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EuPTHUHu0874-20492014000100006

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National varietyEu
Year2014
SourceScielo

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Perceção de justiça, discriminação e sexismo

Apesar dos progressos verificados na maior parte dos países desenvolvidos no acesso das mulheres ao mundo do trabalho, continua a verificar-se discriminação em certas áreas, como a da política (Santos, 2010), e no acesso a cargos de poder e tomada de decisão em geral. Quem contribui para a manutenção das desigualdades baseadas no sexo? Serão os membros dos grupos dominantes, dos grupos dominados, ou ambos? Como reagem, mulheres e homens, a estas desigualdades e em que situações adotarão, ou não, ações (individuais ou coletivas) para as enfrentar? Este artigo pretende responder a estas questões, através de uma revisão de literatura em torno das dinâmicas das relações intergrupais e da perceção da justiça, com especial atenção para os estudos sobre as categorias de sexo e as relações de género. Para isso, recorre a alguns modelos da psicologia social, articulando os diferentes níveis de análise considerados relevantes para a análise das relações entre grupos sociais, em particular os níveis intergrupal e ideológico (Doise, 1982).

O artigo começa por abordar três teorias clássicas sobre as relações intergrupais e o conflito intergrupal: a teoria da identidade social, o modelo dos cinco estádios e a teoria da privação relativa. Em seguida, centra-se em algumas formas de pensamento comum que justificam a discriminação ou o sistema, procurando mostrar que uma série de ideologias, sistemas de crenças, avaliações e normas, que justificam e mantêm uma ordem estabelecida de relações sociais. Entre estas formas de pensamento, salienta-se a ideologia meritocrática, a justificação do sistema e a dominância social, procurando mostrar, em resposta à primeira pergunta enunciada acima, que os membros dos grupos discriminados, como é o caso das mulheres nas relações de género, contribuem para a manutenção do status quo. Em seguida, procuramos perceber em que situações estas adotarão, ou não, estratégias/ações (individuais ou coletivas) para enfrentar a discriminação. O artigo encerra demonstrando que as novas formas de expressão do sexismo, mais subtis, também contribuem para manter o status quo.

Abordagens das Relações de Género numa Perspetiva Intergrupal Segundo Taylor e Moghaddam (1994), quando nos referimos a relações intergrupais estamos, geralmente, a falar de any aspect of human interaction that involves individuals perceiving themselves as members of a social category, or are perceived by others as belonging to a social category(p. 6).

Existem diversas abordagens sobre relações intergrupais em psicologia social, nomeadamente, a teoria dos conflitos realistas (Sherif, 1967), a teoria da identidade social (TIS) (Tajfel & Turner, 1979), a teoria da auto- categorização (Turner, Hogg, Oakes, Reicher, & Wetherell, 1987), o modelo dos cinco estádios (Taylor & McKirnan, 1984) e a teoria da privação relativa (e.g., Crosby, 1976). Este artigo centra-se na TIS e nas duas últimas teorias, nomeadamente, porque procura conhecer as perceções, os sentimentos e os comportamentos dos membros dos grupos sociais (sobretudo dos desfavorecidos) perante situações de discriminação ou injustiça, e assume que o conflito que marca as relações sociais entre homens e mulheres se baseia numa assimetria simbólica (Amâncio, 1997) que coloca os homens na posição dominante e as mulheres na posição de grupo dominado, como veremos.

Teoria da Identidade Social A formulação clássica da TIS deu-se num artigo onde Tajfel e Turner (1979) a apresentaram como sendo uma teoria integradora do conflito intergrupal. A TIS surgiu com o objetivo de explicar os fenómenos grupais, através de um quadro teórico capaz de apreender a mudança social associada aos comportamentos coletivos, nomeadamente no conflito entre grupos e movimentos sociais (Tajfel, 1984). A teoria defende que os grupos sociais podem competir entre si por prestígio social ou estatuto (Tajfel & Turner, 1979) e sugere que a busca de uma distintividade positiva do grupo de pertença, relativamente aos outros grupos, pode conduzir a um conflito intergrupal.

Esta teoria é importante no âmbito das relações intergrupais, nomeadamente, porque sugere que a mera categorização pode bastar para que ocorra discriminação intergrupal. Também define as características do sistema social que podem conduzir a comportamentos de natureza individual ou de natureza intergrupal. Trata-se do que o autor designou continuum interpessoal/ intergrupal das relações sociais (e.g., Tajfel, 1978, 1981/1982; Tajfel & Turner, 1979). Um extremo, o polo puramente interpessoal ou interindividual, inclui os comportamentos recíprocos que as pessoas dirigem umas às outras, enquanto indivíduos. O outro extremo, o polo puramente intergrupal, inclui os comportamentos que as pessoas dirigem (ou recebem) a outras pessoas que as consideram (e são consideradas por elas) apenas enquanto membros de um determinado grupo ou categoria social. Segundo a TIS, é o grau em que as pessoas se identificam como membros de um grupo social, numa determinada situação, que afetará a sua tendência para atuar através de ações/estratégias individuais ou coletivas (Tajfel, 1981/1982; Tajfel & Turner, 1979). O fator que determina como os membros de um grupo desfavorecido irão responder à desigualdade é a sua perceção da estrutura intergrupal. Se esta for percebida como ilegítima ou instável, isso contribui para a consciência das alternativas à estrutura intergrupal existente, o que conduzirá a uma variedade de respostas coletivas para melhorar a situação do grupo. A ausência de consciência de alternativas conduzirá apenas a tentativas individuais de mobilidade ou à aceitação da posição de desvantagem.

Esta teoria influenciou vários dos modelos que abordaremos neste artigo, podendo ser útil para se perceber melhor as relações de género (Cameron, 2001; Cameron & Lalonde, 2001), particularmente em contextos com fronteiras intergrupais restritas - conhecidos na literatura por tokenism (e.g., Kanter, 1977; Wright, 2001) -, como é o caso da política (Santos, 2010). Contudo, também é sabido que a TIS é, por vezes, redutora, tendo várias aplicações falhado na apreensão quer dos contornos afetivos, quer ideológicos, das relações de género (e.g., ver Amâncio, 1994; Cameron & Lalonde, 2001), que se revelaram mais complexas do que o que a investigação sobre a identidade social reconheceu inicialmente.

Modelo dos Cinco Estádios Um dos modelos influenciado pela TIS é o modelo dos cinco estádios de Taylor e McKirnan (1984), sobre o conflito intergrupal e a mudança. Segundo este modelo, raramente existe uma relação de perfeita igualdade entre os grupos sociais. Por isso, procura explicar as relações entre os grupos nas situações em que um dos grupos é dominante (e.g., os homens) e o outro é dominado (e.g., as mulheres), centrando a sua análise em ambos os grupos no sentido de identificar as suas respostas/ações face à situação de desigualdade.

