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EuPTHUHu0874-55602009000200014

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National varietyEu
Year2009
SourceScielo

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Género e mudanças tecnológicas: o caso das indústrias gráficas

Introdução Até à década de 1970, assumia-se como pressuposto o determinismo tecnológico como uma força externa e autónoma que, naturalmente, influenciava a sociedade (Liff, 1986; Mackay & Gillespie, 1992; Wajcman, 2000, 2002). Por essa perspectiva, apenas seria possível aceitar acriticamente as mudanças tecnológicas, procurar a adaptação a elas ou rejeitá-las (Wajcman, 2002). Os chamados estudos sociais sobre a ciência e a tecnologia1, com início nessa década, introduziram a ideia de que a mudança tecnológica não resulta apenas de imperativos tecnológicos racionais, pois as opções são criadas e decididas em função do que se considera ser superior numa determinada circunstância (op.

cit.: 351).

Esta conceptualização foi importante para as posteriores leituras feministas, pois serviu de base para as análises centradas na possível ligação entre a mudança tecnológica e as relações sociais de género. De facto, se a mudança tecnológica não é autodeterminada, legitimaram-se as interrogações acerca do seu impacto na divisão sexual do trabalho, bem como da hipótese das relações de poder entre homens e mulheres serem um dos factores determinantes das tais opções tecnológicas (op. cit.: 356).

A partir de meados da década de 1970, a análise feminista recusou a visão sociológica simplista de que a mudança tecnológica se reflectiria, sobretudo ou somente, na conflitualidade das relações sociais de classe (entre trabalhadores e empregadores), pois seria necessário introduzir a mediação do género na avaliação do impacto dessa mudança (Bradley, 1986; Grieco & Whipp, 1986; Liff, 1986; Wajcman, 1991, 2000).

Esta alegação assenta numa crítica ao silêncio do marxismo face ao género, mesmo sabendo que a divisão do trabalho pago tem subjacente uma hierarquia sexual, a qual não é casual (Collinson & Knights, 1986; Grieco & Whipp, 1986; Macdonald, 1995; Wajcman, 2000; Witz, 1990, 1992). Este pensamento sociológico feminista começou por defender a necessidade de saber se o controlo sobre o processo de produção e sobre a relação capital-trabalho decorre de forma independente do sexo de quem está ser a controlado, complexificando, portanto, as análises centradas unicamente nas questões de classe. Argumenta- se, assim, que existe interesse dos empregadores e dos homens empregados em manter a segregação entre sexos e que o género é um factor de sustentação da organização do trabalho resultante da mudança tecnológica.

Estas perspectivas complexificam e aprofundam a óptica marxista acerca das oposições de classe e dão visibilidade ao género no domínio dos estudos sobre a tecnologia, explorando os efeitos desta na formação da identidade de ambos os sexos, reconhecendo que a representação simbólica da tecnologia é profundamente genderizada. Outro foco de interesse é a análise das competências de homens e de mulheres para o uso das tecnologias, as quais, pelo menos na óptica dos estudos sociais da ciência e da tecnologia, e até cerca da década de 1980, não foram encaradas como tema com suficiente interesse para ser discutido pela teoria social (Wajcman, 1991). Através desta óptica, foi possível clarificar que as organizações de trabalhadores especializados lutaram, estrategicamente, para construir e manter uma sobreposição entre a identidade dos homens e as suas competências específicas como forma de perpetuarem a sua dominância no local de trabalho e de conter a admissão de mulheres ou de as manter numa posição de subordinação (op. cit.: 32-33).

Será, portanto, essencial reter que os processos de mudança nas organizações de trabalho, desencadeados ou não pela adopção de novas tecnologias, «não resultam apenas do conflito contínuo entre capital e trabalho, mas do conflito entre quem trabalha, especialmente entre os trabalhadores de ambos os sexos» (op.

cit.: 33), algo bem demonstrado por Cynthia Cockburn (1983, 1985, 1988), relativamente à indústria gráfica inglesa.

