Réplicas topográficas nas narrativas de viagem sobre a Índia
Réplicas topográficas nas narrativas de viagemsobre a Índia
AS FONTES DE INFORMAÇÃO E O ESTILO DAS NARRATIVAS
Como demonstrou Foucault, se, em teoria, o autor pode dizer / escrever qualquer
coisa, em verdade, os enunciados discursivos revelam na sua expressão material
um constrangimento extraordinário, traduzindo em si mesmos repetitividade,
restrições de estrutura, de conteúdos, de significados, escolha de linguagem,
estratégias, estilo de narrativa, tropos, etc. (ver Foucault 1984), a que
também este texto, mesmo na sua procura deliberada de desconstrução dos modelos
dominantes, não é alheio. E isso considero válido – assumindo-o como central ao
argumento – para todo e qualquer enunciado verbal, textual ou pictórico, em que
se incluem as narrativas fotográficas e histórias contadas pelos turistas
internacionais em Kolkata (também conhecida como Calcutá, capital do estado de
West Bengal, Índia) que incluo como fontes neste estudo.
[1]
Mesmo entre cientistas sociais, sobretudo historiadores, são muitos os que
continuam a manifestar a sua indignação perante este tipo de asserções –
“Though it is fashionable in some quarters to equate textual analysis with
historical writing (a new moment of Eurocentricism), historians know that there
is no substitute for the hard work of discovering and ordering data of past
human experience” (Kopf 1980: 499). Recusam-se a aceitar que não existe um real
passível de ser apropriado separadamente do sujeito que o percebe e o expressa;
que os objectos são estruturados, formados, enfim, construídos pelos discursos.
A sua dificuldade de aceitação parece residir no alheamento relativo a todo um
corpo de produção das últimas quatro décadas, permanecendo obstinadamente
firmados no velho paradigma legitimador da autoridade científica de que o
conhecimento verdadeiro é objectivo, imparcial, exacto e independente do
sujeito (ver Clifford e Marcus 1986).
Desde os anos 70 do século XX os teóricos da linguagem contestaram o que
consideravam os dois dualismos prevalecentes na teoria linguística, a saber, a
crença de que o significado pode ser separado do estilo ou expressão e a
validação da separação entre a estrutura e o uso linguísticos, substituindo-os
pela asserção de que a capacidade linguística de produção de significado é um
produto da estrutura social, pelo que os significados sociais e as suas
materializações textuais devem ser incluídos nos desígnios da sua descrição
(Halliday 1970; Fowler e Kress 1979; Kress 1988 [1985]). Ou seja,
independentemente das variantes nas posições assumidas pelos especialistas de
análise da linguagem e do discurso (que naturalmente persistem na actualidade),
é consensual que os eventos discursivos, por um lado, variam na sua
determinação estrutural de acordo com o domínio social particular ou
enquadramento específico em que são gerados; e, por outro, que o discurso é um
princípio estruturador, no sentido que lhe dá Foucault, em que os objectos, os
sujeitos e os conceitos são formados discursivamente.
Sem me alongar sobre a falácia da discussão da veracidade (ou objectividade e
imparcialidade) de qualquer texto ou narrativa, argumento que, antes, importa
recentrar a análise na circunstância de que, mais ou menos ficcionado, qualquer
texto e estilo narrativo é sempre enquadrado pelo corpo literário da sua época
e reflexo dos modelos políticos, económicos, sociais e académicos vigentes na
altura que se cruzam com as intenções do autor. Significa isso que não é
possível dizer sobre qualquer coisa em qualquer momento; que não é fácil dizer
algo novo; que não é suficiente observar, atentar – estar motivado para a
procura do novo – para perceber um novo objecto (ver Foucault 1969: cap. 3).
Assim, da informação relevante que pode ser obtida a partir da análise destes
materiais, mais valiosa do que a descrição relativa ao objecto é a informação
relativa à sua produção, ao autor e aos significados e representações da
unidade social em que se inscreve e que aplica a essa descrição – para dizer
sobre o objecto, para o manipular, nomear, analisar, classificar, etc.
(Foucault 1969). Os relatos de viagem não são excepção.
Como já extensamente analisado por inúmeros autores de diversas áreas
disciplinares e sob diferentes perspectivas (K. Adams 1984; Hummon 1988; Cohen
1989; Fakeye e Crompton 1991; Hughes 1992; Dann 1996; Edwards 1996; McGregor
2000), as representações visuais e textuais desempenham um papel fundamental na
indústria turística, determinando desde o primeiro momento (directa ou
indirectamente) a escolha do produto, experiência e destino, assim como
expectativas, imagens antecipadas e práticas no local. Mas, mais do que isso,
autores das áreas da psicologia e cognição social argumentam que a informação
quotidianamente adquirida sob a forma de narrativa é a que mais facilmente é
retida na memória, sendo determinante, por isso, na construção do conhecimento.
Investigadores como Adaval e Wyer Jr. terão mesmo estabelecido uma relação
directa entre este processo de construção de representações mentais e a
vantagem da veiculação da informação em formato de narrativa – mais ainda se
acompanhada de conteúdos pictóricos – na construção de conhecimento sobre um
qualquer objecto e, especificamente, sobre um destino turístico (Adaval e Wyer
Jr. 1998).
Na actualidade, a imagética de lugares, cidades e nações, particularmente
quando distantes, é fortemente influenciada pelas narrativas representacionais
dos mediadores de informação massificada, assumindo posição de liderança a este
nível a televisão, o cinema de grande difusão e a Internet. Para os turistas,
adicionam-se habitualmente a estas fontes, no momento prévio à viagem e in
situ, o que poderei designar como “fontes orientadas para o turismo nesse
lugar”: literatura impressa de viagem sobre o lugar (incluindo os mais
específicos guias de viagem, brochuras e mapas); narrativas verbais, textuais e
pictóricas (via Internet em travelogues, por exemplo) de amigos e outros
viajantes / turistas, profissionais do sector e outros residentes no local
(sobre fontes de informação referidas pelos turistas internacionais para o
destino Índia, ver, por exemplo, Chaudhary 2000).
