Na ausência do campo metafísico: Entrevista com Marshall Sahlins
Na ausência do campo metafísico: Entrevista com Marshall Sahlins
Por Filipe Calvão e Kerry Chance
Marshall Sahlins é Charles F. Grey Distinguished Service Professor of
Anthropology na Universidade de Chicago. As suas obras, altamente influentes
tanto nos campos da antropologia como da história, incluem: Stone Age
Economics; Culture and Practical Reason; How Natives Think: About Captain
Cook, For Example; Islands of History; e, mais recentemente, Culture in
Practice e Apologies to Thucydides: Understanding History as Culture and Vice-
Versa. É igualmente o editor executivo da Prickly Paradigm Press, uma editora
inspirada no papel do panfleto como meio para a expressão política na Grã-
Bretanha do século XVIII. Sahlins fala para as revistas Exchange e Etnográfica
sobre cultura e antropologia no mundo contemporâneo, participação política e a
universidade, e sobre o seu próprio trabalho.
I.
Exchange/Etnográfica
1
Noutro lugar você disse que, ao colocar a Prickly Paradigm na Internet (ver
www.prickly-paradigm.com) e naquele formato em particular, foi possível fugir
de algumas das limitações do mundo académico e editorial. Quais são as
possibilidades abertas pelo panfleto?
Marshall Sahlins O panfleto é uma forma muito libertadora de escrita isto é,
se assumirmos que não precisamos de referências e bibliografias. Não precisamos
de ser diletantes, mas também não nos devemos restringir ao nosso cantinho de
conhecimento.
As pessoas transformaram-se em peritos de coisas cada vez mais restritas, e um
dos resultados disso mesmo é que algumas delas estoirarão se não mudarem ou
alternarem com tópicos mais abrangentes. O panfleto é um lugar onde a pessoa
pode sair da sua pequena especialização em Reinos Fijianos do século XIX
que é em si interessante, muito interessante mesmo, para ela e para outras seis
pessoas, das quais quatro se encontram noutro país.
No panfleto elas poderão falar das coisas da mesma maneira em que as pensam mas
que nunca imaginaram poder publicar. Algumas das nossas edições mais recentes
tiveram uma grande publicidade na blogosfera como este sobre os museus,
escrito por um antigo curador do Guggenheim em Nova Iorque, ou a crítica
extraordinária de Susan McKenna à biologia evolucionista, ou The Law in
Shambles, outra obra extraordinária que teve grande feedback dos blogs. Trata-
se, por isso, de liberdade.
E Qual é o lugar dos média, e em particular dos novos média, no seu trabalho
e na pesquisa antropológica em geral?
MS Bom, na pesquisa é evidente. O Google, acredito, é o futuro. Outro dia
olhava para uma citação que eu tinha de John Adams; eu conhecia a frase, mas
não sabia onde se encontrava, e então coloquei-a no Google e cheguei ao volume
três, 1797, página tal. Uso permanentemente textos bilingues. A Internet é
fabulosa.
Noutro sentido, todos conhecemos os problemas dos média. Os média são tão
dependentes dos poderes que os rodeiam que foram praticamente irrelevantes nos
últimos três anos em Cuba e no Iraque.
Mas para a antropologia, os média reduzem, efectivamente, aquilo a que chamo de
trabalho estrutural, pela sua amplificação dos pequenos incidentes. Fazem-no
muito bem. Veja-se, por exemplo, o que aconteceu com os cartoons (do profeta
Maomé).
II.
E Recordando o seu primeiro artigo publicado, Esoteric Efflorescence in
Easter Island (1955), como é que você encara a história do seu próprio
trabalho num contexto antropológico mais abrangente, as suas mutações e
continuidades?
MS Há uma longa introdução a esta questão em Culture in Practice, que é uma
espécie de autobiografia intelectual e que recomendo a quem estiver
interessado.
