A elaboração narrativa no abuso sexual: o papel das vítimas enquanto
protagonistas no processo de mudança
Introdução
O abuso sexual foi reconhecido como um problema social no início dos anos
oitenta, na sequência de um conjunto de estudos epidemiológicos que revelaram
indicadores de prevalência verdadeiramente assustadores (Haugaard, 2000;
Machado 2002). Em Portugal, o interesse por este objeto de estudo é ainda mais
recente e o investimento na sua abordagem científica é ainda bastante
circunscrito, ainda que os dados disponíveis de fontes oficiais e de estudos
científicos realizados demonstrem que o abuso sexual é, também no nosso País,
uma realidade não negligenciável.
A par do crescente reconhecimento do impacto do abuso no desenvolvimento da
criança e/ou jovem vítima, a investigação tem largamente negligenciado o estudo
dos fatores que caracterizam as trajetórias desenvolvimentais resilientes
identificadas em muitas crianças abusadas (Kendall‑Tackett, Williams, &
Finkelhor, 1993; Saywitz, Mannarino, Berliner, & Cohen, 2000).
Efetivamente, esta é ainda uma área pouco explorada e cuja compreensão é também
dificultada pelos próprios problemas de conceptualização da resiliência
(Heller, Larrieu, D'Imperio & Boris, 1999). Na verdade, existem vários
modelos teóricos explicativos da resiliência (e.g., modelo da psicopatologia do
desenvolvimento; Cicchetti & Lynch, 1995, Joyce‑Moniz, 1993; Soares, 2000;
modelo bioecológico do desenvolvimento, Bronfenbrenner, 1994), mas poucos têm
sido explicitamente aplicados ao abuso sexual, sendo ainda menos os que foram
especificamente concebidos para compreender, quer o impacto, quer os processos
de mudança após a experiência de abuso (e.g., modelo das dinâmicas traumáticas;
Finkelhor, 1990). Também nesta dimensão, a atenção aos processos de
significação das vítimas e à forma como estes promovem ou restringem os
percursos das crianças/jovens em direção à mudança tem sido relativamente
esquecida.
Modelo Narrativo de reautoria: relevância dos Momentos de Inovação
O modelo narrativo de reautoria, de White e Epston (1990) inscreve‑se num
conjunto de abordagens teóricas que advogam que as experiências só adquirem
significado e coerência a partir do seu enquadramento em narrativas, sendo que
a forma como damos sentido ao mundo e a nós próprios se faz a partir da
construção e desconstrução de histórias (Freedman, & Combs, 1996;
Gonçalves, & Henriques, 2000; Gonçalves 2008; White, & Epston, 1990).
Neste sentido, mais do que meros protagonistas nestes argumentos, somos
coautores das identidades que construímos narrativamente, sendo estas
reescritas constantemente. De acordo com esta perspetiva, o desenvolvimento de
uma narrativa problemática deriva de uma centração repetitiva do indivíduo em
narrativas que mantêm o problema dominante e reforçam as significações de
desvalorização construídas em torno dele. Neste quadro, há uma clara
dificuldade do indivíduo em aceder a narrativas alternativas disponíveis e em
desenvolver formas de vida preferenciais e mais satisfatórias. Esta dificuldade
poderá decorrer, por um lado, do facto de estas narrativas alternativas se
revelarem ténues no seu enquadramento social e cultural, e pela ausência de
validação social destas alternativas, por outro lado, é também possível que a
sua narrativa dominante obstrua o acesso do individuo à narrativa alternativa
(White & Epston, 1990; Gonçalves, 2008).
Partindo desta premissa, esta abordagem assume que os problemas não existem
dentro das pessoas mas num espaço discursivo que os legitima e os sustenta
(Freedman, & Combs, 1996; Gonçalves, & Henriques, 2000; Gonçalves,
2008, White, & Epston, 1990). Deste modo, esta perspetiva contraria a
internalização do problema como um defeito e a subsequente patologização do
indivíduo. Esta leitura narrativa abre, assim, a possibilidade de situar os
problemas nos contextos de vida dos sujeitos, sendo, portanto, passíveis de
serem desafiados, contra‑argumentados e re‑significados.
Este processo de externalização do problema (White, & Epston, 1990),
ingrediente essencial na ótica narrativa, é facilitado por uma atitude
discursiva interpessoal (nomeadamente terapêutica) que sistematicamente
diferencie o indivíduo da sua história problemática (Freedman, & Combs,
1996; White, 1994, cit. Gonçalves, 2008). Neste contexto de curiosidade, e
precisamente para abrir "a porta" a significações e comportamentos
que se situem fora da lógica do problema, incentiva‑se o sujeito a refletir
acerca das suas interpretações, competências e soluções, sendo estes elementos
comummente silenciados pela versão problemática dominante (Freedman, &
Combs, 1996; Gonçalves, 2008; Machado, & Gonçalves, 1999; White &
Epston, 1990).
Estes momentos que resistem e/ou escapam à influência do problema e que
contradizem as prescrições problemáticas são designados por White e Epston
(1990) de resultados únicos. Também de acordo com os pressupostos conceptuais
deste modelo, os seres humanos são multipotenciais e, como tal, estes momentos
de resistência estão presentes em todas as histórias, mesmo nas mais
problemáticas. Estes "resultados únicos" foram posteriormente
designados por Gonçalves, Matos, e Santos (2009) por "momentos de
inovação"1 e podem assumir‑se como ações, cognições, desejos e/ou
expectativas, percecionadas pelo próprio ou pelos seus outros significativos.
