O Feminino e o masculino na etologia, sociobiologia e psicologia evolutiva:
Revisão de alguns conceitos
O presente artigo pretende abordar alguns dos conceitos sobre o masculino e o
feminino que foram desenvolvidos por autores seminais na etologia, na
sociobiologia e na psicologia evolutiva. Nesse sentido, não desenvolverá as
perspectivas sociais que tradicionalmente estudam estas questões a partir da
história, da psicologia social ou da sociologia; é nosso intento apresentar ao
leitor de psicologia três tradições de pensamento sobre os comportamentos
sexuais humanos oriundas do campo da biologia evolutiva. Tendo em conta a
importância crescente que estas perspectivas biológicas apresentam para o
estudo de temas psicológicos relevantes, nomeadamente numa altura em que as
neurociências de base evolutiva tomam uma importância evidente para a
psicologia, parece-nos fundamental dar a conhecer os resultados destas
disciplinas que se referem não só a comportamentos mas também a motivações para
agir e a conteúdos mentais. Contrariando as críticas clássicas das ciências
sociais sobre o determinismo biológico, as actuais teorias biológicas sobre o
comportamento enfatizam a interacção necessária entre factores genéticos,
ecológicos e sócio-culturais. Estes trabalhos acentuam a significância
estatística das tendências comportamentais observadas, dando lugar a outras
variantes estatisticamente menos significativas mas que, segundo a teoria
evolutiva, poderão apresentar relevâncias adaptativas para um meio ambiente em
mutação. O principal risco destas disciplinas consiste em reduzirem demasiado a
distância entre causas últimas e factores próximos, incluindo os novos
contextos da expressão comportamental e psicológica; este aspecto será abordado
na conclusão.
1. O feminino e o masculino na etologia humana
Foi pelos fins do século XIX que o comportamento animal em meio natural começou
a ganhar foro de interesse científico. No início do século seguinte, e entre
outros trabalhos de importantes naturalistas da época, Oscar Heinroth (1910)
concluiu que o comportamento é tão característico de uma espécie que pode ser
utilizado como indicador taxonómico ao mesmo título que o são as
características morfológicas. Mas foi sobretudo no seguimento dos trabalhos
sobre o comportamento animal de biólogos como Konrad Lorenz, Niko Tinbergen e
Karl von Frisch que a biologia do comportamento, nomeadamente a etologia
comparativa, se apresentou como ciência através da sistematização dos seus
princípios teóricos e metodológicos. O reconhecimento público destes três
autores como fundadores da etologia científica ' com a atribuição do Prémio
Nobel em 1973 ' ajudou a disciplina a ganhar visibilidade pública. Uma vez
mostrado que as adaptações filogenéticas afectam o comportamento de forma
bastante precisa e característica nos animais, procuraram-se formas de testar a
hipótese de, pelo menos em alguns dos seus aspectos, o comportamento humano
poder ser igualmente afectado por processos de adaptação evolutiva.
Com efeito, depois de Darwin1, considera-se que a organização actual de
qualquer sistema vivo é o resultado de uma história evolutiva de sucessivos
processos de adaptação a um meio ambiente em mudança constante, através de
selecção natural que opera pelo sucesso reprodutivo dos organismos adaptados e
da propagação dos seus genes até às gerações seguintes. Durante a filogénese,
as variações genéticas decorrentes do próprio processo de reprodução sexual, de
recombinações e de mutações do material genético que impedem a sua replicação
exacta, levam a que diversas variantes dos fenótipos coexistam e sejam de algum
modo testadas quanto ao seu grau de adaptação ao ambiente; sobreviverão
sobretudo os genótipos portadores das variantes fenotípicas adaptadas que
passarão, portanto, à geração seguinte2. Assim, a selecção resulta no sucesso
reprodutivo de alguns indivíduos e o processo adaptativo envolve as estruturas
que contribuem para a sobrevivência e a capacidade em criar descendência '
incluindo alguns comportamentos sociais femininos e masculinos. De facto, para
Darwin, a selecção sexual consistia na escolha, operada pelos parceiros
sexuais, de determinadas características morfológicas e comportamentais
consideradas vantajosas do ponto de vista reprodutivo e que, a prazo, se
fixariam fundando características masculinas e femininas próprias.
Um dos autores de referência na etologia humana é Irenäus Eibl-Eibesfeldt
(1989, 2010) que, no seu livro de síntese sobre os resultados da investigação
pluridisciplinar nesta área, apresenta uma panorâmica bastante abrangente da
forma como esta disciplina aborda as questões do comportamento humano. Será
nesta obra que nos iremos centrar para abordar as diferenças entre o feminino e
o masculino do ponto de vista da etologia humana.
Situando o nascimento da sua disciplina em meados da década de 60, em plena
controvérsia entre perspectivas comportamentalistas e culturalistas, Eibl-
Eibesfeldt (EE) propõe-se ultrapassar este dualismo e dar voz a um realismo
crítico (Lorenz, 1973; Popper, 2010) que sugere que parte importante do
comportamento humano está enraizado biologicamente. Nesse sentido, e procurando
discernir numa grande pluralidade de culturas humanas as tendências universais
próprias à espécie e a sua possível história evolutiva, recorre a uma abordagem
comparativa entre culturas e entre o comportamento humano e animal. Procura
estudar essas tendências universais através da análise das homologias
(semelhanças observáveis devidas à herança de um antepassado comum) e das
analogias comportamentais (semelhanças devidas à adaptação a ambientes
similares). A sua atenção é dirigida pela necessidade de considerar as funções
desempenhadas pelos diversos comportamentos observados, de modo a reconstruir
as possíveis pressões selectivas que lhes deram forma e os justificam. Trata-se
de destacar o que no comportamento actualmente observável pode ser compreendido
como resultado de uma adaptação filogenética e, nesse sentido, relacionado com
aspectos inatos, sem esquecer que a aprendizagem se faz num quadro
culturalmente determinado que está sempre presente e em interacção com o
biológico. Aliás, o autor mostra que a própria evolução cultural é um poderoso
mecanismo de adaptação ao meio ambiente e pode suscitar alterações genéticas
por selecção fenotípica. O caso da tolerância à lactose é exemplar: foi apenas
depois da descoberta da agricultura e da pastorícia que os adultos começaram a
beber leite e que a alteração genética ' a produção da enzima digestiva
correspondente ' foi seleccionada (Cavalli-Sforza, 1981)3. Será, pois,
necessário atender aos diversos aspectos biológicos e culturais e à sua
interacção para poder dar conta da complexidade criativamente adaptativa do
comportamento humano,
No que à diferença entre homens e mulheres diz respeito, EE distingue as
diferenças específicas que se referem a características que apenas se encontram
em um dos sexos, e as diferenças típicas que, embora comuns, se costumam
apresentar de modo diferenciado segundo o sexo. O seu ponto de partida é a
observação de que estas diferenças, e mesmo a sua acentuação, são uma
preocupação comum a todas as culturas humanas conhecidas, ainda que de modos e
em graus diversos. No que diz respeito à aparência do corpo, por exemplo, a
acentuação dos ombros nos homens e das ancas nas mulheres através do vestuário
ou adornos variados, parece corresponder a formas esquemáticas reconhecidas
como femininas ou masculinas por crianças púberes, em culturas tão diferentes
como a alemã ou a tanzaniana (Jessen, 1981). Assim, a característica mais
frequentemente observada para o masculino, o triângulo apoiado no ápice,
traduziria a ênfase dos ombros na silhueta dos homens e poderia ser
interpretada como a sobrevivência de um mecanismo de reconhecimento sexual
inato, correspondendo a uma antiga característica anatómica hoje perdida: a
existência de tufos de pelo que, de facto, alargavam essa zona do corpo e é
atestada pelos padrões de distribuição pilosa actuais (Leyhausen, 1983).
