Editorial
Editorial
Sara Falcão Casaca
Tendo, em parte, como inspiração o número anterior da Ex æquo, onde várias
vozes do Sul possibilitaram um notável exercício de interculturalidade, a
presente edição propõe-se aprofundar essa ponte de diálogo com outros contextos
culturais, sociais e económicos. Estão aqui reunidos vários ecos femininos,
atentos e críticos, sobre realidades que, sendo distintas e singulares, remetem
para problemáticas comuns.
Observando as relações de género no mercado de trabalho (matéria discutida no
dossier temático deste número), são presenciadas mudanças assinaláveis nas
condições de vida das mulheres, embora mais nuns contextos e estratos sociais
que noutros; no entanto, os estudos confirmam a persistência de padrões de
segregação sexual e práticas discriminatórias, no quadro das complexas
dinâmicas que atravessam as sociedades contemporâneas. São tempos de intensas e
velozes inovações tecnológicas, de globalização económica, de fortes pressões
competitivas, reestruturações produtivas e processos de deslocalização
(recorde-se que são cada vez mais as empresas que mudam os seus espaços
produtivos para destinos mais rentáveis, onde a mão-de-obra é acentuadamente
barata, não raras vezes fazendo uso da sobreexploração feminina e infantil),
mas também de práticas de subcontratação que dão espaço a uma maior
invisibilidade do trabalho, frequentemente feminino, de situações de
precariedade e desemprego, num cenário onde o factor trabalho é tido como um
recurso tão descartável como qualquer outro. Vive-se uma época de
aprofundamento das desigualdades nas condições de trabalho e de vida, onde
mesmo a tão anunciada flexibilidade temporal tanto pode remeter para a
intensificação das horas dedicadas à profissão como, ao invés, ser reflexo de
situações de subemprego, a que não é alheio o crescente segmento de
trabalhadores/as pobres (working poor), abundantemente feminino. Trata-se, em
síntese, de tempos de incerteza, onde o possível cenário de uma maior igualdade
entre mulheres e homens parece desenhar-se mais naquelas situações em que
também eles, homens, tendem a caminhar mais hesitantes e inseguros neste
contexto distendido de vulnerabilização económica e social. Perante esta
sociedade de risco, como tem sido apelidada por algumas referências no domínio
da Sociologia, só o entrosamento de reflexões profundas, sérias, críticas, não
estereotipadas e inclusivas, podem ajudar a compreender a realidade e a suprir
a ausência de resposta dos clássicos paradigmas referenciais.
Revelando a dimensão multifacetada dos processos de globalização e
reestruturação produtiva nas condições de trabalho de certos grupos
profissionais, Linda Nerling e Bettina-Johanna Krings apresentam os resultados
de um estudo que envolveu catorze países europeus. No quadro de uma conjuntura
económica pontuada pelos ditames do mercado, centrada no consumo e na
satisfação dos consumidores, o bem-estar físico e psicológico dos/as
trabalhadores/as, as oportunidades de desenvolvimento profissional e de emprego
diferem consideravelmente entre regiões, sectores de actividade, mas também
entre homens e mulheres trabalhadores/as. A globalização económica tem gerado
novas formas de feminização do trabalho em segmentos de actividade
caracterizados pelos baixos salários, pela execução de tarefas de pobre
conteúdo, subordinadas, indiferenciadas, e por relações laborais precárias. No
expoente oposto, é possível identificar um segmento ainda essencialmente
masculino, ligado ao sector intensivo em conhecimento, onde a intensificação do
trabalho se coaduna com o exercício de tarefas complexas, organizacional e
socialmente valorizadas e bem remuneradas. As autoras analisam, igualmente,
outros paradoxos: se algumas mulheres têm acedido a este segmento privilegiado,
o alinhamento comportamental tende a seguir os padrões de trabalho masculinos
ali dominantes. No entanto, apesar de serem vários e similares os
constrangimentos que se colocam às mulheres dos países analisados, o
enquadramento institucional e a incrustação cultural permitem identificar
experiências laborais e pessoais diferenciadas, mesmo num cenário de
globalização.
Num registo similar, Vanessa Beck reflecte sobre as especificidades dos
contextos nacionais e institucionais. O texto apresentado decorre de um estudo
sobre as mulheres desempregadas, sobre a vivência dessa condição e as
estratégias seguidas para a ultrapassar. No caso da Alemanha de Leste, ex-
socialista, a centralidade do emprego tende a gerar estratégias diferentes
daquelas empreendidas pelas mulheres da Alemanha Ocidental. Não obstante a
valorização da maternidade, as expectativas, no primeiro caso, prevalecem muito
centradas na procura de um novo emprego; assim sendo, num cenário de
reunificação da Alemanha, de profundas transformações políticas, sociais,
económicas ou laborais (onde a subida do desemprego foi galopante na década de
90, ameaçando sobremaneira as mulheres alemãs em geral), a vivência da perda de
emprego tende a afectar mais as identidades individuais das primeiras e a
orientar as suas estratégias no sentido do desenvolvimento de outros papéis
alternativos, fora do espaço privado.
A leitura do conjunto dos manuscritos reunidos na primeira parte permite
constatar a ponderação de tópicos de análise e problemáticas teóricas que se
entrelaçam e enriquecem reciprocamente. Se o texto anterior suscita a reflexão
sobre o significado do trabalho, Sally Bould e Claire Gavray propõem-se
analisar pormenorizadamente o modo como a participação das mulheres na
actividade económica tem sido mensurado e o significado de população
trabalhadora (labour force), à luz de uma perspectiva histórica e comparativa.