McGregor (2000), no seu estudo conduzido em Tana Toraja, na Indonésia, em 1994,
verificou que, para os viajantes que procuram demarcar-se das práticas
habituais do turismo de massa – em que se enquadra também a maioria dos
turistas internacionais contactados por mim em Kolkata –, as fontes de obtenção
de informação sobre o local mais referenciadas foram os guias de viagem, em
particular o Lonely Planet (AAVV 2001),
[2]
e a comunicação verbal com amigos e outros viajantes. Para os que mencionaram
ambas as fontes, o processo mais referido seria: “First we heard about it, then
we looked it up in the guidebook” (em McGregor 2000: 34). Em Kolkata, a
situação é semelhante, acrescendo apenas a estas fontes a comunicação textual
com amigos e outros viajantes / turistas via travelogues ou travel spots e
correio electrónico, e literatura impressa sobre o local, sendo a mais comum a
literatura de viagens, muitas vezes comprada já na cidade (factor para o qual
contribui a diversidade e o apelativo baixo preço do material impresso em
Kolkata) e mediada pela língua inglesa.
Graham Dann (1996) argumenta que o turismo se fundamenta no discurso e,
certamente que para todos os que já viajaram ou se encontraram com amigos que
acabam de regressar de uma viagem, é uma evidência que o capital narrativo é
parte essencial da experiência turística – a aventura de viagem deve ser
contada, a experiência não é completa sem o seu relato. O meu propósito, aqui,
é o de analisar os modos de desempenho das narrativas de viagem contadas,os
significados que traduzem e transportam e o seu impacte ao nível das percepções
no encontro do turismo internacional em Kolkata, centrando a abordagem no
estilo de narrativa verbal e textual utilizado pelos turistas “ocidentais” que
contactei nesta cidade entre 2004 e 2007.
Embora alguma investigação tenha sido efectuada no que diz respeito à
linguagem, comunicação interpessoal e retórica usadas pelos turistas, esta tem
sido sobretudo centrada nas suas implicações para a construção de identidades
(Dann 1996; Desforges 2000; Galani-Moutafi 2000) e, em particular, da
identidade dos jovens turistas “de mochila às costas”, em turismo de aventura
(Desforges 1998; Elsrud 2001, 2005; Noy 2002, 2004; Huxley 2004).
For these young travelers, the popular tourist attractions that have
become recognizable worldwide, while still “valid,” are now so passé
that there is a growing desire for new and different experiences.
Backpackers place importance on their search for alternative
experiences and believe that “the tourist traps” cannot provide
access to the “real cultures” of the places they are visiting.
(Huxley 2004: 40)
Tal como Huxley descreve a partir das narrativas destes turistas ocidentais “de
mochila às costas” que inquiriu, também em Kolkata a maioria dos turistas
internacionais – que enquadro de forma mais alargada em viajantes que procuram
demarcar-se das práticas habituais do turismo de massa – insiste na sua
motivação da procura da experiência de viagem alternativa, da experiência de
contacto com a alteridade, com algo novo e extraordinário que lhes proporcione
“the experience of a lifetime” (turista alemã, cinco meses de estadia em
Kolkata em 2006). Saliento aqui que o uso que faço do conceito de motivação
assenta na linha de Schutz (1972) de um-zu-Motiv (“em ordem para”), que
condiciona o que se faz, como se faz e sobretudo determina, a posteriori, o
modo como se narra a história do que aconteceu (sobre as opções teóricas de
conceptualização da motivação no turismo, ver Dann 1981).
O paradoxo encontrado a partir desta aproximação é o de que, embora o ponto de
partida motivador seja o da experiência nova, extraordinária, à semelhança dos
profissionais que geram os materiais de mediação cultural no seio da indústria,
recorrendo a fórmulas representacionais de outros mediadores de cultura popular
para expressão dos significados imediatos partilhados com o seu público, também
para os turistas não existe uma procura constante de novos modos de
representação. Em vez disso, observa-se uma recorrência às mesmas narrativas
organizadas e preestabelecidas das suas fontes, que servem não só de quadro
referencial para confirmação e legitimação das histórias que narram mas, mais
do que isso, como modelos a duplicar. Especificamente, a análise dos materiais
obtidos revelou uma característica transversal a muitas das narrativas e que é
a tentativa de aproximação às técnicas estilísticas do género literário
indexado às narrativas de viagem, fazendo recurso de réplicas de estilo,
termos, conteúdos manifestos e significados.
A LITERATURA DE VIAGENS SOBRE A ÍNDIA E AS NARRATIVAS DOS TURISTAS OCIDENTAIS
EM KOLKATA: RÉPLICAS SUCESSIVAS DE MODELOS RETÓRICOS FAMILIARES
O género “reportagem”, autenticidade e plagiato
A influência da literatura de viagens na cultura popular tem feito um longo
percurso, sendo uma evidência a sua importância na Europa já nos séculos XVI,
XVII e XVIII, o período de expansão e dominação das culturas europeias (Bailey-
Goldschmidt e Kalfatovic 2004). Tradicionalmente percepcionada como reportagem
– relatos objectivos da experiência do autor –, partilha com os textos
jornalísticos a mesma aura do “contamos-lhe como foi”. Este cunho de
objectividade permitiu a difusão da sua legitimação como fonte informativa
segura para a construção das representações dos lugares e dos outros distantes.
Mohammed Bamyeh relembra que, até à sua substituição pelas compilações de
material etnográfico, a literatura de viagens detinha o monopólio da
transmissão de conhecimento sobre os outros no sistema educativo ocidental:
When Rifa’a Rafe’ at-Tahtawi, an Arab traveler, visited Paris in
post-Napoleonic times (1826-31) to become acquainted with “the West”
in general, he found an educational system in which accounts of
travels into Algeria and the Ottoman Empire were taught, side by side
with French, general history and historiography, Greek mythology, and
Napoleon’s biography. (Bamyeh 1994: 39)
E com efeito, os relatos escritos de viagem continuam a ser usados até hoje,
por exemplo no âmbito da historiografia, como documentação preferencial de
informação primária, em detrimento da história oral que é tomada como fonte
narrativa “menos verídica”. O meu argumento é o de que esta distinção não
possui base de sustentação: escritos ou verbais, os enunciados discursivos,
embora diferindo na sua expressão formal, são sujeitos às contingências
referidas, sendo a sua validade limitada ao enquadramento em que se inscrevem.
Isso acontece para os relatos amadores orais e escritos dos turistas tanto
quanto para os exercícios dos profissionais da literatura de viagens, nas suas
diversas formas.