Para responder à sua questão de forma breve, há uma continuidade fundamental,
no sentido em que eu aprendi com Leslie White, que era muito conhecido por ser
um determinista tecnológico da cultura, e por ter uma teoria estranha acerca da
perda evolucionária do desenvolvimento, etc., que era bastante pitoresca. Mas
White também tinha outro lado. Durante o período de pós-guerra, ele era o único
entre os antropólogos americanos que afirmava que isto é Saussure, ou que
estava interessado no trabalho de Susan Langer sobre como os seres humanos se
distinguem pelas suas actividades simbólicas. Ele também costumava citar
Cassirer.
Depois, houve um momento na filosofia em que se entendia a actividade simbólica
como uma característica essencializante da humanidade e a base da cultura. E
White, ao mesmo tempo que era, digamos, um determinista tecnológico, também
argumentava que um machado era essencialmente uma ideia simbolicamente
constituída através das relações entre as pessoas, etc. Ele desenvolveu uma
ideia de cultura que foi muito importante para mim e que era muito diferente da
de pessoas que pensam que a sociedade é o seu objecto, ou de antropólogos
sociais para quem a cultura é uma espécie de forma de manutenção de uma
sociedade. Se a cultura é simbolicamente constituída, também o serão as
relações sociais a maternidade, a família, os primos cruzados. Estas são
categorias de relações simbolicamente constituídas.
Para mim, era esta a base ontológica da disciplina: o nosso objecto era a
cultura e a variação das diferenças entre as culturas. Coisas que hoje em dia
passam por cultura por exemplo, entre agentes de desenvolvimento económico,
que dizem que a cultura é um impedimento para o desenvolvimento , não fazem
qualquer sentido ontológico na minha antropologia, já que desenvolvimento
económico é cultura.
Eu passei pelas fases de Marx, Polanyi e outros. O grande problema que eu tinha
com o materialismo e com a antropologia da mid-western civilization dos anos
70 e 80 era a gradual apreciação do facto de que a vida material era, de
facto, cultural e simbolicamente constituída, e portanto não era um qualquer
determinante técnico ou externo do restante sistema; por isso é que eu gostava
do estruturalismo de Lévi-Strauss. O estruturalismo é essencialmente infra-
estrutural, apesar de Lévi-Strauss dizer que se tratava de uma ciência das
superestruturas. Tive uma discussão pública com ele sobre este assunto. A
questão era que eu desenvolvia a ideia de que a actividade económica era uma
disposição funcional de uma ordem cultural.
Outro factor muito influente foi a guerra no Vietname. A resistência do povo
vietnamita afectou as pessoas de formas muito diferentes seria apelidada de
espantosa por alguns, tal como era apelidado por muitos o imperialismo do
Ocidente, e muitos acabaram por sair da guerra como anti-imperialistas. Eu
acabei a guerra a pensar sobre a organização e complexidade de uma sociedade
como aquela. E sobre como é que ela funcionaria do ponto de vista histórico.
Como disse Boas, a única forma de compreender a sociedade é através da sua
análise histórica. Fui muito influenciado pelo artigo de Boas, The Study of
Geography (1887). Transformei-me num cosmógrafo cultural. Havia uma conjuntura
particular nos meus interesses. Eu encontrava-me a trabalhar com registos de
propriedade de metade do século XIX, havaianos, que eu queria utilizar para
reconstruir uma espécie de etnografia do Havai, porque era uma das maiores
ilhas polinésias e não tinha uma etnografia geral. Por isso, comecei a ler a
história que precisava para poder lidar com os arquivos de propriedade e só
depois comecei a envolver-me no projecto etnográfico.
EDesde os seus primeiros artigos até ao seu livro mais recente, sempre
elaborou intervenções acerca de questões políticas através do trabalho
antropológico. Qual é o lugar do compromisso político na antropologia de hoje?