O raciocínio crítico evidente neste texto permite compreender como as
estatísticas, de resto amplamente usadas para fins científicos e políticos,
contêm impregnada uma noção de trabalho restritiva, que se revela responsável
quer pela invisibilidade do vasto e intenso trabalho desenvolvido pelas
mulheres, quer pelo escamoteamento da real expressão do desemprego, quer ainda
por uma visão redutora que perde de vista a complexidade e a especificidade
inerentes aos diferentes contextos societais.
Mercedes Alcañiz, com artigos já publicados em Portugal, informa-nos agora
sobre as mudanças que têm ocorrido nas relações de género em Espanha, sobretudo
nos últimos dez anos, mas também sobre as resistências à modernização
verificadas naquele domínio. Se, por um lado, é possível constatar um aumento
acentuado da taxa de emprego feminino no decorrer daquele horizonte temporal,
por outro, os inquéritos à ocupação do tempo dão quase como inalterada a fraca
(ou mesmo ausente) participação dos homens na esfera doméstica e familiar. Ao
mesmo tempo, as políticas de conciliação implementadas pelo Governo espanhol
revelam-se, ainda, sobretudo orientadas para as mulheres e as medidas que se
destinam a homens e mulheres são quase exclusivamente utilizadas por estas.
Neste âmbito, a autora sustenta que as acções destinadas à promoção da
conciliação entre a esfera familiar e profissional devem ancorar-se numa clara
determinação política e social, que se revele efectivamente orientada para a
mutação da cultura que ainda enforma as identidades e os papéis de género.
Esta mudança no plano cultural, dos valores e das mentalidades requer o devido
impulso das instâncias políticas e de uma adequada arquitectura legal e
institucional, mas reclama igualmente o envolvimento de todos os actores nas
vertentes meso e micro da vida social. Heloísa Perista, Maria das Dores
Guerreiro, Clara de Jesus e Maria Luísa Moreno propõem-nos uma reflexão actual,
inadiável, sobre a integração da igualdade de género no espaço do diálogo
social e da responsabilidade social das empresas. No texto aqui apresentado, as
autoras dão a conhecer os frutos de uma parceria em prol da dessegregação
sexual, da conciliação entre as esferas profissional e familiar, e da protecção
da maternidade e da paternidade. A sensibilização, mobilização e participação
das empresas são vectores indispensáveis na concretização daqueles objectivos:
o trabalho apresentado, as ferramentas expostas e as boas práticas já
implementadas afiguram-se, por seu turno, meios fundamentais ao alcance de
futuras parcerias ancoradas numa lógica de cidadania empresarial.
Sendo estas as problemáticas que coerentemente dão corpo ao dossier temático, o
presente número reserva também espaço à visibilidade de outros estudos e
ensaios, cuja publicação foi igualmente sujeita ao escrutínio de blind
referees. O artigo de Ana Sani tem como pano de fundo os aspectos relacionados
com a violência doméstica exercida sobre as mulheres e os efeitos consequentes
no plano da identidade, dos papéis e das experiências enquanto mães. Sugere-
nos, ainda, a pertinência de uma abordagem de empowerment, o contributo de todo
o sistema social e o desenvolvimento de pesquisas que, uma vez assentes no
método da investigação-acção, sejam capazes de sustentar práticas positivas, de
promover a mudança por via da definição de políticas e programas interventivos
nesse domínio.
Tânia Cristina Franco Santos, Magdalena Santo Tomás Pérez, Aline Silva da
Fonte, María del Rocío Catalina García partilham os resultados de um estudo que
aqui definem como histórico-social. São apresentadas as principais
características dos regimes ditatoriais do Brasil e da Espanha e, num segundo
momento, são retratadas as respectivas implicações para a enfermagem em ambos
os países. Conclui-se pela constatação de uma imagem de enfermeira que, em
ambos os casos, se ajustava à ideologia dos regimes e contribuía para reforçar
o papel da mulher caridosa, abnegada e prestadora de cuidados como sinónimo de
uma actuação digna e honrosa no espaço público.
Mónica Oliveira e Eva Temudo proporcionam-nos um olhar diferente: a experiência
de vida das mulheres que combinam a actividade estudantil (universitária) com a
laboral. A partir da análise dos respectivos discursos, dão-nos conta do
desdobramento de papéis, tempos e tarefas, assim como dos diversos
constrangimentos vividos nas esferas universitária, profissional e familiar.
São testemunhos que nos guiam pela contradição, no plano subjectivo, entre a
procura de enriquecimento pessoal e os sentimentos de culpa, ansiedade e
inadequação decorrentes da conflitualidade de papéis. Interessante é também
verificar o quanto as expectativas individuais colam o desejo de um melhor
futuro para si ao anseio de um aumento do bem-estar familiar, sugerindo que
esta fusão funciona como fonte de preservação da própria identidade.
Consolidando a ponte com a problemática contida no dossier temático, o presente
número encerra com a colaboração de Manuela Tomei, da Organização Internacional
do Trabalho (OIT), que aqui recenseia alguns contributos de Marie Thérèse
Chicha, sobretudo na linha do combate à discriminação salarial. Os trabalhos
desenvolvidos por esta autora têm pugnado pela divulgação de métodos de
avaliação de desempenho objectivos, rigorosos e não estereotipados. Em sintonia
com as Convenções da OIT, a questão da equidade remuneratória é inserida no
plano dos direitos elementares dos/as trabalhadores/as e como um elemento
lapidar do percurso da igualdade entre homens e mulheres. Este, como aqui fica
patente, tem sido um trilho longo, complexo, tortuoso, vacilante entre
progressos e recuos... As páginas seguintes permitem, assim, descortinar uma
realidade que se apresenta dual: tanto caracterizam e denunciam situações de
segregação sexual e de desigualdade, como dão a conhecer ferramentas para a sua
superação e testemunhos de boas práticas Ex æquo.