Le patrimoine culturel immatériel: enjeux d'une nouvelle catégorie
Chiara Bortolotto (org.), Le patrimoine culturel immatériel: enjeux d'une
nouvelle catégorie, Paris, Maison des Sciences de l'Homme, 2011, 254 páginas,
ISBN: 978-2-7351-1417-7.
Cyril Isnart
CIDEHUS, Universidade de Évora, Portugal, isnartc@gmail.com
O volume coletivo publicado pela Maison des Sciences de l'Homme, numa série
apoiada pelo Ministério da Cultura em França, reúne algumas das contribuições
de um longo e inovador seminário de pesquisa antropológica (2006-2009) sobre a
nova categoria de património cultural imaterial (PCI), criada pela celebração
da convenção epónima em 2003 pela UNESCO. Essa publicação inscreve-se num
âmbito científico e social internacional rico e dinâmico em workshops, decisões
políticas, congressos, iniciativas culturais e académicas que tomam o dito PCI
(e, de maneira mais geral, as políticas da UNESCO) como objeto de pesquisa ou
como nova ferramenta de trabalho.
No entanto, o livro é também o resultado do cuidado particular que o Estado
francês vem tendo com as manifestações populares desde os anos oitenta do
século XX, através do património etnológico (patrimoine ethnologique, uma
categoria própria do sistema francês que viria a ser substituída pelo PCI
depois da assinatura da convenção pela França), como um contributo para as
curiosidades dos investigadores envolvidos nas atividades patrimoniais ou
interessados na utilização política da cultura.
Apesar dessa dupla paternidade institucional, os autores são, no entanto, todos
antropólogos universitários, de França e de outros países, que tentam desafiar
os conceitos, os usos e as potencialidades dessa nova categoria de património
no momento preciso da sua implementação a nível nacional e internacional.
Assim, não se trata dos objetos que são patrimonializados em nome da convenção,
mas antes dos valores veiculados pela convenção e das suas interpretações, que
permitem a emergência de uma forma particular de instituição da cultura (p.
25). Vista a proximidade bem conhecida entre o alvo da convenção (performance,
saber-fazer, saberes cosmológicos, oralidade, representações sociais do mundo)
e o objeto clássico dos antropólogos (i. e. a cultura como conjunto implícito
de saberes e de performances), o PCI chamou a atenção do mundo antropológico
desde as primeiras tentativas da UNESCO para criar um espaço de reconhecimento
para patrimónios que não sejam arquitetónicos ou paisagísticos. Desta forma, o
principal mérito do livro é o de pôr numa perspetiva crítica e histórica o
surgimento desta noção vinda de uma organização internacional e avaliar como
ela é recebida, adaptada, discutida e criticada pelos peritos, utentes e
antropólogos. O principal assunto que surge nos comentários e nos estudos de
caso reunidos no livro é a confusão ou a dinâmica que o PCI cria nos meios
culturais e académicos, ou seja, a sua eficácia social.
O livro divide-se em três partes, acrescidas de um prefácio de Christian Hottin
e Sylvie Grenet, do Ministério da Cultura. Este primeiro texto, escrito do
ponto de vista do Ministério, lembra de que forma a política atual do PCI em
França se inscreve na linha do património etnológicoe como o livro segue os
estudos antropológicos franceses sobre o património, sublinhando, no entanto,
que a convenção está a mudar os hábitos no tratamento administrativo da entrada
dos objetos imateriais na posse do Estado. A introdução geral de Chiara
Bortolotto (que conduz desde o início do processo uma etnografia da
implementação da convenção de 2003 vista a partir da própria UNESCO) fornece
uma contextualização e uma lista comentada das noções, palavras ou usos
encontrados em torno do PCI e que estão no centro dos debates teóricos e
práticos do livro (património imaterial, salvaguarda, comunidade, participação,
papel dos antropólogos).
A primeira parte centra-se nas análises críticas ou hermenêuticas do texto da
convenção. Frédéric Maguet retoma a definição filosófica de comunidade para
mostrar que a sua aplicação na política patrimonial da convenção de 2003
implica duas restrições: uma comunidade de PCI deve ser um grupo nacionalmente
adequado (a Turquia dificilmente poderia apresentar uma candidatura de um item
curdo para a UNESCO) e, paralelamente, ser respeitosa dos direitos fundamentais
do homem e dos animais, ficando assim inscrita no processo de civilização, no
sentido de Elias. Vladimar Hafstein lembra que, se os princípios da salvaguarda
do PCI colocam as comunidades culturais atuais no lugar dos primitivos dos
evolucionistas ou dos camponeses dos folcloristas dos séculos XVIII e XIX, a
convenção propõe, no entanto, uma ferramenta de diferenciação cultural e de
equiparação política que talvez seja eficaz. Comparando os campos sociais do
património cultural a um nível intergovernamental e, por outro lado, da herança
nas práticas costumeiras da passagem dos bens entre familiares, e seguindo
assim um texto de Nelson Graburn de 2001, Regina Bendix mostra que as dimensões
morais de responsabilidade e as dimensões económicas de propriedade são comuns
aos dois campos e conduzem às questões do poder individual e coletivo sobre o
PCI.