De igual modo, podem ocorrer no plano da concretização ou da imaginação e em
diferentes dimensões temporais (passado, presente ou futuro) (Freedman, &
Combs, 1996; Gonçalves, & Henriques, 1999; Gonçalves, 2008). A exploração
dos momentos de inovação constitui‑se como uma oportunidade de antecipar
cenários libertos da influência da auto‑narrativa problemática e de ensaiar
novas formas de sentir/pensar/agir, impulsionando a perceção de poder e de
autoria do sujeito, bem como um maior sentido de proactividade perante a sua
própria vida (Freedman, & Combs, 1996; Gonçalves, & Henriques, 2000;
Gonçalves, 2008; White, 2004). Deste processo resultará, segundo este modelo,
um momento em que o indivíduo começa a ensaiar novas formas de se relacionar
com o problema (Gonçalves, 2008, p. 58), dando origem à emergência e
progressiva consolidação de uma nova versão da sua identidade (Gonçalves, &
Henriques, 2001; Gonçalves, 2008).
No modelo narrativo da reautoria, este processo de mudança, assim como as
formas de o promover, têm sido sobretudo descritas no contexto terapêutico. Há,
contudo, algumas propostas que tentam aplicar este modelo explicativo aos
processos de mudança espontânea que ocorrem na vida das pessoas (e.g., Cruz,
2008; Meira, 2010), tendo a investigação empírica neste domínio verificado que
tais processos são largamente semelhantes aos ocorridos no âmbito da mudança
terapêutica.
Em suma, numa leitura narrativa dos processos de resiliência, nem todas as
vítimas desenvolvem narrativas colonizadas pelo abuso e a história problemática
é apenas uma das múltiplas versões possíveis para dar sentido às suas vidas e
experiências (Harker, 1997). Estas crianças possuem competências e recursos
para desafiar os significados e prescrições comportamentais ditados pela
narrativa problemática e para construir narrativas alternativas, mais
libertadoras e preferenciais (Adams‑Westcott, & Dobbins, 1997). Com base
nestes pressupostos narrativos, no presente estudo, pretendemos explorar,
através de uma grelha conceptual narrativa, os recursos narrativos das crianças
e/ou jovens vítimas de abuso sexual para resistirem ao impacto adverso da
experiência abusiva e construírem ações e significações preferenciais.
Método
Participantes
A amostra é constituída por dezasseis vítimas de abuso sexual (dez do sexo
feminino e seis do sexo masculino), com idades compreendidas entre os doze e os
dezasseis anos de idade (M=13.75; S.D.=1.19). Relativamente às características
do abuso, dez são casos de abuso extrafamiliar e seis casos de abuso
intrafamiliar. A diferença de idades entre ofensor e vítima variou entre 15 e
44 anos (M= 28,1; S.D.=9.78). Dos dezasseis casos, três envolveram o uso da
força e ameaças e duas das vítimas masculinas relataram o recurso a armas. No
que se refere às características dos cuidadores, as idades dos pais e/ou
substitutos variam entre trinta e sete e sessenta e oito anos de idade (M=45;
S.D.=7.65) e as das mães e/ou substitutas entre trinta e um e cinquenta e dois
anos (M=40; S.D.=5.57), sendo, na sua maioria, casados. Os participantes
fizeram ainda referência a outras problemáticas familiares, destacando‑se a
presença de problemas de saúde mental (44%) dos progenitores e/ou seus
substitutos (e.g., alcoolismo e/ou consumo de drogas; depressão) e a
experienciação de outras formas de vitimação concomitantes (44%) (e.g.,
exposição a violência interparental, maus tratos físicos e/ou psicológicos).
Instrumentos
Entrevista qualitativa em profundidade:esta entrevista foi elaborada
intencionalmente para este estudo, com base no modelo narrativo de reautoria de
White e Epston (1990), sendo constituída por questões em torno de três áreas
fundamentais: (a) questões em torno da desconstrução do problema, identificando
a sua área de influência, as suas estratégias, prescrições e figuras que o
alimentam (e.g.,O problema ainda te aborrece? O que é que o medo te leva a
fazer? O que é que a culpa diz sobre ti? Há alguma coisa na maneira de ser das
pessoas à tua volta que ajuda o problema?); (b) o questionamento minucioso
sobre eventuais momentos e/ou áreas que escapam à influência do problema (e.g.,
Há alturas em que consigas desobedecer ao problema? Como é que conseguiste
fazer isso? Que pensamentos é que te ajudaram?); e (c) questões dirigidas ao
significado pessoal dos momentos de inovação (e.g., O que é que o facto de
teres sido capaz de contar diz sobre ti? O que é que há em ti que te levou a
seres capaz de fazer isto? O que é que isto diz sobre o teu futuro?).
Processos de avaliação forense: foram analisados os processos que decorriam na
Unidade de Consulta de Psicologia da Justiça na Universidade do Minho e na
Associação Chão dos Meninos, no sentido de aferir se os avaliados
correspondiam aos critérios de amostragem explicitados de seguida. Neste
sentido, as perícias realizadas foram alvo de análise, de forma obter
informação acerca das experiências de abuso sexual, designadamente, o seu
contexto de ocorrência e o parecer formulado pelo perito relativamente à
credibilidade dos relatos produzidos pelas vítimas.
Procedimentos
Critérios de amostragem
O processo de constituição da amostra no presente estudo pautou‑se pelas
orientações da amostragem teórica intencional (Flick, 2002), visando,
essencialmente, atingir a representatividade do fenómeno do abuso sexual,
ampliando o conhecimento sobre o mesmo através da exploração da experiência
idiossincrática de cada um dos participantes, considerados por nós como peritos
experienciais (Morse, 1994).
