A Entrevista Cognitiva Melhorada: Pressupostos teóricos, investigação e
aplicação
A entrevista de testemunhas determina frequentemente o sucesso de uma
investigação policial ou avaliação forense (Milne & Bull, 1999). No
entanto, o relato das testemunhas raramente corresponde exatamente ao que
aconteceu, ou até ao que as testemunhas memorizaram, pois diversos erros e
omissões são cometidos durante o relato. O uso de técnicas de entrevista
inadequadas, frequentemente utilizadas em contexto policial e forense (e.g.,
uso excessivo de questões), leva frequentemente à obtenção de fracos
testemunhos (Paulo, Albuquerque, & Bull, 2013).
Com o objetivo de criar um protocolo adequado para a entrevista de testemunhas
que permitisse obter o máximo de informação correta possível, Geiselman e col.
(1984) desenvolveram a Entrevista Cognitiva. Esta entrevista é atualmente
aceite como um dos melhores métodos para obter bons testemunhos (Fisher &
Geiselman, 1992; Prescott, Milne, & Clark, 2011). No entanto, entrevistar
adequadamente uma testemunha é um procedimento extremamente difícil e exigente,
particularmente quando são utilizados modelos de entrevista complexos como este
(Griffiths, Milne, & Cherryman, 2011). Para tal, é fundamental que o
entrevistador compreenda como, e quando, utilizar cada um dos procedimentos do
protocolo de entrevista. Conhecer os pressupostos teóricos que fundamentam cada
um dos procedimentos da Entrevista Cognitiva, os diversos protocolos de
aplicação da mesma, e os resultados da investigação existente acerca deste
tema, é essencial para este fim. Assim, ao longo do presente artigo, iremos
descrever em pormenor a Entrevista Cognitiva e abordar os pressupostos teóricos
inerentes a cada um dos seus procedimentos. Iremos também mostrar os resultados
de investigações que aplicaram esta entrevista em diferentes contextos ou
manipulando diferentes variáveis. Por fim, iremos analisar e descrever um
modelo de aplicação desta entrevista, providenciando algumas diretrizes para a
condução de uma boa entrevista forense/policial. Pretendemos assim criar um
protocolo em língua portuguesa para a aplicação da Entrevista Cognitiva que
permita entrevistar testemunhas de forma adequada.
Entrevista cognitiva (melhorada)
Vários estudos mostraram que a Entrevista Cognitiva Melhorada permite obter
mais informação por parte das testemunhas sem comprometer a exatidão dos seus
relatos (Aschermann, Mantwill, & Köhnken, 1991; Fisher & Geiselman,
1992; Milne, Sharman, Powell, & Mead, 2013). Este modelo de entrevista tem
sido utilizado pelas forças policiais de diversos países (e.g., Inglaterra,
Gales, Nova Zelândia). Mostrou também ser eficaz com diferentes testemunhas '
e.g., crianças, adultos ou idosos (Verkampt & Ginet, 2009; Wright &
Holliday, 2006), diferentes tipos de episódios a recordar - e.g., crimes,
acidentes, gravações telefónicas (Campos & Alonso-Quecuty, 2008) e
diferentes intervalos de tempo entre o episódio a recordar e a entrevista -
desde poucos minutos a várias semanas (Larsson, Granhag, & Spjut, 2002),
tanto em laboratório como em estudos realizados com testemunhas de crimes
reais, entrevistadas pelas próprias forças policiais (Paulo et al., 2013).
Originalmente a Entrevista Cognitiva continha quatro mnemónicas: Relatar Tudo,
Restabelecimento do Contexto, Mudança de Ordem e Mudança de Perspetiva.
A mnemónica Relatar Tudo consiste em pedir à testemunha que relate tudo o que
recorda, com o maior grau de detalhe possível, mesmo que tal informação possa
parecer trivial ou irrelevante à testemunha (Fisher & Geiselman, 1992).
Esta mnemónica é fundamental pois evita que as testemunhas omitam detalhes que
consideram irrelevantes para a investigação. Embora, no dia a dia, os seres
humanos estejam habituados a relatar episódios descrevendo apenas os
acontecimentos centrais, até o mais pequeno detalhe pode ser decisivo para uma
investigação policial. Adicionalmente, nem sempre a testemunha sabe avaliar
qual a informação que poderá ser útil para a investigação. Por fim, os diversos
traços de memória relativos a um acontecimento estão frequentemente associados
(Tulving, 1991). Assim, a ativação de uma memória aparentemente irrelevante
para a investigação, poderá ser pista para outras memórias extremamente
relevantes. Por estas razões, pedir à testemunha que adote este estilo
comunicativo, relatando todos os detalhes de que se recorda, é uma instrução
fundamental.
