Headhunting and Colonialism: Anthropology and the Circulation of Human Skulls
in the Portuguese Empire, 1870-1930
Ricardo Roque, Headhunting and Colonialism: Anthropology and the Circulation of
Human Skulls in the Portuguese Empire, 1870-1930, s. l., Palgrave MacMillan,
2010, xiv-342 páginas, ISBN 978-0-333-91909-5.
Frederico Delgado Rosa
Centro em Rede de Investigação em Antropologia, Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Portugal, fdelgadorosa@fcsh.unl.pt
Publicado na prestigiada Cambridge Imperial and Post-Colonial Studies Series, o
livro de Ricardo Roque catapulta para o debate contemporâneo da antropologia
histórica a colónia maldita de Timor-Leste, assim apresentada recorrentemente
no século XIX. E fá-lo através de uma inversão da lógica das conotações
negativas, segundo a qual a presença portuguesa era residual e ineficaz,
caracterizada por sobrevivências de tipo ancien régime. É-nos apresentada ao
invés uma história de sucesso colonial através do idioma timorense da caça de
cabeças. É por demais surpreendente a revelação de que a ocupação efetiva não
teria sido possível sem que os escassos oficiais brancos autorizassem essa
prática ritual dos guerreiros nativos sob o seu comando. Mas o autor vai mais
longe, graças a uma leitura muito atenta das etnografias militares da época, e
em especial das suas entrelinhas. Refuta a tentação de as interpretar como mero
discurso orientalista, assente num processo de alterização que supostamente
diz mais sobre o colonizador do que sobre o colonizado. O verdadeiro desafio
consiste em ultrapassar tanto a armadilha colonial, como a pós-colonial, de
forma a perceber como é que o colonizador, alegadamente civilizador, manteve
uma relação não apenas de contiguidade, mas de simbiose, com a mais selvagem
das práticas do colonizado. É portanto ao nível da praxis que importa ler o
arquivo.
De acordo com as etnografias coloniais, havia em cada lorosa'e ou festa das
cabeças um chefe a cujos pés elas eram alinhadas e que lhes dava o primeiro
pontapé. O autor procede a uma descodificação da ambivalência dos textos a
respeito desses personagens, que seriam na verdade os próprios militares
portugueses em comando. Chegou mesmo a encontrar documentos onde essa delicada
ação ritual portuguesa emerge à superfície, num mundo de apetência indígena
pelo capital simbólico dos malai. O atavismo surge metamorfoseado em
quintessência do colonialismo em ação, não apenas devido à participação dos
oficiais,mas porque o número de cabeças cortadas era parte integrante da
vitória portuguesa. Fazemos jus ao trabalho em arquivo de Ricardo Roque, ao
citarmos aqui um ofício confidencial e paradigmático de Celestino da Silva,
enviado para Lisboa em 1896: [ ] o inimigo, num só combate, deixou 104_cabeças
em posse das nossas forças. O sublinhado, diz-nos o autor, está no original, o
que lhe permite enfim concluir que as decapitações não permaneciam fora do
império, mas eram contabilizadas a seu favor, infundindo-lhe vitalidade ' como
que em réplica das leituras clássicas da prosperidade simbólica trazida para a
comunidade.
Esta dialética só era possível, contudo, através da manutenção ideológica da
fronteira entre civilizado e selvagem, que era também neste caso uma fronteira
entre pureza e impureza. Apesar ou justamente por causa da intimidade
pragmática entre os oficiais europeus e a soldadesca nativa, tanto as
etnografias como os regulamentos exprimiam uma distância, um evitamento de
contacto, de forma a que o horrível e macabro rito indígena, embora tolerado
por necessidade, não chegasse a subverter a diferença entre as partes. Ricardo
Roque não considera, pois, que seja pertinente a noção de hibridismo cultural
aplicada a este contexto colonial, avançando uma perspetiva analítica
alternativa, que não deixa em todo o caso de traduzir uma interpenetração
histórica. Revelando uma predileção persistente pelas metáforas biológicas, em
diálogo com a sua sensibilidade sociológica, diz-nos o autor estarmos perante
um tipo particular de simbiose, i. e.,o parasitismo mútuo, caracterizado
sobretudo pelo facto de ambos os organismos em relação subsistirem através das
características do outro e da respetiva manutenção, que não da sua
transformação radical.
Daí que, fisicamente falando, as cabeças não fossem de facto para o império,
mas permanecessem entre timorenses, num sistema circulatório finalmente
distinto, ainda que parasitário e parasitado. Ora, sabemos pelo título da obra
que a mesma trata da circulação de crânios humanos no império português. Em
1882, a chegada à Universidade de Coimbra de 35 crânios timorenses foi na
realidade uma exceção, aliás em condições contingentes, transitórias e quase
acidentais. Ao encerrar a metade do livro, intitulada Encounters with
parasites, Ricardo Roque usa a palavra leak para exprimir a raridade daquela
ocorrência, o que desperta a ideia de uma fuga no sistema circulatório nativo.