MS Penso que é difícil ser politicamente comprometido na antropologia de hoje,
porque o estado de compreensão da ordem cultural, histórica e social é de tal
forma que não conseguimos apreendê-lo. O pós-modernismo, desconstrutivismo,
etc., retiraram a capacidade de apreensão das realidades políticas que o
marxismo ou teorias anteriores ofereciam. Onde é que um pós-modernista
protesta? Ou um foucaultiano, onde protestará se afinal o poder está em todo o
lado incluído nele? Como diz Foucault, os indivíduos são factores de poder.
Por isso ele limita-se, mais ou menos, a resmungar consigo mesmo.
Por isso, temos um problema, na medida em que as ciências sociais e a
academia, pelo menos no que diz respeito às humanidades abandonaram qualquer
concepção de ordem que permita apreender as realidades políticas. Talvez por
isso o panfleto anarquista de David Graeber (Fragments of an Anarchist
Anthropology, 2004) seja a melhor solução para o problema actual.
O segundo problema é o do antropólogo. Nós, enquanto antropólogos, pensávamos
acerca de como os nativos seriam colonizados pelo capitalismo. E, de facto, não
foi bem assim que as coisas aconteceram. O que efectivamente aconteceu foi que
os antropólogos é que foram colonizados pelo capitalismo, e dedicámo-nos a
fazer exotic economics. Tivemos recentemente um seminário não vou mencionar
nomes sobre o neoliberalismo e os artistas no Egipto. Aquilo começou com o
neoliberalismo e a estrutura do neoliberalismo no Egipto, e nunca chegámos a
falar nos artistas. No final, fomos informados de que os artistas não são a
favor do mesmo. Mas, em vez de começar com os artistas e com a etnografia,
começamos com o neoliberalismo, e ficamo-nos por aí.
Um terceiro problema relaciona-se de forma mais distante com a política. Já não
temos, na antropologia, uma narrativa histórica, nem uma grande metafísica que
nos ajude a localizar os nossos estudos. A escola dos Annales começou com as
categorias aristotélicas do conhecimento ritmo, espaço, etc. e como elas
são concebidas nas distintas sociedades. Os estruturalistas sociais britânicos
tinham um programa, assente nas linhagens e na estrutura social, e conseguiam
encaixar uns estudos nos outros. Os evolucionistas americanos conseguiam
encaixar os seus estudos num esquema evolutivo. Igualmente, os difusionistas
encaixavam o seu trabalho numa narrativa histórica. Mas nós não temos hoje uma
metafísica que nos permita relacionar os nossos estudos, nem temos interesse
nos modelos metafísicos prévios. Penso que a essência da antropologia foi
excessivamente esvaziada. Isto é uma particularidade antropológico-política.
III.
E Encontra alguma validade naquilo que um aluno seu apelidou de
posteriologia(afterology)? Por exemplo, como é que caracterizaria as suas
teorizações mais recentes sobre agência em comparação com a noção de
agência nas abordagens pós-modernas, pós-coloniais ou desconstrutivistas?
MS O meu interesse pela agência tem a ver com a agência histórica, e não com
o facto de uma pessoa ser ou não responsável pelas suas acções. Trata-se de uma
agência em termos de determinados indivíduos, em conjunturas específicas,
estabelecerem um rumo histórico em virtude de se verem estruturalmente
empoderados por essas mesmas conjunturas. Ia no seguimento do meu trabalho
sobre a estrutura e o acontecimento, etc.
O pós-modernismo teve, pelo menos, o condão de nos obrigar a ser mais
cuidadosos com o uso das categorias e com a análise das relações. No entanto,
uma coisa é ser cuidadoso, outra é ficar paralisado. Nos anos 80 e 90,
encontrava frequentemente alunos meuscom receio de afirmar que A está
relacionado com B eu que escrevia sobre estruturas que tinham dois mil anos
de existência! O pós-modernismo teve o mesmo efeito que uma lobotomia frontal
nas noções de ordem dos alunos, que não se atreviam a colocar as coisas em
relação, com receio de que alguém como Ron Inden os acusasse de ser
essencialistas. No que diz respeito aos alunos, o pós-modernismo foi destrutivo
de muitas maneiras, pelo menos do meu ponto de vista. É difícil dizer que
encontramos ecos dele no meu trabalho, o que provavelmente explica porque é que
interessou a tanta gente.