A mnemónica Restabelecimento do Contexto consiste em pedir à testemunha que
recrie mentalmente o contexto físico do crime, bem como o seu estado
fisiológico, cognitivo e emocional durante o mesmo. Esta mnemónica é crucial,
pois uma dada memória é mais facilmente recuperada quando é recriado o contexto
em que esta foi codificada, ou seja, o contexto em que foi memorizada
(Tulving & Thomson, 1973). A utilização desta mnemónica é particularmente
importante quando são entrevistadas crianças, pois a sua memória está
fortemente associada ao contexto (Milne, 1997). Adicionalmente, embora alguns
adultos utilizem esta mnemónica espontaneamente, as crianças são incapazes de o
fazer (Gathercole & Hitch, 1993).
A mnemónica Mudança de Ordem é executada pedindo à testemunha para relatar o
crime através de uma ordem temporal diferente, habitualmente a ordem inversa.
Pretende-se assim que a testemunha utilize uma estratégia de recuperação
diferente, pois diferentes estratégias de recuperação poderão ativar diferentes
memórias (Tulving, 1991). Esta mnemónica é particularmente útil quando a
testemunha mantém um forte esquema mental (padrão organizado de pensamentos e
comportamentos) sobre o tipo de evento que procura relatar (Griffiths &
Milne, 2010). Para compreendermos este conceito, imaginemos um segurança de um
bar que todos os dias assiste a disputas entre os clientes. Este poderá ter um
esquema mental marcado acerca do que é uma habitual luta de bar: dois homens
confrontam-se verbalmente, posteriormente recorrem à violência física através
de murros e empurrões, sendo por fim expulsos do bar. Por esta razão, se
questionado acerca de um destes episódios em particular, esta testemunha poderá
exibir dificuldade em recordá-lo, evocando inadvertidamente memórias das
restantes disputas. Poderá ainda omitir memórias que não sejam consistentes com
o esquema mental que construiu. Por exemplo, poderá não relatar que um dos
envolvidos utilizou técnicas de artes marciais, pois tal ato não é consistente
com o esquema mental referido ' uso de empurrões e murros. Uma vez que estes
esquemas mentais são construídos e armazenados na nossa memória por ordem
cronológica, recordar o crime numa ordem temporal diferente poderá evitar a
interferência dos mesmos na recordação do acontecimento particular (Dando &
Milne, 2009).
Por fim, a mnemónica Mudança de Perspetiva consiste em pedir à testemunha para
recordar o evento a partir de uma perspetiva diferente. Pode ser pedido à
testemunha para adotar uma nova perspetiva externa (e.g.,Conte-me agora tudo o
que viu e que o funcionário do banco poderá também ter visto.) ou interna
(e.g., Sei que neste momento está um pouco nervosa. No entanto, tente adotar
uma perspetiva mais relaxada tal como se sentia no dia do assalto antes de se
aperceber que um crime estava prestes a ocorrer.). Tal como o procedimento
anterior (Mudança de Ordem), esta mnemónica pretende que as testemunhas
utilizem uma estratégia de recuperação diferente, facilitando a evocação de
novos detalhes.
Alguns anos mais tarde, Fisher e Geiselman (1992) concluem que a utilização das
quatro mnemónicas anteriormente propostas não conduz necessariamente à obtenção
de um bom relato. Estes autores apercebem-se que os agentes policiais
negligenciavam frequentemente procedimentos fundamentais para garantir o bem-
estar psicológico e cooperação das testemunhas (e.g., estabelecer uma boa
relação com a testemunha), diminuindo assim a qualidade do relato obtido. Por
esta razão, adicionam ao protocolo da Entrevista Cognitiva um conjunto de
componentes sociais e comunicativos cruciais para a realização de uma boa
entrevista. Surge assim a Entrevista Cognitiva Melhorada.
O primeiro procedimento adicionado baseia-se na construção de um relacionamento
adequado com a testemunha (rapport building). Refere-se ao estabelecimento de
uma relação adequada e positiva com a mesma. Este procedimento começa por ser
realizado desde o primeiro momento em que o entrevistador contacta com a
testemunha (e.g., por telefone) até ao último contacto que mantém com esta.
Trata-se de um procedimento fundamental pois contribui para o bem-estar da
testemunha durante a entrevista. A investigação acerca deste tema mostra que
uma testemunha calma e segura é geralmente capaz de recordar mais detalhes do
que uma testemunha nervosa ou desconfortável (Paulo et al., 2013).