O nosso imaginário é incendiado com as palavras de fecho da primeira parte, que
deixamos em inglês: Then, new circuits came to life. Qual a relação entre os
crânios doados à ciência e as decapitações em contexto colonial? Esta pergunta
é, a bem dizer, o leitmotiv da obra. Como no Golden Boughde James Frazer, o
leitor permanece suspenso desde as primeiras páginas num enigma antropológico,
em torno da disputada autenticidade da coleção coimbrã de crânios timorenses.
É que as caveiras não chegaram incólumes ao seu destino, mas antes
desconectadas de quaisquer palavras originais que lhes dessem contexto
histórico. Tomando de empréstimo o conceito de trajetória da doença, Ricardo
Roque aplica-o a estes objetos de museu, que logo em Macau terão perdido a
legenda. O seu indisfarçável gosto pela parafernália da antropologia física da
linhagem de Oitocentos, algures entre o macabro e o asséptico, habilita-o a
promover estudos coloniais da materialidade, da vida social dos objetos. Assim,
é o próprio arquivo colonial que ganha vida, como uma entidade também ela em
circulação, onde os crânios e as palavras se buscam, se interligam, se
transformam, numa tentativa prolongada e dramática ' a que somente Ricardo
Roque dará desfecho no fim do livro ' de restituição dos acontecimentos
históricos que tudo causaram no século XIX, em Timor.
Feito embora à imagem do Laboratoire d'anthropologiede Paul Broca, paradigma de
uma ciência que fazia luxo em ser craniológica acima de tudo, o Museu e
Laboratório de Antropologia de Coimbra não tinha, à época, pretensões a estudar
as diferentes raças, focalizando-se ao invés no caso português, em parte por
limitações de ordem prática. A Universidade não solicitou os crânios de Timor.
Mas dada a proveniência dos mesmos, única informação disponível nessa
trajetória, a investigação a que deram origem tirou inspiração de uma das mais
conceituadas teorias da época a respeito da linha divisória entre malaios e
papuas. Segundo Alfred Russell Wallace, que visitou as montanhas da ilha, os
timorenses pertenciam essencialmente à segunda categoria, associada a uma
imagem persistente de negritude recôndita e primitiva. Embora não houvesse em
toda a Europa uma coleção de crânios de Timor equiparável à de Coimbra, o seu
estudo antropológico, publicado em 1894 por João de Barros e Cunha, não teve
grande impacte no seu tempo. Até que um golpe de teatro, já no século XX,
despoletou uma acesa polémica em torno do mesmo.
Foi Mendes Correia, promotor duma nova antropologia física in vivo, e para mais
colonial, em detrimento da craniometria, quem primeiro pôs em dúvida as
conclusões de Barros e Cunha, chamando ao mesmo tempo a atenção para a
incerteza histórica da origem da coleção. Um militar com anos de serviço em
Timor, o major Leite de Magalhães, seguiu-lhe a peugada e procurou demolir
publicamente, nas páginas do Diário de Notícias, a tese coimbrã de que os
timorenses eram papuas. E, como arma de arremesso, afirmava que os 35 crânios
eram trágicos restos mortais da coluna do capitão Eduardo da Câmara, massacrada
em Cová no ano de 1895. Ora, dizia o major, essa tropa não era composta
exclusivamente de soldados timorenses, mas também de africanos e indianos, além
dos oficiais portugueses. Como entrassem outros participantes no debate, que se
prolongou aos anos 30 e 40, Barros e Cunha acabou por reagir não apenas no
Diário de Notícias, onde demonstrou a incoerência cronológica da teoria de
Cová, mas também numa monografia dedicada ao tema da autenticidade dos crânios,
independentemente da ausência de história dos mesmos. Outros desenvolvimentos
houve neste folhetim, mas o mais importante, na ótica de Ricardo Roque, é que
a trajetória dos crânios foi indissociável de uma disputa sobre os
acontecimentos coloniais na sua génese. Com grande arrojo teórico, o autor vai
ao ponto de pôr em causa a perspetiva foucaultiana sobre a ordem das coisas.
As coleções antropológicas, nomeadamente, não constituíam universos de pura
materialidade sobre os quais era imposta uma visão classificatória europeia,
mas, sim, objetos numa trajetória de conhecimento indissociável das suas
respetivas micro-histórias, umas vezes perdidas, outras vezes achadas, mas em
todos os casos debatidas e postas em movimento, por escrito ou na oralidade.
Essa historiografia em miniatura, como lhe chama o autor, é necessária à boa
compreensão do plano macroscópico de catalogação ocidental do mundo.
No último capítulo, Ricardo Roque desvenda o mistério das cabeças cortadas da
Universidade de Coimbra, em resultado de uma espetacular descoberta documental.
É evidente, porém, que não anunciaremos aqui o desfecho desse plotquase
policial. Limitar-nos-emos a dizer que relaciona de facto, embora numa direção
imprevista, a segunda parte do livro, Skulls and histories, e a primeira.
Pela originalidade das articulações temáticas e pela fecundidade teórica, quase
estonteante, Headhunting and Colonialismé uma obra profundamente inspiradora e
de que a comunidade científica portuguesa se deve orgulhar, pois demonstra à
saciedade, na arena global, as potencialidades da caixinha de surpresas que é o
arquivo colonial português, bem como o gabarito dos jovens investigadores
portugueses da atualidade.