De forma a garantir o rigor e a objetividade metodológica na prossecução deste
estudo, foi definido um conjunto de critérios para a seleção da amostra: a) a
criança/jovem ter sido sinalizada pelo Tribunal após uma denúncia de abuso
sexual; b) existir um parecer positivo da avaliação forense quanto à
credibilidade das alegações de abuso realizadas (uma vez que em parte dos casos
de abuso acessíveis não havia ainda decisão judicial final, embora em todos
houvesse acusação, assim garantindo, também no plano legal, a elevada
probabilidade de ocorrência dos factos); c) a criança/jovem ter capacidades
comunicativas e intelectuais suficientes para a produção de um relato adequado
dos factos abusivos e para ser capaz de responder às questões integrantes do
guião de entrevista (estas capacidades intelectuais e narrativas são alvo de
avaliação desenvolvimental no âmbito do protocolo de avaliação do abuso usado
na Unidade de Psicologia da Justiça na Universidade do Minho); e d) a criança/
jovem não ter sido alvo de intervenção psicoterapêutica.
Assim, entre 2005 e 2008 as autoridades judiciais encaminharam diversas
crianças e jovens, alegadamente vítimas de abuso sexual, para a Unidade de
Psicologia da Justiça do Serviço de Psicologia da Universidade do Minho, com o
pedido de se proceder à sua avaliação forense. No final deste processo de
avaliação e emissão do parecer solicitado, e caso os menores preenchessem os
critérios de amostragem previamente definidos, os psicólogos responsáveis pelos
processos explicitavam aos representantes legais dos menores e aos próprios os
objetivos e procedimentos do presente estudo, bem como a salvaguarda da
confidencialidade e do anonimato na apresentação pública dos resultados,
questionando‑os sobre a sua disponibilidade para participar no estudo.
Análise dos dados
Após a recolha e posterior transcrição das entrevistas, foi iniciado o processo
de codificação e análise dos dados obtidos, utilizando para tal o programa
Non‑numerical Unstructured Data ' Indexing, Searching and Theorizing ' NUD*IST
(Qualitative Solutions and Research, 1997). Através do recurso a este suporte
informático, desenvolvemos uma categorização indutiva e exaustiva de todo o
texto, tomando a frase como unidade de análise.
Este processo iniciou‑se com uma primeira análise preliminar de quatro casos,
que permitiu identificar os principais temas gerais presentes nas narrativas
dos participantes. De acordo com o modelo narrativo de reautoria proposto por
White e Epston (1990) estes conteúdos organizavam‑se em torno de duas áreas
fundamentais: a) influência do problema (evolução, efeitos, prescrições,
normativas sociais e/ou culturais); e b) momentos de inovação (Gonçalves, Matos
& Santos, 2009), que traduziam momentos de exceção à narrativa
problemática. Deste modo, numa etapa posterior, a codificação dos dados
empíricos foi orientada segundo procedimentos distintos no que se refere ao
impacto do abuso e aos momentos de inovação. No presente artigo, por uma
questão de limitação de espaço, são analisados apenas os dados relativos aos
momentos de inovação.
Codificação dos Dados
Utilizámos um sistema de codificação desenvolvido pelo grupo de investigação
que, na Universidade do Minho, se tem dedicado ao estudo do papel dos momentos
de inovação nos processos de mudança, terapêutica e espontânea ' Sistema de
Codificação dos Momentos de Inovação (SCMI; Gonçalves, Ribeiro, Mendes, Matos,
& Santos, 2011). Dos estudos subjacentes à construção do sistema de
codificação (Matos, Santos, Gonçalves, & Martins, 2009; Gonçalves, Cunha,
Ribeiro, Mendes, Santos, Matos, & Salgado, 2010), emergiram cinco
categorias de momentos de inovação, conforme se encontra sistematizado no
Quadro_1: (1) Ação, (2) Reflexão, (3) Protesto, (4) Reconceptualização e (5)
Desempenho da mudança.
De acordo com o protocolo estabelecido no âmbito do Sistema de Codificação dos
Momentos de Inovação (SCMI 7.2, Gonçalves, Matos, & Santos, 2008, 2010), os
investigadores que pretendam recorrer a este instrumento devem realizar um
processo de treino prévio, constituído por diferentes etapas, desde um
conhecimento teórico rigoroso do sistema até à sua aplicação. A primeira autora
deste trabalho submeteu‑se, assim, ao processo de treino de codificação
definido pelos autores do sistema (SCMI 7.2, Gonçalves, Matos, & Santos,
2008, 2010). Tal como recomendado pelos autores, a codificação dos dados foi
efetuada com recurso a dois codificadores. O juiz principal (primeira autora
deste trabalho) codificou 100% das entrevistas e juiz co‑codificador codificou
50%, tomando em consideração a análise de dois parâmetros: a) o tipo de momento
de inovação (e.g., ação, reflexão, protesto, reconceptualização, desempenho da
mudança), e b) a saliência temporal de cada momento de inovação ao longo da
entrevista (i.e., tempo ocupado por cada MI), sendo posteriormente também
ponderado o índice de saliência temporal de cada tipo de MI (i.e., através do
somatório do tempo ocupado por cada um dos tipos de MIs é calculada a sua
proporção em função do tempo total da entrevista). Após a conclusão do
procedimento de codificação foi calculada a percentagem de acordo interjuízes
no que se refere à saliência dos MIs identificados (96%) e o Kappa de Cohen
relativamente aos diferentes tipos de MIs (0.92). Atendendo ao nível elevado de
fidelidade, os resultados que apresentaremos neste estudo resultam da
codificação realizada pela juíza principal.
Resultados
Momentos de inovação
Apesar da presença de diversos sintomas e do manifesto impacto do problema na
vida destas crianças e jovens, todos eles foram capazes de evidenciar momentos
de resistência (i.e., MIs) ao problema, em que pensam, agem ou sentem fora do
repertório prescrito pelo problema e de forma a contrariar os efeitos do abuso.