O caso da indústria gráfica A indústria gráfica e as profissões que lhe estão associadas são paradigmáticas quanto às suas tradições corporativas (Barreto, 1981, 1982; Cockburn, 1981, 1983; Durão, 2003; Durão & Marques, 2001; Wallace & Kalleberg, 1982) e foram, durante décadas, ocupadas quase exclusivamente por homens (Cockburn, 1981, 1983). A introdução dos métodos computadorizados lentamente, durante a década 70 do Século XX e, francamente, a partir da década de 80 (Cockburn, 1981, 1983; Wajcman, 1991; Wallace & Kalleberg, 1982) colocou sérios problemas aos compositores (tradicionalmente, homens), ameaçando uma profissão que sempre teve uma identidade bem definida e foi numérica e simbolicamente atribuída aos homens (Cockburn, 1981, 1983).

A definição do perfil de competências e dos critérios de recrutamento para as profissões deste sector viria, inevitavelmente, a modificar-se, devido aos interesses dos empregadores2 e também pelas alterações na natureza das tarefas (Cockburn, 1983). Os computadores e os recursos electrónicos possibilitaram a admissão de pessoas capazes de executar tarefas complexas, as quais eram, anteriormente, um domínio exclusivo de trabalhadores seniores, como resultado de uma aprendizagem longa e colectivamente regulada (op. cit.). Por outro lado, muitos destes novos trabalhadores nomeadamente de sexo feminino eram detentores de competências criativas (do domínio do design gráfico, por exemplo), resultado de uma aprendizagem escolar e académica, sem um conhecimento empírico de todo o processo gráfico (Durão & Marques, 2001).

Outra das consequências das alterações tecnológicas introduzidas neste sector diz respeito à admissão de mulheres para as profissões em causa, sobretudo para a chamada fase da pré-impressão (desde a criação, à montagem e à arte-final), o que viria a por em causa a exclusividade masculina neste contexto ocupacional. Os protestos dos homens desta indústria foram diversos e incisivos, dirigindo-os, aparentemente e apenas, no sentido da defesa do simbolismo e da nobreza da sua profissão (Cockburn, 1983).

A presença das mulheres nos locais de trabalho e nas novas funções não transpareceu como motivo explícito principal das suas reivindicações e da sua oposição à mudança, pois as alterações tecnológicas foram assumidas como causa fundamental da situação de incerteza e de ruptura (op. cit.).

A ameaça à dominação masculina concretiza-se, segundo Wajcman (1991), pela opção estratégica dos empregadores em investirem nas novas tecnologias, o que descaracteriza as competências requeridas paras as funções e diminui os custos de produção. Por outro lado, os homens até dominantes, pela via do seu número e da exclusividade dos seus saberes, perdem claramente com essa entrada de mulheres, pois a mudança tecnológica associa-se, muito frequentemente, à feminização das profissões, como forma de conseguir baixar os custos em vencimentos (op. cit.: 36). As perdas, contudo, não são apenas para os homens, pois também as mulheres que ficarão ligadas às profissões, sentirão a diminuição dos salários, em grande medida, sob o argumento da simplificação dos processos de produção (op. cit.: 36).

Como a introdução de novos processos de produção e de organização do trabalho é coincidente com a entrada crescente de mulheres na profissão (Cockburn, 1983) a indústria gráfica, e a montagem de offset3 em particular, constituem-se como um campo privilegiado de observação da construção social do género na sua relação com as mudanças tecnológicas, bem como com as dinâmicas de construção, defesa e alteração das identidades profissionais. Daí, a importância das vozes e das versões de quem vivenciou directamente estes processos, os homens e as mulheres participantes desta pesquisa.

Método Este estudo enquadra-se numa pesquisa sobre os processos da construção social da masculinidade em contextos profissionais de dominância numérica e simbólica masculina e nas especificidades da identidade masculina que emergem nestes contextos, assumindo-se os seguintes objectivos gerais: identificar a possível ligação entre a definição da identidade profissional e a construção da masculinidade, identificar e caracterizar as estratégicas de adaptação das mulheres a esses contextos profissionais e a manifestação, pelos homens, de ameaça percebida pela adesão das mulheres profissões tradicionalmente ocupadas por homens.