O modelo assume que todas as relações intergrupais envolvem cinco etapas na mesma ordem sequencial. Estas tanto podem completar-se em longos períodos de tempo, como num curto espaço de tempo, dependendo de fatores históricos, sociais, económicos, políticos e psicológicos. Para além da relevância da situação social global, das táticas de dominação do grupo dominante e das propostas do grupo dominado, os processos básicos da atribuição causal e da comparação social estão subjacentes a cada um dos estádios e controlam a transição entre eles (Taylor & McKirnan, 1984). As etapas são as seguintes: I. elações intergrupais claramente estratificadas - a primeira etapa caracteriza-se por apresentar uma situação social de estratificação baseada exclusivamente na pertença de grupo, resultando numa relação rígida dominante- subordinado entre os grupos, onde as barreiras parecem de tal forma intransponíveis a ambos que estes nem sequer as questionam; II. emergência da ideologia sócio-individualista - nesta fase acreditam que a estratificação se baseia na realização individual (ideologia meritocrática). As fronteiras entre os grupos não parecem intransponíveis e o grupo dominante vê-se obrigado a modificar as suas táticas. Ambos os grupos sociais consideram que o baixo estatuto do grupo dominado se deve à sua baixa capacidade e esforço. Ao culpar o grupo dominado pela sua situação, o grupo dominante exime a sua própria responsabilidade na criação das barreiras sociais entre os grupos e, por seu lado, os membros do grupo dominado legitimam a perceção de que o estatuto social depende da capacidade e do esforço de cada pessoa; III. mobilidade social- nesta fase um número restrito de membros do grupo dominado tenta ultrapassar as fronteiras intergrupais e passar para o grupo dominante e uma parte consegue fazê-lo. Porém, trata-se ainda de uma rutura parcial e limitada, porque alguns têm sucesso (i.e., os que se destacam pela sua capacidade, designados tokens). Neste caso, o grupo dominado divide-se, fortalecendo as atribuições e as comparações sociais que permitem que a situação permaneça igual, como pretende o grupo dominante, ou seja, os que conseguiram melhorar a sua posiçãoatribuirão esse sucesso ao seu próprio mérito e os que não o conseguiram atribuirão esse fracasso à sua baixa capacidade.

Nesta etapa, as comparações continuam a estabelecer-se entre indivíduos e não entre os grupos; IV. tomada de consciência- esta acontece aos membros do grupo dominado que, na etapa 3, são mal sucedidos na tentativa de mudança de posição. Neste caso, tentam persuadir os membros do seu grupo de que o seu estatuto é coletivamente definido e ilegítimo, podendo levá-los a adotar ações coletivas para tentarem alterar a situação; V. relações intergrupais competitivas- tendo tomado consciência da situação, o grupo dominado faz comparações intergrupais e compete diretamente com o grupo dominante, podendo então adotar ações coletivas para tentar melhorar a situação. As estratégias coletivas previstas neste modelo são as mesmas que Tajfel e Turner (1979) definiram, ou seja, a competição coletiva, a redefinição das características do grupo (e.g., o movimento Black is beautiful entre os negros norte-americanos) e a criação de novas dimensões de comparação social por parte do grupo dominado.

Estimulados pelo modelo de Taylor e McKirnan (1984), vários autores (e.g., Wright, 2001; Wright, Taylor, & Moghaddam, 1990) têm desenvolvido a sua investigação centrando-se no tokenism. São assim designadas as dinâmicas dos contextos com fronteiras intergrupais restritas que os grupos sociais desfavorecidos, como as mulheres, encontram (ver Santos & Amâncio, no prelo, para uma revisão da literatura). Avançaremos apenas que o tokenism constitui uma forma de discriminação, subtil, mas muito poderosa (Taylor & Moghaddam, 1994), nomeadamente porque, como são contextos ambíguos (por não serem nem totalmente abertos, nem totalmente fechados), conduzem apenas a ações individuais por parte dos grupos desfavorecidos (Wright et al., 1990), mantendo o status quo.

Teoria da Privação Relativa Um dos grandes desafios para qualquer teoria sobre relações intergrupais é perceber as condições que levam os membros dos grupos dominados a adotar ações para melhorarem a sua situação (Taylor & Moghaddam, 1994), ou a razão pela qual aceitam, muitas vezes, a situação, como acontece frequentemente no caso das mulheres (Crosby, 1982; Roux, Perrin, Modak, & Voutat, 1999). Na verdade, apesar do seu estatuto, visivelmente menos elevado, poucas evidências que mostrem que, em geral, as mulheres estão mais descontentes com a sua situação dos que os homens (Crosby, 1982). Aparentemente, no que diz respeito aos sentimentos das pessoas, não qualquer relação entre o seu estatuto (objetivo) e as suas experiências (subjetivas). Os primeiros investigadores a captarem este fenómeno foram Stouffer e colaboradores (Stouffer, Suchman, DeVinney, Star, & Williams, 1949). Os autores recorreram ao conceito de privação relativa para explicar a diferença de aspirações e expectativas entre os dois grupos, sendo a identificação com o grupo central nesta teoria. A partir desta investigação inicial, várias/os autoras/es têm analisado esta questão (e.g., ver Crosby, 1976, 1982, 1984; Foster & Matheson, 1995; Runciman, 1966, Walker & Smith, 2002) desenvolvendo a teoria (ou teorias) da privação relativa.

Faye Crosby, para além de ter realizado uma revisão de literatura sobre o tema, também deu origem a uma nova teoria, clarificando a natureza e o número de pré- condições necessárias e suficientes para se experimentar o sentimento de privação relativa (Crosby, 1976).Para a autora, a pessoa pode experimentar sentimentos negativos de privação relativa quando: percebe que outra pessoa tem X, quer X, considera ter o direito a ter X, considera que é possível obter X, e não se sente pessoalmente culpada por não ter X. Assim, são pré-condições da privação relativa o desejo, o ter direito, a comparação com os outros, a praticabilidade/possibilidade e a ausência de culpa. A não satisfação destas condições pode provocar deceção, indignação ou ciúme. Importa sublinhar que o conceito de privação relativa integra duas componentes: uma componente cognitiva (e.g., a perceção de que , efetivamente, diferenças ilegítimas) e uma componente emotiva (e.g., um sentimento de descontentamento, de raiva).

