A Vez dos Cestos: Time for Baskets
Sónia Silva
A Vez dos Cestos. Time for Baskets
Lisboa, Museu Nacional de Etnologia, Instituto Português de Museus e Ministério
da Cultura, 2003, 186 pp.
Damos pouca atenção aos cestos que nos rodeiam, mas os cestos estão cheios de
ensinamentos. Os objectos de cestaria angolana e zambiana que agora expomos
pela primeira vez revelam a criatividade e mestria dos artistas que os criaram,
e das pessoas que os utilizaram; as ideias que orientaram os seus colectores e
os representantes deste museu; e até a história política de Angola (legenda da
abertura da exposição A Vez dos Cestos).
Prestamos pouca atenção aos cestos que nos rodeiam, mas é através deles que
Sónia Silva retratou a história de Angola dos últimos cem anos. Os objectos de
cestaria que apresentou na exposição do Museu Nacional de Etnologia são
objectos-testemunho, como os designava Ernesto Veiga de Oliveira, das
vivências dos seus construtores e utilizadores, da história de populações
sobreviventes à experiência colonial, à guerra civil, às deslocações forçadas.
Sónia Silva olhou-os, estudou-os, reconstituiu a história da sua recolha,
juntou novos objectos, falou com colectores e produtores, e finalmente concebeu
a exposição e catálogo onde nos apanha na teias do seu encantamento por estes
objectos aparentemente esquecidos na (pela) sua normalidade. A exposição,
inebriante pela narrativa criada em torno dos objectos e representações
expostas, viveu o tempo efémero dos conjuntos expositivos, entre 2003 e 2005.
Mas o relato-descoberta em que Sónia Silva nos conduziu pela história de
populações refugiadas, sobreviventes, adaptadas, ao longo último século de
convulsões sociais, políticas e económicas das populações luvale de Angola, foi
transposto para o catálogo-livro-objecto que escreveu e que passa além da
efemeridade expositiva.
Este livro pois trata-se de uma obra que ultrapassa os limites informativos e
discursivos habituais dos catálogos expositivos assume-se como um percurso de
reconhecimento da vida social dos objectos, retratando a sua biografia em
relatos vividos. Elementos profundamente imbuídos da história social de Angola,
pela visão de Sónia Silva os cestos falam-nos diferentemente de três épocas da
história de Angola: até 1975 (período colonial a que corresponde o primeiro
acervo), entre 1975 e 2002 (guerra civil, aqui evocada através de fotografias
da comunicação social que documentam a contínua utilização de objectos de
cestaria durante esse período) e 2002, data da última recolha, realizada já
pela autora.
A colecção inicial é recolhida pelos colectores que ficaram conhecidos como
equipa do Museu (Jorge Dias, Ernesto Veiga de Oliveira, Benjamim Pereira, e
colectores isolados como Victor Bandeira que várias vezes trabalhou com esta
equipa), ou ainda por numerosas dádivas que chegaram ao museu antes e depois de
1974. Este acervo, o mais diversificado e alargado, é gritante na sua muda
falta de informação. Sónia Silva debruça-se tanto sobre a actividade de
cestaria como pelas razões deste aparente abandono de elementos que, pelas suas
características de objectos fáceis, quotidianos, não-nobres (categorias
esmiuçadas pela autora), pouco atraíram a curiosidade dos coleccionadores.
Partindo dos registos da colecta e da memória oral dos pesquisadores, a autora
conduz-nos numa viagem pelas missões evangelizadoras que destruíam as cestas de
adivinhação (luvele) e respectivo conteúdo por se tratar de fetiches; junto
de colectores que, procurando estatuária magnificente recolhiam cestos-celeiros
desmesurados; por percursos de recolecção que se socorriam do apoio do exército
colonial para se movimentarem em zonas de intervenção militar. O percurso da
autora por entre materiais de fibras (esteiras, cestas, chapéus, celeiros,
máscaras, malas), fichas de inventários nuas de informação, registos
fotográficos e entrevistas aos intervenientes, conduz-nos às questões centrais
que presidiram à edificação, quase involuntária, de uma colecção sobre objectos
invisíveis de cestaria. Os objectos angolanos correspondem à colecção
recolhida no Museu, objectos recolhidos até 1972 (700 objectos guardados, a
maioria das províncias de Huíla e Cunene). As fotografias, e os próprios
objectos, contam-nos a história da etnografia feita por pioneiros como António
Carreira, Ernesto Veiga de Oliveira, Benjamim Pereira, Jorge Dias, Margot Dias,
Gerhard Kubik (etnomusicólogo austríaco que recolheu objectos rituais em
Angola), ou colaboradores como Victor Bandeira e Carlos Medeiros. A recolha
museológica procurou obedecer aos critérios seguidos pela equipa do museu, como
nos esclarece a autora: Interessa recolher objectos autênticos, os quais, na
sua opinião [de Benjamim Pereira], consistem em objectos que foram utilizados
no seio dos povoados, e submetidos àquilo a que ele chama de experiência
vivencial' (p. 42). Trinta anos volvidos, Sónia Silva identifica e descodifica
as noções que presidiram à formação desta colecção involuntária: o critério de
autenticidade, do vivido, do uso. Fiel ao princípio da integração biográfica
que aplica aos objectos, a autora segue-o para os conceitos que nortearam a
constituição da colecção de cestaria. A noção de autenticidade das colecções
museográficas é o pretexto para uma discussão sobre a sua relevância social em
diferentes períodos: A noção de autenticidade pressupunha o reconhecimento do
valor das culturas africanas tradicionais, o que em grande parte da sociedade
portuguesa dos anos setenta não sucedia. Foi por isso que ela assumiu para o
Museu de Etnologia tamanha importância ideológica e mesmo científica. Podemos
hoje denunciar o idealismo, romantismo, saudosismo e até alacronismo de
alguns dos seus pressupostos e consequências (...). Mas para o Museu de
Etnologia, numa década sombria que nem a revolução de Abril de 1974, que pôs
fim à ditadura e ao colonialismo, podia transformar de repente, reclamar
autenticidade era reclamar não só beleza e destreza técnica, mas também
cultura. Reclamar autenticidade era reclamar humanidade (p. 45).