E Acha que a antropologia se encontra num período de paralisia?
MS De certa forma, o pós-modernismo nunca chegou a conquistar o campo da
antropologia por inteiro; houve sempre pessoas a fazer bons trabalhos. Mas sim,
penso que o que aconteceu foi que o conceito de cultura foi esvaziado, e o
corpo metafísico sujeito a uma erosão pelas importações periféricas e
descrições externas. O que também aconteceu noutros campos: tanto as
humanidades como as ciências sociais acreditam ter perdido a sua autoridade uma
em relação à outra.
Nós temos um problema grave na antropologia. Eu posso apresentar a mesma
comunicação e eu já o fiz nos departamentos de humanidades, antropologia,
história, filosofia e teologia. Por vezes, vou ao seminário de quarta-feira nas
Humanidades e de segunda-feira em Antropologia. Ambos provam que, de facto,
existe uma coisa chamada almoço gratuito e também tornam impossível saber
se dependêssemos do seminário se estamos na segunda ou quarta-feira.
Há dias recebi um e-mail de um estudante que estava a começar uma revista
chamada After Culture, e que me perguntava: Você está interessado em
contribuir? Eu respondi: Não estou no seu nível. Eu ainda estou na cultura.
Por isso sim, penso que ainda estamos a sofrer de uma certa paralisia. E é um
problema sério em muitos sentidos. As pessoas mais velhas pensam que o que está
a acontecer não é bom. O problema com os académicos é que quando morremos
podemos esperar cair no esquecimento. Mas algumas pessoas, como Lévi-Strauss,
sobreviveram às suas vidas intelectuais.
E Portanto, hoje o conceito de cultura está em todo o lado, mas não tanto na
antropologia
MS Costumava dizer-se a psicologia de Washington, agora diz-se a cultura
de Washington. Costumava ser o ethos, agora é a cultura. As pessoas falam da
sociedade todo o tempo, e isso não destruiu a sociologia. As pessoas falam
sobre economia, e isso não incomodou os economistas. Acho que isso não é um
problema para a antropologia.
O que eu acho interessante é que todo aquele movimento cultural de auto-
consciência entre as sociedades indígenas por todo o mundo nas últimas duas a
três décadas foi concomitante com o abandono de um sentido de cultura pelos
antropólogos, o que os deixou hoje a tentar des-autenticar o uso que estas
pessoas fazem da cultura. É uma situação irónica e triste.
Quando eu estudei antropologia, estávamos num campo que incluía
obrigatoriamente a antropologia biológica, e o problema de distinguir a
humanidade dos primatas era real, o problema da distinção entre as sociedades
primatas e as sociedades humanas era uma questão chave. As pessoas desdenharam
a noção de cultura com o pretexto de que as culturas como as conhecemos já não
existiam, não se encontravam numa ilha qualquer no Pacífico à espera que o
etnógrafo falasse da sua condição pristina. Elas tinham-se transformado, e eram
novas formas culturais como comunidades transnacionais, como os mexicanos em
Chicago, mexicanos que iam e vinham de Oaxaca, e portanto tínhamos novas formas
de ordem cultural. Por isso, uma vez que as velhas formas desapareceram, já não
existe a cultura. A velha cultura antropológica extinguiu-se.
E Tendo isso em conta, que crítica é que faz da etnografia? Como você disse
uma vez, os etnógrafos fazem mais do que poemas, apesar de não ser obrigatória
a experiência.