Houve, inicialmente, alguma evidência empírica que suportou este modelo (e.g., Bernstein & Crosby, 1980). Contudo, mais tarde, baseando-se em resultados de outros estudos (e.g., Crosby, 1982), a própria autora conclui que bastam duas pré-condições para prever adequadamente a privação relativa - o desejo e o sentimento de ter direito a. Crosby acredita que pode haver uma discrepância entre os resultados reais e os desejados e entre os resultados reais e os merecidos. Estudos mais recentes (e.g., Olson, Roese, Meen, & Robertson, 1995) suportam parcialmente o modelo, apesar de os seus resultados não mostrarem que os dois fatores são ambos necessários para produzir ressentimento, que o desejo foi o preditor mais importante.

Tougas e colegas (e.g., Tougas & Veilleux, 1989; Tougas & Beaton, 2002; Veilleux & Tougas, 1989) salientam outro tipo de privação relativa, introduzido por Runciman (1966): a privação relativa pelos outros. Trata-se de um sentimento de descontentamento que é experimentado por um membro do grupo favorecido que percebe que um membro de outro grupo está desfavorecido na sociedade. Recorrendo ao exemplo da ação positiva, enquanto a privação relativa coletiva foi usada como preditor do apoio das mulheres aos programas de ação positiva (e.g., Tougas & Veilleux, 1989), no caso dos homens pode haver reações opostas, mas também pode haver reações favoráveis2. Alguns autores (e.g., Pettigrew, 2002; Walker & Smith, 2002) consideram que a privação relativa pelos outros é suficientemente comum para ser digna de mais atenção.

Runciman (1966) foi pioneiro a analisar a privação relativa em contextos interpessoais e intergrupais, distinguindo entre a privação egoísta (produzida por comparações interpessoais) e privação fraterna (produzida pela comparação intergrupal). Porém, Crosby (1982) contribuiu para se perceber melhor esta diferenciação, ao distinguir privação pessoal (egoísta) e grupal(fraterna).

Runciman (1966) considera que estes dois tipos de comparações têm consequências diferentes. No caso em que as pessoas experimentam um sentimento de privação relativa fraterna, isso pode fazer com que elas adotem comportamentos coletivos que procuram tanto a mudança social, como a manutenção do status quo.Já osentimento de privação relativa egoísta (e.g., o stresse) pode levar a comportamentos individuais que visam apenas a alteração da situação pessoal.

, de facto, investigação que mostra que os protestos coletivos estão mais correlacionados com os sentimentos de privação fraterna do que com os de privação egoísta (e.g., Dubé & Guimond, 1986; Guimond & Dubé-Simard, 1983) e que o descontentamento pessoal prediz os comportamentos autodirigidos.

Contudo, algum consenso na literatura em como a distinção pessoal/grupal é muitas vezes mal compreendida, mal operacionalizada ou ignorada (e.g., Bernstein & Crosby, 1980; Walker & Pettigrew, 1984). Mesmo quando tal acontece, a passagem para o comportamento continua a ser um problema para esta teoria (Wright et al., 1990). Apesar de tudo, estudos que ilustram a relevância desta distinção entre as variáveis pessoais e grupais, tanto a nível das pré-condições, como das consequências comportamentais (e.g., ver Olson et al., 1995). Neste âmbito, a TIS sugere uma solução importante (Tyler & Smith, 1998), ao defender que dois tipos de identidade que contribuem para o autoconceito: a identidade pessoal e a identidade social. Esta distinção sugere que se a identidade pessoal está saliente, as pessoas farão mais comparações interpessoais entre elas próprias e as outras que levam a sentimentos de privação relativa individual. Mas se a identidade social é relevante, ou a relação com o grupo está saliente, as pessoas estão mais predispostas para realizar comparações intergrupais entre os membros do grupo de pertença e os do outro grupo, podendo conduzir a sentimentos de privação relativa do próprio grupo. Assim, o mais importante não é o alvo de comparação, mas antes se as pessoas se veem como indivíduos isolados ou como membros de um grupo. Todavia, para Tropp e Wright (1999), a simples distinção pessoal/ grupal pode ser problemática, visto não considerar situações onde as pessoas expressam privação pessoal, em comparação com membros de outros grupos sociais (e.g., no caso das mulheres, podem ocorrer três situações: haver comparações entre uma mulher e outra mulher; entre uma mulher e um homem; ou entre mulheres e homens). Para além da importância do grupo alvo de comparação, Tropp e Wright (1999) mostraram que a identificação com o grupo de pertença também é importante na distinção entre privação relativa fraterna e egoísta. Quando uma pessoa expressa insatisfação relativamente à posição do seu grupo, presume-se uma segmentação da sociedade em grupos e a identificação da pessoa com o grupo de pertença (Guimond & Dubé-Simard, 1983). Segundo Tougas e Veilleux (1989), a intensidade desta identificação pode afetar o nível de privação relativa fraterna experimentado e este, por sua vez, pode levar as pessoas a adotar, ou não, ações coletivas.

Apercebendo-se da complexidade da questão que levará, ou não, as pessoas à ação coletiva, Foster e Matheson (1995) retomam o conceito identificado por Runciman (1966), e propõem um modelo que liga os dois tipos de privação, a privação relativa dupla, correspondendo aos casos em que , simultaneamente, perceção da privação relativa pessoal e grupal. Aparentemente, a privação relativa individual pode motivar as pessoas a agirem coletivamente (e.g., quando uma pessoa é sujeita a uma situação de extrema violência, pode agir para prevenir que volte a repetir-se), no entanto, muitas vezes, não recorrem à ação, nem agem em benefício do grupo de pertença. Tal pode dever-se à tendência para as pessoas tolerarem a privação pessoal (Olson & Hafer, 2001). Por outro lado, como vimos, a privação relativa grupal é um importante percursor para a ação coletiva (Dubé & Guimond, 1986), mas a literatura revela uma relação apenas moderada entre a privação relativa grupal e a ação coletiva (Guimond & Dubé-Simard, 1983; Hafer & Olson, 1993). Com efeito, muitas mulheres, e membros de minorias visíveis, reconhecem que o seu grupo é discriminado, mas poucas são as que adotam ações para alterar a situação (Taylor, Wright, Moghaddam, & Lalonde, 1990). Segundo Foster e Matheson (1995), tal acontece quando apenas privação relativa grupal. É provável que se deva ao facto de as pessoas geralmente minimizarem as suas experiências de discriminação pessoais. Este fenómeno que, por exemplo, Crosby (1982) designou por "efeito de negação da discriminação pessoal", será desenvolvido adiante. Nestes casos, a pessoa até pode considerar o sistema injusto, mas se não sente privação relativa individual, pode pensar que o problema não é dela e, por isso, não recorre à ação coletiva para alterar a situação. Smith, Spears e Oyen (1994) mostraram que os sentimentos de privação relativa coletiva podem inclusivamente ser subvertidos se as pessoas estiverem em vantagem pessoal. Assim, o reconhecimento da privação relativa individual não parece implicar o reconhecimento da privação relativa grupal e vice-versa. Aliás, não parece haver uma conexão lógica entre as duas formas de privação (Ellemers, 2002).