Numa análise global, constatou‑se que o tipo de MI mais expressivo nas
narrativas dos participantes foi a reflexão, surgindo em todas as entrevistas e
destacando‑se pela sua duração (duração média de 9.1%). Os MIs de ação emergem
dos discursos de todos os participantes mas observa‑se uma duração mais
reduzida relativamente aos restantes (duração média de 1%). Os MIs de protesto
emergem em catorze entrevistas (duração média de 1.3%), seguidos dos MIs de
desempenho da mudança (12 entrevistas) (duração média de 1.3%). Os MIs de
reconceptualização tiveram uma representação bastante reduzida, surgindo apenas
nos discursos de cinco dos participantes (duração média de 2.8%).
Momento de Inovação de Ação
Este tipo de MI, ainda que de forma pouco saliente (varia entre 0.2% e 2.6%;
duração média: 1%), emerge dos discursos dos dezasseis participantes. O
conteúdo dos MIs de ação surge relacionado com a implementação de estratégias
de combate ao problema e seus efeitos, nomeadamente, estratégias de distração,
relatadas por catorze (87,5%) dos participantes [Tento ir brincar, andar de
bicicleta, jogar à bola, jogar computador para me esquecer; Tento coisas que
tenham movimento e que tenho muito interesse em fazê‑las].
A revelação do abuso a outros significativos ou às instâncias formais é
igualmente referida como ação de desafio ao problema por nove (56%) dos
participantes [Eu comecei a falar, a falar, a falar, e quando dei por ela, já
tinha contado tudo; Eu cheguei a um certo ponto que tive mesmo de contar].
Entre os MI de ação, surge ainda referência a procura de suporte (6; 37.5%)
[Às vezes, desabafava com algumas pessoas e tipo contava o que aconteceu.
Então, eu vou falar com os meus amigos], a falar/escrever sobre o problema
(5; 31%) [Foi falar sobre ele ( ) isso foi o mais importante. Falar sobre ele
para me sentir mais aliviada; Foi então que decidi pegar num caderno e
comecei a escrever], e a comportamentos de coping (e.g., assertividade face ao
grupo de pares, ignorar ativo) perante algumas dificuldades, designadamente
medos e/ou reações dos outros (3; 18.7%) [É assim: eu arrumei a agenda. Há um
ano que não toco nela. Só que hoje fui buscar um livro que queria ver e
encontrei‑a porque estava lá à beira desse livro. Então, lembrei‑me de a
trazer].
Momento de Inovação de Reflexão
Os MIs de Reflexão surgem nas narrativas de todos os participantes com uma
duração que varia entre 1.5% a 16% (M=9.1%). A elevada duração dos momentos de
reflexão suscitou a necessidade de uma análise mais circunstanciada ao nível
dos conteúdos dos MIs desta tipologia, o que permitiu agrupar as reflexões em
dois subtipos, de acordo com o manual de codificação adotado (Gonçalves,
Ribeiro, Matos, Santos & Mendes, 2010): 1) reflexões centradas no problema
(subtipo I); e 2) reflexões centradas no processo de mudança/recuperação
experienciado pelas vítimas de forma espontânea, desde a ocorrência do abuso
até ao momento atual (subtipo II).
Os primeiros favorecem a distância da narrativa problemática e incluem
essencialmente pensamentos adaptativos e autoinstruções de resistência e
perseverança, sendo elementos discursivos frequentes nas narrativas proferidas
(12.8% da duração dos MI de reflexão) [Às vezes sinto‑me melhor, tomo
decisões e faz‑me sentir uma espécie de força porque eu consegui enfrentar e
dá‑me forças para enfrentar outra vez ( ) eu tenho de tentar seguir em frente
e ir com isto até ao fim a ver se consigo terminar isto]. Incluem, também,
referência a novas compreensões e/ou formulações do problema e tomada de
consciência acerca das suas causas, dinâmicas e consequências (10.6%) [Mas
agora, como já sou maior e já sei o que aconteceu e já sei definir e
caracterizar aquilo que aconteceu, claro que sinto nojo, sinto Não sei
explicar. Sinto uma coisa má em relação a ele, sinto uma coisa que não tem
explicação] e intenções e/ou desejos de combater e/ou superar o problema
(2.2%) [Eu, é sempre a lutar; Vou andar mais contra o problema a ver se ele
não toma conta de mim].
As reflexões centradas no processo de mudança espontânea/recuperação (subtipo
II), destacam‑se (57.4% da duração dos MI de reflexão) nos discursos dos
participantes, sendo, essencialmente, reflexões que descrevem o processo e
estratégias implementadas pelos participantes para ultrapassar a história
problemática (42.6% das reflexões tipo II). Na análise deste tipo de reflexões,
salienta‑se a identificação de aspetos positivos decorrentes da experiência
abusiva, designadamente, maior união entre os elementos da família, cessação da
violência familiar, novas aprendizagens, melhoria das condições de vida e novas
oportunidades [É assim, ele teve coisas negativas e coisas positivas porque,
apesar disto que aconteceu, tivemos mais tempo para estudar, tivemos mais
silêncio. Andávamos sempre sobressaltados com medo que ele chegasse e do que ia
fazer. É assim, eu acho que é melhor].
Os participantes refletem, ainda, sobre a presença de aliados na resistência ao
problema que parecem ter funcionado como facilitadores no processo de
recuperação. Entre os aliados interpessoais, o suporte do grupo de pares e a
não‑estigmatização por parte destes assumem particular relevância; igualmente
fundamental é o suporte parental e familiar, no sentido de ser acreditada e
protegida por estes [A minha família apoiava‑me sempre, diziam sempre que ele
fez e também tem que pagar por isso, que se eu ficasse calado era pior para
mim, aquilo ia ficar comigo toda a vida]. É também de realçar o apoio de
professores (e.g., validação da experiência, promoção da socialização,
disponibilidade para falar sobre o problema, não estigmatização) e o apoio de
outros profissionais através da validação de competências e da desmistificação
de algumas crenças [Talvez a psicóloga, que me dizia que a culpa não era
minha, que eu não tinha culpa de ter o pai que tive ( ) ter dito que não era a
única a quem isso tinha acontecido; Os professores. Ajudaram‑me a conviver
com os amigos. Para estar com eles, para fazer as coisas normais)].