No que diz respeito aos papéis de género ' o comportamento esperado e prescrito
culturalmente para homens e mulheres (EE, 2010) ' a divisão do trabalho entre
os indivíduos dos dois sexos parece ser a norma, fundamentada nas diferenças
anatómicas e na fisiologia reprodutiva: são as mulheres que engravidam e
amamentam os filhos, permanecendo condicionadas durante longos períodos de
tempo pelos cuidados a prestar às crianças. São também elas quem geralmente se
ocupa da manutenção dos locais de habitação e das necessidades alimentares do
grupo no que diz respeito à recolecção ou a trabalhos hortícolas perto dos
locais de habitação (EE, 2010). Por outro lado, o esqueleto forte e alongado, a
composição específica das fibras musculares, as características do metabolismo
basal e a maior capacidade de oxigenação do organismo, permitirão aos homens
apresentar uma maior facilidade nas actividades que requerem força e rapidez.
(EE, 2010): são eles que se ocupam da caça de animais e das actividades
relacionadas com a defesa do território. O facto de este ser o padrão geral
encontrado nas actuais sociedades de caçadores-recolectores estudadas, dos
bosquímanos !Kung do Calahari (Shostak, 1982) aos Esquimós (Lee & DeVore,
1968), leva a pensar que os antigos grupos pré-históricos, com recursos de
algum modo semelhantes, provavelmente também tenham adoptado comportamentos e
formas de organização social semelhantes.
A hipótese etológica defende, pois, que parte das diferenças significativas
entre homens e mulheres foi sendo construída ao longo da evolução do ser humano
como espécie e se baseia em grande parte no facto de este necessitar de
cuidados maternos prolongados. Teria havido uma diferenciação progressiva a
partir das características anatómico-fisiológicas básicas próprias a cada sexo
e as funções primariamente designadas por elas, ao nível comportamental mas
também ao nível da morfologia do corpo e do próprio uso do cérebro. São disto
exemplo a acentuação do dimorfismo sexual humano no que diz respeito à largura
das ancas, assim como a menor especialização hemisférica do cérebro feminino
(Levy, 1972). Este estaria relacionado com maiores capacidades verbais e uma
utilização mais acentuada da linguagem como forma de comunicação social, nas
mulheres. Assim sendo, enquanto as mulheres ficariam ocupadas durante longos
períodos de tempo pela gravidez, amamentação e outros cuidados a prestar às
crias, os homens teriam organizado expedições em busca de alimento,
nomeadamente através da caça, organizando e defendendo o território-base onde
aquelas permaneceriam. Ter-se-á assim reforçado uma divisão de trabalho
adaptada à sobrevivência dos pequenos grupos de caçadores-recolectores que até
muito recentemente povoaram a terra. De facto, o início da agricultura e a
domesticação de animais terá acontecido somente há cerca de 10.000 anos. O
longo passado evolutivo que as precedeu contribuiu para estabelecer diferenças
comportamentais importantes entre homens e mulheres, e estas terão sido
reforçadas culturalmente em certas tradições4.
A unidade fisiológica mãe-filho, nas palavras de EE (2010), baseia-se em
mecanismos etológicos como a cunhagem (imprinting). A cunhagem é um mecanismo
de memorização precoce e irreversível que estabelece o comportamento de seguir
em alguns animais que andam logo após o nascimento e que, em certas espécies,
determinará mais tarde o comportamento sexual (Lorenz, 1935). A cunhagem apoia-
se em poderosos mecanismos hormonais que fazem dela um factor muito antigo na
diferenciação filogenética dos mamíferos. Por exemplo, a oxitocina é uma
hormona produzida pela mãe durante e após o parto e que desencadeia as
contracções do útero e a segregação de leite. É também uma hormona segregada
durante os encontros amorosos adultos. É, portanto, considerada uma hormona
vinculativa (Klopfer, 1971; Keverne, Levy, Poindron, & Linssay, 1983).
Também nos humanos, embora sob formas modificadas, a unidade mãe-filho foi
determinante para o desenvolvimento das diferenças comportamentais entre os
sexos. A evolução de um período alargado de cuidados parentais foi tornada
necessária para a protecção de uma cria imatura: as sinalizações e repostas
mútuas entre crias e adultos, características da vinculação entre mãe e bebé,
parecem ser um requisito para a elaboração das formas altamente elaboradas e
diferenciadas da sociabilidade humana. Com efeito, trata-se de um primeiro modo
de relação entre indivíduos, precursor da formação de laços amigáveis e
individualizados entre adultos e essencial para a constituição de grupos
cooperativos capazes de manter a unidade, a despeito das questões da
ambivalência ' procura e evitamento de contacto com o outro ' e da
agressividade. A vinculação humana permite assim as relações de proximidade
para além do que parece ser a unidade social natural própria aos animais
parentais monogâmicos, isto é, o casal parental e o seu filho.
Significa isto que, apesar de se tratar de uma evolução mais recente, a
neotenia do bebé humano terá encorajado a participação paterna de modo a
corresponder às necessidades da criança e à protecção da própria mãe. O
conceito de neotenia refere-se à retenção de características juvenis no adulto,
e ao facto de os humanos, em comparação com outros primatas, nascerem muito
imaturos e incapazes de sobreviverem sozinhos. Apresentam um desenvolvimento
lento e conservam capacidades generalistas ao longo da vida, mantendo portanto
uma grande adaptabilidade às mudanças externas. As dificuldades de uma longa
gravidez, de um parto complicado pelo tamanho da cabeça do nascituro,
juntamente com a imaturidade acentuada e prolongada da criança, terão sido
factores especialmente fragilizantes para a mãe humana. De facto, parece não
haver sociedades humanas conhecidas que não constituam casais ou relações
familiares estáveis em torno da mãe (EE, 2010). O pai é, nas culturas
referenciadas por EE, uma figura de referência e de vinculação. Tende a
estabelecer com a criança modos de relação em que os jogos fisicamente
estimulantes são mais frequentes e contribui, tal como a mãe, para a
diferenciação sexual, na medida em que interage de modo diferenciado de acordo
com o facto de a criança ser rapaz ou rapariga; aliás, logo por volta dos dois
anos de idade, os rapazes mostram preferência pelo pai como companheiro de
jogos, enquanto as raparigas preferem a mãe (Lamb, 1977). O alargamento do
período juvenil em contacto estreito com os progenitores abre a novas
possibilidades de aprendizagem comportamental complexa, nomeadamente através da
brincadeira, da utilização de formas rituais de vinculação e de agressão-
divertimento, ou da imitação verbal e comportamental de modelos adultos que têm
como efeito facilitar a integração na vida cooperativa do grupo.
Pese embora as variações culturais nas várias sociedades observadas, em geral
os homens ocupam posições hierarquicamente elevadas, por exemplo como porta voz
e representantes da colectividade incluindo, de forma não exclusiva, a mediação
com o transcendente nos rituais religiosos. Tais actividades adquiriram um
valor social acrescido e de liderança, mesmo nas sociedades em que é a linha de
filiação materna que prevalece (EE, 2010). Esta dominância dos homens, tida
pelo autor como herança primata, parece ser influenciada pelos níveis
hormonais: a testosterona tem efeitos androgénicos na formação da massa
muscular e, portanto, no tamanho e aparência do corpo. Afecta os níveis de
agressividade masculina incluindo a preparação para a acção, e a sua quantidade
varia com o grau de dominância no grupo. Há, aliás, observações que parecem
apontar para a existência, nos homens, de uma apetência pelo sucesso e pelos
comportamentos consumatórios induzida pelos androgénios, cujo nível varia em
função daqueles (Mazur & Lamb, 1980). Para os autores, não é claro se os
níveis de androgénios constituem um factor causal da dominância ou se
simplesmente co-variam com o estatuto. A agressividade masculina parece
depender da exposição androgénica associada a contextos sócio-culturais em que
pode haver contestação do estatuto.