O segundo procedimento chama-se transferência do controlo da entrevista para a
testemunha. Consiste em comunicar à testemunha que, durante a entrevista, ela é
a única que está na posse da informação acerca do acontecimento e que, por
isso, a pode relatar. Esta instrução é fundamental pois as testemunhas
consideram frequentemente que o entrevistador irá apenas colocar questões
acerca dos aspetos que pretende ver abordados, sustentando-se na informação que
possui acerca do crime. No entanto, deve ser clarificado à testemunha que é ela
quem detém a informação valiosa acerca do crime, e não o próprio entrevistador.
Neste sentido, cumpre à testemunha esforçar-se para relatar o máximo de
informação possível, e não apenas responder às questões do entrevistador. Deve
igualmente ser comunicado à testemunha que esta detém completo controlo sobre o
seu relato, por exemplo, podendo iniciar o relato livre pelo momento do crime
que considerar mais pertinente. Esta instrução pretende responsabilizar a
testemunha pelo seu próprio relato, maximizando o seu desempenho (Paulo et al.,
2013).
O terceiro procedimento denomina-se questionamento compatível com a testemunha
e consiste em colocar as questões certas no momento adequado. Ou seja, todas as
questões devem ser compatíveis com o relato da testemunha e as estratégias de
recuperação por esta utilizadas. Por exemplo, se a testemunha começa por
descrever um assalto a um banco relatando a forma como o ladrão saiu do banco,
o entrevistador não deve colocar questões sobre o momento em que o ladrão
entrou no banco. Ou seja, o entrevistador não pode interferir negativamente com
a estratégia de recuperação da testemunha, por exemplo, interrompendo-a. A
utilização deste procedimento torna impossível estabelecer protocolos de
entrevista padrão, pois cada entrevista terá de ser adaptada ao discurso da
testemunha.
O último procedimento, denominado de visualização mental, é semelhante à
mnemónica de Restabelecimento do Contexto. No entanto, em vez de ser pedido à
testemunha que recrie mentalmente o cenário global do crime, é pedido à
testemunha para recriar mentalmente detalhes mais específicos ' feche os olhos
e pense na melhor imagem que tem da roupa que o ladrão vestia. Esta mnemónica
deriva também da premissa de que uma memória é mais facilmente recuperada
quando recriado o contexto em que esta foi codificada (Tulving & Thomson,
1973).
Tal como referido, ao longo dos anos, vários investigadores têm estudado este
modelo de entrevista. Geiselman, Fisher, MacKinnon, e Holland (1985) relatam
que a Entrevista Cognitiva é particularmente eficaz quando o evento a ser
recordado contém muita informação, tal como acontece na maioria dos crimes.
Milne (1997) conclui que a Entrevista Cognitiva Melhorada é eficaz quando
utilizada com grupos vulneráveis, por exemplo, crianças com problemas de
aprendizagem. Alguns investigadores procuraram também avaliar a eficácia das
diversas técnicas e mnemónicas que compõem esta entrevista. Por exemplo,
Vredeveldt e Penrod (2013) avaliaram a importância de fechar os olhos durante a
mnemónica de Restabelecimento do Contexto, concluindo que este procedimento
contribui para a recuperação de mais informação. Holliday e Albon (2004)
sugerem ainda que esta entrevista pode proteger a memória da testemunha contra
a interferência de informação pós-evento enganosa (e.g., notícias televisivas
acerca do crime). Memon, Zaragoza, Clifford e Kidd (2010) concluem que a
aplicação da Entrevista Cognitiva Melhorada previamente a uma tentativa
deliberada do entrevistador em implantar falsas memórias (Loftus & Palmer,
1974), reduz o número de falsas memórias evocadas nas entrevistas posteriores.
Nas últimas décadas a Entrevista Cognitiva Melhorada tem sido o modelo
predominantemente utilizado para a entrevista de testemunhas (Griffiths &
Milne, 2010). No entanto, a utilidade de alguns dos seus componentes e
mnemónicas tem sido questionada (McMahon & Greenwood, 2005). A mnemónica
Mudança de Perspectiva e, num menor grau, Mudança de Ordem são frequentemente
procedimentos morosos e difíceis de aplicar. A título de exemplo, algumas
testemunhas parecem ser incapazes de colocar-se na perspectiva de uma outra
testemunha para relatar o que recordam acerca de determinado crime.
