. [Cozinheiro,
frequência universitária, 28 anos]
Apesar de ser sempre uma forma de expressão comprometida, ou melhor,
compartilhada com o cliente, o nível de intervenção deste vê-se limitado na
razão inversa do nível de reputação artística do tatuador a cujas mãos entrega
o seu corpo. Com efeito, à medida que adquirem a expertise necessária e vêem
associada, no circuito da marcação corporal, a ressonância pública do seu nome
a um estilo pessoal, os tatuadores tomam um papel mais activo na selecção e
socialização dos seus clientes e respectivas propostas, permitindo-lhes ser
mais exigentes e interventivos sobre os requisitos estéticos de alguns
clientes. A partir do momento em que há uma reputação artística a defender, e
considerando que grande parte da reputação e publicidade do profissional é
construída no boca-a-boca difundido num círculo restrito de relações, não se
aceitam incondicionalmente todos os trabalhos.
A possibilidade de seleccionar, segundo os seus próprios cânones de gosto
estético e de complexidade técnica, o tipo de trabalhos e de projectos a que
quer ver o seu nome associado, permite ao tatuador mais reputado, logo à
partida, evitar uma eventual frustrada compatibilização do seu trabalho por
conciliação com as exigências do cliente, sem comprometer mutuamente as suas
expectativas autorais e as expectativas conceptuais do consumidor. Poder
arbitrariamente executar esse privilégio corresponde, portanto, a uma inflexão
na tendência do circuito, da costumeira situação de heterodeterminação
profissional para o estatuto profissionalmente mais almejado e favorecido de
endodeterminação.
Os pedidos menores e esteticamente menos interessantes tendem a ser rejeitados
ou distribuídos pelos noviços, tatuadores ainda iniciantes no estúdio, quando
os há, estratégia que permite compatibilizar, a partir do mesmo espaço social e
económico que é o estúdio, o registo artístico de personalização mantido pelo
responsável que lhe dá o nome, e o registo profissional, mas de diluição
autoral, mantido pelos seus colaboradores. Há uma (suposta) denegação do
económico em nome do profissionalismo de registo autoral e da consequente
artisticidade das obras, denegação essa, porém, compensada pelo facto de a
reputação social do tatuador lhe trazer ganhos acrescidos sobre a remuneração
cobrada.
Há trabalhos que nós não aceitamos. Eh pá, há trabalhos muito horríveis que nós
não aceitamos. ( ) Só que há pessoas que pensam que nós temos que fazer! Pá, e
não é, porque nós aqui não estamos a vender tatuagens, nós estamos a fazer uma
prestação de serviços, a qual é arte! A arte não tem preço, não é? ( ) Por
exemplo, uma vez um senhor queria um A daquele tipo, dois pauzinhos e outro
assim Discutiu comigo durante três dias, porque é que Desculpe, mas você tem
imensos vãos de escada que tatuam, e que lhe fazem isso! E aqui nós não lhe
fazemos, porque isso não é trabalho para nós! Porque isso não tem expressão
nenhuma! ( ) A pessoa que percebe e sabe o que é desenho e sabe o que é arte,
não vai fazer isso porque isso não lhe dá gozo nenhum, e não vai receber
dinheiro por isso porque o dinheiro aqui, neste momento, é o que menos importa,
não é? ( ) Há pessoas que às vezes querem desenhos deles, têm a mania que são
artistas. Depois aquilo não se pode transpor para a pele de forma nenhuma,
porque é horrível! ( ) Não te vou dizer que os tatuadores, aqui, muitas vezes,
não ficam chateados de fazer golfinhos, porque não lhes apetece Pá, mas é
lógico que eles fazem um golfinho com o mesmo empenho que fazem um trabalho que
eles gostam. Porque é assim, eles têm duas responsabilidades: é o trabalho
deles e é o corpo das pessoas. Porque a pessoa sai daqui e vai mostrar a
milhentas pessoas, portanto, é o trabalho. E é o corpo, porque a pessoa pagou
não foi para levar uma porcaria, foi para levar uma boa tatuagem, tás a
perceber? E muitas vezes há pessoas que confundem isso: eu pago, eh pá, faço o
que eu quero! Não é bem assim! Faz o que quer, se calhar! Há ai montes de
estúdios que, se calhar, tão a precisar de trabalho e até precisam desse tipo
de coisas, eh pá, e não se importam. [Gerente de estúdio de tatuagem e body
piercing, 9.º ano de escolaridade, sexo feminino, 39 anos]
O processo de negociação intersubjectiva entre tatuado e tatuador tende a ser
cada vez mais facilitado, à medida que entre estes dois protagonistas vai sendo
construída uma relação de fidelidade, caracterizada pela procura continuada do
mesmo profissional por parte do cliente em cada trabalho pretendido, enquanto a
marcação do corpo vai tomando a forma projectual de consumo ritual. A
construção de uma relação dessa ordem, para além de potenciar um maior grau de
coerência estética no projecto de marcação corporal, garantido à partida pelo
estilo próprio do tatuador, também faculta as condições intersubjectivas
necessárias para um encontro mais fácil entre esse estilo de tatuar e o gosto
estético do cliente.