A segunda parte ' a mais rica e diversificada ' apresenta quatro casos europeus
de classificação analisados de maneira crítica e permite tocar os limites
pragmáticos do conceito de PCI. No primeiro estudo, Dorothy Noyes apresenta a
história complexa da festa catalã da Patum, da qual é especialista, mostrando
que se a festa foi durante anos um palco de expressão política, a naturalização
e a burocratização da Patum como património acaba por ser uma negação de
democracia a nível local. Laurent Fournier revisita uma festa clássica da
etnografia do Sul de França, a Tarasque, analisada por Louis Dumont em 1951 e
hoje classificada. A versão patrimonializada inscreve-se numa negociação
cultural entre a continuidade simbólica da comunidade e a edulcoração dos
aspetos rituais mais violentos. Na ilha da Sardenha, o canto a tenore,
apresentado pelo etnomusicólogo italiano Ignazio Macchiarella, constitui um
outro exemplo de transformação e de simplificação da prática pelo processo
patrimonial, uma vez que o conhecimento etnomusicológico faz aparecer várias
ruturas entre a forma patrimonializada e as performances e representações
locais deste tipo de música. Numa perspetiva totalmente virtual, Daniel
Bonvoisin e Gil Bartholeyns tentam identificar se os role playing-games ao vivo
podem cumprir os requerimentos da convenção de 2003. Embora essa prática lúdica
tivesse uma dimensão imaterial forte, o facto, entre outros, de a comunidade
ser criada por uma prática nova, impede a sua qualificação como PCI, cuja
fundamentação vem da antiguidade das ligações entre os saberes técnicos e
simbólicos e os seus detentores.
A última parte é dedicada ao papel dos antropólogos nas políticas do património
cultural imaterial. Aproveitando a sua experiência própria de socioantropólogo
e ex-conselheiro para a Etnologianuma administração regional da cultura em
França, Jean-Louis Tornatore compara a noção de património etnológicoe a de
PCI, argumentando que a democratização do primeiro património falhou e que o
PCI pode ser uma segunda oportunidade para a implementação de uma ação cultural
participativa. Carlos Sandroni, um dos atores do tombamento do samba de roda
brasileiro, encerra o livro com um testemunho sobre o Brasil. Assumindo as
dificuldades teóricas e as ambiguidades sociais da posição do etnomusicólogo
responsável por um dossiê de pedido de classificação, Sandroni dá um retrato da
progressiva consciencialização da própria agencialidade dos detentores do
património imaterial ao longo do processo e valida a tese da autocriação do PCI
defendida por alguns autores anglo-saxónicos especialistas das políticas
culturais, como Barbara Kirshenblatt-Gimblett.
Como se pode constatar, o livro não representa só um conjunto de casos
etnográficos específicos, nem se trata somente de uma série de pontos de vista
sobre a implementação do PCI. Várias ligações são estabelecidas entre os
textos, seja nas notas de rodapé ou no texto mesmo, muitas referências teóricas
são comuns e chegam de diferentes tradições nacionais daquilo a que chamamos
hoje estudos de património (heritage studies). Salvo o facto de não ter
exemplos africanos ou asiáticos, a dimensão comparativa parece ser um ponto
positivo do livro, pelo menos de uma perspetiva metodológica. Diante do sucesso
mundial do novo paradigma da UNESCO (cerca de 250 elementos nas listas e 143
países assinantes da convenção em menos de uma década de existência) e das
fortes críticas contra o imperialismo da UNESCO ou as apropriações identitárias
do PCI, julgadas por vezes perigosas, o livro dirigido por Chiara Bortolotto
apresenta várias descrições interessantes e algumas sínteses dos usos do PCI.
Sem deixar de lado as dúvidas, contradições e novas propostas, estes ensaios,
olhando para o campo social dos metadiscursos sobre a cultura que constitui o
património cultural imaterial, demonstram, mais uma vez, o poder heurístico da
postura crítica da antropologia.