Diferenças específicas a cada um dos sexos são também visíveis nos
comportamentos sexuais actuais, incluindo no que diz respeito a formas de
aproximação e de namoro. Com efeito, os estímulos especificamente sexuais são
diferentes para cada sexo. Alguns parecem agir de forma pouco consciente como,
por exemplo, os estímulos olfactivos relacionados com estados hormonais do
corpo. Outros, como os estímulos visuais, têm um valor culturalmente modelado,
apesar da pré-orientação dos padrões perceptivos no que diz respeito a
silhuetas típicas e a caracteres sexuais secundários. A sexualidade humana,
embora apresentando características próprias, parece ter sido marcada pela
herança de dois padrões biológicos típicos de diferentes períodos da evolução
filogenética: o primeiro, próprio a uma sexualidade agonística, é marcado
pela dominância masculina e pela submissão feminina; o segundo, que aparece com
os animais parentais como os mamíferos, é próprio a uma sexualidade afiliativa
e é propiciador de relações individualizadas que, de algum modo, controlam o
primeiro (EE, 2010). Segundo o autor, a par desta herança, a sexualidade humana
apresenta características próprias como a ovulação invisível ou o coito
escondido, que terão contribuído para a criação de laços afectivos fortes e
prolongados entre os humanos, assim como para a exclusividade do casal.
Em geral, o processo de formação do casal humano estaria marcado pelas
diferenças entre homens e mulheres, embora possa ser socialmente codificado de
diferentes modos em diferentes culturas, quer no que diz respeito às formas de
auto-apresentação, quer às formas de estabelecimento de contacto. É o homem
quem tende a tomar a iniciativa e a mulher a seleccionar o parceiro, opondo
alguma resistência inicial ao homem. EE (2010) fala de uma exibição de corte
caracteristicamente masculina que consiste numa projecção positiva do self
(esta última, aliás, também verificável no outro sexo) que não visaria mostrar
uma posição dominante perante a parceira, mas sim perante terceiros e deste
modo demonstrar a sua capacidade de protecção e cuidado. Numa fase posterior
entrariam em jogo comportamentos próximos do comportamento infantil de apelo à
vinculação, juntamente com todo um conjunto de movimentos expressivos e de
interacções que fazem parte do repertório afiliativo inato, como o contacto
visual, o sorriso, o arquear das sobrancelhas e a sincronização dos movimentos.
A antiga associação entre sexualidade masculina e dominância e entre
sexualidade feminina e submissão poderia, pelo menos em parte, explicar algumas
das patologias do comportamento sexual como regressões a formas de sexualidade
mais antigas em termos filogenéticas, um tipo de sexualidade agonística com
hipertrofia de alguns componentes da sexualidade normal.
Seriam disto exemplo algumas formas patológicas de exibicionismo masculino
(Müsch, 1976) ou um certo tipo de homossexualidade masculina caracterizada pela
expressão brutal da dominância e pela mudança frequente de parceiro. Por outro
lado, é a actualização ontogénica da herança filogenética que permite que o
comportamento sexual, como aliás qualquer comportamento, seja modelado por
factores do ambiente social, eventualmente num sentido desviante à norma.
Assim, alguns casos de escolha de objecto homossexual são explicados por um
processo próximo da cunhagem (imprinting), no sentido da fixação de
determinadas características do parceiro escolhido ou pela marca de uma
associação com experiências sexuais mais ou menos precoces (von Krafft-Ebing,
1924; Leonhard, 1966). Estes casos relacionar-se-iam frequentemente com
episódios de sedução juvenil. Outros casos, ainda, seriam explicados por
factores hormonais precoces, nomeadamente pré-natais (Dörner, 1980; Gladue,
Green, & Hellman, 1984), sendo que a hipótese da existência de uma
predisposição genética é reforçada pelas conclusões de estudos de pares de
gémeos monozigóticos (Kallmann, 1952). EE (2010) afirma, ainda, existirem
culturas para as quais não existem homossexuais. A afirmação refere-se a
pessoas homossexuais e não a comportamentos ou actos homossexuais, o que faz
recordar o facto de que só a partir do séc XIX se considera existir algo como
uma identidade marcada, se não definida, pela escolha de objecto sexual.
Um número importante de observações, quer em condições laboratoriais quer em
investigações interculturais, parece mostrar que logo a partir do nascimento as
raparigas tendem a ser mais calmas do que os rapazes, sorrindo mais, o que virá
a desenvolver-se como um maior interesse pela comunicação com o outro (Feldman,
Brody, & Miller, 1980; Phillips & Dubois, 1978). Cedo mostrarão mais
comportamentos altruístas (Shigetomi, Hartmann, & Gelfand, 1981), melhores
competências verbais e mais obediência às sugestões dos adultos (Witkin,
Goodenough, & Karp, 1967). Os rapazes evidenciam precocemente mais
apetência para a actividade física (Block, 1976), mais agressividade (MacCoby,
1980) e mais independência, por exemplo distanciando-se mais das mães na
exploração do ambiente circundante (Ley & Koepke, 1982). Os rapazes
apresentam também melhor orientação espacial (Witkin, Goodenough, & Karp,
1967), menos ambivalência em relação ao contacto com estranhos (MacCoby &
Jacklin, 1974) e comportamentos de exibição mais frequentes (Hold, 1974, 1976,
1977).
Em idade pré-escolar, ambos os sexos mostram preferência por companheiros de
jogo do mesmo sexo, o que estaria ligado aos interesses diferenciados de ambos
os grupos revelados, por exemplo, na diferença de temas de desenho livre
(Sbrzerny, 1976). E, a despeito do novo interesse pelo sexo oposto, muitas
destas diferenças ganham nova dimensão a partir da puberdade (Degenhardt &
Trautuer, 1979): para as raparigas, mais habilidades verbais, velocidade e
acuidade perceptiva e, para os rapazes, mais habilidades quantitativas e de
orientação espacial; para as raparigas, mais conformidade social, orientação
para as pessoas e interesses sociais, para os rapazes mais auto-confiança, mais
orientação ocupacional e interesses materiais; para as raparigas uma auto-
imagem relacionada com a interacção com os outros, para os rapazes uma auto-
imagem baseada nas suas competências assertivas.
Parte destas diferenças poderão ser explicadas pela aprendizagem: o reforço
positivo mais ou menos intencional do comportamento esperado e prescrito
culturalmente é bastante precoce (Fagot, 1978; Goldberg & Lewis, 1969)
sendo que, pelo menos parcialmente, modos diferentes de relação com a criança
corresponderão a comportamentos também eles diferenciados (Block, 1976; Fagot,
1978; Keller,1979; Tauber, 1979). Há também imitação de modelos do mesmo sexo,
possivelmente pela predisposição inata da criança para o fazer, assim como
identificação potenciada pela força dos laços afectivos (Grusec & Brinker,
1972; Slaby & Frey, 1975; Trautner, 1979). Mas uma vez conseguida a
categorização do sexo de pertença pela criança, as influências externas perdem
parte da sua influência, essencialmente pela necessidade de manter a
consistência cognitiva (Kohlberg, 1966; Trautner, 1979). No entanto, a
designação social do sexo da criança e a educação correspondente não
determinam, só por si, a identidade sexual. Observações de casos em que houve
castração acidental e tratamento hormonal subsequente no sentido da feminização
(Durden-Smith & Desimone, 1983; Money & Ehrhardt, 1972), ou casos de
deficiência genética no processo normal de masculinização anatómica do bebé,
mostram que as características cromossómicas e hormonais masculinas não podem
ser apagadas pela educação no sentido de uma identidade feminina bem
estabelecida (Imperato-McGinley, Peterson, Gautier, & Sturla, 1979; Rubin,
Reinich, & Haskett, 1981). Por outro lado, o estudo do que aconteceu em
meados do século passado em kibbutz israelitas (Spiro, 1979; Tiger &
Shepher, 1975) mostra as dificuldades de um programa fortemente constrangido
ideologicamente no sentido de um igualitarismo compreendido como abolição de
qualquer diferença ' também entre papéis de género. A institucionalização de
práticas como a educação precoce das crianças por instituições comunitárias
empenhadas no cumprimento deste objectivo, a limitação das relações de afecto
individualizadas nomeadamente no que diz respeito à ligação da mãe com o bebé,
a distribuição do trabalho indiscriminadamente pelos dois sexos ou a
preocupação em equalizar a aparência do corpo, acabaram por não resultar quer
no sentido de terem promovido um sentimento de desadequação ' nomeadamente nas
mulheres e em particular nas mães ' quer no sentido de não terem efectivamente
apagado a diferença de interesses e modos de comportamento diferenciados
sexualmente nas crianças assim educadas. Estaremos, pois, confrontados com as
limitações que a biologia impõe às tentativas de abolição das diferenças mas
não, acentua EE, à sua valorização como igualmente valiosas para o futuro da
nossa espécie.