Adicionalmente, estas mnemónicas são por vezes pouco eficazes, ou seja,
incapazes de provocar um aumento considerável no número de informação evocada
pela testemunha (Bensi, Nori, Gambetti, & Fiorella, 2011). Assim, alguns
investigadores propõem a utilização de versões reduzidas desde modelo de
entrevista, bem como mnemónicas e procedimentos alternativos com o objetivo de
aumentar a eficácia da Entrevista Cognitiva Melhorada. McMahon e Greenwood
(2005) sugerem retirar estas duas mnemónicas e/ou substitui-las por duas
tentativas adicionais de recuperação (relatar novamente o episódio). Dando,
Wilcock, Behnkle e Milne (2011) desenvolveram um procedimento alternativo para
a aplicação da mnemónica de Restabelecimento do Contexto, através do uso de um
esquema/desenho. Brunel, Py e Launay (2013) sugerem incluir uma segunda
tentativa de recuperação antes da fase de questionamento. Em suma, ao longo das
últimas décadas, vários investigadores têm-se focado neste modelo de
entrevista, não só no sentido de explorar e avaliar os seus componentes, mas
também de aumentar a sua eficácia e utilidade.
Com o objetivo de melhorar a compreensão do leitor em relação e este modelo de
entrevista, abordámos os vários componentes da Entrevista Cognitiva Melhorada,
a sua origem, e as teorias e investigações que sustentam a sua utilização. De
seguida procuramos construir um guia em língua portuguesa para a aplicação da
Entrevista Cognitiva Melhorada, com base na análise da investigação
laboratorial e de campo nesta área, e considerando as directrizes apontadas por
estes autores para a aplicação adequada deste modelo de entrevista. Baseámo-nos
ainda no modelo PEACE (Planning and preparation; Engage and explain; Account;
Closure; Evaluation) que é o protocolo utilizado em Inglaterra e Gales para
entrevistar testemunhas cooperantes (Griffiths & Milne, 2010). Não
obstante, tal como iremos debater no final do artigo, este modelo poderá
necessitar de adaptações específicas ao funcionamento interno das diversas
forças policiais ou de cada instituição que pretende aplicar este modelo de
entrevista (e.g., unidades de avaliação forense).
Aplicação da entrevista cognitiva melhorada
Como já referimos, a Entrevista Cognitiva Melhorada é utilizada por inúmeras
forças policiais, e outros profissionais, um pouco por todo o Mundo. No
entanto, apenas em alguns países (e.g., Inglaterra, Gales, Nova Zelândia)
existem diretrizes claras para a utilização desta entrevista. De facto,
Inglaterra é talvez o melhor exemplo de um país onde esta entrevista foi
adaptada e incluída nos protocolos das forças policiais como método principal
para a entrevista de testemunhas (Griffiths & Milne, 2010). Neste país
existem ainda inúmeras investigações que avaliam a eficácia deste modelo de
entrevista em casos reais, bem como as perceções dos agentes policiais em
relação à aplicação deste modelo (Wheatcroft, Wagstaff, & Russell, 2013).
Investigações acerca da avaliação do desempenho dos agentes policiais no que
diz respeito à aplicação da Entrevista Cognitiva Melhorada, ou acerca da
eficácia dos extensos programas de treino a que os agentes policiais são
sujeitos, são também abundantes neste país (Griffiths, Milne, & Cherryman,
2011). Por estas razões, iremo-nos focar no modelo PEACE que, tal como
referido, se trata do protocolo utilizado em Inglaterra e Gales para
entrevistar testemunhas cooperantes (Griffiths & Milne, 2010). Este modelo
de entrevista, baseado na Entrevista Cognitiva Melhorada, foi extensivamente
investigado e avaliado por investigadores e agentes policiais (Milne, Shaw,
& Bull, 2007). Ao longo dos próximos parágrafos iremos também fornecer
algumas indicações para a aplicação da Entrevista Cognitiva Melhorada,
provenientes da investigação existente acerca deste tema. No Quadro_1 podemos
observar um esquema da estrutura de aplicação da Entrevista Cognitiva Melhorada
que iremos analisar de seguida.