Em termos de recursos pessoais relevantes para a mudança, distinguem‑se a
revelação e o seu significado libertador, a expectativa de justiça, as crenças
religiosas e a construção de novas significações para o self (e.g., corajoso,
forte, capaz), que reforçam a perceção de competência pessoal e sentido de
controlo dos participantes [Sim, acreditar em Deus foi importante ( ) pensava
que ele me ia ajudar ( ) e pedia muitas vezes para ele me ajudar ( ) sim
deu‑me força para enfrentar o problema; Sei que consegui passar isso ( )
tive capacidade para passar por isso, fui corajoso em passar por isso].
Concomitantemente, envolvem sentimentos de autovalorização e validação pessoal
mediante o reconhecimento das qualidades pessoais (8%) [Sinto‑me bem e
sinto‑me feliz por eu conseguir tirá‑lo da cabeça. Porque eu podia ficar em
casa, a olhar para o balão e ele tar‑me ali a massacrar, a massacrar, mas
não], dimensões da vida não dominadas pelo problema (4.4%) [A minha namorada
estar perto. Parece que me tira o problema do pensamento ( ) ela estar perto de
mim, eu estar perto dela. Assim, já não me faz pensar. Só me faz pensar em
alegria por ela estar comigo], e menção a desafios ao problema (2.4%) [Há
alturas em que consigo. Há sempre aquelas alturas em que penso: Não vou pensar
nisso, já acabou, esquece. Meto isso para trás das costas e vou passear lá para
fora, vou jogar à bola, vou‑me distrair e depois esqueço. Tento ao máximo
esquecer aquilo que eu não quero que esteja na minha cabeça].
Momento de Inovação de Protesto
Os momentos de inovação de protesto evidenciam‑se em catorze entrevistas
(87.5%), variando em termos de duração entre 0.1% e 5.8% (M= 1.3%). Também aqui
foi utilizada a diferenciação entre Protesto de tipo I e de tipo II, sugerida
pelos autores (SCMI; Gonçalves, Ribeiro, Mendes, Matos, & Santos, 2011).
Foi possível identificar MIs de protesto associados a uma posição orientada
para o problema (subtipo I), em que a criança e/ou jovem assume uma postura
crítica relativamente ao abusador e a outros que alimentam o problema [Como é
de maior idade devia ter pensado mais antes de me ter feito isso, devia ter
pensado que eu era um menor]. Concomitantemente, surgem ainda protestos que
refletem a emergência de novas posições (subtipo II), designadamente,
manifestações de assertividade face ao abusador e aos outros [Eu quero lá
saber das pessoas, o que elas vão pensar. A vida é minha e não posso estar
sempre a pensar nisso e não é por causa disso que eu não arranjo namorado],
bem como reposicionamento face às expectativas sociais/culturais associadas à
experiência de abuso [E eu não sou nenhuma coitadinha. Não gosto que as
pessoas digam isso. Aconteceu, como acontece às outras pessoas, também].
Momento de Inovação de Reconceptualização
A referência a momentos de inovação de reconceptualização é escassa, surgindo
apenas em seis das entrevistas (37.5%), variando entre uma duração de 0.8% e
5.9% (M= 2.8%). Nos MIs de Reconceptualização, os participantes assumem uma
posição de contraste entre a sua vivência anterior e atual do problema,
refletindo acerca do processo de mudança e/ou recuperação. O seu conteúdo
relaciona‑se com a redefinição das versões de si, designadamente, com uma
desvinculação da posição de vítima, identificação de novas capacidades,
valorização pessoal e sentimentos de bem‑estar [Antes, eu não tinha noção do
mundo ou das coisas más do mundo. Agora tenho. Estes últimos dois anos mudaram
completamente a minha cabeça. E, ainda por cima, estou numa idade de
adolescência em que se muda muita coisa. Mas eu sinto que mudei mais do que os
outros, porque os outros mudaram só a maneira de pensar e eu mudei a maneira de
pensar e de ver as coisas ( ) consigo encontrar diferenças na nova A. ( ) a de
conseguir gerir os sentimentos].
A reconceptualização evidencia‑se, ainda, na capacidade que alguns
participantes têm de reenquadrar o problema e os seus efeitos, através de uma
reflexão sobre a etiologia, dinâmicas e consequências associadas ao abuso e
reposicionamento face às suas prescrições [Aconteceu porque tinha medo de
namorar com alguém, que soubessem o que se tinha passado e já não quisessem
namorar comigo por causa disso. Foi mais o que eu pensei no princípio. Mas
depois comecei a pensar de maneira diferente: que isso pode acontecer a
qualquer pessoa e que não tem nada que interferir no namoro]. Além disso,
revelam também a capacidade de atribuir de novos significados à experiência de
abuso e de ser capaz de perceber diferentemente os outros, identificando‑os
como aliados da mudança ou do problema [Eu acho que não é uma coisa que marque
para toda a vida mas ao princípio é sempre muito marcante. Mas depois, se
soubermos lidar com o problema, acho que as coisas são muito mais fáceis de
resolver. Ao princípio, pensei que isso me ia marcar para sempre e que nunca ia
esquecer. Realmente, a gente nunca esquece mas não é uma coisa que fique
sempre, para a gente estar sempre triste. Marca‑me naqueles momentos em que
estou mais triste, quando estamos mais sozinhos ou não temos ninguém para
falar. É quando marca mais. Mas, se soubermos pensar em coisas boas e soubermos
passar o tempo de forma que a gente se sinta bem, acho que não marca assim
tanto].