O facto de a ciência etológica procurar compreender o comportamento humano
actual como testemunho de um processo adaptativo lento e desenrolado ao longo
da maior parte da nossa história evolutiva, pode ajudar a formular
interrogações relativas à adequação dos papéis de género tradicionais '
tributários de determinadas condições sócio-ambientais ' à sociedade pós-
industrial actual. De modo mais genérico, interroga a capacidade humana em
harmonizar os rápidos ritmos da evolução cultural com os da evolução biológica,
muitíssimo mais lentos. Em todo o caso, a tónica é posta na necessidade de
reconhecer a herança biológica para melhor a integrar, alertando para os
problemas que o seu desconhecimento ou negação podem acarretar, mais não seja
por ineficiência. EE não deixa de acentuar a liberdade de escolha que a própria
combinação de padrões de comportamento de diferentes sistemas funcionais
proporciona, acentuando também as questões relativas ao controlo voluntário da
acção ou à habilidade em separar comportamentos e emoções. Com efeito, a
evolução do cérebro humano, nomeadamente a corticalização e a lateralização,
com destaque para a capacidade de linguagem, abriu novas possibilidades de
reflexão e de autoconsciência, libertando numa parte importante os padrões
comportamentais dos rígidos mecanismos desencadeadores mais antigos.
A perspectiva evolutiva sobre os comportamentos animais e humanos desenvolvida
pela etologia foi integrada pela sociobiologia, a par da genética e da ecologia
do comportamento. Esta disciplina tende a ser mais formalista do que a
etologia, nomeadamente pela aplicação de modelos preditivos do funcionamento
social.
2. O feminino e o masculino na sociobiologia
A obra de Edward Osborn Wilson, Sociobiology, The New Synthesis (1975), expôs e
desenvolveu conceitos da biologia evolutiva, propondo novas perspectivas sobre
os comportamentos sociais animais e suscitando controvérsias, nomeadamente no
último capítulo Man: from Sociobiology to Sociology, em que defendeu que os
mesmos princípios explicativos podem ser aplicados ao comportamento humano.
Procurando integrar observações vindas de várias áreas científicas,
nomeadamente da etologia, ecologia e genética das populações e utilizando
modelos matemáticos complexos com intuitos explicativos e preditivos, a
sociobiologia encara o comportamento social como sendo explicável
geneticamente, numa perspectiva de análise de custos e benefícios.
Com efeito, segundo esta abordagem, o critério de sucesso de uma determinada
adaptação individual, ou seja, a sua vantagem evolutiva, é o da sobrevivência
dos genes que codificam essa adaptação. Tudo o que reduza ou dificulte o
sucesso genético será considerado como um custo ' por exemplo, o risco
envolvendo a reprodução, o tempo e o trabalho nela investidos. O benefício será
medido pelo sucesso na passagem dos genes à geração seguinte e implicará um
saldo positivo perante o peso do custo. Com a tónica posta no gene ' e não no
organismo ' como unidade de selecção, um comportamento será adaptativo se
maximizar as hipóteses de sucesso reprodutivo, medido em função das taxas de
sobrevivência e de reprodução dos genes do indivíduo em causa. Considera-se,
portanto, que alguns comportamentos são, pelo menos em parte, directamente
influenciados por determinados genes ou combinações particulares de genes.
Recorde-se que, na teoria clássica, a selecção natural se exerce via fenótipo e
não directamente sobre o genótipo, uma vez que é aquele que interage com o
ambiente
A sociobiologia vai alargar o conceito do sucesso adaptativo do indivíduo ao
seu grupo de parentes. A teoria da vantagem inclusiva (Hamilton, 1964)
defende que a selecção favorece também os genes dos organismos geneticamente
aparentados, ou seja, que partilham parte do património genético com o
indivíduo. Deste modo, um comportamento altruísta, no sentido em que favorece
um parente em desfavor de si-próprio, acabará por representar um egoísmo
genético na medida em que, finalmente, resulta na passagem dos genes do próprio
indivíduo às gerações seguintes. Daí a metáfora do gene egoísta de Dawkins
(1976).
Nesta perspectiva, a persistência de comportamentos não reprodutivos como a
homossexualidade poderia ser explicada, apesar da sua aparente contradição
evolutiva. Segundo Wilson (2004), há uma forte possibilidade de que
comportamentos homossexuais tragam benefícios específicos, favorecendo
eventualmente a transmissão genética de alguns impulsos altruístas. Indivíduos
homossexuais poderiam ter sido um elemento importante na primitiva organização
social humana, eventualmente ocupando posições vantajosas para ajudar os seus
parentes. Se estes fossem assim beneficiados em termos de rácios de
sobrevivência e de reprodução, os genes comuns seriam transmitidos às gerações
seguintes incluindo, ainda que não directamente, os que predispõem os
indivíduos à homossexualidade. A hipótese necessita pois da confirmação de que,
pelo menos em parte, a predisposição à homossexualidade é herdada, como sugerem
alguns estudos de gémeos. A sua expressão seria, no entanto, dependente do
ambiente familiar e das experiências infantis.
Também o comportamento materno pode ser visto, nesta perspectiva, como um
comportamento adaptado cuja selecção se justifica porque, a despeito do
investimento que exige, aumenta a probabilidade de sobrevivência dos filhos e a
sua reprodução e, portanto, a passagem dos genes maternos às gerações
seguintes. A teoria do investimento parental (Trivers, 1972), definido como
aumentando as possibilidades de sobrevivência de uma cria em detrimento da
capacidade do progenitor em investir quer na sua própria sobrevivência quer na
sua capacidade reprodutiva ' noutras crias, portanto ' procura mostrar como os
pais estão dispostos a investir nos seus filhos ' e não nos dos outros ' na
medida em que estes, por sua vez, se reproduzem. A teoria do investimento
parental sugeriu diversos desenvolvimentos como, por exemplo, a hipótese de um
conflito genético entre pais e filhos (Trivers, 1974), explicado pela diferença
de interesses entre eles: para os primeiros, é mais favorável dividir
equitativamente os seus cuidados por todos os filhos enquanto que cada um dos
segundos procura maximizar o investimento parental para si próprio, rivalizando
com os irmãos.
Particularmente interessante para este artigo é, contudo, a teoria da selecção
sexual proposta pela sociobiologia. Como vimos acima, Darwin (1871) tinha
considerado que a escolha de um parceiro sexual impõe uma selecção dos
indivíduos do sexo oposto e, nesse sentido, apresentou a questão da escolha
pelas fêmeas e da competição entre os machos como essencial para este processo.