O modelo esquematizado é apenas um modelo ilustrativo no sentido em que algumas
das fases (e.g., fase 6 ' Questões importantes para a investigação) e
procedimentos descritos (e.g., foco em vários sentidos) poderão, em
determinadas ocasiões, ser aplicados por ordens diversas ou mesmo não ser
utilizados. Embora no contexto empírico, por questões de controlo experimental,
sejam usualmente aplicados todos os componentes da Entrevista Cognitiva
Melhorada utilizando uma ordem de aplicação padronizada, a capacidade do
entrevistador em flexibilizar estes procedimentos no contexto profissional é
imprescindível para o uso adequado de qualquer entrevista investigativa (Fisher
& Geiselman, 1992). Da mesma forma, embora algumas mnemónicas da Entrevista
Cognitiva Melhorada devam ser utilizadas em todas as entrevistas (e.g., Contar
Tudo), outros procedimentos poderão ser inadequados para determinada
investigação (e.g., Mudança de Perspetiva ou Mudança de Ordem). Assim, as
diversas fases, procedimentos e mnemónicas devem ser conceptualizadas como uma
caixa de ferramentas. Quer isto dizer que cabe ao entrevistador escolher as
técnicas que melhor se adequam a cada investigação, flexibilizando e adequando
a entrevista.
Fase 1 - Estabelecer uma boa relação com a testemunha
Estabelecer e manter uma boa relação com a testemunha é um procedimento
fundamental não só no inicio, mas também ao longo de toda a entrevista. Desde o
primeiro contacto com a testemunha, o entrevistador deve considerar este
objetivo. Para tal, é fundamental que este cumprimente a testemunha e
clarifique quem é e qual a instituição que representa, evitando manter uma
postura autoritária e mostrando-se disponível para prestar o apoio necessário à
testemunha. Este deve optar por não utilizar termos referentes à sua posição
hierárquica na instituição (e.g., Superintendente). O entrevistador deve ainda
clarificar qual o papel da testemunha na investigação, bem como a razão pela
qual esta foi chamada para a entrevista. Deve ainda personalizar a entrevista,
incluindo diversas vezes o nome da testemunhano seu discurso, e atendendo às
necessidades e características particulares da mesma (Paulo et al., 2013). A
título de exemplo, entrevistar uma testemunha com dificuldades comunicativas
exige a adoção de um estilo comunicativo específico.
Nesta fase inicial da entrevista, o entrevistador deve abordar tópicos neutros
com a testemunha. Através desta conversação inicial, o entrevistador procura
não só que a testemunha se sinta confortável com a sua presença e o com o
contexto da entrevista, mas também que a testemunha se habitue ao estilo de
conversação utilizado. Para tal, assim como ao longo da entrevista, o
entrevistador deve colocar maioritariamente questões de resposta aberta (e.g.,
Como foi o seu dia?). Deve igualmente procurar obter respostas detalhadas por
parte do entrevistado, por exemplo, introduzindo silêncios para que este sinta
necessidade de elaborar respostas mais longas.
Fase 2 - Explicar os objetivos da entrevista
Nesta fase, o entrevistador deve comunicar de forma clara e precisa o que irá
acontecer ao longo de toda a entrevista. Transferir o controlo da entrevista
para a testemunha é também um objetivo fundamental para esta fase da
entrevista. Para tal, o entrevistador poderá basear-se na seguinte descrição:
Embora neste momento esteja a ser eu quem mais intervém nesta
entrevista, vou parar de o fazer dentro de momentos, pois foi você
quem viu o crime e quem tem toda a informação importante. Não irei
interrompê-la(o) e peço-lhe que me conte tudo o que se lembra acerca
do crime, pela ordem que desejar. Pode fazer pausas sempre que quiser
e podemos até parar alguns minutos, pois esta é uma tarefa que exige
um grande esforço da sua parte.
É também neste momento que o entrevistador aplica a mnemónica Relatar Tudo,
focando alguns pontos essenciais:
Gostava que me contasse tudo o que se lembra acerca do crime, com o
máximo de detalhe possível. Por favor, conte-me tudo de que se
recorda, mesmo os detalhes que lhe possam parecer irrelevantes ou que
apenas recorde parcialmente. Algumas pessoas omitem detalhes pois
pensam que não são importantes. No entanto, eu estou interessado em
tudo o que lhe vier à cabeça. Até o mais pequeno detalhe pode ser
muito importante.
Por fim, para a implementação desta mnemónica, o entrevistador poderá ainda
utilizar um exemplo para demonstrar o nível de detalhe que pretende obter. Por
exemplo, poderá descrever exaustivamente uma garrafa de água para que a
testemunha perceba que este está interessado em todo o tipo de detalhes, e não
apenas numa descrição genérica da garrafa, e posteriormente do crime.
Fase 3 - Relato livre
O objetivo do entrevistador para esta fase é o de obter o melhor relato livre
possível. É através do relato livre que a testemunha vai providenciar grande
parte da informação acerca do crime pois, tal como iremos abordar de seguida, é
esta a fase em que o entrevistador menos intervém no relato da testemunha.