Momento de Inovação de Desempenho da mudança
Os MIs de desempenho da mudança estão presentes em treze das narrativas
analisadas (81%), com uma duração que varia entre 0.3% e 6% (M= 1.3%). Estes
momentos contemplam essencialmente a reutilização da experiência problemática
para outras situações antecipadas de vitimação sexual e para novas situações
[Eu acho que o mais importante é as pessoas que passaram por isso terem ajuda
e terem apoio. Isso é muito importante. Essas pessoas que passaram por isso
terem ajuda e terem apoio é muito importante porque se elas notarem que alguém
as vai ajudar é o essencial. Essas pessoas vão ultrapassar a fase do medo, a
fase da vergonha, vão ultrapassar tudo. Para mim foi assim], bem como o
reconhecimento de ganhos (novas capacidades, qualidades, competências) e
generalização destes no futuro para outras dimensões da vida, e a definição de
objetivos e projeção de um futuro liberto da influência do problema [Eu sei
que vou ter de continuar a não ter medo de descobrir coisas novas, apesar de
elas me meterem medo. Por exemplo, se um dia tiver um problema que me leve Por
exemplo, um problema que me leva ao Tribunal ou assim Já sei como é que hei de
reagir: tenho de levar as coisas pela verdade e Como é que eu hei de dizer? Eu
acho que isto valeu a pena e que vai ser bom no futuro ( ) Esta experiência
pôs‑me a pensar muito, como eu digo. Um dia que eu tenha filhos ou que uma
amiga venha dizer: Será que eu faço isto, eu não digo Não faças. Digo:
Vai, mas tem cuidado com isto e com isto].
Discussão
O presente estudo tinha como objetivo explorar os recursos narrativos das
crianças e/ou jovens vítimas de abuso sexual no sentido de construírem ações e
significações preferenciais face à versão problemática do abuso. Globalmente,
os resultados refletem uma considerável diversidade de momentos de inovação
reportados pelas vítimas. Os dados obtidos corroboram a premissa de White e
Epston (1990) de que em todas as narrativas problemáticas é possível
identificar competências e dimensões da experiência que escaparam à influência
do problema e que desafiam a narrativa dominante.
O momento de inovação mais saliente e expressivo nas narrativas dos
participantes é a Reflexão, dado congruente com os resultados que têm vindo a
ser encontrados nos estudos com os MI na mudança terapêutica (e.g. Matos, 2006;
Santos, 2008) e na mudança espontânea (Cruz, 2008; Meira, 2010). Este tipo de
MI inclui dois níveis distintos: reflexões centradas no problema (Subtipo I) e
reflexões centradas no processo de mudança/recuperação (Subtipo II), sendo de
referir que no presente trabalho o subtipo II é mais saliente. Ao nível do
primeiro tipo de reflexões, os pensamentos adaptativos e autoinstruções de
resistência e perseverança são os elementos discursivos mais frequentes nas
narrativas produzidas. Estes elementos discursivos parecem refletir a
capacidade adaptativa dos menores relativamente às consequências da revelação
da experiência abusiva, em particular, no que diz respeito ao processo judicial
(e.g., morosidade dos procedimentos judiciais e dificuldades inerentes). Além
disso, a referência a novas compreensões e/ou formulações do problema e a
tomada de consciência por parte dos participantes acerca das suas causas,
dinâmicas e consequências é também muito importante na medida em que poderá
funcionar como alternativa aos discursos de autoculpabilização.
Relativamente às Reflexões centradas no processo de mudança/recuperação, estas
envolvem sentimentos de autovalorização e validação pessoal mediante a
identificação das qualidades pessoais, de dimensões da vida não dominadas pelo
problema e da menção de desafio ao problema. Assim, o reconhecimento por parte
dos participantes da existência de recursos pessoais capazes de confrontar o
problema reflete a identificação do seu papel fundamental de ator da
experiência e não de mera vítima passiva da mesma. De facto, as reflexões que
descrevem o processo e as estratégias implementadas pelos participantes para
ultrapassar a história problemática são as que maioritariamente caracterizam os
seus discursos. Mais especificamente, a identificação de aspetos positivos
decorrentes da experiência abusiva (e.g., maior união entre os elementos da
família, cessação da violência familiar, novas aprendizagens, melhoria das
condições de vida e novas oportunidades) e de aliados na resistência ao
problema parecem ser as reflexões mais relevantes na reelaboração do
significado do abuso. Estes resultados são teoricamente plausíveis, na medida
em que alguns estudos demonstraram que as inovações cognitivas que salientam
elementos positivos decorrentes da experiência abusiva se associam a maiores
níveis de ajustamento (Himelein, & McElrath, 1996; Plasha, 2009).
Por sua vez, os aliados não só funcionam como facilitadores no processo de
recuperação como também permitem a validação de competências e desmistificação
de algumas crenças das crianças e/ou jovens. De salientar o suporte do grupo de
pares e a não‑estigmatização por parte destes como o aliado mais
significativo, resultado também referenciado em vários estudos que envolveram
crianças e jovens vítimas de abuso (Collishaw, Pickles, Messer, Shearer, &
Maugham, 2007; Dufour, Nadeau, & Bertrand, 2000; Dumont, Widom, &
Czaja, 2007). Com efeito, alguns estudos confirmam que as crianças e/ou jovens
vítimas que dispõem de suporte e não são alvo de estigmatização por parte dos
seus pares, evidenciam maior adaptação psicológica (Dufour, Nadeau, &
Bertrand, 2000). De igual modo, a proeminência do grupo de pares relativamente
a outros aliados é facilmente compreendida se atendermos ao facto de este se
assumir como uma audiência privilegiada na etapa desenvolvimental em que os
participantes se encontram. Neste sentido, dados empíricos corroboram este
resultado, demonstrando que o suporte dos pares assume uma poderosa influência
no desenvolvimento da resiliência nas vítimas, particularmente nesta fase de
desenvolvimento (Collishaw, Pickles, Messer, Shearer, & Maugham, 2007;
Rosenthal, Feiring, & Taska, 2003). Concomitantemente, segue‑se o suporte
parental e familiar, considerado por vários autores como o principal preditor
do reajustamento após o trauma (Deblinger & Heflin, 1996; Fergusson &
Mullen, 1999; Saywitz et al., 2000; Tremblay, Hébert and Piché, 1999; Wolfe,
1999) e o apoio de professores (e.g., validação da experiência, promoção da
socialização, disponibilidade para falar sobre o problema, não estigmatização),
elementos também considerados relevantes no processo de restabelecimento das
vítimas (Leathy, Pretty, & Tenenbaum, 2003; Plasha, 2009; Runtz &
Schallow, 1997).