A sociobiologia vai procurar construir modelos preditivos que permitam
fundamentar e desenvolver esta hipótese: no que diz respeito a alguns animais,
nomeadamente os mamíferos, são as diferenças na própria fisiologia reprodutiva
entre machos e fêmeas que explicam a diferença nos seus comportamentos, com o
menor potencial reprodutivo das fêmeas a determinar o seu maior interesse pelo
bom cuidado dos seus filhos. Por outro lado, e acrescendo ao facto de a
gravidez e parto lhes acarretarem riscos específicos, as fêmeas serão mais
selectivas na escolha do um parceiro que ofereça garantias de investimento,
enquanto os machos tenderão a procurar uma maior variedade de fêmeas que possam
fecundar5. O tipo de casal parental formado dependerá ' para além de outros
factores internos à estruturação do grupo ' das condições ecológicas: num
ambiente pobre em recursos, por exemplo, a monogamia favoreceria a prestação de
cuidados conjuntos por ambos os pais e a respectiva divisão de tarefas, de modo
a aumentar as possibilidades de sobrevivência das crias.
É neste contexto que surgirão um conjunto de trabalhos procurando compreender a
evolução da escolha do parceiro sexual e os modos como esta se processa,
nomeadamente por parte das fêmeas (Kokko, Brooks, Jennions, & Morley,
2002). As questões vão desde tentar compreender porque razão determinados
machos terão mais probabilidades de sucesso do que outros, a calcular os
custos, advindos da selectividade das fêmeas, para a sua fecundidade.
Considera-se a selecção directa de características masculinas como a saúde e a
fertilidade, a capacidade de proporcionar melhores recursos e a oferta de
cuidados às crias, e considera-se a selecção indirecta de traços que lhes estão
associados e que virão a ser considerados atractivos pelas fêmeas como, por
exemplo, o tamanho e o brilho das penas nas aves, ou o tamanho e a simetria do
corpo nos mamíferos. Consideram-se também as vantagens directas da selecção
sexual para as fêmeas, por exemplo em termos de fecundidade acrescida, ou as
vantagens indirectas, como no que diz respeito ao sucesso reprodutivo das suas
crias.
Deste modo, para além de prever que os indivíduos apresentarão os
comportamentos que se revelaram vantajosos do ponto de vista evolutivo, é o
número de genes passados às gerações seguintes que a sociobiologia considera.
Por efeito da selecção exercida sobre eles, determinada população no seu
conjunto acabará por apresentar estratégias evolutivamente estáveis6 (Maynard
Smith & Price, 1973) que se sobreporão a quaisquer outras alternativas,
mantendo em equilíbrio populacional uma proporção particular de características
comportamentais. A existência destas estratégias é, portanto, uma hipótese
preditiva da frequência de determinados genes numa população, confirmada pela
correlação entre a frequência dos genes predita e os genes efectivamente
expressos7.
É um facto que esta disciplina, com os seus modelos matemáticos, tem permitido
fazer previsões sobre os comportamentos sociais animais em determinadas
situações definidas dentro da lógica dos factores genéticos (nomeadamente o
grau de parentesco) e dos factores ecológicos, com destaque para o grau de
acessibilidade ou de dificuldade de acesso a recursos. No entanto, a aplicação
da sociobiologia às sociedades humanas revela-se muito problemática, pela
grande variedade e complexidade dos factores envolvidos. Esta foi a razão que
levou a que a sociobiologia humana fosse duramente criticada, não só a partir
das ciências sociais (Sahlins, 1977) como no seio da própria história da
biologia evolutiva (Tort, 1985). Estes trabalhos criticaram tanto os aspectos
conceptuais e metodológicas reducionistas como os riscos da sua aplicação
social e política.
Há, apesar de tudo, trabalhos de bioantropologia que, sem ignorarem as questões
inerentes a esta última disciplina, procuram traçar uma história natural da
monogamia, do adultério e do divórcio (Fisher, 1994) baseando-se em grande
parte na sociobiologia. Apresentando dados etnográficos e estatísticos sobre o
casamento, as suas variantes e as suas vicissitudes, a autora desenvolveu
hipóteses sobre, por exemplo, a relação entre um aparente pico de divórcios
após quatro anos de relação e o período de maior dependência infantil, ou a
correlação entre a independência económica das mulheres e as taxas de divórcio.
Outros desenvolvimentos tentam ir mais longe. Para além de considerarem que,
nos humanos, as diferenças comportamentais inatas entre bebés do sexo feminino
e masculino desencadeiam comportamentos diferenciados nos pais, alguns autores
desenvolveram a hipótese Trivers-Willard (1973) segundo a qual as fêmeas de
menor estatuto social ' e portanto com acesso a recursos mais limitados '
tendem a ter mais filhos do sexo feminino do que as de estatuto superior, sendo
o factor ecológico combinado com outros factores biológicos. Valerie Grant
(1998) relaciona o acréscimo de filhos do sexo masculino nas mulheres
hierarquicamente dominantes com a variação dos níveis maternos de testosterona,
expondo a hipótese de um ajustamento entre a fisiologia feminina e o seu
estatuto social que teria consequências, quer ao nível do sexo dos filhos, quer
ao nível do seu estilo de maternagem: estas mulheres teriam níveis mais
elevados de testosterona que fariam delas mulheres mais activas, assertivas e
independentes do que as outras mulheres. A forma como tratam os filhos seria
também diferente, sendo que os rapazes criados por elas teriam mais vantagens
competitivas sobre os outros, em contraste com as raparigas que teriam mais
vantagem em ser educadas no estilo que as mulheres subdominantes tendem a usar.
A sociobiologia procura, pois, estabelecer modelos prováveis de mudança
evolutiva, testando aspectos particulares em casos particulares, centrando as
suas explicações nas causas últimas dos comportamentos no sentido de
Tinbergen (1951), ou seja, na sua função adaptativa e no seu possível processo
evolutivo. Não nega por isso que o comportamento individual esteja também
dependente das condições actuais de desenvolvimento do organismo, nomeadamente
no que aos seres humanos diz respeito, dadas as suas particularidades mentais e
as do meio cultural em que se inserem. É com base nestas ideias da
sociobiologia que a mente humana vai estar em estudo com a psicologia
evolutiva.
3. O feminino e o masculino na psicologia evolutiva
Com a psicologia evolutiva trata-se, então, de oferecer o ponto de vista da
mente adaptada (Barkow, Cosmides, & Tooby, 1992), isto é, de explicar o
funcionamento mental como um conjunto de adaptações aos problemas de
sobrevivência e de reprodução enfrentados pelos humanos no decurso da sua
evolução. O livro de D. Buss Evolutionary Psychology (1999) permanece uma obra
síntese de referência e é sobretudo nele, e nos trabalhos aí citados, que nos
iremos basear.
A psicologia evolutiva procura investigar algumas hipóteses derivadas da teoria
sociobiológica, aplicando os modelos heurísticos da psicologia cognitiva ao
estudo da mente identificada como o produto do funcionamento cerebral. Mais
exactamente, vai utilizar um modelo de compreensão do funcionamento mental
baseado na metáfora computacional em que a mente é vista como um dispositivo
processador de informação: o input é constituído por formas de informação
específicas que, depois de transformadas através de regras de decisão, gerarão
determinados comportamentos como output. A neurobiologia cerebral representará
o hardware, mas é o software, os programas transformadores da informação, que
estão aqui em estudo.