Para haver ação, o ideal é que se experimente a privação relativa dupla (Foster & Matheson, 1995). No ponto seguinte, abordaremos a discriminação, focando particularmente algumas das estratégias e ideologias que a procuram justificar.

Ideologias que justificam o sistema A literatura tem salientado várias ideologias que servem para justificar a discriminação ou o status quo (Jost & Hunyady, 2005). Estas são uma base de poder fundamental, constituindo um elemento estruturador e legitimador do sistema (Pratto & Walker, 2004), nomeadamente, porque também são assimiladas pelos membros dos grupos dominados. Destacamos a ideologia meritocrática, a justificação do sistema, a dominância social e, no ponto seguinte, a crença num mundo justo.

Ideologia Meritocrática A meritocracia é particularmente eficaz quando se trata de justificar a discriminação face a certos grupos sociais. Segundo esta ideologia, considerada fundamental na sociedade ocidental (Jost & Hunyady, 2005; Sidanius & Pratto, 1999; Taylor & McKirnan, 1984), o sucesso ou fracasso da mobilidade individual é determinada por fatores internos, ou seja, qualquer pessoa, sem restrições, poderá chegar até onde a sua própria capacidade, mérito, esforço, desempenho, etc., lho permita.

Como foi referido noutro trabalho (ver Santos & Amâncio, 2010), a meritocracia tem sido entendida como um dos princípios centrais da justiça distributiva (e.g., Deutsch, 1975; ver também Bobocel, Son Hing, Davey, Stanley, & Zanna, 1998; Son Hing, Bobocel, & Zanna 2002; Son Hing, Bobocel, Zanna, Garcia, Gee, & Orazietti, 2011), sendo considerada por muitas pessoas como um princípio de justiça ideal, porque, quando é feita a distribuição dos resultados, apenas os resultados relevantes, como as habilidades, devem ser considerados e outros fatores como a classe, a etnia e o sexo, devem ser ignorados (Son Hing et al., 2011). Evidências mais recentes mostram que, na prática, os últimos fatores interferem na distribuição dos resultados (McNamee & Miller, 2004), favorecendo os grupos dominantes que são quem, geralmente, controla o processo de avaliação (Son Hing et al., 2011).

Por essa razão, a meritocracia também tem sido entendida como uma ideologia que serve para ajudar a manter e legitimar as desigualdades que existem na sociedade (e.g., Jost & Banaji, 1994; Sidanius & Pratto, 1999). Com efeito, o facto de vários grupos sociais, como as mulheres, sofrerem discriminações coloca em causa a justiça da ideologia meritocrática (Blanchard & Crosby, 1989). Portanto, mais do que de meritocracia parece antes tratar- se de uma ilusão da meritocracia (Ellemers & Barreto, 2009) que serve para manter a desigualdade entre os grupos sociais (e.g., Jost & Banaji, 1994; Sidanius & Pratto, 1999). Trata-se de uma ilusão, porque parece que é aplicada a todos os indivíduos, independentemente da sua pertença grupal, contudo, as oportunidades dos membros dos grupos de baixo estatuto são bastante restritas devido à sua pertença grupal e não uma mera falta de capacidade, esforço, ou de mérito. Por exemplo, no caso da política, contexto ainda dominado pelos homens (Bettencourt & Pereira, 1995), o argumento do mérito parece relevante no caso das mulheres, como se percebe nos debates sobre as quotas e a Lei da Paridade que promovem a sua representação na política (Santos, 2010). Ora, (...) falar de quotas contrapondo o mérito é partir do princípio do desmérito das mulheres (Barbosa, 2008, pp. 55-56), o que revela a existência de preconceito. A ilusão da meritocracia permite, assim, que os membros dos grupos dominantes aumentem a confiança e a autoestima, mantendo as suas consciências limpas (Montada, Schmitt, & Dalbert, 1986) e, por outro lado, que os membros dos grupos dominados permaneçam com a sua situação desfavorecida, mas satisfeitos, como veremos no ponto seguinte. Em suma, a meritocracia pode ser entendida como uma ideologia legitimadora da hierarquia social, servindo para justificar o sistema e manter o status quo(e.g., Jost & Banaji, 1994; Sidanius & Pratto, 1999). Numa investigação recente, a partir da distinção entre crenças descritivas (i.e., crença de que a meritocracia existe na sociedade) e prescritivas (i.e., crença de que a meritocracia deve existir na sociedade) sobre meritocracia, Son Hing et al.

(2011) acrescentam que as crenças descritivas podem, de facto, servir de ideologia legitimadora da hierarquia que justifica as desigualdades sociais atuais. as crenças prescritivas refletem uma preferência por uma norma da justiça distributiva, podendo apoiar políticas que desafiam o status quo(ver Son Hing et al., 2011).

Teoria da Justificação de Sistema A teoria da justificação do sistema (TJS), avançada por Jost e Banaji (1994) e apoiada pela investigação realizada ao longo de mais de uma década (e.g., Jost, Banaji, & Nosek, 2004; Jost & Hunyady, 2002, 2005; Jost, Burgess & Mosso, 2001; Jost, Blount, Pfeffer, & Hunyady, 2003; Jost, Pelham, Sheldon, & Sullivan, 2003), propõe que desigualdades entre os grupos em todas as sociedades e que um motivo, socialmente adquirido, para as pessoas perceberem o status quo como sendo bom, justo, legítimo e desejável. Uma consequência desta tendência é que as disposições sociais, económicas e políticas existentes tendem a ser preferidas e as alternativas ao status quo tendem a ser menosprezadas. A justificação do sistema refere-se, portanto, a uma tendência inerentemente conservadora para defender, justificar e racionalizar o status quo simplesmente porque ele existe e, às vezes, mesmo à custa do interesse da própria pessoa ou o do seu grupo. Frequentemente, as pessoas desfavorecidas pelo sistema social (e.g., as mulheres) tornam-se as suas maiores defensoras (e.g., Jost et al., 2004).