MS Uma das coisas que mencionei antes era que não há uma ordem metafísica mais
lata onde inserir o teu trabalho, onde possas trabalhar em relação a outros; e,
em particular, há uma perda progressiva de interesse pelas diferenças
culturais. Há uma ausência de treino nas diferenças culturais, as pessoas
chegam e vão logo fazer uma etnografia de uma região ou povo, ou da sua própria
sociedade, ou de outra sociedade moderna e complexa. Não estão interessadas nos
índios Crow, e não sabem o que é um primo cruzado.
Durante anos, eu avisava os meus alunos de que lhes ia perguntar sobre a
diferença entre o casamento paralelo e cruzado nos seus exames. Eles não
saberiam como responder. A noção de que as pessoas são estruturadas pela
família é, parece-me, um factor crítico, porque todas as nossas noções sobre a
natureza humana baseiam-se em como as pessoas adultas agem nas sociedades
ocidentais.
Também não temos cursos por áreas, não sabemos nada sobre a Polinésia nem
precisamos de o saber. E penso que isto foi uma perda terrível no que diz
respeito a compreender o quanto as culturas, e as suas ontologias, são
diferentes o que é fundamental no mundo de hoje. Tomando o exemplo da guerra
no Iraque, é fundamental a sua compreensão, e apenas podemos percebê-los com
este tipo de exposição; mas não a fazemos, não o suficiente.
IV.
E A cultura e a diferença têm sido tópicos de conversação frequentes nos média
noticiosos no que diz respeito à guerra ao terror. Qual é a sua opinião
acerca da guerra no Iraque e do projecto mais amplo da Administração Bush tendo
em vista a eliminação do terror?
MS A guerra ao terror é também a guerra contra as drogas e outras abstracções
semelhantes. É uma estupidez infindável. Infelizmente, com o 11 de Setembro,
porque tínhamos este uncurious George, este George ignorante na presidência,
fomos incapazes de tratá-lo como uma actividade criminal, como um crime contra
a humanidade; se assim fosse, duvido que tivesse havido uma guerra pelo menos
não uma guerra no Iraque. Num dos meus textos mais recentes escrevi que se
Elián González não tivesse dado à costa nas praias de Miami em 1999, nós
teríamos um presidente diferente e não teríamos uma guerra no Iraque.
O que é que eu penso da guerra? Ela baseia-se numa noção concreta de natureza
humana durante a guerra no Vietname, costumava dizer-se que por trás de cada
gook, de cada chinoca, havia um americano a querer sair. Em cada iraquiano há
um americano. Se nos conseguíssemos livrar daquela cultura idiossincrática,
ficaríamos com aquela liberdade rah-rah básica e acção livre que temos todos, e
a única forma de o fazer é, normalmente, através da força.
Por isso, baseia-se numa noção muito rudimentar da natureza humana e da
mudança cultural. Eu já escrevi um texto sobre isto, que ainda não publiquei.
Na altura, li esta mesma ideia num livro de George Packer sobre o Iraque,
chamado The Assassin's Gate uma excelente leitura. Era precisamente esta a
sua conclusão acerca da forma como se estava a intervir no Iraque. Portanto, há
efectivamente uma antropologia fundamentalmente má, baseada em noções
rudimentares de cultura, mudança cultural e natureza humana, sem qualquer
apreciação da diferença cultural. E, se for este o futuro da antropologia na
política, a antropologia está com problemas.
E Qual deve ser o papel do antropólogo neste contexto?
MS Se nós próprios, antropólogos, abandonámos esta missão de compreender as
diferentes ontologias, de conhecê-las e ensiná-las, então o que é que havíamos
de esperar destes políticos? Wolfowitz aprendeu na Universidade de Chicago. Se
tivesse sido ensinado por bons antropólogos
E O que é que, na sua opinião, explica a despolitização da disciplina
antropológica?