Assim, a informação obtida está menos sujeita a distorções ou erros, pois as
questões que irão ser colocadas pelo entrevistador em fases posteriores podem
influenciar a memória do entrevistado. Como iremos também abordar mais à
frente, basta o entrevistador cometer um pequeno erro durante a fase de
questionamento (e.g., colocar uma questão sugestiva - O assaltante tinha
luvas, não tinha?) para colocar em risco a exatidão do discurso da testemunha.
Para obter o melhor relato possível, o entrevistador deve utilizar a mnemónica
Restabelecimento do Contexto:
Peço-lhe agora que feche os olhos e os mantenha fechados durante
todo o exercício, pois fechar os olhos ajuda a que obtenha uma imagem
mais clara da cena do crime na sua mente. Pense no dia em que
observou o crime ; pense no que estava a fazer nesse dia ; como se
estava a sentir quando se dirigia para o local do crime ; agora
imagine o cenário do crime e tente obter uma imagem clara , muito
clara , desse cenário na sua mente ; pense agora em todos os objetos
que estavam nesse cenário ; pense nos sons e vozes que se lembra
ouvir ; pense nas pessoas que estavam presentes na cena do crime ; e
agora foque-se no que aconteceu. Quando estiver pronto e tiver uma
imagem clara do cenário do crime na sua mente, mantendo os olhos
fechados e usando todo o tempo que precisar, diga-me tudo o que se
lembra pela ordem que quiser e estabelecendo as pausas que desejar.
Esta instrução deve ser comunicada de forma pausada, dando tempo à testemunha
para recriar o contexto do crime na sua mente. Deve também ser mantido um tom
de voz com volume reduzido pois um volume elevado pode interferir com a
tentativa da testemunha em recriar o contexto do crime. Tal como referido,
durante o relato livre o entrevistador deve interromper o menos possível a
testemunha, de forma a não interferir com o seu relato, bem como com as
estratégias de recuperação utilizadas pela testemunha. Caso seja necessário,
algumas questões de resposta aberta podem ser utilizadas para direcionar o
discurso da testemunha. Não obstante, o entrevistador deve ter particular
cuidado com o tipo de questões que coloca. Por exemplo, caso o entrevistador
introduza nova informação nas suas perguntas (e.g., referir a arma do crime
antes da testemunha narrar a sua existência), a memória da testemunha poderá
sofrer distorções. Sempre que necessário devem ser estabelecidas pausas. Caso a
testemunha não se sinta confortável para fechar os olhos, deve ser instruída
para olhar para um local fixo da sala (e.g., um ponto fixo de uma parede),
evitando assim distrações que dificultem o restabelecimento do contexto.
Fase 4 - Questionamento
Após obter um relato livre extenso e completo, o entrevistador poderá colocar
algumas questões baseadas no discurso da testemunha. Nesta fase, o
entrevistador deve recordar à testemunha para relatar tudo o que se lembra,
mesmo os detalhes que pareçam ser irrelevantes. Deve ainda comunicar à mesma
que esta deverá responder que não se recorda sempre que seja esse o caso e que
esta é uma resposta tão valiosa como outra qualquer. Esta instrução é
particularmente importante com crianças pois estas tendem a dar respostas sobre
as quais não estão certas, com o intuito de não dececionar o entrevistador.
Como já referido, as questões colocadas devem ser sempre compatíveis com o
discurso da testemunha. Por exemplo, se a testemunha está a descrever o
assaltante, o entrevistador deve colocar todas as questões que tem acerca deste
aspeto, antes de a questionar sobre o tópico seguinte. Na fase de
questionamento, o entrevistador poderá também utilizar a técnica de
Visualização Mental:
Disse-me que, quando o assaltante entrou no banco, olhou fixamente
para ele pois este parecia um pouco agitado. Peço-lhe agora que feche
os olhos e recrie a imagem que tem do assaltante quando este entrou
no banco. Foque-se em todos os pormenores que se lembra acerca do
mesmo: o seu vestuário ; a sua expressão facial ; o seu cabelo ; os
seus olhos ; [etc.]. Quando tiver uma boa imagem mental do
assaltante, conte-me tudo o que se lembra acerca dele.
Por fim, o entrevistador deve utilizar maioritariamente questões de resposta
aberta ao longo de toda a entrevista (O que fez o assaltante quando saiu do
banco?). Como referimos anteriormente, questões de resposta fechada (O
assaltante tinha luvas?), escolha múltipla (O assaltante tinha uma máscara ou
um chapéu?) ou sugestivas (O assaltante tinha luvas, não tinha?) conduzem a
respostas pouco informativas e aumentam o número de erros cometidos pela
testemunha, pelo que devem ser evitadas.