A TJS surgiu num esforço de integrar e expandir algumas das teorias existentes, no sentido de perceber como é que os processos de estratificação da sociedade se tornaram legitimados (Jost & Hunyady, 2002). Por exemplo, como a TIS localiza todo o comportamento social num continuum que varia entre o comportamento interpessoal e o intergrupal (Tajfel & Turner, 1979), não consegue responder adequadamente ao facto de as desigualdades que existem nos sistemas sociais serem mantidas porque as pessoas os apoiam, mesmo quando outro sistema diferente que possa servir melhor os seus interesses ou os do grupo de pertença (Jost, 1995). Também o trabalho sobre a tolerância à injustiça por parte das pessoas desfavorecidas parece contradizer a noção de que as pessoas e os grupos defendem os seus interesses e identidades (Jost & Hunyady, 2002). O mesmo acontece com a teoria da crença num mundo justo, segundo a qual as pessoas acreditam (ainda que implicitamente) que têm o que merecem e merecem aquilo que têm (Lerner & Simmons, 1966; ver Alves, 2008 e Correia, 2003, para uma revisão da literatura).

Embora pareça não haver dúvidas de que o interesse pessoal e a identificação com o grupo motivam o comportamento humano, esta linha de investigação tem revelado um motivo diferente e, muitas vezes, poderoso, ou seja, o motivo para defender e justificar o status quo, mesmo entre as pessoas que são menos favorecidas por ele (Blasi & Jost, 2006; Jost et al., 2004). Para Jost (1995), a legitimação das sociedades altamente estratificadas está, de alguma forma, dependente da falsa consciência3 destas pessoas.

A teoria explica os contornos deste motivo, assim como os contextos em que ele opera. Defende que as pessoas não estão apenas motivadas para se avaliarem positivamente a si próprias e aos grupos de pertença (pressuposto da TIS), estão também motivadas para avaliarem positivamente o sistema social em que se inserem. Assim, as pessoas não pretendem apenas beneficiar de atitudes favoráveis sobre si próprias (justificação do ego ou autointeresse) e sobre os seus grupos (justificação do grupo ou favoritismo do grupo de pertença), também pretendem atitudes favoráveis sobre a ordem social (justificação do sistema, da estrutura social, das instituições, das organizações ou do governo) em que se inserem (Jost & Banaji, 1994; Jost et al., 2004). O motivo expresso nas atitudes e comportamentos variará consoante a pessoa e a situação. Por exemplo, as pessoas nem sempre irão apoiar o status quo, porque os motivos da justificação pessoal ou do grupo podem exceder o motivo da justificação do sistema em certas circunstâncias (Blasi & Jost, 2006). Contudo, na maior parte das vezes, uma tendência conservadora para estas aceitarem a legitimidade de qualquer "ordem hierárquica" existente e para perceberem as instituições existentes e as práticas como sendo razoáveis e justas (Blasi & Jost, 2006).

Nesta perspetiva, as pessoas podem apoiar o sistema devido a razões que se prendem com fatores cognitivos (e.g., fatores de processamento da informação, como a consistência cognitiva, o conservadorismo cognitivo, redução da incerteza), motivacionais (e.g., medo da igualdade, ilusão de controlo e crença num mundo justo, Jost et al., 2003) e variáveis estruturais e ideológicas.

Ao nível individual, as crenças e ideologias que justificam o sistema (sobretudo quando entra em conflito com outros interesses e motivos) servem de função paliativa, reduzindo os efeitos negativos associados à desigualdade social, como a ansiedade, a culpa, a dissonância e a incerteza, e aumentando os efeitos positivos, como a satisfação com a situação (Jost et al., 2003; Jost & Hunyady, 2002, 2005). Por exemplo, usar a ideologia meritocrática serve para as pessoas se sentirem melhor com a sua própria situação, independentemente de como ela, de facto, está. Por isso, é prejudicial para os membros dos grupos dominados, visto que a satisfação que provoca previne a luta pela mudança da estrutura social. Em vez de atribuírem a sua situação à discriminação ou a injustiças sociais, acreditam que se trata de uma situação merecida e legítima. Esta ilusão da meritocracia permite que as pessoas desfavorecidas permaneçam numa situação de desvantagem social, mas aparentemente satisfeitas e, por outro lado, que as favorecidas aumentem a confiança e a autoestima (Montada et al., 1986), mantendo o poder. Do ponto de vista da perspetiva de coping, , segundo Jost e Hunyady (2002), várias razões para as pessoas aceitarem os potenciais custos resultantes da adoção das ideologias que justificam o sistema, incluindo, por exemplo, a preservação da esperança ou a negação da discriminação e a perceção de controlo, a que voltaremos adiante. Basicamente, as pessoas adotam a justificação do sistema para lidarem melhor com as realidades injustas e desagradáveis que parecem inevitáveis.

Ao nível grupal tanto os membros dos grupos dominantes, como os dos grupos dominados, que recorrem às ideologias para justificar o sistema, tendem a perpetuar ostatus quo, avaliando mais favoravelmente os membros dos grupos dominantes do que os dos grupos dominados, tanto através de medidas implícitas, como explícitas (Jost & Hunyady, 2002, 2005). Contudo, algumas diferenças importantes consoante o estatuto do grupo (Jost & Hunyady, 2005). No caso do grupo dominante, a justificação do sistema está associada ao aumento da autoestima, ao bem-estar subjetivo (Jost & Thompson, 2000) e ao aumento do favoritismo do grupo de pertença (Jost et al., 2004). no caso do grupo dominado, a justificação do sistema está associada à diminuição da autoestima e do bem-estar subjetivo (Jost & Thompson, 2000), ao aumento do neuroticismo e depressão (Jost & Hunyady, 2002), à ambivalência do grupo de pertença (Jost & Burgess, 2000), à diminuição do favoritismo do grupo de pertença e ao aumento do favoritismo pelo outro grupo (Jost et al., 2004). Os membros dos grupos dominados estão confrontados com um potencial conflito entre a necessidade de justificarem ostatus quo e o motivo que adotam para aumentar a sua própria autoestima e ostatus quo do seu grupo. Consequentemente tendem a sofrer, em termos de bem-estar subjetivo (Jost & Thompson, 2000).

Finalmente, aonível do sistema, consequências claras da justificação do sistema para a legitimidade percebida e a estabilidade do sistema social (e.g., Jost et al., 2003). Por exemplo, os estudos realizados por Jost et al. (2003) sugerem que os motivos para racionalizar o status quo podem levar os dominados a defender as autoridades e as instituições existentes, a apoiar as limitações que existem nos direitos a criticar o governo e a reconhecer legitimidade no sistema económico. Em síntese, o ser humano é um animal ideológico (Jost & Hunyady, 2005); a maioria das pessoas possui pelo menos alguma motivação para perceber as disposições sociais, económicas e políticas que as afetam como sendo justas e legítimas.

