A Produção das Mobilidades: Redes, Espacialidades e Trajectos
Renato Miguel do Carmo e José Alberto Simões (orgs.), A Produção das
Mobilidades: Redes, Espacialidades e Trajectos. Lisboa, Imprensa de Ciências
Sociais, 2009, 272 páginas, ISBN: 978-972-671-250-3.
Rita d'Ávila Cachado
CIES-IUL, Portugal, ritacachado@gmail.com
A perceção da rapidez, dos fluxos, do movimento nas suas múltiplas formas tem
conduzido os investigadores em ciências sociais a deterem-se no conceito de
mobilidade. Nascido da história urbana e da história das tecnologias associadas
aos transportes, desenvolvido no seio das reflexões sobre migrações, o estatuto
alcançado pela mobilidade no último decénio permitiu-lhe ser distendido para
analisar temas aparentemente díspares, como acontece no livro A Produção
dasMobilidades: Redes, Espacialidades e Trajectos. O livro em revista nasceu do
encontro dos autores num painel do VI Congresso Português de Sociologia, mas os
organizadores da coletânea não estão apenas preocupados com a publicação das
atas. Mais do que pretender uma revisão do conceito, esta é uma coletânea
dedicada à compreensão dos modos de produção das mobilidades. Se na introdução
ao livro os organizadores parecem procurar um sentido de unidade entre as
componentes, o exercício de recensear esta obra é antes buscar o sentido
específico da mobilidade em cada um dos capítulos.
Tim Cresswell abre a edição, defendendo que a não novidade das mobilidades é
importante porque nos ajuda a resistir ao sabor da tecnofilia e ao gosto pelo
agora que marca qualquer campo com o prefixo novo' (p. 36). Juntamente com
Vincent Kaufmann e John Urry noutros registos e desde o início dos anos 2000,
Tim Cresswell é um dos autores que instala a discussão sobre a produção das
mobilidades (cf. 2001, The production of mobilities, New Formations, 43: 11-
25) e é, por isso, um excelente arauto desta obra coletiva.
Do espaço abstrato compósito: refletindo sobre as tensões entre mobilidades e
espacialidades, de Renato do Carmo, é um texto que investe na necessidade de
ultrapassar categorias binárias, através da análise das tensões entre
mobilidades e espacialidades, dinâmicas e assimetrias, despolitização /
politização, fazendo com que mobilidade se aproxime de dinâmica cultural. De
facto, a mobilidade enquanto conceito tem muito a ganhar se, à sua história
marcada pelo urbanismo e pelo cruzamento recente com a mobilidade social,
juntarmos a dinâmica cultural, uma vez que só uma formulação conjuntural
permite expor realidades diversas como as apresentadas no restante volume.
Segue-se o texto de Frédéric Vidal, A mobilidade residencial como objeto da
história urbana , com inestimável preocupação metodológica, abordando uma
vertente rara mas promissora da mobilidade. Vidal defende que as mobilidades
urbanas valem mais pela lição de método que podem oferecer do que pelos
resultados em si (cf. Bernard LePetit e Denise Pumain (orgs.), 1993,
Temporalités Urbaines, Paris, Anthropos) e revê o conceito de bairro para poder
analisar a estabilidade residencial, aludindo à insuficiência dos métodos
quantitativos para estudar bairros.
Em Redes, Internet e hip-hop: redefinindo o espaço dos fluxos, de José
Alberto Simões, a mobilidade emerge como resultado de pesquisa, embora a forma
como o convoca surja como uma adaptação da análise sobre a globalização e o seu
par dicotómico, a localização. Simões defende que no hip-hop atual, apesar da
desterritorialização provocada pela Internet, continua a haver localização
deste fenómeno. A seguir, Movimentos da imagem no graffiti: das ruas da cidade
para os circuitos digitais, de Ricardo Campos, questiona o que terá o
graffiti a ver com a ideia de mobilidade? (p. 92). O texto indica que a
mobilidade do graffiti está na sua função de comunicar e difundir estilos, e
instaura a imagem de fugacidade como o que o percorre. Interessante é a
análise do efeito de fixação conseguido pela fotografia registada na Internet,
aqui como dispositivo de empowerment; neste sentido, a ligação com a
mobilidade prender-se-á com a mobilidade social.
O livro prossegue com o turismo. Maria João Cordeiro é autora de Em busca de
um tempo parado' , onde avalia como a mobilidade pode ser questionada ao
estudar fenómenos turísticos atuais, sem cair na tentação da viagem como
equivalente a mobilidade per se. Aprendemos sobre o imaginário do outro, neste
caso turistas alemães, que procuram na realidade portuguesa uma cultura e
costumes supostamente parados no tempo. Tal como no capítulo anterior, é a
fixação o fulcro da análise. A presença destes sinais na análise das
mobilidades faz reconhecer a utilidade de interpretações recentes que
consideram tão importante a imobilidade como a mobilidade.