MS Penso que a universidade norte-americana pode ser descrita numa só linha: é
a procura do conhecimento desinteressado por pessoas auto-centradas. Existe um
sistema brutalmente competitivo, que nós ainda não apreendemos. Tudo na
universidade é competição. Se és estudante, competes para entrar, competes nas
cadeiras, há uma classificação por pontos absoluta.
É um sistema educativo burguês, onde as pessoas talvez protestem contra a
intromissão das universidades nos direitos de propriedade intelectual, ou
contra o uso de dinheiros públicos e resultados de investigações para patentear
invenções e obter lucros com as suas próprias empresas subsidiárias
capitalistas talvez protestem contra isto, mas têm uma relação ferozmente
individualista com as suas ideias. Deus os livre se não são citados ou se são
plagiados.
Houve estudos que mostraram que os círculos internos de sociabilidade colegial
e colaboração dos académicos resumem-se a duas ou três pessoas, das quais uma
ou duas se encontram noutra universidade. Bateson falava de vários tipos de
competição e formas estruturais; uma delas era uma espécie de esquismogénese
(schismogenesis) simétrica, como ele a chamava, um tipo de competição
simétrica, de corrida às armas. Tudo o que tu fazes, eu consigo fazer
melhor.
Uma das formas mais extremas, e a mais comum, destes processos é aquilo a que
poderíamos chamar de esquismogénese transcendental, em que uma pessoa procura
desqualificar as pessoas da sua própria área disciplinar saindo dela e
reportando coisas de outras áreas. É por isso que, hoje em dia, existe este
enorme aparato de relacionamentos interdisciplinares. Há muito mais
transdisciplinaridade sem institucionalização do que se possa imaginar, porque
agora todos estes conceitos são comuns pós-modernismo, desenvolvimento
económico, antipositivismo, pós-colonialismo, Foucault, Marx. São comuns a
todas as disciplinas porque todos estão a procurar acrescentar ideias
atractivas às disciplinas saindo das mesmas.
Outra faceta da competição é que, quanto mais perto se encontram as disciplinas
relativamente a assuntos de pesquisa, menos terão a ver uma com a outra, porque
estarão a competir por posições na universidade, recursos, novas admissões,
etc. Quando estás em competição, irás o mais longe possível, como com o direito
e economia, ou com a antropologia e os cultural studies ou as humanidades. E
então começas a importar conceitos cada vez mais bizarros. Não vou falar em
nomes, mas há um importante antropólogo que diz Bom, queres saber o que é a
cultura? É essencialmente a teoria do caos, é fragmentada, blá blá blá, é o
caos. Portanto, é antropologia e física.
Tem havido uma apropriação de muitas coisas. Quando Foucault escreve sobre a
disciplina no século XVIII e sobre a civilização ocidental, toda a gente
recolhe as suas ideias para falar dos Bongo-Bongo e reutiliza-as para falar de
poder na sociedade. O resultado é que o próprio terreno é evacuado em função
do que está na moda. Os estudantes não têm qualquer interesse em narrativas do
seu terreno, em saber onde é que o seu trabalho encaixa ou como o futuro se
relacionará com o que acontecia antes. Quem ainda lê Boas? Quem ainda lê White?
Eventualmente, só se for nas aulas de Sistemas,
2
e mesmo assim será muito raro isso acontecer.
A universidade burguesa tende a destruir e criar todas estas semi-disciplinas
intermédias no seu seio: institutos, centros, comités. São todas quase-
disciplinas. Algumas são paradigmas sem um objecto, como a teoria política.
Outras são objectos sem um paradigma, como os estudos por áreas geográficas. E
algumas ainda não têm nem paradigma nem objecto, como o pensamento social, que
sobrevive no princípio cartesiano de que se eu penso
E É recorrente ouvir que, em vários sentidos, a universidade estáem crise.