No que se refere aos modelos representacionais da literatura de viagens sobre a
Índia, é habitualmente colocada uma marca temporal de viragem na viagem do
português Vasco da Gama em 1498 (Bailey-Goldschmidt e Kalfatovic 2004). Antes
da abertura do caminho marítimo da Europa para a Índia (porque o sentido
inverso era conhecido), apenas os viajantes com acesso à rota terrestre através
de Istambul ou vindos de norte e este, da China, Japão e Coreia, viajavam para
este lugar. Assim, até essa altura, as narrativas de viagem sobre a Índia eram
sobretudo domínio de chineses e muçulmanos (de várias origens), entre os quais,
talvez o mais famoso, o ilustre viajante marroquino do século XIV, Ibn Battuta.
Na sua maioria peregrinos, diplomatas, aventureiros ou negociantes com as
necessárias relações ao mundo islâmico ou budista, estes viajantes não
dependiam de patronato real ou oficial, o que lhes facultava uma latitude
relativamente folgada na selecção de conteúdos e modo de abordagem nos seus
relatos de viagem, marcados, acima de tudo, pela descrição da estranheza e
exotismo. A recorrência destes temas/objectos conotados com estranheza e
exotismo foi conservada até à contemporaneidade.
A partir do estabelecimento dos portugueses na Índia, e definitivamente a
partir de meados do século XVII através da presença britânica, holandesa e
francesa (com mais abundância de relatos), as narrativas escritas de viagem
passam a ser enquadradas oficialmente e com propósitos claros de satisfação de
necessidades relativas à natureza da implantação política e exploração
económica no território, o que se traduziu num afunilamento de conteúdos e
modos de abordagem, particularmente direccionados para esse propósito durante
este período. Como declara Miles Ogborn, na sua análise da materialidade da
literatura de viagens da English East India Company:
They were part of a world where mercantile capacity needed the
protective envelope of the monarch’s political power to preserve
markets, enforce authority onboard ship and make agreements with
distant polities […]. Royal letters, ship’s journals, accounts and
commissions are, in their making, transportation and use, always
actively and directly involved in the specific social and political
relations and practices – kingship, captainship, intercultural
translation – of which they are a part. (Ogborn 2002: 167)
Ou seja, como bem faz notar Ogborn, a escolha de sintaxe e conteúdo destes
textos não deve ser atribuída apenas ao autor e à sua autonomia individual para
representação discursiva, antes deve ser entendida pelo seu contexto de
produção e uso, circunstancialmente enquadrada, social e politicamente, e neste
caso sob rígidas formalidades. No entanto, isso não justifica por si só o
recurso às sucessivas duplicações de enunciados, termos escolhidos e carácter
monolítico dos conteúdos manifestos. Atente-se às duplicações nos dois relatos
quinhentistas que se seguem sobre Bengala. O primeiro, de Ludovico Di Varthema
(1503-1508), terá sido publicado pela primeira vez em italiano em 1510:
The sultan of this place is a Moor, and maintains two hundred
thousand men for battle on foot and on horse; and they are all
Mohammedans […]. And here there are the richest merchants I ever met
with. Fifty ships are laden every year in this place with cotton and
silk stuffs […] through all Turkey, through Syria, through Persia,
through Arabia Felix, through Ethiopia, and through all India.
(Badger 1863: 211-212)
O segundo, um relato do português Duarte Barbosa, um pouco posterior ao de
Ludovico Di Varthema, terá sido traduzido de um manuscrito espanhol de 1524:
Those [towns] of the interior are inhabited by gentiles, subject to
the King of Bengal, who is a Moor; and the seaports are inhabited by
Moors and Gentiles, amongst whom there is much trade in goods and
much shipping to many parts […] They are all great merchants, and owe
large ships of the same build as those of Mekkah, and others of the
Chinese build which they call jungos. […] They load many ships with
it and export it for sale to all parts. (Stanley 1866: 178-179)
Tal como se observa neste exemplo, vários estudos realizados por investigadores
históricos revelam que na literatura de viagem estas condicionantes de
estruturação são particularmente evidentes (para relatos de viagem de
diferentes períodos e para relatos não enquadrados oficialmente), sendo
facilmente identificável a duplicação de conteúdos e sintaxe discursiva de
textos anteriores do mesmo tipo, disponíveis para suporte da actividade
discursiva do autor.
[3]
E ainda que a questão das duplicações não se coloque ao nível do plágio ou da
mentira leviana intencionais, como analisado por Bailey-Goldschmidt e
Kalfatovic, por vezes isso acontece. Como declaram:
This borrowing inevitably leads to a multiplication of errors which
created a chain of fibs stretching through the centuries. One such
myth was that of the gold-digging ants who lived underground near the
Indus river, heaping up sand mixed with gold in the process of
carrying out their lives. If one attempted to retrieve this gold, so
the story went, they were chased by these ants (the size of dogs) and
killed. This legend can be traced as far back as Herodotus in the
fifth century b. C., through Megasthenes and into the fictive
Mandeville’s narrative in the fourteenth century. (Bailey-Goldschmidt
e Kalfatovic 2004: 147)
Perpetuam-se desta forma, nas narrativas de viagem, modos de representação
estreitamente limitados, imagens estereotipadas, objectos construídos
discursivamente, que adquirem significados com existência autónoma,
indiferentes à sua expressão (ou ausência) no real a que se referem (ver Silva
2003). O recurso ao estilo do género “reportagem”, sob a aparência da
informação objectiva e pragmática, permite manter, todavia, a aura de
credibilidade do sujeito conhecedor que narra o “autêntico”, que partilha o seu
testemunho directo sobre o que “estava lá”, sobre propriedades intrínsecas ao
objecto.
Devo referir aqui que durante os séculos XVII e XVIII, a escrita de narrativas
de viagem em forma de cartas – formais ou familiares (privadas) – terá sido
muito popular, sobretudo entre os viajantes da Grand Toureuropeia.[4] Alguns
autores argumentam dever ser feita uma distinção no tratamento da sua forma
retórica em comparação com outras narrativas de viagem, por serem documentos
particulares, mais subjectivos, menos fidedignos e até “femininos” (ver Smith
2003), contrariando, por isso, o estilo de exposição objectiva da informação.