Os elementos de análise apresentados dizem respeito a 12 participantes, metade de cada sexo, todos montadores de offset, em exercício ou em fase de reciclagem profissional, e resultaram de entrevistas semiestruturadas, seguindo um guião elementar constituído por cerca de 20 questões focalizadas nos objectivos formulados.

A análise do corpus constituído pelas transcrições das entrevistas foi orientada pelas perspectivas discursivas da psicologia social (Billig, 1987, 1997; Edwards, 2004; Parker, 1997; Potter & Wetherell, 1987). Na aproximação analítica aos discursos dos participantes, foram considerados os objectivos gerais referidos, como dimensões de análise de orientação elementar, mas admitindo a emergência de outras, assumindo a identificação de padrões de regularidade nas narrativas, de forma a salientar a sua variabilidade e consistência potenciais, ideando formas de interpretar o que é e porque é dito de determinada forma (Gill, 2003; Potter & Wetherell, 1987).

Elementos de análise Tradicionalmente, o envolvimento na profissão, a interiorização dos seus valores próprios e o desenvolvimento das competências necessárias foi sendo feito pela via da experiência concreta, junto com os mais experientes e mais antigos, tal como refere a literatura (Barreto, 1981, 1982; Cockburn, 1981, 1983; Durão, 2003; Durão & Marques, 2001; Wallace & Kalleberg, 1982). A ascensão nos patamares da profissão tenderia a ser lenta e regulada pela passagem do conhecimento e à medida que aumentava o grau de autonomia de cada trabalhador, tal como narram os participantes:

Nessa altura aprendíamos uns com os outros, quer dizer Era assim: entrávamos para aprendizes, ajudávamos os mais velhos, íamos vendo, depois iam-nos dando alguns trabalhos simples, a gente ia fazendo e um mais velho, ou um oficial ia corrigindo, e tal e era assim. Com o tempo iam vendo se nós nos ajeitávamos ou não. Alguns não davam mesmo, não saíam do mesmo. Entende? Era assim (H, 50)4.

A representação da profissão de montador de offset é definida pelas suas tarefas bem delimitadas, exigentes do ponto de vista físico e intelectual, enquadradas pelo cultivo da aprendizagem por transmissão oficial-aprendiz e por uma tradição corporativa (Barreto, 1981, 1982).

Conhecimentos intelectuais, sem dúvida, e a tal acuidade.

Portanto, tínhamos que ter os órgãos da percepção ali presentes, desde ver bem, imaginar e executar. Estava na mente, estava nos olhos, estava nas mãos, em simultâneo(H, 38). Portanto, é uma concentração total. Um tipo a pessoa tem que ser uma pessoa muito concentrada, isto é verdade, tem que ser muito concentrada e extremamente concentrada estar sempre com o cérebro bem, porque o trabalho é muito caro isso é fundamental () Bem, depois, também, saber, não é? (H, 47).

A representação do ideal de montador de offset associa, portanto, o seguimento de uma ética tradicionalmente construída, baseada na entrega e empenhamento totais na qualidade do trabalho, o qual tem uma natureza eminentemente intelectual, mas que se expressa, fisicamente, na utilização dos sentidos e no esforço da concentração.

Feminilidade na montagem de offset Na história da profissão, a entrada de mulheres foi relativamente tardia e, em grande medida, associada à introdução de inovações tecnológicas, como a informatização. Por isso, os homens entrevistados referem ter conhecido poucas profissionais e estas afirmam, com frequência, que foram sempre minoritárias ou as únicas num grupo masculino alargado.

Nos discursos dos homens, identificam-se algumas particularidades femininas, associadas à sua pertença sexual e, portanto, inerentes à sua natureza, nomeadamente a dificuldade em atingirem o rigor necessário, mostrando alguma desadequação face ao que se define como ideal na profissão e nos profissionais:

Agora, sinceramente, ultimamente trabalhei com várias colegas minhas, espectáculo!, não havia diferença nenhuma, antes pelo contrário, algumas até com um nível que raramente falham.(). As mulheres, sinceramente, e eu vou dizer isto com toda a sinceridade, não eram não percebiam () que o problema era não entenderem o grau de precisão das coisas.