Apenaspara colocar exemplos ocorridos na semana passada, o Tribunal Supremo dos
E.U.A. decidiu que os fundos federais poderiam ser retidos para aquelas
universidades que interferissem com o recrutamento militar nos campus; por
outro lado, um reconhecido académico, a caminho de uma conferência, foi
proibido de entrar nos E.U.A.; por último, numa grande universidade da África
do Sul, docentes e funcionários fizeram greve contra a corporativização da
universidade. Você antevê uma crise?
MS Parece-me que é uma faca de dois gumes. Há um conjunto de pressões externas
que são aceites pela universidade porque ela está em competição com outras
universidades. Por isso mesmo a direcção da universidade estará receptiva para
receber estudos feministas, mesmo se se trata de um grupo de misóginos, porque
a alternativa é aquilo que aconteceu com Summers, caso não recebas os estudos
feministas de braços abertos.
3
Há um conjunto de pressões externas que fazem com que a universidade porque
se encontra numa relação competitiva com outros empreendimentos económicos
seja receptiva a tudo o que seja popular no público. Desde as políticas
emancipatórias até às políticas pró-governamentais, desde os estudos políticos
até à odontologia utilitária ou qualquer outra coisa utilitária que faça
dinheiro.
Há o problema da competição entre universidades, que está inserido na sociedade
mais abrangente. No entanto, temos ainda o problema interno que mencionei
antes: trata-se de um sistema interno altamente competitivo. Um sistema
estranhamente competitivo.
Se queres saber o que é a cultura, é precisamente não nos apercebermos de como
este sistema é competitivo. Estamos aqui sentados e assumimos como natural que
as pessoas compitam pelas suas carreiras, que as revistas sejam classificadas,
que os professores sejam classificados, que os estudantes sejam classificados,
que tenham que lutar com os seus colegas pela admissão nos liceus, que sejam
classificados nos seus cursos por curvas de performance académica, que tenham
de ter uma média de notas, que tenham de voltar a competir pela entrada na
faculdade, por bolsas, por pós-docs e por ser assistentes, para depois iniciar
a sua carreira, uma competição que os levará em direcção à docência
universitária. Este é um sistema extraordinário, um sistema mesmo
extraordinário.
Estamos, portanto, num sistema burguês; mas depois temos esta espécie de
governo neoconservador que ultrapassa os limites no que diz respeito à
liberdade académica. No entanto, esta não é uma questão nova. As universidades
colaboram com o governo há muito tempo, e a questão dos fundos tornou-se
crucial para elas. Com algumas delas é quase uma forma de potlatch.
Em qualquer caso, as administrações das universidades estão agora preparadas
para organizá-las para ganhar dinheiro, em vez de utilizar o dinheiro para
organizar as universidades. Estão preparadas para tornar a política académica
em algo com uma orientação financeira.
E Como é que se lidou com isso aqui em Chicago?
MS É precisamente o que tem acontecido na Universidade de Chicago nos últimos
quinze anos, de uma forma particularmente grave. Em 1993, 70% das matrículas na
Divisão de Ciências Sociais da Universidade de Chicago eram de alunos de
doutoramento, e 30% eram alunos de mestrado. Em 2000, 70% dos alunos
licenciados estavam no programa de mestrado porque é economicamente rentável
e 30% eram doutorandos.
Hoje, por norma os estudantes de doutoramento fazem pesquisa empírica e os
alunos de mestrado não. Em consequência, o volume de investigação a ser
desenvolvida na universidade está a ser cortado por motivos financeiros. Toda a
estrutura, a estrutura demográfica da universidade, está a ser organizada em
função do dinheiro, em vez de se usar o dinheiro para organizar a universidade.