Teoria da Dominância Social A teoria da dominância social (TDS), de Sidanius e Pratto (1999), procura perceber os fenómenos da opressão, do preconceito e da discriminação existentes nas sociedades. Para tal, procura integrar diferentes níveis de análise no sentido de explicar como as forças psicológicas, sociais, estruturais, ideológicas e institucionais contribuem para a produção e reprodução das diferentes formas de opressão social. A teoria parte do pressuposto de que todas as sociedades tendem a estruturar-se através de sistemas de grupos baseados em hierarquias sociais (Sidanius & Pratto, 1999). Supõe a existência de uma perceção da sociedade estruturada, com um grupo dominante e hegemónico no topo da pirâmide (ou um número reduzido de grupos) e os demais grupos dominados na parte inferior da pirâmide. O grupo dominante é caracterizado por possuir valores sociais positivos desproporcionalmente compartilhados (i.e., os bens materiais e simbólicos que as pessoas se esforçam para conseguir, como poder, autoridade, elevado estatuto). os grupos dominados possuem valores sociais negativos amplamente compartilhados (e.g., baixo poder e estatuto social e ocupações com risco elevado). A teoria procura, por um lado, identificar os mecanismos que produzem e mantêm esta hierarquia baseada nos grupos sociais e, por outro, perceber como estes mecanismos interagem.

Sidanius e Pratto (1999) distinguem entre as hierarquias sociais baseadas nos grupos e nos indivíduos. As hierarquias sociais baseadas nos grupos estão relacionadas com o poder social, o prestígio e privilégio que uma pessoa possui por pertencer a um determinado grupo (e.g., a uma classe social, etnia ou sexo). Nas hierarquias sociais baseadas nos indivíduos,as pessoaspodem desfrutar do poder, do prestígio, etc., graças às suas características individuais (e.g., inteligência e talento). Os dois tipos de hierarquias não são independentes, sendo mais comum que as realizações pessoais e o estatuto das pessoas estejam relacionados com o estatuto e o poder dos grupos de pertençado que o contrário.

Sidanius e Pratto (1999) também distinguem três sistemas de estratificação que consideram universais: (i) um baseado na idade (onde as pessoas adultas e de meia idade têm um poder desproporcionado sobre as crianças e as jovens); (ii) outro baseado no género (segundo o qual os homens têm mais poder social e político do que as mulheres); e (iii) outro baseado no que designam conjunto arbitrário (arbitrary set, que consiste em determinadas distinções, socialmente construídas e altamente salientes, baseadas em características como etnia, estado, nação, classe social e religião). De todos estes sistemas, o mais estável, e em que é mais improvável a mudança do papel, é o que se baseia no género. O sistema baseado em divisões arbitrárias está mais associado a elevados graus de violência, opressão e barbárie.

Segundo esta teoria, a hierarquia social baseada nos grupos produz-se e mantém- sedevidoa três processos básicos: (i) conjunto de discriminações individuais - refere-se aos atos individuais quotidianos simples, e por vezes bastante discretos, de discriminação de uma pessoa face a outra; (ii) conjunto de discriminações institucionais - refere-se às regras, procedimentos e ações das instituições públicas ou privadas (e.g., parlamentos, hospitais ou escolas) que promovem, implícita ou explicitamente, distribuições assimétricas e desproporcionadas de valores negativos e positivos, a partir da hierarquia social instituída. As instituições também ajudam a manter a hierarquia social, através do uso do terror sistemático (i.e., violência direcionada desproporcionalmente aos grupos dominados); e (iii) a assimetria comportamental - refere-se às diferenças comportamentais das pessoas que pertencem a grupos situados em diferentes níveis do continuumdo poder social. Estas diferenças podem contribuir e ser reforçadas pelas relações hierárquicas baseadas nos grupos dentro do sistema. Segundo Sidanius e Pratto (1999), estes três processos são regulados por mitos legitimadores(i.e., atitudes, valores, crenças, estereótipos, ideologias que justificam, moral e intelectualmente, as práticas sociais que mantêm os valores sociais dentro do sistema social) que servirão às pessoas para apoiar um sistema de hierarquia social baseado nos grupos, isto é, justificam a dominância social. mitos paternalistas (a hegemonia serve a sociedade, olha pelas minorias incapazes); mitos recíprocos (sugere que a hegemonia e os outros grupos são realmente iguais); e mitos sagrados (o direito Divino dos reis - mandato aprovado pela religião para a hegemonia governar).

Nesta perspetiva, o sexismo pode ser visto como uma ideologia que mantém as diferenças entre homens e mulheres, favorecendo a superioridade dos homens (Sidanius & Pratto, 1999). Também a meritocracia é um exemplo de um mito legitimador, sendo o sistema social discursivamente baseado no mérito. As pessoas mais orientadas para a manutenção da hierarquia social baseada nos grupos (i.e., com uma maior orientação para a dominância social4) são mais propensas a apoiar as crenças associadas ao mérito (e.g., a crença num mundo justo, a crença de que igualdade de oportunidades entre os grupos e a ideia de que os resultados refletem a competência das pessoas) (Pratto et al., 1994).

Ambiguidade da Situação, Negação da Discriminação e Manutenção do Status Quo O interesse pela investigação sobre a perspetiva das pessoas que são sujeitas a preconceito e discriminação (e.g., Crocker & Major, 1989; Crosby, 1982, 1984) conduziu a um novo desenvolvimento teórico, centrado nas consequências da discriminação para estas pessoas. Segundo Crocker e Major, a pertença a um grupo discriminado/estigmatizado tem consequências importantes para os membros que o integram. Crocker, Major e Steele (1998) identificaram quatro consequências importantes - a experiência de sofrer preconceito e discriminação; a consciência de ter uma identidade social negativa; a ameaça do estereótipo; e a ambiguidade atribucional - das quais destacamos a última.