Nesse sentido, a psicologia evolutiva propõe um modelo modular da mente que
essencialmente integra módulos especializados, ou domínio-específicos, no
tratamento de informação psicológica particular. A existência de apenas um
dispositivo de processamento generalista implicaria considerar um tal número de
opções combinadas ' uma explosão combinatória ' que rapidamente se tornaria
ineficaz na resolução de problemas psicológicos concretos. Estes módulos têm,
no entanto, graus de especificidade variável, sendo alguns deles mais domínio-
generalistas, nomeadamente os dedicados à cognição ou ao tratamento das
emoções (Tooby & Cosmides, 1992). A ideia da mente como software modular
significa também que a psicologia evolutiva considera necessária a adopção de
uma perspectiva funcionalista, na medida em que só a compreensão da
especificidade da função de determinado módulo na resolução de um dado problema
adaptativo abrirá caminho à compreensão do seu modo de funcionamento.
Um exemplo interessante para o nosso tema é o modo como a psicologia evolutiva
analisa a tendência para competências espaciais diferenciadas entre homens e
mulheres: a especificidade masculina manifesta-se numa maior facilidade em
rodar figuras mentalmente, ler mapas ou orientar-se num labirinto, enquanto as
mulheres ultrapassam os homens nas tarefas espaciais que implicam a memória de
objectos e a sua localização (Silvermane & Phillips, 1998). Esta diferença
é interpretada como reflectindo a adaptação à divisão de trabalho própria dos
grupos pré-históricos: as características masculinas seriam particularmente
adaptadas à caça (Tooby & DeVore, 1987), as femininas à recolecção de
plantas. As questões relacionadas com o estudo do raciocínio espacial seriam,
portanto, domínio-específicas quando perspectivadas a partir dos problemas
espaciais adaptativos que homens e mulheres enfrentaram no decorrer da história
evolutiva.
A ideia fundamental é que a mente humana se confronta essencialmente com a
resolução de dois tipos de problemas universais ' o problema da sobrevivência e
o problema da reprodução. Possui dispositivos dedicados à sua resolução que
correspondem a uma série de mecanismos psicológicos evoluídos (Buss, 1999).
Estes são conjuntos de processos que, à semelhança do olho que é informado pela
luz e não pelo som, utilizam um determinado tipo de informação, transformando-
a através de regras de decisão do tipo se então. Estas regras são, de algum
modo, derivadas de regularidades estatísticas encontradas no meio ambiente.
Trata-se de soluções que foram seleccionadas porque estão adaptadas à resolução
dos problemas que a espécie humana enfrentou no ambiente de adaptação
evolutiva, há cerca de 150.000 anos. Poderão ser de tipo fisiológico,
psicológico ou comportamental e não são necessariamente adaptadas às condições
de vida actuais. A flexibilidade do comportamento humano é, neste quadro,
explicada pela especificidade, complexidade e número destes mecanismos.
No que diz respeito aos problemas relacionados com a reprodução humana, grande
parte dos trabalhos no âmbito da psicologia evolutiva ocupam-se de problemas
tais como compreender como homens e mulheres tendem a seleccionar o seu
parceiro dentro de estratégias de longo ou curto prazo, sendo que as hipóteses
agora em apreço são especificamente psicológicas. Desenvolvendo o quadro das
teorias sociobiológicas do investimento parental e da selecção sexual, uma das
hipóteses consideradas é de que a escolha selectiva de um parceiro, exercida
continuadamente por parte das mulheres ao longo de centenas de milhares de anos
de evolução, desembocou numa preferência feminina por homens que apresentem
características de maior valor adaptativo para elas e para os seus filhos. As
que não desenvolveram preferências adaptativas relevantes no contexto evolutivo
acabaram por ter sido eliminadas do processo pelo seu insucesso reprodutivo; as
que vivem actualmente continuam a carregar os genes para estas preferências,
herdados das suas antepassadas (Buss, 1999).
Trata-se aqui de mecanismos psicológicos evoluídos complexos, na medida em
que implicam a avaliação de condições futuras a partir de sinais actuais não
unívocos que devem, de algum modo, ser correctamente pesados, interpretados e
integrados. Envolvem preferências diferentes por diferentes aspectos tendentes
a resolver problemas adaptativos, também eles diferenciados (Buss, 1999). É o
facto de serem especificamente dirigidos à resolução de problemas específicos
que permite uma resolução eficaz, do ponto de vista evolutivo, dos problemas
essenciais com que os organismos se confrontam, sem que isso implique processos
computacionais conscientes. Deste modo, no que diz respeito às estratégias
actuais da escolha feminina num contexto de longo prazo, e seguindo Buss
(1999), os problemas adaptativos teoricamente previstos são, essencialmente,
seleccionar um parceiro habilitado e disposto a um investimento continuado na
família, capaz de oferecer protecção física e com capacidade para ser bom pai,
mostrando-se também um parceiro compatível. A estes problemas corresponderão
determinadas preferências adaptativas que a psicologia evolutiva procura
testar, através das ideias e dos comportamentos que as traduzem.
Estudos levados a cabo em trinta e sete culturas diferentes através do mundo
mostraram que, apesar de algumas variações culturais, as mulheres escolhem
preferencialmente parceiros com recursos elevados, homens mais velhos e
ambiciosos (Buss, 1989), o que é interpretado como um índice preditivo de
potenciais ganhos no futuro. Preferem também homens estáveis e dignos de
confiança, capazes de assumir compromissos para com elas e os seus filhos
(Buss, Abbott, Angleitner, Asherian, & Biaggio, 1990); homens mais altos,
fortes e saudáveis (Barber, 1995) o que poderia ser indiciado por uma maior
simetria da face e do corpo (Gangestad & Thornhill, 1997); e homens com
capacidade para serem bons pais. As mulheres parecem considerar mais atraente
um homem fotografado a interagir positivamente com um bebé do que se ele
estiver só ou apenas junto de uma criança, enquanto tais diferenças não
interferem na opinião dos homens sobre o quão atraente é uma mulher (La Cerra,
1994). A hipótese de que elas valorizariam sobretudo aptidões domésticas, entre
as quais se incluiriam os cuidados pelas crianças, não se confirma, na medida
em que preferem imagens de um homem inactivo às do mesmo homem aspirando a
casa.
Algumas destas preferências serão previsivelmente ajustadas aos contextos
particulares de vida das mulheres. No entanto, a hipótese de que a preferência
por um parceiro com recursos está relacionada com a falta deles por parte da
mulher, ou com falta de poder suficiente para os controlar, não foi confirmada:
as mulheres com recursos e estatuto elevado mantêm a pre-ferência ou são ainda
mais selectivas (Buss & Barnes, 1986; Buss, 1989).
No que diz respeito às escolhas masculinas, e sempre num contexto de longo
prazo, estas serão guiadas por dois problemas adaptativos diferentes: a
necessidade de seleccionar uma parceira com um bom potencial reprodutivo e o
problema da incerteza da paternidade (Buss, 1999). É no contexto do primeiro
que surge a questão da atractividade ou da beleza feminina: as características
femininas preferidas pelos homens seriam interpretadas como sinais de
fertilidade potencial, uma vez que a ovulação invisível das mulheres e a sua
acessibilidade sexual não limitada a um período de estro evidente dificulta a
determinação da sua capacidade reprodutiva imediata. Assim sendo, a juventude e
a saúde ou, mais exactamente, os seus supostos sinais ' a pele lisa e clara (em
relação com o padrão de pigmentação local), a relação entre as medidas da
cintura e da anca ' são critérios indicativos da capacidade reprodutiva
feminina e dão lugar a comportamentos largamente espalhados pelas diversas
culturas humanas. Segundo Buss (2008) uma e outra característica variam no
período ovulatório, em relação com a maior vascularização da pele para a
primeira, ou os níveis de estrogénio em circulação para a segunda. Haveria
então a possibilidade de existir um mecanismo inconsciente de reconhecimento,
pelos homens, da ovulação feminina. Nas sociedades estudadas por Buss et al.