(), no meu tempo, a mulher às vezes, a gente até se ria e é verdade que falhava muito, mesmo depois de saber, depois de quatro ou cinco anos daquilo, falhava muito ainda «isso foi uma mulher que fez!» (). Era assim, havia essa diferença (H, 47).

As alegações iniciais de que as mulheres, enquanto profissionais, atingem o mesmo grau de desempenho que os homens, facilmente dão lugar à enumeração do que, a partir da visão dos homens, as torna distintas como profissionais e indistintas enquanto mulheres. O discurso seguinte sintetiza muito bem essa dinâmica discursiva:

Quer dizer, eu acho que elas se ajeitam, mal ou bem ajeitam-se. Eu eu, não é por nada, mas na altura as achava assim menos aplicadas e tal. Que é que eu quero dizer? Não ligam tanto aos pormenores, ás vezes não dão valor acham que não é nada e depois no trabalho final dava mau resultado. É isso. E depois tinha outra coisa quando estavam numa de saírem e irem para casa não eram muito maleáveis(). É por isso que eu acho que não é por não serem capazes, mas sempre aquelas coisas a casa, os maridos, os filhos e isso que não dava muito para trabalhar fora de horas e fins-de-semana e isso. () Dá-me ideia que, antes delas virem, havia guerras e conflitos e volta e meia a coisa azedava-se, discutia-se, e tal, mas parece que com elas Parece que as mulheres têm tendência para arranjar confusões, intrigas, sei . () com elas havia confusões a toda a hora por isto, por aquilo (H, 50).

Assim, a identificação de um nível menor de acuidade, tão importante na definição da profissão, a indisponibilidade para trabalhar para além das horas estabelecidas, devido às tarefas domésticas tradicionalmente atribuídas às mulheres, e a tendência feminina para a conflitualidade (alimentada pela intriga) parecem servir, neste discurso, para reanalisar e contradizer a afirmação de que o nível de desempenho profissional é igual nos dois sexos. A homogeneização das mulheres, enquanto grupo ou categoria, é tentada, pelo recurso à menorização da sua capacidade ou do seu investimento no rigor do trabalho e à acentuação de traços estereotípicos e dos papéis sóciosexuais que lhes são associados.

Nos discursos, os temas de conversa desempenham o papel de exemplo ou de indicador de alguma tensão entre a identidade profissional, associada à masculinidade, e a gestão da dominação numérica de um ou outro sexo. A feminilidade, trazida pelas mulheres e pela sua especificidade, será sujeita a acções de delimitação e de sujeição, evitando que, visivelmente, passem a fazer parte da identidade da montagem.

Quando alguma coisa tocasse, tivesse a ver comigo, então a conversa apesar delas, sendo pessoas que me dava muito bem com elas, falávamos de tudo eu até falava, às vezes, dizia coisas que não devia dizer, mas, pronto, porque tinha uma confiança muito grande com elas. () Por vezes, a gente fartava-se de rir «é, , pára , deixa de falar de saldos e dessas coisas e fala de outra coisa qualquer» pronto e quando é o contrário Mas no caso dos homens, aquilo que me parece é que A gente, às vezes, tinha uma mulher na secção A gente procurava eu não estou a ser machista, nem nada [risos] mas procurávamos sempre ter uma conversa que também a abrangesse, nem que fosse uma (H, 47).

É justo admitir que estes discursos também constroem a uniformização dos homens desta profissão, pois, no fundo, afirma-se que (todos) estes não participam (ou não devem participar) dos traços da feminilidade, como a dedicação ao mundo doméstico ou ter interesse por temas supostamente específicos das mulheres, como as compras.