Segundo Crocker e Major (1989), muitas vezes, os membros dos grupos estigmatizados não têm a certeza quanto à razão pela qual são tratados da forma como o são, nem porque têm os resultados que têm, sejam maus ou bons, ou seja, vivem num estado crónico de ambiguidade atribucional (p. 346). Esta ambiguidade prende-se com o grau de incerteza sobre se as consequências derivadas de um facto são indicativas do que se merece pessoalmente ou do preconceito social que os outros manifestam face aos membros do grupo social a que se pertence (Major & Crocker, 1993). É, provavelmente, devido a esta ambiguidade que se têm encontrado discursos contraditórios por parte de algumas mulheres portuguesas, nomeadamente, em posições de liderança (Nogueira, 1996), como gestoras (Rodrigues, 2008), médicas e juízas (Marques, 2011) e políticas (Santos, 2010), que, ao relatarem o seu percurso profissional, ora salientam o mérito pessoal, ora destacam os enormes obstáculos que tiveram de enfrentar para chegarem aos cargos que ocupam.

Esta teoria analisa a forma como as pessoas resolvem a situação de ambiguidade, mostrando como elas utilizam a informação disponível para determinar se existe, ou não, preconceito tanto nos casos em que sinais claros para uma resposta afirmativa, ou negativa, como nos casos em que os sinais são mais subtis (Crocker & Major, 1989). Geralmente, consideram que a consequência negativa obtida se deveu ao preconceito quando têm a certeza de que a pessoa responsável é preconceituosa e quando fortes normas sociais contra a expressão das atitudes preconceituosas (Major & Crocker, 1993). Nesta perspetiva, as pessoas estigmatizadas são percebidas como ativas, podendo posicionar-se quando têm consciência das formas de preconceito e discriminação existentes na sociedade, nomeadamente através da adoção de ações individuais ou coletivas.

Porém, como vimos, no caso das relações de género, este posicionamento não é linear. De facto, as mulheres nem sempre reconhecem que o seu grupo é discriminado. E nos casos em que o reconhecem, nem sempre estão cientes da sua própria desvantagem pessoal (Crosby & Clayton, 2001). Este fenómeno tem sido ilustrado pela literatura como um "efeito de negação da discriminação pessoal" (Crosby, 1982); de "minimização da discriminação pessoal" (Roux et al., 1999); ou "discrepância entre discriminação pessoal/ grupal" (Taylor et al., 1990), e que se caracteriza pelo facto de, neste caso, as mulheres perceberem uma maior discriminação dirigida ao seu grupo do que a elas próprias.

Allport (1954) tinha especulado que as minorias tendem a acomodar-se à maioria e a negar ou minimizar a sua experiência pessoal com a discriminação, como um meio de se defenderem dela. Porém, Crosby (1982, 1984) aprofundou o conhecimento sobre a origem deste paradoxo. Analisando a privação pessoal e grupal, a autora verificou que as mulheres, mesmo em situações de discriminação evidente (e.g., a nível salarial), raramente se perceberam a si próprias como vítimas, não expressando uma maior insatisfação do que os homens. Desde então, outras investigações têm sido realizadas, com mulheres e minorias (e.g., Cameron, 2001; Guimond & Dubé-Simard, 1983; Olson et al., 1995; Ruggiero & Taylor, 1995; Taylor et al., 1990), confirmando a existência dessa discrepância. Muitas mulheres continuam a acreditar que as coisas estão pior para as outras do que para elas próprias (Clayton & Crosby, 2000). Trata-se de um fenómeno psicológico relevante, sobretudo quando se procura perceber como é que a experiência da discriminação é vivida pelas pessoas que a sofrem, e como atuam para a enfrentar. Têm sido avançadas várias explicações, nomeadamente, relacionadas com fatores motivacionais e cognitivos.Segundo a primeira explicação, amotivação para negar a discriminação pessoal baseia-se num impulso de autoproteção (Crocker & Major 1989) para evitar as consequências emocionais negativas (Crosby, 1984) e manter um sentido de controlo sobre o mundo (Roux et al., 1999; Ruggiero & Taylor, 1995). De acordo com a segunda explicação, dificuldades em obter e processar a informação sobre a evidência e a prevalência da discriminação (Crosby & Clayton, 2001).

Teoria da Crença num Mundo Justo Segundo Crosby (1984), a discrepância da negação também pode ser percebida como um sintoma da necessidade que as pessoas têm para acreditar que o mundo é justo. De facto, Lerner, autor da teoria da crença num mundo justo (CMJ) (e.g., Lerner, 1980; Lerner & Simmons, 1966), considera que, como é difícil as pessoas aceitarem a arbitrariedade que caracteriza o mundo, estas precisam de acreditar que vivem num mundo justo, onde cada uma tem o que merece e merece aquilo que tem. Daí que indícios de situações em que coisas boas acontecem a pessoas más, ou coisas más acontecem a pessoas boas, ameacem a conceção de um mundo justo. Para manterem a ilusão fundamental de que o mundo é justo (Lerner, 1980), podendo, assim, fazer planos a longo prazo (Lerner, 1977), muitas vezes, as pessoas alteram a sua perceção da vítima ou do comportamento da vítima, para que esta seja desvalorizada e/ou culpada pelo seu sofrimento (Rubin & Peplau, 1973).

Assim, importa abordar aqui a CMJ como: (i) um recurso para tolerar ou negar a privação pessoal. Segundo Olson e Hafer (2001), a maior parte das pessoas está motivada para acreditar que o mundo é justo e para minimizar as experiências de discriminação pessoal. Lipkus e Siegler (1993) analisaram a relação entre a CMJ e a frequência de atos de discriminação pessoal relatados e verificaram que os participantes que tinham uma CMJ elevada relataram menos atos de discriminação pessoal contra si próprios do que os que tinham uma CMJ baixa. Tal significa que é menos provável que as pessoas com uma CMJ elevada se percebam como vítimas; e como (ii) um mecanismo de manutenção do status quo.Alguns resultados de investigações que têm cruzado a CMJ e fatores, nomeadamente, ideológicos, mostram que esta crença está associada a uma orientação política de direita, a uma maior religiosidade, a uma menor perceção de injustiças e a menos ações de protesto social (Rubin & Peplau, 1975). Em Portugal, Correia (2003) verificou que, apesar de baixas, associações entre a CMJ e a religiosidade e a ideologia de direita, e uma associação entre a CMJ e a ideologia de direita.

Confirmou ainda a associação negativa entre a CMJ e a perceção de injustiças e entre a CMJ e a ação política.

Se é verdade que, a curto-prazo, este tipo de ações/estratégias pode ter consequências positivas em vários contextos, também é verdade que pode servir para manter o status quo. A CMJ pode ser considerada estratificadora do sistema (Kluegel & Smith, 1981) ou um mito legitimador (Sidanius & Pratto, 1999), sendo, a par com outras ideologias, como a meritocracia (pelo menos, as crenças descritivas, Son Hing et al., 2011) e a orientação para a dominância social (Jost & Hunyady, 2005), um dos pilares das sociedades individualistas ocidentais e da sua própria legitimação.