Em termos de recursos/aliados pessoais para a mudança, distinguem‑se a
revelação e o seu significado libertador, a expectativa de justiça, as crenças
religiosas e a construção de novas significações para o self (e.g., corajoso,
forte, capaz), que reforçam a perceção de competência pessoal e sentido de
controlo dos participantes. Este sentido de controlo torna‑se particularmente
relevante na forma como a criança lida com a experiência abusiva, na medida em
que lhe permitirá a adoção de comportamentos adaptativos face ao problema.
Efetivamente, a literatura sugere que um locus de controlo interno tende a
estar associado a uma atitude proativa por parte dos indivíduos (Demellow &
Imms, 1999), bem como ao seu restabelecimento adaptativo (e.g., Barros, &
Sani, 2010; Himelein & McElrath, 1996; Valentine & Feinauer, 1993;
Dufour, Nadeau, & Bertrand, 2000; Heller, Larrieu, D'Imperio, & Boris,
1999). Além disso, a construção de novas significações para o self traduz a
capacidade da criança elaborar uma narrativa alternativa àquela que
caracterizava o episódio abusivo (e.g., a culpa e a vergonha são reconstruídas,
passando a um discurso que enfatiza a capacidade, coragem e competência). Estes
resultados são congruentes com os obtidos num estudo qualitativo com uma
amostra de homens adultos vítimas de abuso sexual na infância (Kia‑Keating,
Grossman, & Epstein, 2005) que verificou uma associação de significados de
competência, força e coragem a um maior ajustamento psicológico.
De salientar que o desafio ao problema também se concretiza, embora com menor
relevo, através dos MIs de Ação, Protesto e Desempenho da Mudança. O conteúdo
dos MIs de Ação surge relacionado com a implementação de estratégias de combate
do problema e dos seus efeitos, nomeadamente estratégias de distração e a
revelação do abuso a outros significativos ou às instâncias formais. Alguns
estudos (Dufour, Nadeau, & Bertrand, 2000) têm salientado a procura ativa
de suporte e a revelação a outros como estratégias que aumentam a autoconfiança
e o sentido de controlo. Por sua vez, a revelação judicial do abuso, nos casos
em que esta é voluntária e consciente e em que as respostas são adequadas,
parece funcionar como uma estratégia ativa de coping bem‑sucedida, apesar de
precipitar um agravamento sintomático inicial (Dufour, Nadeau, & Bertrand,
2000), tal como já sinalizámos anteriormente. De modo análogo, há referências
empíricas que sugerem que a procura de atividades favorecedoras de emoções
positivas se constitui como uma estratégia de copingadaptativa (Morrow &
Smith, 1995), dados congruentes com os resultados obtidos no presente
estudo.Não obstante, este é um elemento ainda pouco explorado no âmbito da
investigação neste domínio.
As estratégias de combate ao problema incluem ainda o confronto/crítica
relativamente ao abusador e a outros fatores sociais que alimentam o problema,
sendo este um elemento fundamental dos MIs de Protesto. Este tipo de MI inclui
a emergência de novas posições (e.g., manifestações de assertividade face ao
abusador e aos outros), bem como um reposicionamento face às expectativas
sociais/culturais associadas à experiência de abuso. Esta reconstrução das
significações de culpa e vergonha, inicialmente associadas à experiência
abusiva, traduz a capacidade de as vítimas se tornarem agentes ativos de
resolução do problema (White & Epston, 1990).
A emergência de novas posições, patentes nos MIs de Reflexão e Protesto, estão
também subjacentes aos MIs de Desempenho da Mudança, na medida em que os
participantes parecem reutilizar a experiência problemática para antecipar como
poderiam lidar de forma adaptativa com outras situações de ameaça. O
reconhecimento de ganhos (novas capacidades, qualidades, competências) e a
generalização destes no futuro para outras dimensões da vida torna‑se
fundamental para o confronto e superação do problema, refletindo‑se na
definição de objetivos e projeção de um futuro liberto da influência do abuso.
Efetivamente, do ponto de vista de White e Epston (1990), os indivíduos estão
capazes de desenvolver uma narrativa adaptativa acerca de si quando
desconstroem os efeitos desadaptativos do problema e focalizam a sua atenção
nos momentos de inovação, recontando a sua história a partir deste novo ponto
de vista. Importa salientar que este estudo revela uma incidência moderada de
momentos de inovação de desempenho da mudança, sendo este um dado inesperado
face à literatura disponível. No entanto, este resultado poderá estar
relacionado com a especificidade da amostra, designadamente pelo facto de as
crianças e jovens, pelas suas características desenvolvimentais, estarem mais
capazes de reportar mudanças objetivamente observáveis, e menos formulações de
generalização no abstracto. Além disso, é também possível que a maior propensão
para a imaginação nesta etapa desenvolvimental ' tipicamente utilizada na
resolução de problemas ' (Hewitt, 1999), possa explicar a maior projeção no
futuro de cenários positivos alternativos por parte dos participantes.