Estratégias das mulheres As análises dos discursos anteriores permitiram a aproximação à diversidade de narrativas acerca da localização da feminilidade nas identidades de cada uma das profissões. Foi suficientemente clarificado que, genericamente, a presença das mulheres, em maior ou menor número, não abalou a hegemonia da masculinidade neste contexto ocupacional. , então, fundamento para a interrogação acerca das estratégias seguidas pelas mulheres para se incluírem em tais contextos e culturas. Com efeito, sabendo-se minoritárias e admitidas para um trabalho que, potencialmente, contraria os estereótipos sociais de género, o que, desde logo, leva a baixas expectativas de desempenho (Aronson & Quinn, 1998; Stangor & Sechrist, 1998; Wajcman, 1991), é pertinente analisar como as mulheres descrevem as suas estratégias de superação dessa dificuldade.

Os discursos que negam a existência de acções de discriminação negativa, protagonizada pelos homens, e as dificuldades de integração são absolutamente prevalecentes, ainda que em diferentes versões. Nas narrativas resultantes da primeira referência às suas experiências nas profissões são apresentados argumentos que defendem a plena aceitação, a naturalidade desse processo, bem como a ausência de distinção significativa entre os sexos.

Contudo, após estas primeiras expressões acerca das experiências nos contextos profissionais, as suas alegações fazem emergir um conjunto de estratégias possíveis para que tenham mantido e mantenham a presença nas profissões, assim como discursos de alguma complexidade e profundidade, muitos deles pautados pela contradição de afirmações precedentes.

Elevação dos graus de exigência e evidência de capacidades Os discursos de todas as participantes expressam o seu conhecimento de que, por tradição, os homens foram únicos e são numericamente maioritários na profissão que partilham com elas. A estranheza pela sua entrada nesta profissão terá sido manifesta por expressões de expectativa face ao desempenho, sob o augúrio de insucesso provável:

E E os seus colegas aceitaram-na bem? Agora, houve casos, colegas, alguns, em que eu não me senti muito bem recebida e acho mesmo que era por ser mulher, não tenho dúvida. Assim, tipo, «deixa ver se esta aselha é capaz de dar conta disto». E nos primeiros tempos andavam ali com o olho em cima de nós para tentar apanhar-nos em falta, ou assim. E era nesse caso que nós tínhamos de Dava algum stress, a gente saber que se falhasse eles não deixavam passar em branco e faziam logo conversa disso, para nos chatear. Senti muito isso (M, 37).

Este extracto é bastante explícito quanto à necessidade sentida pelas mulheres para contrariar as expectativas de insucesso e à premência para demonstrar níveis de competência iguais aos dos homens. Os níveis de execução podem ser, de forma deliberada, aumentados pelas mulheres, com o objectivo de sublinhar as suas capacidades de superação desses níveis e de se imporem, ainda que tal implique um esforço acrescido e uma atenção redobrada.

Ocultação e não acentuação da feminilidade Aquelas que classifico como estratégias de ocultação (tentada) da sua presença manifestam-se de formas diversas, ainda que o objectivo se aproxime de uma afirmação paradoxal como estou entre vós, mas não quero ser vista (como mulher), o que me parece transparecer no excerto seguinte pelo uso de metáforas como não criar problemas e não levantar ondas:

É assim, quando nós queremos, corre bem, se nós não criarmos problemas, acaba por correr bem. Fazemos o nosso trabalho o melhor possível, não levantamos ondas entende? Se for assim, acaba por correr bem (M, 37).

A consecução desse objectivo paradoxal de ocultação concretiza-se pela não ocupação do espaço do convívio e do diálogo com assuntos que consideram típicos das mulheres e do mundo doméstico, evitando aflorá-los junto dos colegas homens:

Eles falavam entre eles e se eu quisesse também podia falar, mas É assim: a gente sente quando está a mais ou Eu sentia que eles não me queriam ali. Depois, o que é que eu ia falar? Das compras, dos miúdos, de um livro que estava a ler? () Não dava mesmo (M, 37).