Novas Formas de Sexismo Embora a situação das mulheres tenha evoluído favoravelmente nas últimas décadas, continuam a existir desigualdades de género no mundo do trabalho. Com efeito, persistem vários obstáculos informais invisíveis, a nível vertical e horizontal, que impedem que as mulheres alcancem os lugares de decisão e de poder (Barreto, Ryan, & Schmitt, 2009), como é o caso da política (Santos, 2010). Mesmo quando as mulheres conseguem aceder a cargos de poder, como muitas vezes estes estão associados a riscos elevados e a pressão, uma maior probabilidade de desistirem. Este fenómeno foi identificado por Bettencourt e Pereira (1995), no caso das mulheres políticas portuguesas. A sua ocorrência pode dever-se ao sexismo que existe na nossa sociedade (Poeschl, Pinto, Múrias, Silva, & Ribeiro, 2006) e que, como vimos, pode ser entendido como um mito legitimador (Sidanius & Pratto, l999) que favorece os homens.

A literatura mais recente tem mostrado que, provavelmente devido aos movimentos sociais que decorreram nos anos 60/70, às mudanças normativas e legislativas, à prevalência de valores igualitaristas na sociedade e à censura social sobre as expressões mais flagrantes de sexismo, a expressão das atitudes sexistas tem vindo a mudar e a esconder-se por detrás de comportamentos mais contidos e socialmente aceitáveis (Barreto & Ellemers, 2005). Com o objetivo de identificar estas novas atitudes sexistas, e decorrendo de investigações prévias sobre racismo, foram desenvolvidas novas escalas de medida: o neo- sexismo (Tougas, Brown, Beaton, & Joly, 1995), o sexismo moderno (Swim, Aikin, Hall, & Hunter, 1995) e o sexismo ambivalente (Glick & Fiske, 1996). Tougas et al. (1995), por exemplo, fazendo uma analogia com o racismo moderno, definem esta nova forma de sexismo como uma manifestação resultante de um conflito entre os valores igualitaristas e sentimentos residuais negativos face às mulheres (p. 843). Apesar de mais subtis, as novas formas de preconceito, continuam a ser nocivas, porque embora sejam contra a discriminação aberta, consideram, por exemplo, que igualdade e que, por isso, não é necessária qualquer medida de ação positiva (Barreto & Ellemers, 2005; Tougas et al., 1995), impedindo que se caminhe para a igualdade. Consideremos o sexismo moderno: Segundo Barreto e Ellemers (2005) o sexismo moderno, em comparação com o velho sexismo, é uma expressão de preconceito tolerada ou socialmente aceite. De facto, num estudo realizado pelas autoras, a maior parte das/os participantes concordou mais com expressões do sexismo moderno do que com expressões do velho sexismo, sendo esta diferença maior no caso das mulheres. As autoras verificaram que a deteção do preconceito depende de um conjunto de situações (i.e., a forma de preconceito), assim como das características das/os preceptoras/es. Verificaram, por exemplo, que o sexismo é mais facilmente reconhecido quando é expresso pelos homens do que pelas mulheres; que é mais provável que estas percebam o sexismo quando este é flagrante e menos provável quando é subtil. No caso dos homens, ambas as formas de sexismo são percebidas como igualmente prejudiciais. Estes resultados podem decorrer do efeito de negação da discriminação pessoal. Como vimos, trata-se de uma estratégia de autoproteção que tem uma função paliativa, procurando prevenir os custos psicológicos. Contudo, também pode impedir a deteção do preconceito. Esta relutância das mulheres para conhecerem a realidade pode torná-las menos disponíveis para reconhecerem o preconceito quando este é expresso de forma politicamente correta. Barreto e Ellemers (2005) constataram, ainda, que o velho sexismo provocou mais sentimentos hostis entre homens e mulheres, mas o sexismo moderno desencadeou mais ansiedade nas mulheres e menos nos homens.

Aparentemente, o velho sexismo desencadeia respostas de combate (i.e., ações ativas) e o sexismo moderno desencadeia respostas mais tímidas (i.e., inação) (p. 83).

Quando alguém defende que existe igualdade de oportunidades entre homens e mulheres na política, por exemplo, está implicitamente a sugerir que o insucesso das mulheres se deve à sua falta de capacidade, esforço, motivação ou que é uma opção pessoal. O sexismo moderno parece, portanto, basear-se na ideologia meritocrática e não depender tanto da discriminação (Ellemers & Barreto, 2009), responsabilizando as mulheres pela sua própria situação de desvantagem na sociedade, muitas vezes, com o contributo das próprias mulheres que também se responsabilizam (Wright, 2001). Podemos, assim, concluir que, ao individualizar os processos de discriminação grupal, o sexismo moderno constitui um obstáculo à mobilidade das mulheres (Barreto & Ellemers, 2005), contribuindo para limitar as mudanças nas relações de género.

Conclusão Perante a persistência da discriminação baseada no sexo, nomeadamente no acesso a cargos de poder e tomada de decisão, este artigo analisou diversos modelos teóricos sobre as dinâmicas das relações intergrupais e da perceção da justiça, com especial incidência nos estudos de género. Procurou, assim, perceber a razão da persistência destas desigualdades, quem contribui para a sua manutenção (os homens, as mulheres, ou ambos) e em que situações adotarão, ou não, ações para as enfrentar. A revisão de literatura revela que homens e mulheres contribuem para a persistência destas desigualdades. De acordo com os modelos clássicos, tal depende muito do grau em que estas/es se identificam como membros de um determinado grupo social e da situação. Na perspetiva da TIS, se a estrutura intergrupal for percebida como ilegítima e instável, as mulheres irão recorrer mais à ação para procurar mudar a situação. Para que tal aconteça, segundo o modelo dos cinco estádios, será necessário que elas tomem consciência da existência da desigualdade. As teorias da privação relativa acrescentam que o ideal é que haja privação relativa dupla (i.e., pessoal e grupal). Os restantes modelos expostos revelam que, para além disto, ideologias (e.g., meritocracia, justificação do sistema, dominância social, crença num mundo justo, sexismo) que servem para justificar e manter as assimetrias que existem nas relações de género (favorecendo a superioridade dos homens), para as quais homens e mulheres contribuem. De facto, devido à ambiguidade das situações, estas nem sempre estão conscientes da discriminação existente na sociedade, e a que elas próprias estão sujeitas, levando à inação.

Desta forma, estão a contribuir para manter o status quo.


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