[5]
Todavia, essa distinção não me parece pertinente. Como demonstrado por Smith,
muitas destas cartas, formais ou familiares, foram escritas desde um primeiro
momento com propósitos de publicação, recorrendo-se a esse formato,
precisamente, pela sua popularidade como expressão máxima do testemunho
directo, o que, como argumentado também por Struever (1995), seria conforme ao
modelo da retórica clássica e à sua integração no domínio pragmático de
expressão da “verdade”, dominante na época.
Deste ponto de vista, a carta como testemunho directo confunde-se também com o
“contamos-lhe como foi” característico do estilo de reportagem informativa que,
argumento, é marca retórica das narrativas de viagem. A sua perda de
popularidade nos finais do século XVIII prende-se apenas com a mudança
epistemológica na produção de conhecimento em geral, que passou a favorecer a
exposição da evidência circunstancial em detrimento deste modelo de testemunho
(Smith 2003: 200), e que terá sido rapidamente incorporada pelos autores da
literatura de viagem. Um excerto do prefácio do diário de viagem de Hester
Thrale Piozzi, Observations and Reflections Made in the Course of a Journey
through France, Italy, and Germany, editado em 1798, é ilustrativo disso mesmo:
“I have not thrown my thoughts into the form of private letters; because a work
of which truth is the best recommendation, should not above all others begin
with a lie” (cit. em Smith 2003: 200).
Ou seja, o que poderia parecer a um primeiro olhar como mudanças ocorridas em
resultado da procura de modos alternativos de descrição da experiência, de
facto não o é. Pelo contrário, o que se verifica é que os enunciados
discursivos a que se recorre para narrar a experiência de viagem requerem
sempre um significado partilhado, com vista à sua compreensão pela comunidade
interlocutora. Só adquirem significado enquanto produtos narrativos partilhados
por outros similares que os integram e reiteram, aproximando os seus autores
numa espécie de “sistema de crenças” ou “corpo de conhecimentos” que serve de
base ao entendimento do real, que estrutura, define e materializa, pelo seu
sucesso cumulativo, objectos pré-organizados discursivamente.
Na actualidade, o recurso ao estilo “reportagem” (de exposição objectiva da
evidência circunstancial) continua a ser o mais generalizado entre os
profissionais da literatura de viagem, e é adoptado também em guias, brochuras
e narrativas impressas e online das agências de viagens e promotores turísticos
e ainda reproduzido nas histórias contadas pelos turistas. Veja-se a narrativa
de um turista norte-americano em circuito de aventura pela Índia, que terá
permanecido cerca de dois dias em Kolkata, em Março de 2006. Começa assim: “Had
to visit Calcutta”, e continua,
I wandered around the city, observing, until finally my feet were
tired. Crowded streets, every one of them, bustling with people.
Derelict cows wandering about, cars, buses, trucks, carts pulled by
ox. Feet that have known saddles perhaps, but never shoes. Slums,
awful, but no worse than I expected, thank God. […] People appeared
to not be starving, thankfully, true of everywhere I went in India.
People sleeping on the streets for sure, a few desperately thin legs
and arms, but the real worry that any Westerner would feel is that
there had to be millions that were one large natural disaster, or a
few consecutive drought years, or a major political upheaval away
from death. [Turista norte-americano, dois dias de estadia em
Kolkata]
Apenas 30 horas de estadia na cidade para que se torne mais um conhecedor da
cidade e dos seus habitantes. O turista, de credibilidade atestada pela sua
experiência de viajante e caminhante nas ruas da Índia (que refere várias
vezes, ao longo da sua narrativa), em algumas horas, observa, reconhece e
analisa a “evidência circunstancial” encontrada. Em reforço da “objectividade”,
“autenticidade” e princípios de isenção na descrição do objecto, sente-se
compelido a referir que não escamoteia resultados: “Slums, awful, but no worse
than I expected, thank God” – denunciando assim, imediatamente, o encontro do
objecto antecipado.
“Feet that have known saddles perhaps, but never shoes”, constata o turista.
Qual o propósito deste enunciado para a descrição da cidade? Aparentemente
apenas a sua ressonância literária de significados de pobreza que associa a
Kolkata (e à Índia). Mas, na verdade, é apenas mais um objecto que outros “já
haviam dito”. Simon Winchester, no livro Simon Winchester’s Calcutta, de 2004,
escreveu:
Calcutta is the only city on earth to still allow hand-pulled
rickshaws […] How can it project itself to the world as a successful
and cosmopolitan city when it still exploits people quite so
blatantly and inhumanely as to use them as human mules? […] None of
the pullers seem to possess shoes.(Winchester e Winchester 2004: 85)
E, por exemplo, uma outra turista norte-americana com um mês de estadia em
Kolkata, em Outubro do mesmo ano, terá enunciado o seguinte:
Where else in the world can you take a foot rickshaw? Yes, with huge
wooden spoke wheels and a snowy-bearded barefoot man trundling you
along the street – a foot rickshaw. [Turista norte-americana, um mês
de estadia em Kolkata]
Que significado pode ser inferido a partir da leitura destes enunciados sobre
pés descalços e a cidade? Para os leitores de Winchester: que os puxadores de
rickshaw são uma marca da singularidade de Kolkata – “the only city on earth to
still allow hand-pulled rickshaws” –, infame e desumanamente explorados como
mulas, não auferindo tão-pouco rendimento suficiente para adquirir calçado. De
acordo com a narrativa da turista norte-americana, pode inferir-se que também
ela teve oportunidade de observar a cidade única em que se podem encontrar
puxadores de rickshaw descalços. Mas, aos ouvintes / eitores do primeiro,
bastante mais audacioso no seu testemunho, é atestado que, nas “Crowded
streets, every one of them, bustling with people” desta cidade, a larga maioria
da população, mesmo que alguma vez tenha tido a oportunidade de usar chinelos
de couro (na hipótese interpretativa mais positiva para a metáfora subjacente
ao termo saddles – selas), nunca terá sequer conhecido sapatos; nunca os usou,
nunca os viu, não sabe o que são ou para que servem. Ou seja, através da
duplicação de um enunciado discursivo já construído anteriormente, este turista
não só produziu a sua reiteração, como ainda amplificou o seu significado,
alargando esta representação específica a toda a generalidade da população nas
ruas da cidade, sob o cunho da autenticidade do testemunho directo.