Falar dos filhos, das compras, da roupa, das áreas tipicamente femininas, é apontado pelas mulheres como um comportamento a evitar, pelo menos na presença de elementos masculinos, ilustrando a eficácia da cultura ocupacional ao nível da incorporação das normas. No entanto, o teor das conversas entre colegas de profissão é um tema insistentemente desenvolvido pelas entrevistadas:

Tive que eu adaptar-me a eles. () Adaptei-me ao de um ambiente masculino onde, realmente, o tipo de conversas é outro, o tipo de brincadeiras é outro e, no fundo, eu nunca quis que fossem eles a adaptar-se a mim. (). Eu sempre os pus à vontade às vezes, deixavam escapar uma asneira ou assim. «Ah, desculpe!». «Não tem nada de desculpar! Eu se estiver mal mudo-me ou então finjo que não ouvi, porque vocês estão no vosso ambiente, eu tenho é que, se não gostar de ouvir, finjo que não ouvi». Sempre os pus à vontade nisso. Depois, fui ficando mais à vontade e era eu que participava nas brincadeiras e nas conversas (M, 37).

() As pessoas têm que se ir adaptando aos meios, não é? Não podia chegar ali e, agora, começar a entrar em guerra com os homens todos por causa de «olhe, vejam , não digam isso!». Não! Somos todos pessoas e nunca achei que tivesse, que tivesse de ser especial porque por ser mulher (M, 42).

A adesão aos conteúdos e estilos da conversa dos homens parece ser, pois, um imperativo («tive de adaptar-me»), o que, aliás, é encarado como um indicador de integração no grupo dos homens, até ao limite da indistintividade entre os sexos («somos todos pessoas»). Contudo, os discursos clarificam que essa indistintividade é conseguida através da adaptação e elevada tolerância das mulheres e que o sentido do contributo de cada sexo não é arbitrário nem biunívoco. Quer dizer, as mulheres adoptam a norma (masculina) da profissão e a sua presença parece não abalar, nem modificar, em permanência, os comportamentos dos homens. Provavelmente, se tal objectivo não fosse bem sucedido, pôr-se-ia em perigo a plena integração das mulheres na cultura ocupacional, pois tornar-se-iam demasiado visíveis.

Vivências da discriminação A continuidade do diálogo, a pormenorização das práticas profissionais quotidianas, a recuperação de memórias e, provavelmente, o maior grau de à- vontade na relação permitiram ou suscitaram a narração de múltiplas vivências consideradas pelas mulheres como práticas de discriminação negativa. Estas narrativas coexistem, na mesma entrevista, com aquelas que negam a discriminação, ilustrando, com emoção e sob a forma de denúncia, as diferentes vozes para se referirem a este tema:

No meu último emprego eram 7 homens e eu. Eu até dizia que era a Branca de Neve e os sete anões. Eles fizeram-me a vida negra. Fizeram-me a vida negra, porque eu ganhava mais do que eles e tinha entrado menos tempo do que eles e, então Adaptei-me à situação, aprendi rapidamente o que era necessário, eles tinham algumas dificuldades. Ganhava mais e, então, fizeram-me a vida negra (M, 55).

Esta narrativa mostra que a remuneração superior à dos colegas se tornou motivo para a rejeição desta mulher no seio do grupo e exemplifica como a credenciação desafia as vias tradicionais de admissão e de progressão na profissão e como os seus efeitos podem ser genderizados. Neste caso, trata-se de alguém que inaugurou o uso da informática naquela empresa, pelo que a oposição à tecnologia e a marginalização das mulheres que a manuseiam se confundem, uma reflexão que Judy Wajcman (1991, 2002) havia realizado5.

Discussão e conclusões A definição do perfil ideal destes profissionais evidencia as capacidades de abstracção e intelectualização do trabalho e de autodisciplina, expressas através da concentração, resistência à pressão do ambiente de trabalho, exigência e orgulho na cultura da profissão. Através da interpretação dos significados destes atributos desejáveis, salienta-se uma forma hegemónica de inteligibilidade (Wetherell & Edley, 1999; Connell, 1995; 2001) acerca do que significa ser homem e, ao mesmo tempo, montador de offset. Por desenvolverem, predominantemente, actividades de natureza intelectual, é uma representação que partilha de alguns dos traços da masculinidade heróica, como a eficácia, a energia, a firmeza e a frieza de pensamento (Wetherell & Edley, 1999: 351).