Os MIs de Reconceptualização são, por último, aqueles que apresentam uma
representação mais reduzida nesta amostra, apesar de outros estudos, com
população adulta, terem evidenciado a sua relevância no processo de mudança
(e.g., Gonçalves, Cunha, Ribeiro, Mendes, Santos, Matos, & Salgado, 2010;
Matos, 2006; Matos, Santos, Gonçalves, & Martins, 2009). Este resultado
poderá estar relacionado com o facto de este tipo de MI exigir, por definição,
o envolvimento de uma metaposição sobre a mudança [ ] e a capacidade de este
observar o que se está a tornar diferente do guião anterior e os novos
caminhos que pode percorrer na narrativa em construção (Santos, 2008, p. 34).
Efetivamente, apesar de a adolescência ser um período desenvolvimental
caracterizado pela capacidade crescente de construção individual do significado
associado às experiências de vida (Bluck & Habermas, 2001), a capacidade de
raciocínio autobiográfico está ainda pouco maturada nesta fase desenvolvimental
(Singer & Bluck, 2001). Não obstante, importa salientar que, nos
participantes em que este tipo de MI está presente, a posição das crianças/
adolescentes caracteriza‑se pelo contraste entre a vivência anterior e atual
do problema, refletindo uma ponderação acerca do processo de mudança e/ou
recuperação. O conteúdo deste tipo de MI relaciona‑se com a redefinição das
versões de si, designadamente, com uma desvinculação da posição de vítima,
identificação de novas capacidades, valorização pessoal e sentimentos de
bem‑estar. A reconceptualização evidencia‑se ainda na capacidade que alguns
participantes têm de reenquadrar o problema e os seus efeitos (e.g., reflexão
sobre a etiologia, dinâmicas e consequências associadas ao abuso e
reposicionamento face às suas prescrições), de atribuir novos significados à
experiência de abuso e de ser capaz de perceber diferentemente os outros,
identificando‑os como aliados da mudança ou do problema.
Muito embora os estudos previamente realizados neste domínio salientem os MI de
reconceptualização como um elemento essencial ao desenvolvimento de uma
história preferencial (Gonçalves, Matos, & Santos, 2009; Gonçalves et. al.,
2010), as especificidades desenvolvimentais da presente amostra poderão,
efetivamente, influenciar os resultados obtidos e discutidos neste trabalho.
Com efeito, a dificuldade das crianças e jovens se reposicionarem
meta‑cognitivamente poderá influenciar a sua capacidade de formular narrativas
alternativas, de forma integrada e complexa, face à narrativa problemática. No
entanto, a maior saliência observada de momentos de inovação de reflexões
centradas no processo de mudança (subtipo II), leva‑nos a considerar como
hipótese o facto de estas reflexões se constituírem um percursor significativo
da mudança e reconstrução narrativa mais consonante com as características
desenvolvimentais destas crianças/jovens.
Limitações e implicações
Os resultados obtidos no presente estudo evidenciaram contribuições importantes
de uma abordagem narrativa à compreensão dos recursos e competências de
crianças/jovens vítimas de abuso sexual, no sentido da mudança. Não obstante,
importa reconhecer e refletir sobre algumas limitações. Em primeiro lugar, as
características da amostra, pela sua dimensão reduzida e pelo facto de muitas
constituírem situações de abuso que ainda não transitaram em julgado, limitam a
transferenciabilidade (Glaser & Strauss, 1967). De modo semelhante, as
especificidades que nortearam o presente estudo (e.g., amostra infantil com
menos capacidades metacognitivas e de relato autobiográfico comparativamente
aos adultos, estudo da mudança espontânea, existência de um único momento de
avaliação), tornaram igualmente este trabalho muito distinto dos restantes
estudos já conduzidos neste domínio com recurso ao modelo narrativo.
Finalmente, e tomando em consideração que a análise dos momentos de inovação
com crianças e adolescentes é inovadora neste domínio de investigação, a
própria grelha de codificação destes momentos poderá não ser completamente
adequada às características desenvolvimentais dos participantes, merecendo
estudos futuros.
Não obstante as limitações mencionadas, consideramos que o presente estudo
sugere indicadores importantes para a investigação e para prática. Neste
sentido, do ponto de vista da investigação, o modelo narrativo oferece uma
leitura explicativa específica e integrativa sobre o impacto do abuso sexual e
os recursos de coping dos menores vítimas, comparativamente com os outros
modelos teóricos (gerais ou mais específicos ao abuso). Concomitantemente, o
presente estudo permitiu obter um entendimento aprofundado acerca dos recursos
pessoais de que estas vítimas dispõem para fazer face a esta adversidade e para
caminhar no sentido da mudança, nomeadamente no que diz respeito à forma como
conseguem articular e elaborar um conjunto de ações, afetos, cognições e
projetos que escapam à influência do problema e abrem portas ao desenvolvimento
de trajetórias resilientes. Estes resultados sugerem assim que o desafio para
investigadores e profissionais no contexto de intervenção no âmbito do abuso
sexual passa por compreender a experiência abusiva enquanto integrada em
contextos desenvolvimentais diferenciados ' familiar e comunitário ' (Jaffee,
Caspi, Moffitt, Polo‑Tomas, & Taylor, 2007) que influenciam de forma
relevante o menor ou maior impacto da experiencia abusiva. Concomitantemente, e
no que aos procedimentos judiciais diz respeito, não só se mostra fundamental a
implementação de procedimentos e diligências que melhor salvaguardem as
vítimas, mas também que promovam o seu empowerment (e.g., fomentar maior
envolvimento e participação ativa das vítimas nos processos/decisões
judiciais).
É nossa expectativa que este estudo se traduza em novas investigações e
práticas neste domínio de estudo, que possam ultrapassar as limitações
apresentadas e contribuir para que a experiência adversa do abuso sexual, se
traduza, cada vez mais, num impacto minorado nas vítimas. Do mesmo modo, o
estudo sistemático dos recursos e potencialidades aqui explorados permitam
compreender de que forma estas crianças e jovens constroem percursos
preferenciais, no sentido da mudança e da resiliência.