A fotografia abaixo, recolhida por um turista canadiano em Kolkata no final de
Novembro de 2005 (mês de Inverno, habitualmente de temperatura amena, mas que
os residentes consideram frio, tendendo a usar agasalhos e sapatos mais
fechados), que permaneceu na cidade quatro meses para o seu aperfeiçoamento
como músico instrumentista de sitar (cítara indiana), exibe um rickshaw
estacionado e o seu condutor calçado com sapatilhas. E sobre esta imagem diz:
“This is typical, I have seen a lot of pictures like that, but I like it. I
asked him to take this picture and he said ‘yes, I just stand here or should
I…?’ [risos]”. Refere ter sido sua intenção exibir a imagem do rickshaw de
indexação imediata à cidade e descrever a generosidade e disponibilidade por
parte do seu condutor para ser fotografado.
Embora julgue ter captado uma imagem típica, em verdade, pelo que acabei de
referir acima, a sua fotografia é extraordinária. Não tendo manipulado a
fotografia, preparado a pose oferecendo-lhe sapatos ou procurado durante dias
especificamente um puxador de rickshawcalçado, como terá sido possível
conseguir obter esta foto num universo repetidamente relatado como de pés
descalços? A resposta é simples: os pés descalços não eram algo que procurasse.
Dada a duração da estadia de DB na cidade e a sua coincidência com a minha
própria estadia, tornámo-nos amigos, mantendo uma relação de proximidade. Em
conversa informal que mantivemos já no final do mês de Fevereiro de 2006, fiz
referência ao facto de alguns dias antes, ao rever a sua fotografia, quando
procedia a uma reorganização de arquivo do material narrativo obtido
(fotografias e histórias contadas),ter notado que esta apresentava um condutor
de rickshaw calçado – algo que ambos não tínhamos notado ou mencionado na
conversa em Novembro. Respondeu-me que, chamando-lhe eu a atenção para esse
facto, era realmente interessante o que se podia ver posteriormente numa
fotografia – “things that were there” e que não haviam sido vistas no momento
da sua captação. E relativamente ao tema dos sapatos:
Now, thinking of that, since I’m staying here, there was really a
significant change on the feet of the pullers, coolies, and so on. I
mean, it changes according to the weather, isn’t it? If I had taken
the same picture during this season, the guy would probably appear
with bare feet! [Conversa com DB, Kolkata, 26 de Fevereiro de 2006]
A INTERTEXTUALIDADE, OS CONTEÚDOS MANIFESTOS E A CONSTITUIÇÃO DA NARRATIVA DE
VIAGEM COMO GÉNERO DE CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA
De acordo com Sara Mills (1991), outra característica que emerge da análise
diacrónica e sincrónica das narrativas de viagem é o seu carácter de
intertextualidade. Os autores não só tendem a reproduzir enunciados de outros
relatos de viagens reais ou ficcionadas, mas também, de acordo com as
motivações subjacentes à sua viagem e ao destino escolhido, tendem a procurar e
duplicar narrativas em diferentes áreas de produção de conhecimento: novelas de
quotidiano, textos de carácter científico, representações convencionais da
paisagem (imagens pictóricas), narrativas sobre a situação política e relação
histórica entre os dois locais, etc., o que lhes confere uma marca distintiva
em forma de colagem de textos e discursos fragmentados (Mills 1991: 80).
[6]
Isto mesmo é particularmente evidente a partir do século XVIII, já que a
acessibilidade relativamente alargada aos textos escritos só é iniciada na
Europa nesta altura, o que se traduziu em maior produção, abundância de cópias
e reedições, diversidade de mediadores linguísticos e, consequentemente, maior
familiaridade para leitura e apropriação, fazendo desta circunscrição temporal
o enquadramento determinante para as possibilidades de “sobre o que dizer” nas
narrativas de viagem da contemporaneidade.
Quando a relação de dominação económica e política britânica sobre a Índia se
consolida, na segunda metade do século XVIII, os temas orientados para o
mercantilismo e exploração económica dominantes nas narrativas de viagem dos
dois séculos anteriores perdem significado, dando lugar a todo um corpo de
produção de conteúdos mais familiar, mais difundido e presente, de forma
evidente, nos relatos de viagem contemporâneos, pautado pelo que desde Edward
Said é conhecido como o discurso hegemónico colonial ou orientalismo
[7]
(Said 1990 [1978], 1985). Como argumentado por inúmeros autores, desde Said,
as narrativas de viagem a partir desta época passam a responder, deliberada ou
involuntariamente, aos desígnios de uma Europa imperial, servindo à reafirmação
do seu poder sobre o território colonizado e as suas populações. Ou, como
salienta Menezes de Souza (2004), a narrativa passa a servir a construção da
identidade colonial e a narrativa de viagem a constituir o seu género, por
excelência.
Suportado pelas metanarrativas evolucionisto-progressistas, de superioridade
racial, expansão colonial, hierarquização civilizacional, “bom selvagem” e “vil
oriental”, etc., para o qual concorreram todos os campos de saber ocidentais da
época (nesta altura, um “ocidente” ainda confinado à Europa e América do
Norte), este tipo de construções representacionais culmina na criação de um
corpo de referência de especialistas na Índia, orgulhosamente designados
“orientalistas”,“indianistas” ou “indologistas”.
[8]
Sob a alçada da governação de Warren Hastings, William Jones (1746-94) foi o
grande responsável pela criação da Asiatic Society no ano de 1784, na então
capital do British Raj, Calcutta. Defensores da importância do estudo das
línguas “orientais” e textos produzidos na Índia, juntamente com os seus
colegas desta instituição, designaram-se a si próprios como “orientalistas” em
oposição aos utilitários “anglicistas”, dominantes na administração e
ostensivamente antagonistas do reconhecimento de qualquer produção vernácula
(ver, por exemplo, Inden 1986). A criação da Phrenological Society na mesma
cidade, nos anos de 1820, por George Murray Paterson, vem complementar este
conhecimento com a sua contribuição de estudos comparativos de crânios e
teorias derivativas sobre diferenças “raciais”, intelectuais, de mentalidades e
pensamento religioso, que serão difundidas em artigos, livros, palestras, aulas
e debates, quer na metrópole europeia quer entre as elites locais (ver Kapila
2007).