Fase 5 - Novas estratégias de recuperação
Como referido, o protocolo de aplicação da Entrevista Cognitiva Melhorada deve
ser flexível e adequado às características da testemunha, do episódio em causa
e do tipo de informação que o entrevistador pretende obter. Nesta fase, a
capacidade do entrevistador em adaptar a entrevista é particularmente
importante, pois as técnicas que iremos abordar poderão ser aplicadas de
diferentes formas ou até não ser aplicadas de todo. Caso seja claro para o
entrevistador que a testemunha já relatou exaustivamente tudo o que recorda
acerca do crime, utilizar novas estratégias de recuperação poderá ser ineficaz.
No entanto, caso o entrevistador considere que a testemunha poderá ainda ser
capaz de relatar mais informação, através do uso de novas estratégias de
recuperação, algumas estratégias poderão ser utilizadas.
Uma destas estratégias é a utilização da mnemónica Mudança de Ordem. Ao aplicar
esta mnemónica o entrevistador deverá instruir a testemunha da seguinte forma:
Agora gostaria que fizéssemos outra tarefa que, por vezes, ajuda as
pessoas a lembrarem-se de ainda mais informação. Gostava que me
contasse novamente tudo o que se lembra acerca do crime, mas, desta
vez, pela ordem inversa. Ou seja, comece por relatar o último
acontecimento que se lembra, e depois passe para o que aconteceu
imediatamente antes disso, e por aí fora. Sei que parece difícil mas
irei ajudá-la(o). Qual foi o último acontecimento de que se lembra?
Caso o entrevistador opte por utilizar esta mnemónica, deve auxiliar a
testemunha ao longo de todo o processo. Após a testemunha descrever tudo o que
se lembra acerca de determinado momento do crime, o entrevistador deverá pedir
à mesma que descreva o episódio que ocorreu imediatamente antes.
A mnemónica de Mudança de Perspetiva pode também ser útil em algumas situações.
Por exemplo, caso a testemunha tenha mostrado dificuldade em descrever as ações
do assaltante, poderá agora ser-lhe pedido que relate novamente o crime, tal
como se o assaltante fosse a personagem principal de uma peça de teatro:
Queria agora pedir-lhe que relate o episódio a partir de uma
perspetiva diferente, pois este procedimento ajuda as pessoas a
relatar mais informação que previamente podem não ter recordado.
Imagine que o assaltante, durante toda a cena do crime, se encontra
sob um holofote, tal como uma personagem principal numa peça de
teatro. Pedia-lhe que relatasse novamente tudo o que se lembra,
tentando sempre focar-se no assaltante como se este fosse a
personagem principal deste episódio.
O entrevistador pode ainda pedir à testemunha que relate novamente tudo o que
se lembra acerca do crime, focando-se num sentido percetivo diferente. Tal
procedimento pode também ser incluído numa das duas mnemónicas anteriormente
descritas, por exemplo, pedindo à testemunha que relate o episódio pela ordem
inversa, focando-se apenas no que se lembra de ouvir. Maioritariamente, as
testemunhas focam-se na informação visual que têm do crime. Assim, pedir à
testemunha que se foque num outro sentido percetivo poderá auxiliá-la a relatar
nova informação. Adicionalmente, vítimas de alguns crimes (e.g., crimes
sexuais) descrevem frequentemente ter fechado os olhos durante o momento do
crime. Por esta razão, pedir a estas testemunhas que relatem o que ouviram/
cheiraram/sentiram poderá ser extremamente vantajoso.
Fase 6 - Questões importantes para a investigação
Até esta fase da entrevista, a testemunha não deve ser questionada acerca de
aspetos que não mencionou, por exemplo, questionada acerca da arma do crime sem
esta ter narrado a sua existência. Este tipo de questões apresentam um caráter
sugestivo, ou seja, poderão levar a testemunha a afirmar algo que não se
recorda mas assume através do discurso do entrevistador. No entanto, em algumas
investigações, poderá ser imprescindível colocar questões acerca de tópicos que
a testemunha não mencionou durante a entrevista. Uma vez que, nesta fase da
entrevista, todas as outras técnicas de questionamento foram já utilizadas e
grande parte do relato da testemunha foi já obtido, o entrevistador poderá
introduzir este tipo de questões, caso sejam imprescindíveis para a sua
investigação. No entanto, o entrevistador deve estar ciente que a informação
obtida através deste tipo de questões tem uma maior probabilidade de conter
distorções ou erros (Fisher & Geiselman, 1992). Mais uma vez, questões
sugestivas, de resposta fechada ou escolha múltipla devem ser evitadas.