As minhas tatuagens, de momento, são todas feitas pelo F. ( ) Conhecendo a
pessoa e a pessoa conhecendo-te um bocado a ti, normalmente é meio caminho
andado para que o trabalho fique o que tu queres. Acho eu. Porque se vai
dizendo e porque há aquele conhecimento. O F. sabe exactamente aquilo que eu
gosto e aquilo que eu não gosto. E é preciso perder muito menos tempo, não é,
do que com uma pessoa que tu não conheces de lado nenhum. [Profissional de body
piercing, 9.º ano de escolaridade, sexo feminino, 34 anos]
Quando decide experimentar fazer uma tatuagem, a maioria dos jovens
entrevistados acaba por escolher o tatuador na posse de pouca informação sobre
o respectivo estilo. A pouca familiaridade com as competências estéticas e
técnicas que a actividade envolve por parte da grande maioria dos consumidores
de marcas não lhes permite avaliar, à partida, os méritos e a qualidade do
talento do tatuador. Na fase experimental, a escolha deste é mais ponderada em
função de razões exteriores ao próprio projecto, relativas à reputação, à
facilidade de acesso, aos preços praticados e às garantias sanitárias e de
assépsia oferecidas pelo estúdio, informações colectadas entre os membros da
rede de interacção do cliente. É à medida que a marcação do corpo toma uma
forma extensiva, ritual e projectual, que o profissional passa a ser escolhido,
fundamentalmente, em função das competências técnicas e do talento estético que
enforma o respectivo estilo pessoal, que se pretende em consonância com a ideia
estética que o cliente tem para o futuro do seu projecto corporal.
Conclusão
Num determinado momento da vida, quando se começa a ter que tomar decisões
sobre o que fazer no futuro, ou quando se está insatisfeito com a eterna
rotatividade, precariedade, má remuneração e desagrado em termos laborais,
alguns jovens encontram nas actividades de marcação do corpo uma forma de
rentabilizar um gosto pessoal (normalmente já se é consumidor ritual), de
capitalizar recursos materiais (poupanças), relações sociais (potenciais
clientes e mestres) e talentos vários (para desenhar, criar, comunicar,
negociar, etc.). Mais do que uma forma aliciante de ganhar a vida, o métier da
perfuração corporal, para quem o exerce, configura uma oportunidade estratégica
de realização plena de um sonho identitário, onde o corpo marcado, enquanto
suporte expressivo de uma estética da divergência e de uma ética da
dissidência, assume um lugar central como recurso simbólico de identificação
pessoal e demarcação social.
A perspectiva, ou sonho longínquo, de não só viver para a cena mas também viver
da cena ou seja, obter um lugar de trabalho no circuito social de que
participam enquanto consumidores surge, assim, como cenário ideal para a
construção do estilo de vida dos jovens extensivamente marcados. Essa situação,
na sua óptica, faculta-lhes a possibilidade de enveredar por um projecto
profissional potenciador da reconciliação entre trabalho e lazer,
instrumentalidade e expressividade, dever e prazer, dinheiro e gozo,
vislumbrando-se como uma oportunidade de investimento num meio de vida que não
só lhes permitiria subsidiar financeiramente consumos associados ao seu
projecto identitário, como colaboraria activamente no reforço e confirmação
social dos seus sentidos de distintividade e autenticidade individual.
Neste cenário, a intensa vivência de uma ética de celebração do consumo e do
estilo de vida por parte destes jovens não faz sucumbir, inevitavelmente, uma
determinada ética do trabalho. A desvalorização da ética do trabalho como dever
não conduz inevitavelmente à derrocada social das motivações para o trabalho e
dos desejos de implicação profissional destes jovens. Como formula Lipovetsky,
a civilização do pós-dever desvitaliza as grandes prédicas ao trabalho, mas
reconstitui o valor do trabalho e da consciência profissional, a partir de
bases utilitaristas, pós-religiosas, pós-moralistas. ( ) A qualidade total
constitui o ideal último do indivíduo que se toma a si próprio como fim,
preocupado em nada sacrificar, em afirmar a sua identidade integral, em
exprimir-se em todas as coisas, cultura, corpo, sexo, família e, hoje em dia,
trabalho. A rejeição do princípio de renúncia a si próprio e a exigência de
realização pessoal conduziram, após uma fase de desafeição, à revalorização da
própria actividade profissional: agora, é a vida no seu conjunto e não apenas a
vida privada que deve participar da perfeição". A nova fronteira do
individualismo é a qualidade intrínseca do trabalho, o reconhecimento do mérito
individual, a estimulação de si próprio até aos limites" (1994 [1992]:
208).
Estética, ética, identidade e trabalho conjugam-se assim, harmoniosamente, nos
ofícios de marcação corporal, assegurando aos profissionais que os exercem uma
margem de liberdade na construção, exploração e manutenção da sua identidade
pessoal, do seu estilo de vida e do projecto corporal que o espelha, difícil de
obter no exercício de outra actividade fora da cena que representa a sua zona
de gosto. Configurando uma forma de auto-emprego ou de trabalho independente
(Leadbetter e Oakley, 1999) com um horizonte temporal mais longo (com
expectativas de carreira) ou temporário (como biscate accionado para superar
uma determinada situação conjuntural), a opção pela prática profissional da
tatuagem ou do body piercing expressa a capacidade de estes jovens gerarem
meios de vida potencializando e/ou capitalizando capitais subculturais
(estéticos, técnicos, sociais e simbólicos) acumulados no decorrer da sua
trajectória em espaços sociais de margem, sem ter necessariamente de os
abandonar.
Concomitantes e sucessivas, o tempo das vivências tribais tende a ter uma
relativa perdurabilidade na vida destes jovens, não apenas através da memória
que as marcas infligidas no seus corpos tornam constantemente presente, mas
também através do encontro com a possibilidade de um meio de vida, uma
actividade profissional que permite a concretização de uma política de vida que
se pretende escapatória aos caminhos socialmente normatizados, permitindo o
prolongamento à esfera da produção de um estilo de vida que se estrutura em
torno da esfera do consumo. Projecto corporal, projecto de vida e projecto
profissional fundem-se assim numa unidade individual de sentido subjectivo,
como se tudo o que o jovem viveu no passado faça sentido no presente e se
projecte no futuro.