É a partir desta variedade de formações discursivas que as narrativas de
viagens reais ou ficcionadas à Índia adquirem forma, ao mesmo tempo que aí se
inscrevem, em relação de validação mútua. No prefácio ao seu Journal of a
Residence in India(1812), a inglesa Maria Graham (1785-1842) reforça a
credibilidade da “autenticidade” da sua narrativa, precisamente com o
esclarecimento de que a informação nela inscrita deriva de “many individuals
distinguished for Oriental learning and research” e não directamente da
população “nativa”, já que para si, mesmo os indianos mais eruditos serão
“ignorant, even with regard to their own sciences” (Graham 2000 [1812]: 11).
Não cabendo aqui o aprofundamento da fabricação e modos de difusão e
impregnação popular das construções discursivas sobre “raças” e diferenciação
racial, suas correspondências frenológicas ou seus propósitos de legitimação de
exercícios de poder e expansão colonial, sublinho, apenas, que a sua difusão
foi de tal forma extraordinária (mesmo entre as populações colonizadas) que a
sua presença nos enunciados discursivos sobre os outros – dominantes nas
narrativas de viagem – se mantém inabalável até hoje. Para este facto concorre,
naturalmente, a sua perenidade ao nível das metanarrativas dominantes
difundidas pelos mediadores de cultura massificados.
Devo clarificar que a Índia ocupa um lugar consideravelmente especial neste
imaginário narrativo sobre o “Oriente”, oscilando entre dois modelos de
representação que se difundem paralelamente ao longo dos anos de 1800. O
primeiro era generalizado a todo um universo nebuloso “não ocidental”, de
construções representacionais sobre a inferioridade racial intelectual e
civilizacional, anomalias mentais e de comportamento, e natural posição de
subalternidade das populações “nativas” dos territórios colonizados, emanado de
grande parte dos representantes das administrações coloniais. Na Índia, este
modelo terá sido defendido e difundido, sobretudo, por parte de “anglicistas”,
[9]
que produziram enunciados como, por exemplo, o de William Wilberforce (1813):
“Hindu divinities were absolute monsters of lust, injustice, wickedness, and
cruelty. In short, their religious system is one grand abomination” (extraído
de Hansard’s Parliamentary Debates, 22 de Junho, cit. em Kopf 1980: 503), ou
como o de James Mill, na sua History of British India (1840):
Even in manners, and in the leading parts of the moral character, the
lines of resemblance (between Indians and Chinese) are strong. Both
nations are to nearly and equal degree tainted with the vices of
insincerity; dissembling, treacherous, mendacious, to an excess which
surpasses even the unusual measure of uncultivated society. (Mill,
cit. em Kopf 1980: 504)
Tomemos como exemplo estes enunciados com mais de dois séculos e veja-se como
estas construções representacionais e escolha de termos persistem de forma
cumulativa ao longo do tempo até às narrativas da actualidade. Em 1975, afirma
o escritor de viagens Paul Theroux:
I stayed in Calcutta for four days, giving lectures, seeing the
sights and loosing my lecture fees at the Royal Calcutta Turf Club
[…]. On the first day the city seemed like a corpse on which the
Indians were feeding like flies; then I saw its features more
clearly, […] having decided that Calcutta was Dickensian (perhaps
more Dickensian than London ever was) […] in a city of mutilated
people only the truly monstrous looked odd. (Paul Theroux, The Great
Railway Bazaar, cit. em Winchester e Winchester 2004: 281-282)
Já em 2004, na narrativa de um turista francês em Kolkata, encontra-se o
seguinte:
Ce n’est qu’un visage de la grande Calcutta, mais de la noirceur d’un
abîme qui phagocyte toute autre impression, de la noirceur de Kali,
la féroce. […] J’apprendrai que parfois, ce sont des rigoles de vrai
sang qui s’écoulent sur le marbre blanc et froid baignant les pieds
nus des fidèles, le sang de chèvres égorgées dans la clameur
collective d’une ferveur excessive. Folie pure, scandaleuse barbarie…
les mots se bousculent, tranchants comme les bourreaux, j’imagine…
j’imagine bien, du reste, à constater, interdit, l’hystérie qui gagne
Kali-ghat. [Turista francês, quatro dias de estadia]
E ainda, em 2005, a narrativa de uma turista inglesa:
They will do anything for a few rupees and it is especially
heartbreaking to see the amputations that have been done at the hands
of unscrupulous parents, or guardians so their children can play on
the sympathies of visitors. […] Give at your peril – there may only
be a few dozen beggars, but get out your cash and you will be swamped
until you have had the shirt off your back removed! […] if a taxi
driver knocks someone down in the street, get out of the car and run!
The people will kill the driver and burn the car, whether or not
there is someone in it…. I never saw this happen, fortunately, but I
have been told by countless people that it does – so people beware!