Fase 7 ' Resumo
Chegado este momento, o entrevistador poderá sintetizar alguns pontos centrais
do relato da testemunha, dando-lhe a oportunidade de acrescentar nova
informação e/ou corrigi-la. Esta fase é opcional pois caso existam gravações
vídeo da entrevista, o entrevistador terá a oportunidade de rever a gravação e
esclarecer alguma dúvida que tenha em relação ao discurso da testemunha através
dessa mesma gravação.
Fase 8 ' Encerramento
Na fase de encerramento o entrevistador deverá novamente abordar tópicos
neutros com a testemunha, tal como no início da entrevista. Ao longo da
entrevista, a testemunha poderá ter abordado tópicos sensíveis e perturbadores.
Assim, o entrevistador deve certificar-se de que a testemunha sai do local da
entrevista sentindo-se calma e segura. É igualmente importante agradecer à
testemunha pelo seu trabalho árduo ao longo de toda a entrevista. Desta forma,
o entrevistador promove a colaboração da testemunha em futuras ocasiões, caso
seja necessário. Para tal, este deve ainda fornecer um contacto à testemunha e
informá-la de que poderá comunicar caso tenha alguma dúvida ou se recorde de
algum outro detalhe.
Fase 9 - Avaliação
Após o término da entrevista, é importante avaliar o valor da informação obtida
e o impacto que esta informação tem na investigação policial/ avaliação
forense. É igualmente importante que o próprio entrevistador, ou o seu
supervisor, avaliem o seu desempenho. O treino e avaliação são imprescindíveis
para que qualquer entrevistador possa melhorar o seu desempenho em entrevistas
posteriores (Griffiths & Milne, 2010).
Conclusão
A Entrevista Cognitiva Melhorada é uma das técnicas mais eficazes para obter
bons testemunhos, tendo sido alvo de imensas investigações e modificações ao
longo das últimas décadas (Paulo et al., 2013). No entanto, é necessário
conhecer a sua origem, os seus pressupostos teóricos, os protocolos de
aplicação existentes e a investigação acerca deste tema, para utilizar
eficazmente este modelo de entrevista. Com este artigo procurámos construir o
primeiro protocolo em língua portuguesa para a aplicação da Entrevista
Cognitiva Melhorada. No protocolo apresentado, dividimos a estrutura da
entrevista em nove fases, explicando em que consistem, quais as técnicas a
utilizar em cada uma destas fases, bem como a forma adequada de aplicar tais
técnicas. Consideramos que a leitura deste artigo será um primeiro passo
essencial para todos os profissionais que pretendam utilizar este modelo de
entrevista.
Embora as mnemónicas e técnicas da Entrevista Cognitiva Melhorada possam já ser
utilizadas por algumas forças policiais e unidades de avaliação forense
portuguesas, o estatuto de reserva de divulgação de tais protocolos por esses
profissionais impossibilitam o acesso e avaliação dos mesmos. A utilização
adequada da Entrevista Cognitiva Melhorada obriga ainda a que as instituições
disponham não só de programas de treino, mas também avaliação do desempenho dos
entrevistadores (Poyser & Milne, 2011). Por várias razões (e.g., formação
insuficiente das próprias equipas de treino; falta de financiamento; reduzida
cooperação por parte dos entrevistadores; etc.), não é esta a realidade
portuguesa. Embora a Entrevista Cognitiva Melhorada seja o modelo de entrevista
para testemunhas mais utilizado, e investigado, um pouco por todo o Mundo, em
Portugal, são muito escassas as publicações, programas de treino e
investigações acerca deste tema. De facto, para além da investigação que está a
ser desenvolvida por Paulo, Albuquerque & Bull (2014), não parece existir
qualquer outro tipo de investigação em Portugal acerca da utilização da
Entrevista Cognitiva Melhorada.
Por fim, destacamos que, embora o protocolo descrito ao longo deste artigo
considere adaptações específicas ao funcionamento e protocolos das forças
policiais em geral (e.g., condução da fase de resumo quando as instalações não
permitem a gravação vídeo do depoimento), futuras colaborações com as diversas
forças policiais portuguesas são imprescindíveis de forma a criar protocolos
mais exclusivos da Entrevista Cognitiva Melhorada, maximizando a sua utilidade
face à realidade policial portuguesa. A falta de articulação entre as várias
instituições (e.g., forças policiais e equipas de investigação) dificulta que
este tipo de investigação seja realizado.