A mesma concepção, na actualidade, remete para diferentes problemas éticos e
estéticos, como lembra a autora nas páginas finais. Para além do carácter
romântico e saudosista deste princípio, ele despreza os criadores actuais (que
constroem objectos não-autênticos enquanto não-utilizados) e a sua crítica
coloca-nos perante o problema da museologia enquanto um saber da morte, do
que foi e não do que é. Princípios claramente invertidos por Sónia Silva na
terceira parte do seu livro, onde a busca de objectos de cestaria é, antes de
mais, uma etnografia dos refugiados luvale (angolanos) em Chavuma, na Zâmbia.
Com eles Sónia Silva viveu, cruzou experiências, adquiriu cestos, trocou cestas
usadas por tigelas de metal chinesas, discutiu a vantagem dos materiais, a
história dos objectos. Esta é uma etnografia viva, já não através da história
oral dos colectores mas do registo dos intervenientes. Sónia Silva beneficia de
uma visão de média duração, pois percorreu os caminhos por onde andara na
recolha de informação para a sua tese de doutoramento (Vidasem Jogo. Cestasde
Adivinhação e Refugiados Angolanos na Zâmbia, Lisboa, ICS, 2004). Na exposição
este contacto privilegiado exprimia-se pelo carácter pessoalizado e sensório
dos objectos expostos: fotografias de pessoas nomeadas, com uma identidade
afirmada no processo narrativo dos vários registos; ao lado, um cesto luvale de
peneirar farinha pedia: cheira-me. No projecto expositivo a realidade e o
vivido foram museografados como mais um momento num percurso que não é imóvel.
O chapéu, o cesto de transporte, as tigelas de plástico que vimos fotografadas
no mercado, a tampa de pirão cuja execução seguimos num pequeno documentário,
foram expostas perante os nossos olhos e sentidos. Mas Sónia Silva não é mais
atraída pelo original ou pelo diferente: trouxe-nos antes as medidas em
plástico utilizadas nos mercados, o prato esmaltado made in China, os objectos
do quotidiano. Nos filmes que acompanhavam a mostra, cesteiros, adivinhos,
homens e mulheres construíam cestos no tempo longo de quem rendilha, impondo um
ritmo de normalidade às suas vidas de refugiados, deslocados e despatriados. No
livro Sónia Silva alonga-se sobre estas relações. As imagens permanecem, as
palavras são agora controladas pela autora que nos traz as expressões de Rose
Chikunga, Nyalokina e outros. O livro beneficia, sobretudo, do aprofundamento
teórico das questões colocadas na exposição sobre a autenticidade, o anonimato
do objecto, a possibilidade de um corpo expositivo espelhar, mais do que uma
pesquisa, uma vivência. O livro transforma os objectos mumificados em elementos
de intermediação, em pretextos de pesquisa etnográfica. É esta a riqueza deste
livro-catálogo, que se assume como um objecto autónomo relativamente à
exposição que lhe serviu de pretexto. Paradoxalmente, é também esta a sua
fragilidade. Sónia Silva coloca-nos questões e entretece uma resposta, mas o
tom coloquial que enriquece o catálogo e o liga à exposição que realizou,
empobrece o livro das múltiplas referências a que apela. Não deixando por isso
de lançar as grandes questões da antropologia e da museologia actuais, sobre a
sua relação com o vivido e o seu papel de intermediação.
No actual panorama editorial português, começam a surgir timidamente obras de
pesquisa sobre o continente africano, e em particular sobre os territórios
colonizados por Portugal. Neste conjunto o livro de Sónia Silva merece um lugar
de destaque. Pelo material recolhido. Pelos métodos seguidos. Pelos temas
tocados, entre a apresentação detalhada de um período de constituição da
antropologia e museografia portuguesas, de história colonial, à apresentação de
um dos trabalhos mais íntimos sobre a questão dos refugiados. Mais do que um
livro sobre cestaria, esta é uma obra imprescindível sobre a história de
Angola, dos luvale, dos movimentos de refugiados, e sobre o papel do Ocidente
enquanto interveniente e testemunha destes processos.
Clara Carvalho
Departamento de Antropologia, CEAS-ISCTE, CEA-ISCTE