(1990), e com excepção dos adolescentes que tendem a preferir mulheres um pouco
mais velhas, os homens tendem a escolher mulheres, em média, dois anos e meio
mais novas do que eles e tendem a preferir mulheres mais novas à medida que vão
envelhecendo. O problema da paternidade incerta confere ao casamento um valor
claramente adaptativo, tendo em conta as promessas de estabilidade e de
fidelidade sexual entre parceiros que, com ele, geralmente se assumem ' mesmo
no contexto da variabilidade das formas culturais que pode apresentar. A
paternidade incerta dá também sentido à valorização que em certas culturas,
sobretudo patriarcais, se confere à virgindade das mulheres (Buss, 1999).
Temos, portanto, entre homens e mulheres, problemas adaptativos diferentes e
estratégias comportamentais adaptativas também diferentes que, aliás, não se
limitam a questões de atracção, escolha ou capacidade de reter o parceiro.
Haverá diferenças comportamentais em praticamente todos os aspectos da vida em
conjunto que, a despeito da sua complementaridade, levam frequentemente à
existência de conflitos entre os dois sexos. Estes surgem quando o desenrolar
da estratégia comportamental de um impede que o outro desenvolva livremente a
sua própria estratégia. A teoria da interferência estratégica (Buss, 1999),
diferente da interferência própria à luta pelos mesmos recursos entre os
indivíduos do mesmo sexo, mostraria por exemplo que as emoções geralmente
associadas ao assédio sexual (zanga ou depressão por exemplo) seriam soluções
evolutivas que apresentariam a função de alertar para estas interferências.
Canalizando a atenção para elas, marcam os acontecimentos e potenciam a sua
memorização, desencadeando as acções potencialmente resolutivas do conflito. O
mesmo se aplica às diferenças no ciúme: enquanto o ciúme masculino aparece como
centrado no perigo da infidelidade sexual ' com raízes evolutivas e históricas
no problema da incerteza da paternidade ' o ciúme feminino parece relacionar-se
mais com a infidelidade emocional que põe em perigo o investimento e o
compromisso a longo prazo do parceiro (Buss et al., 1992).
Isto não significa, no entanto, que o conflito seja em si mesmo adaptativo; é
antes uma consequência das diferenças e, sempre segundo Buss, a sua existência
não contradiz a principal assunção teórica e evidência empírica de que a
competição é, primariamente, uma questão entre os indivíduos do mesmo sexo. As
observações dos comportamentos animais, em que assenta a teoria da selecção
sexual, mostraram que a competição é maioritariamente intrassexual e, no caso
dos mamíferos, sobretudo entre machos poligínicos para terem acesso às fêmeas.
Deste modo, inúmeras ocasiões serão ocasiões privilegiadas para a ocorrência de
conflito, desde as diferenças na interpretação de sinais de disponibilidade
sexual até às diferenças na avaliação da agressividade nas tácticas usadas.
Nada disto impede, no entanto, que homens e mulheres também possam competir por
recursos, nomeadamente recursos materiais ou de poder. Com efeito, embora as
diversas sociedades se diferenciem na questão da desigualdade entre os sexos,
parece ser um dado incontornável que ela frequentemente existe. A psicologia
evolutiva considera a hipótese, derivada da teoria da selecção sexual, de que
as raízes do poder masculino sobre as mulheres podem ser encontradas na co-
evolução da tendência feminina a preferir homens com recursos por um lado e,
por outro, na tendência a adquirir recursos como factor essencial da competição
entre homens, na luta pelas mulheres (Buss, 1999). Sem negar que outros
factores possam também existir (e.g. preferência pela aparência, inteligência,
industriosidade), o quadro teórico desta perspectiva sugere que este tipo de
relação entre sexos deriva das pressões que a selectividade da escolha de um
dos sexos impõe (impôs ao longo da história evolutiva) sobre os indivíduos do
sexo oposto. Estabelecem-se assim as dimensões críticas (Buss, 1999) em que
estes vão competir pelo acesso aos indivíduos do outro sexo. Acentua-se
novamente que a competição é, prioritariamente, uma competição entre membros do
mesmo sexo.
As diferenças comportamentais entre indivíduos, embora menos exploradas por
esta metateoria, poderiam ser explicadas por vários factores: experiências mais
ou menos precoces com o ambiente que canalizariam o desenvolvimento pessoal
para estratégias adaptativas diferentes, diversos ambientes frequentados na
idade adulta que activariam mecanismos particulares de adaptação, ocupação de
nichos de competitividade diferenciada. Segundo a psicologia evolutiva, cada
pessoa nasceria equipada com um reportório de estratégias potenciais típicas da
nossa espécie que o ambiente seleccionaria fechando-as em algumas só (Buss,
1999): é o caso da ausência do pai durante os primeiros cinco a sete anos de
vida, que determina expectativas sobre recursos e laços entre parceiros pouco
seguros, sendo capaz de influenciar a futura estratégia sexual do indivíduo.
Neste caso, a maturação e iniciação sexual seria precoce, a mudança de
parceiro, como estratégia propícia a um grande número de filhos relativamente
pouco investidos, seria frequente. A ausência ou presença do pai é a informação
específica que o mecanismo psicológico aqui em causa toma como relevante sendo
que as particularidades de um indivíduo implicam a existência de uma grande
variedade de traços mais ou menos relacionados, desde os fisiológicos (aqui a
precocidade da menarca) aos modelos psicológicos do mundo social (as pessoas
não são dignas de confiança), aos comportamentos (de risco, por exemplo;
Belsky, Steinberg, & Draper, 1991). De qualquer modo, a flexibilidade de
tais mecanismos é sempre uma característica maior, permitindo combinações
adaptativas e diferenciadas ao longo do tempo de vida dos indivíduos.
Outro fundamento para as variações comportamentais é a selecção dependente da
frequência (Buss, 1999). Com efeito, as adaptações tornam-se típicas de uma
espécie porque as variantes com mais sucesso tendem a substituir as de menos
sucesso; mas quando uma das variantes se torna rara, o seu sucesso aumenta
levando a que, a mais longo prazo, se instale um novo equilíbrio populacional
das variantes. É este tipo de selecção que, por exemplo, explica o equilíbrio
entre o número de indivíduos dos dois sexos.
Sem nos ocuparmos aqui de outras sofisticações da teoria como, por exemplo, a
que procura explicar a existência de psicopatias e as indicações que tem vindo
a fornecer para a psicologia clínica (Lencastre, 2011), resta acentuar que a
psicologia evolutiva se apresenta como uma teoria capaz de ultrapassar a
dicotomia natureza-cultura. De facto, longe de negar a importância e efeitos da
cultura no comportamento e pensamento humanos, a psicologia evolutiva acentua o
facto de ela ser produto da mente humana adaptada. Tooby e Cosmides (1992)
criticam a perspectiva culturalista acusando-a de usar como explicação (a
cultura) o que deve ser explicado (as diferenças culturais). Sugerem assim
diferenciar conceptualmente três níveis de análise: metacultura, cultura
evocada (evoked culture) e cultura epidemiológica. A primeira refere-se ao
facto de que toda a cultura, na medida em que é criada por uma mente produto da
evolução, depende do património genético e das suas consequências
comportamentais e sociais. As culturas devem, de algum modo, contemplar os
grandes problemas comuns a todos os humanos, nomeadamente os da sobrevivência e
da reprodução. Com o conceito de cultura evocada pretende-se referir a forma
como ambientes físicos e sociais particulares levam a que os diferentes grupos
lidem adaptativamente, de forma diferenciada, com esses problemas. É o caso das
diversas formas de partilha de alimento, por exemplo, que dependem em grande
medida da avaliação da variação futura dos recursos no ambiente. A
epidemiologia refere-se às formas como a mente adaptada cria cultura e interage
com ela: por que é que as culturas existem, como se faz a aprendizagem e a
inovação, qual o papel da linguagem e do simbolismo e, mais particularmente,
como e por que razão certas ideias são recriadas na mente de outros indivíduos,
para além do que primeiro as concebeu.