Trata-se de uma enorme transformação, desde o ideal germânico e romântico de
uma academia desinteressada, na base do qual as universidades de Chicago, Johns
Hopkins e outras foram fundadas no final do século XIX, e que fora importado da
Alemanha no início desse século. Essa transformação é processada na direcção
administrativa, pela penetração de preocupações utilitárias, preocupações
políticas e estratégicas, dos movimentos políticos, movimentos sociais, tudo o
que envolve o público, de forma a ganhar dinheiro. E assim, hoje, até as
dotações já não são vistas como formas de financiamento da universidade, na
medida em que as universidades são agora formas de aumento das dotações. E
estas pessoas gerem as dotações como se se tratasse de um jogo de apostas
aleatório. A universidade transformou-se numa instituição de orientação
pecuniária.
V.
E O que é, se é que é alguma coisa, o neoliberalismo?
MS O neoliberalismo é aquilo que se costumava chamar de capitalismo tardio. É
como aquela anedota sobre dois comunistas, um que morava na Polónia e o seu
amigo, que tinha ido viver para a América. Depois de muitos anos, encontraram-
se, e o americano diz: O que é que tens feito? Ao que o polaco responde:
Olha, estive a viver na Polónia, a testemunhar o fim do socialismo. E tu, o
que tens feito? Bom, responde o americano, estive a testemunhar o fim do
capitalismo. Diz o polaco: Como é? O que aconteceu? Responde o americano:
Bom, é uma morte linda.
O capitalismo tardio afinal não era tão tardio; tem sido uma morte longa, e as
notícias sobre a sua morte eram afinal exageradas. Por isso, a questão do
neoliberalismo é que as pessoas se aperceberam de até que ponto as
instituições, ou mesmo toda a ontologia cultural, se transformou numa ontologia
capitalista mercantilizada. Penso que o que mais as horrorizou foi perceber que
a ideologia do Departamento de Economia da Universidade de Chicago se está a
transformar cada vez mais numa realidade. Por isso, quer vás à escola, à
Califórnia ou ouvir uma sinfonia, quer escrevas música ou cometas suicídio, é
tudo uma escolha racional. É isto o neoloberalismo. É o reconhecimento da
recorrência da teoria economicista na nossa cultura.
E Há quem afirme que o humor é uma arma particularmente eficaz nestes tempos
políticos. Qual é o papel do humor no seu trabalho?
MS Não sei, penso que a ironia tem um papel importante, e que o humor é
inevitável. Já sei qual é a melhor resposta que posso dar: nos acontecimentos
de 1968 eu encontrava-me na França; eu estava na rua, perto da Sorbonne, quando
um repórter do Humanité, um jornal comunista, entrevistava Daniel Cohn-Bendit,
o líder da revolução. O repórter recriminava Cohn-Bendit por este dizer
qualquer coisa como: A revolução é um carnaval!. Dizia ele: O que quer dizer
com carnaval? Como é que isto é um carnaval? E Daniel Cohn-Bendit responde:
Se não te podes divertir, para quê agir? Seja como for, se não for divertido
O humor está frequentemente mais próximo da verdade, comunica melhor a verdade.
Ou pelo menos comunica melhor as ambiguidades.
1
Entrevista realizada em Chicago, no dia 14 de Março de 2006. Esta entrevista é
publicada simultaneamente na Etnográfica e na revista Exchange, do Programa de
Pós-Graduação da Universidade de Chicago. Tradução portuguesa de Ruy Blanes.
2
N. do T.: Systems é a cadeira anual fundamental do ensino pós-graduado de
antropologia na Universidade de Chicago.
3
N. do T.: Lawrence Summers, presidente da Universidade de Harvard desde 2001,
pediu a demissão do cargo em Fevereiro de 2006, depois de uma série de
controvérsias provocadas por defender opiniões polémicas acerca de assuntos
como as questões raciais, ambiente e desenvolvimento e, finalmente, questões de
género. Sahlins refere-se concretamente a afirmações de Summers em que este
explicava a sub-representação de mulheres em cargos de investigação avançada e
gestão académica pelas diferenças naturais nas aptidões intelectuais de
homens e mulheres.