[Turista inglesa, uma semana de estadia em Kolkata]
Paralelamente a este modelo (mantendo, embora, as mesmas premissas de
distanciamento, de extremo exótico, de estagnação civilizacional e condição
natural de subalternidade), na esteira do romantismo do século XIX, a Índia
terá sido elevada por alguns intelectuais europeus (destes, intelectuais
franceses e britânicos foram alvo de extenso estudo por Said em 1978) ao
estatuto de supremo representante de afirmação do passado, do exótico e da
alteridade cultural, de lugar mítico notável pela espiritualidade e sabedoria
e, simultaneamente, povoado pelo “bom selvagem”. Particularmente relevantes
foram os indologistas / indianistas alemães (estes não contemplados na análise
de Said), como Johann Herder, os irmãos August e Friederich Schlegel, ou Max
Mueller (1823-1900),[10] ou ainda, não especialistas como Novalis, Schopenhauer
e Friedrich Nietzsche, o que demonstra o impacte da difusão destas narrativas
ao nível das possibilidades de construção discursiva em áreas de produção
textual tão distintas. Como refere Kaushik Bagchi, apoiando-se no estudo de
Herman Tull:
With the British now involved in the down-to-earth task of actually
governing a colony, Romantic interpretations of India became the
preserve of the Continentals, especially the Germans, who were
already cut off from India politically, and who further “isolated
themselves from the ‘living’ Indian tradition.” They did this, for
example, by disparaging native commentaries on the Vedas, or
deliberately ignoring aspects of Indian culture that appeared
“tasteless and monstrous” in favor of what they considered more
refined. (Bagchi 2003: 296)
[11]
Este tipo de representação discursiva terá obtido grande expressão no género
romântico na literatura europeia, por autores de narrativas de viagem ou ficção
dedicada ao “oriente” de grande sucesso, de várias nacionalidades e largamente
difundidos, como Flaubert, Goethe, Rudyard Kipling ou Byron. E a procura do
objecto mítico supremo em sapiência espiritual continua ainda a ser encontrada
e manifesta nos relatos de muitos turistas:
This is the Art of Living. It is in a session, near the Tram Depot. I
didn’t want to disturb anyone, there’s a spirit of being together,
sharing the truth. At the end, there was somebody reading – they went
to a class in Rishikesh – and one girl said, after, she was so much
inspired that she could jump from 30 feet to the Ganges and she said
she had never done that before. She was like radiating. […] I was
very happy to be there. [Turista canadiana, algumas semanas de
estadia em Kolkata em 2007]
Contudo, desde meados do século XX terá emergido uma outra imagem que passa a
concorrer com estas, ou melhor, uma imagem de continuidade com uma nova
roupagem política: após a II Guerra Mundial, a nova Índia independente (desde
1947) vê o seu estatuto romântico obscurecido pela sua inclusão no grande bloco
difuso de jovens e velhas nações ex-colónias colocado sob o rótulo de “terceiro
mundo” e pelo discurso de desenvolvimento que substituiu o discurso colonial.
As novas narrativas da viagem passam então a ser organizadas genericamente de
dois modos: ora, conformes ao progressismo moderno, repudiam aberta e
veementemente esta visão de exotismo romântico e estatuto particular da Índia
entre as nações, abraçando o discurso sobre subdesenvolvimento, decorrente (e
por isso mais próximo) dos anteriores discursos extremados colonialistas; ora,
entre os menos progressistas e mais críticos da “nova ordem mundial”, procuram
incorporar a velha visão romântica com os novos termos discursivos sobre
“terceiro mundo”, criando um tom renovado, marcado pela ambivalência entre os
dois universos representacionais.
Habitualmente, no entanto, mesmo quando os dois universos representacionais são
incorporados, verifica-se que o autor procede à apologia de um deles:
In India, ancient beliefs and customs seem to be as alive as ever,
caught in a state of suspended animation side by side with the
modern. Everywhere you would run into educated minds of great
sophistication and insight as you would meet illiterate people who
clearly live simple lives. […] India is unsanitary and crowded, a bad
combination […] I’m compensating by enjoying the sense of belonging
to a culture [whose] “state of the art” is cleanly, hygienic,
protected modern living. [Turista norte-americano, dois dias de
estadia em Kolkata em 2006]
O escritor / jornalista Peter Holt é exemplar a este respeito. Através da
referência aos dois modelos na sua narrativa, não só efectua a validação do
discurso terceiro-mundista, como o legitima pela sua atribuição, em conversa, a
um jovem indiano residente na cidade, estudante de medicina:
He talked about his life in the city. “India is the black hole of
Asia, Calcutta is the black hole of India. There is no future here.
[…] They say I will not like the West. There is too much rudeness, it
is a bad way of life, they say. […] I hate these foreigners for their
arrogance. They see India as nicely old-fashioned and polite. I would
rather have the rudeness of the West and a good job and maybe a car.
[…] When they are forty they will have cars, homes of their own and
gardens where their children can play. I will not.” Depressing stuff.
(Peter Holt, In Clive’s Footsteps, cit. em Winchester e Winchester
2004: 175)
Durante os 15 meses de trabalho de campo que efectuei neste país e,
designadamente, nesta cidade, tive oportunidade de conhecer vários
profissionais de medicina, muitos deles sem experiência de emigração para o
“Ocidente”, e em caso algum encontrei um médico ou médica que não tivesse
emprego, carro (com motorista), e casa com ou sem jardim (com uma ama ou
familiar para acompanhar as crianças a brincar em espaços exteriores
apropriados para o efeito). Mas essa, claramente, é apenas a representação de
Kolkata que experimentei. No caso de Peter Holt, é óbvio não ser essa a cidade
que procurava, mas antes, como ele próprio afirma: “my quest for Clive’s
Calcutta” (cit. em Winchester e Winchester 2004: 175). E não duvidando de que
aquela conversa tenha tido lugar, não deixa de ser intrigante que esse jovem
indiano tenha usado por duas vezes a expressão “black hole” num diálogo
informal. Pessoalmente, nunca tive oportunidade de a ouvir por parte de
qualquer indiano em Kolkata, a não ser em contexto académico ou em visita
turística ao monumento histórico em memória do incidente “Black Hole of
Calcutta” ocorrido em Junho de 1756. De facto, o seu uso parece até só adquirir
significado quando entendido como artifício literário de referência a esta
imagem representacional.
Em 1756, o Nawab Siraj-Ud-Daula, soberano de Bengala e Bihar, sentindo a sua
condição de soberania ameaçada pelo abuso dos privilégios de dastak (permissão
de comércio livre) por parte da English East India Company, acrescido ao
reforço efectuado nas defesas da fortaleza britânica, terá decidido atacar o
seu centro de poder: a cidade de Calcutta e, em particular, Fort Williams.
“Black Hole of Calcutta” é indexado ao evento histórico de tomada de Fort
Williams e aprisionamento de mais de uma centena de europeus que aí foram
mantidos numa cela de pequenas dimensões durante alguns dias, o que terá
resultado na morte por asfixia da sua maioria. Porém, nas narrativas
britânicas, a sua conotação adquire um significado bastante mais amplo: o
“Black Hole” representa a “insolência” do ataque de inferiores “nativos” ao
centro de poder britânico na Índia, com o “ultrajante” aprisionamento de mais
de uma centena de membros da elite “branca” e a morte de um grande número
destes. Na sequência destes eventos, a presença britânica ter-se-á decidido
pela demonstração do seu poder como força ocupante imperial, reconquistando o
forte e a cidade sob o comando do jovem Robert Clive em 1757 e consolidando
nesse mesmo ano o seu poder sobre Bengala com a batalha de Palashi (ou Plassey)
e Robert Clive como seu governador.