A questão da transmissão das representações mentais e os modos como
determinadas ideias se espalham mais facilmente do que outras foi também
equacionada por Dawkins (1976) com o conceito de meme8. Este corresponderia à
unidade de informação ou de cultura: tal como para o gene, o que aqui está em
causa é a sobrevivência diferencial de entidades culturais (ideias por exemplo)
que se replicam e ganham preeminência em determinado ambiente. A sua capacidade
de contágio depende da sua relevância adaptativa, da facilidade com que são
memorizados, da forma como se articulam com outros memes e da forma como dão
conta do ambiente.
Conclusão
Vimos como a etologia humana, a sociobiologia e a psicologia evolutiva, segundo
alguns dos seus autores, procuram dar conta das diferenças entre homens e
mulheres. A etologia, centrando-se na descrição dos comportamentos observados e
procurando invariantes através de estudos comparativos, para tentar compreender
o que podem ser os comportamentos diferenciais próprios à espécie e a sua
possível história evolutiva. A sociobiologia, procurando analisar os
comportamentos sociais com base na assunção teórica de que os organismos
procuram maximizar a sua vantagem inclusiva, centrando-se portanto nas
consequências comportamentais da transmissão genética diferencial. A psicologia
evolutiva, concebendo a mente adaptada como um conjunto de dispositivos de
tratamento de informação modelados pelo ambiente de adaptação evolutiva, isto
é, na sua maior parte pelas condições de vida dos grupos de recolectores-
caçadores humanos. Muitas das críticas às perspectivas biológicas sobre o
comportamento humano partem da ideia de que estas identificariam o biológico
com o inato, interpretado numa perspectiva determinista como um dado universal
e fixo, determinante mas não determinado pela acção humana. No entanto, o
conceito major de adaptação implica a ideia de interacção recíproca entre o
geneticamente programado e o ambiente, incluindo o ambiente sócio-cultural,
ambos continuamente reformulados pela acção humana. A construção cultural de
nicho humano é disso um exemplo (Laland, Odling-Smee, & Feldman, 2000). Na
moderna biologia do comportamento, se a cultura é constrangida pela natureza,
esta é também produto da cultura ' recorde-se de novo, e como exemplo
paradigmático, o caso da selecção do gene que codifica para a tolerância à
lactose devido à mudança de hábitos alimentares (ver nota 5), ou o caso da
presença ou ausência do pai para a idade da maturação sexual no estudo
mencionado acima (Belsky et al., 1991). De facto, neste texto não foram
considerados algumas propostas mais recentes da genética evolutiva (Cochran
& Harpending, 2009) ou das interacções entre biologia e cultura que nos
falam de biologias locais (Lock & Kaufert, 2001) ou de biologias culturais
(Kirnmayer, 2006), isto é, de formas genéticas e epigenéticas de selecção e de
desenvolvimento localizados que colocam em questão a universalidade dos padrões
biológicos humanos a favor de uma mais complexa diversificação evolutiva das
morfologias e dos comportamentos.
O presente artigo pretendeu apresentar aos leitores de psicologia três
perspectivas evolutivas que ensaiam explicações biológicas para as diferenças
constatadas entre os sexos em diversas culturas. Observa-se, no entanto, que a
complexidade das estruturas sócio-culturais, nomeadamente da cultura pós-
industrial contemporânea onde a discussão sobre o género tem particularmente
lugar, não é suficientemente considerada nestes textos. Com efeito, questões
como a baixa de natalidade nos países ocidentais, as dinâmicas psicossociais
das preferências individuais, as próprias discussões e políticas de género
enquanto factores de diversificação das possibilidades sociais, são pouco
tomadas em conta por estas perspectivas, o que aponta, particularmente na
sociobiologia e na psicologia evolutiva, para uma potencial conflação entre as
causas últimas e os factores próximos de motivação. De facto, as causas
últimas, como a reprodução individual, apresentam-se através de motivações
comportamentais próximas, como o desejo de contacto sexual. Este último não
precisa de ser consciente da sua causa evolutiva para se manifestar; deste
modo, podemos ter comportamentos motivados sexualmente sem o serem
reprodutivamente, o que de facto observamos nos animais, incluindo os humanos.
Em termos comportamentais e mentais, são estes mecanismos motivacionais
próximos que estão activos; a antropologia mostra por exemplo que há povos que
não estabelecem ligação entre relação sexual e reprodução, como foi notado por
Malinowski para os povos das ilhas Trobriand (Malinowski & Ellis, 1929).
Assim, entre os problemas passados e actuais de sobrevivência e de reprodução
que homens e mulheres necessariamente enfrentam e os comportamentos sociais
observados, inúmeros factores cognitivos, sociais e culturais intervêm que
solicitam explicações mais finas do que a suposição de mecanismos psicológicos
evoluídos directamente derivados das pressões selectivas. Segundo Panksepp e
Panksepp (2000) um dos problemas da psicologia evolutiva consiste na aceitação
massiva de adaptações cortico-cognitivas discretas (os módulos) como se fossem
características de Homo, quando elas reflectem as adaptações emocionais e
motivacionais mais antigas, encontradas pela etologia no grupo dos mamíferos.
Ao invés de procurar o substrato cortico-cognitivo para esses supostos módulos,
a psicologia evolutiva deveria interessar-se pelas interacções entre as zonas
mais antigas do cérebro de mamífero com as zonas corticais mais evoluídas, onde
se dão os processos perceptivos, associativos e cognitivo-linguísticos
específicos dos humanos. Daria deste modo razão aos factores cognitivos,
sociais e culturais que se articulam com os factores biológicos.
Outro tipo de questões estão também por resolver nestas disciplinas: desde
questões que dizem respeito à potencial ideologia naturalista e ao seu uso
social e político (e.g. potencial justificação das diferenças sociais, racismo,
sexismo), à linguagem utilizada que apresenta por vezes conotações finalistas
de que é difícil abstrair: é o caso da expressão estratégias evolutivas
estáveis ou de altruísmo, ainda que este último seja definido
estatisticamente como comportamento observado e não como motivação subjectiva.
Esta e outras questões abrem, portanto, interrogações sobre a linguagem e o seu
uso, nomeadamente quando se passa do contexto específico à disciplina para
outros contextos disciplinares, mais ainda, quando se passa da disciplina para
a divulgação a um público não especializado.
De facto, as disciplinas que aqui abordamos ocupam-se de comportamentos
actualmente observados, tentando reconstruir as possíveis pressões selectivas
que os modelaram. Trata-se portanto de uma reconstrução histórica e não de
uma reificação biológica comprometendo a mudança evolutiva, presente ou futura
(o que, aliás, iria contra a dinâmica evolutiva aqui apresentada). Todas estas
disciplinas apontam para a importância da intervenção consciente humana nos
contextos adaptativos de vida, no sentido em que são estes que, ultimamente,
condicionam a selecção e expressão dos comportamentos sociais. Não é a biologia
que apresenta uma perspectiva valorativa ou finalista, pressupondo um qualquer
objectivo a seguir: o facto de determinado comportamento seleccionado favorecer
a descendência futura de um dado organismo, e portanto a persistência desse
comportamento na população futura, não significa que esta seja o motivo de tal
comportamento ' a evolução é cega em relação ao futuro, diz Dawkins (2006).
Mas os humanos podem definir objectivos evolutivos e históricos desejáveis e,
nesse sentido, criarem as condições para que esses objectivos se realizem. O
conhecimento das condições biológicas dos comportamentos humanos, na sua
variedade, é um elemento central para a definição e prossecução desses
objectivos.