É ainda sobre fixação ' inesperada ' que nos fala André Nóvoa em A carrinha'
dos músicos em tournée E pergunta-se: onde está a mobilidade, mesmo em
viagem, quando os atores sociais se atêm aos lugares culturalmente seguros?
Cruzando-a com os conceitos de lugar, fixidez e território, Nóvoa explica a
produção das (i)mobilidades entre artistas numa tournée, que de mobilidade
apenas tem os quilómetros percorridos, e a carrinha surge como cápsula que
envolve e fecha os músicos dentro de uma cultura (p. 146).
A estrada continua a ser foco de atenção em Os profissionais das artes do
espetáculo na estrada' , de Cristina Farinha. Aqui, é de novo a mobilidade
social que, associada à realização pessoal, aproxima a autora duma mobilidade
centrada nas ambições dos sujeitos. Competências são cruzadas com aspirações,
uma vez que aquelas são uma exigência face à pluralidade multifacetada de
oportunidades (p. 161), fazendo eco com outras profissões com novas
exigências. A maior competição na atualidade amplia a partilha de conhecimentos
entre os artistas retratados. Este é um ponto de vista positivo sobre as atuais
competências necessárias para a internacionalização ou, melhor, como os
artistas superam as suas dificuldades. Farinha defende que esta reflexão pode
ser alargada a outros profissionais criativos e intelectuais (p. 174),
introduzindo o capítulo seguinte de Ana Delicado, Lá fora com um pé cá
dentro': ligações dos cientistas expatriados ao sistema científico português,
que aborda a manutenção dos contactos dos investigadores transmigrantes com a
terra de origem, abrindo um campo de comparação com outros transmigrantes
classicamente analisados nos estudos de migrações. Interessante é a tipologia
experimentada através de perfis dos cientistas em quatro clusters. Ressalta uma
grande variedade, sem hipótese de homogeneização.
Através de dados sobre alguns dos jogadores de futebol mais internacionais,
segue-se a análise de uma interessante analogia entre cidades globais e clubes
globais em Porque todos os rebeldes' falam português? , de Carmen Rial. A
autora resgata Freyre para refletir sobre a imagem idealizada destes jogadores
da América do Sul, e destaca que a Europa apresenta uma diversidade de
construções retóricas de raça e origem étnica, retomando a necessidade de
refletir sobre as configurações destes discursos, trazendo a mobilidade para a
equação. As viagens destes jogadores realçam a mobilidade social ' a viagem
como deslocação geográfica e na hierarquia social (com Lévi-Strauss).
José Mapril, em Os novos VIP': políticas de mobilidade, emigração e nação no
Bangladesh contemporâneo, detém-se num assunto pouco abordado na área das
migrações ' é que às vezes são os Estados que promovem a emigração. Mapril foi
atrás dessa história no Bangladesh, seguindo os discursos políticos e
institucionais para analisar o contexto em causa. O objetivo é acrescentar a
emigração às demais preocupações da governamentalidade, uma vez que, como neste
caso, foi mesmo institucionalizada uma indústria de exportação de mão de obra,
que acaba por ser o garante da desejada modernidade no Bangladesh e que faz
destes emigrantes os novos VIP.
O último capítulo equaciona a mobilidade através da análise da fundação de uma
Igreja. Circunscrição moral: mobilidade, diáspora e configurações doutrinais
na Igreja Tokoísta (Angola), de Ruy Blanes, leva-nos a conhecer o processo de
crescimento da Igreja em causa. Este é um processo que depende da mobilidade
dos seus principais representantes. Religião e migrações são aqui cruzadas com
a ajuda das políticas estatais. Sem falar de poder nem de controlo, é a
mobilidade no seu estatuto conceptual contemporâneo que permite cruzar
dinâmicas culturais distintas.
Nesta coletânea, quando a mobilidade aparece como parte do método de pesquisa,
os artigos resultam mais seguros; quando a mobilidade surge como possibilidade
interpretativa, provocam uma sensação de insegurança analítica. É possível que
esta situação ocorra justamente porque a mobilidade atravessa uma recomposição
conceptual e porque a sua história é dificilmente abarcável seguindo apenas uma
disciplina de cada vez. A mobilidade e suas dimensões, como exemplifica bem
este livro, requer interdisciplinaridade.