Este episódio histórico terá sido conotado com um significado de tal modo
ofensivo e ultrajante para a identidade de “superioridade colonial” britânica
e, ao que parece pela narrativa de Holt e de muitos outros, ainda hoje, para a
sua identidade de “superioridade ocidental”, que, para além dos inúmeros
relatos, apontamentos históricos, polémicas sobre o número de mortos e dimensão
da tragédia ocorrida[12] e vários livros dedicados exclusivamente a este tema
(pelo menos quatro), ainda, sob o domínio de um único título apenas – Clive of
India –, terão sido escritos pelo menos mais quatro livros e Richard
Boleslawski terá realizado um filme, em 1935. Não encontrei qualquer evidência,
todavia, de que este interesse pelo assunto seja partilhado ao nível da cultura
popular pelos residentes em Kolkata; ou seja, parece ser apenas uma narrativa
que serve aos propósitos de construção identitária “ocidental” e designadamente
“anglo-saxónica”.
CONCLUSÃO
Como procurei demonstrar, as representações discursivas apresentadas na
contemporaneidade sobre este lugar e outros distantes não são a expressão da
estranheza provocada por um primeiro contacto, mas, antes, o resultado do
convívio de séculos com limitadas construções discursivas. Recorrendo a Edward
Said:
So saturated with meanings, so overdetermined by history, religion, and
politics are labels […] that no one today can use them without some attention
to the formidable polemical mediations that screen the objects, if they exist
at all, that the labels designate. (Said 1985: 93)
As narrativas de viagem não só procedem à validação da “autenticidade” do
objecto que reportam, pelo recurso à réplica de enunciados de produtos
narrativos similares e de outros que os integram e reiteram, como também,
através do uso repetido dos artifícios estilísticos que (em cada momento sócio-
histórico) acreditam o testemunho directo, reeditam sucessivamente a aparência
do encontro do novo e do extraordinário.
Para o turista, não se trata apenas de contar a história, a história de viagem
deve ser contada do modo que se habituou a ler e a ouvir – “sobre o que dizer”
e “como dizer”. Deve ser apresentada com abundância de quadros vívidos e de
estímulos capazes de envolver o interlocutor; deve sugerir estranheza e
distância, reforçando a separação do capital de aventura do viajante face ao
dos seus ouvintes / leitores; deve fazer recurso de descrições pontuadas por
termos ou expressões locais que reforçam o papel de conhecedor e o testemunho
directo do objecto reportado. Para os menos fleumáticos, sempre que possível,
deve ainda fazer uso da ironia, revelando o humor e o comprometimento
característico do mediador cultural e do contador de histórias:
After nearly one year in South India, Calcutta is a new level of sub-
continental insanity – like Dickens’ London with palm trees. A
different kind of heat – Indian languages should have as many words
for heat as Inuit does for “snow” – this variety, sticky and humid
without the direct sun. [Turista norte-americana, um mês de estadia
em Kolkata em 2004]
E, notavelmente, também este tom marca os discursos de muitos dos agentes de
viagem e guias turísticos nestes lugares:
Kolkata? The best of this city is the people. Except for the working
attitude! Canada is a great place. USA is different. Americans are
very different from the Europeans. Americans are like machines: a lot
of technology; produce a lot of wealthy, but they function like
machines! […] Europeans are very conservative. I have never been in
Portugal or Spain or France… [Conversa com BCK, reformado da
administração da Indian Airlines e proprietário de uma agência de
viagens na zona sul da cidade, Kolkata, de Março de 2006]
Pratt (1985) define dois modelos de narrador comuns à maioria das narrativas de
viagem. Um, que designa por “manners and customs narrator”, mais impessoal,
empenhado no estilo informativo da voz omnisciente e ubíqua que relata o que
vai sendo observado. Este tipo de narrador, mais associado ao discurso colonial
e à imagem do descobridor (e acrescento, também associado ao estilo narrativo
clássico do discurso antropológico), é aquele que mantém a sua posição de
superioridade inabalável reprimindo a expressão de qualquer influência por
parte dos visitados. O outro, o tipo “sentimental narrator”, é aquele que,
usando um estilo mais intimista, expressa em alguns momentos da sua narrativa o
seu envolvimento e influência pelos visitados; de acordo com a autora, o tipo
de narrador que procura interessar-se pelas pessoas enquanto indivíduos, pelos
seus pontos de vista (ver Pratt 1985: 125).
Considerando também a validade da transposição desta subdivisão de modelos-tipo
para as histórias contadas pelos turistas ocidentais em Kolkata, devo, contudo,
salientar que esta se dilui no que designei, de forma mais alargada, como
estilo “reportagem”. Os modelos definidos por Pratt são ambos correntemente
utilizados pelos meios de comunicação massificada nos formatos narrativos de
informação e, designadamente, por repórteres e jornalistas na construção da
narrativa de reportagem. E também como é ilustrado por alguns enunciados
apresentados, sendo exemplar o de Peter Holt, o envolvimento manifesto parece
servir apenas para suportar a reafirmação de julgamentos, pré-organizados,
sobre as identidades dos anfitriões e de si próprios. À semelhança do modo como
é usado pelos media nos formatos narrativos informativos,constitui apenas uma
outra técnica narrativa dereforço de “autenticidade”.
O papel das viagens e das suas narrativas, particularmente quando levam a
lugares distantes, é de tal forma importante em áreas diversas que governos,
instituições nacionais e internacionais, organizações de todo o tipo e
empresas, desde há muito, despendem somas avultadas no seu patrocínio e no seu
controlo. Como sublinhou Percy Adams, no século XVIII, o Almirantado Britânico
terá até procedido à confiscação de todos os relatos e diários enquadrados por
viagens financiadas pelo governo e tomado a seu cargo a sua edição cuidadosa em
versão oficial (P. Adams 1983: 42). Por serem as viagens motivadas por razões
diferentes – comerciais, políticas, religiosas, geográficas, científicas,
económicas, de lazer, organizacionais ou pessoais –, a um primeiro olhar, as
suas narrativas poderiam apresentar-se como híbridas ou fragmentadas por
diferentes universos. Mas, na verdade, no essencial, o que dá forma à narrativa
de viagem é sempre o encontro com o outroe a reafirmação / recriação da
identidade do sujeito que narra.