A representação das mulheres com esta ocupação profissional resulta da articulação de duas versões diferentes: uma que as descreve como indistintas e outra que as afasta dos traços normativos da profissão, devido à sua natureza feminina. Admite-se, em potência, que as mulheres da profissão poderão ter níveis de produtividade semelhantes aos dos homens, mas também se defende que terão tendência a ser menos precisas, a investir menos no trabalho, a ter um menor envolvimento nas actividades extralaborais do grupo e a serem conflituosas.

Os argumentos que dão corpo a essa representação relacionam-se, do ponto de vista discursivo, com o natural desempenho dos papéis conjugais e familiares, por parte das mulheres, o que pressupõe que os homens desta profissão não terão interesses relacionados com esse universo e que a feminilidade não deve contribuir para o ideal normativo, pois é encarada como marginal e exclusiva do ser feminino (Amâncio, 2003; Amâncio & Oliveira, 2006).

Por serem mulheres e terem optado por uma profissão que não se justapõe aos estereótipos sociais de género, espera-as, por princípio e consequência, um cenário de expectativas de insucesso (Aronson & Quinn, 1998; Stangor & Sechrist, 1998; Wajcman, 1991). Enquanto grupo minoritário e simbolicamente dominado, ser-lhes-ão necessárias capacidades de sustentação da sua presença e de enquadramento no grande grupo, ou seja, o uso de mecanismos de adaptação que articulem esse estatuto grupal, a vigilância das suas realizações e a permanência. Trata-se, portanto, de um conjunto de estratégias de sobrevivência e de inclusão (Aronson & Quinn, 1998; Branscombe & Ellemers, 1998; Stangor & Sechrist, 1998; Marques & Amâncio, 2004), podendo ou não passar pelo desejo de atenuar a diferença face ao grupo dominante (Branscombe & Ellemers, 1998; Fine, 1987).

As mulheres envolvidas neste estudo recorrem a um reportório discursivo de negação ou desvalorização das dificuldades de adaptação a um universo profissional dominado simbólica e numericamente por homens e a uma cultura ocupacional assente na masculinidade hegemónica. Não se trata de uma originalidade destas mulheres, pois este reportório foi identificado noutras investigações e em profissionais da gestão (Nogueira, 1996; Collison & Hearn, 2001), da condução de táxis (Kimberly, 1997; Marques, 2007) e da cirurgia geral e da magistratura judicial (Marques, 2004).

As elevadas expectativas e a vigilância face ao desempenho feminino são-lhes directamente relembradas por aqueles que encontram nos contextos de trabalho ou são simplesmente deduzidas pelo conhecimento de que foram admitidas num espaço em que a sua presença não é habitual.

A tentativa de afirmação de que estão plenamente integradas e que abdicam, enquanto profissionais, do que distingue a sua pertença sexual é muito evidente nas estratégias narradas pelas profissionais, confirmando um fenómeno comum a condutoras de táxi (Boyd, 1997; Marques, 2007), advogadas (Quinn, 2000) e cirurgiãs (Riska, 2001; Marques & Amâncio, 2004; Sanfey, 2006) . O esforço para a integração manifesta-se na ocultação ou subvalorização dos seus interesses, no evitamento da condução das conversas e na cedência ao protagonismo e imposição de temas e palavras dos colegas, ilustrando o forte poder performativo da fala e do discurso (Foucault, 1980; Potter & Wetherell, 1987; Augoustinos, 1999).

As afirmações das mulheres sobre a aceitação pelos colegas são ilustradas por práticas entendidas como de discriminação positiva ou como sinal evidente de sucesso, ainda que, contraditoriamente, esses discursos e experiências assinalem a presença de situações de efectiva coacção e acentuação da desigualdade e da diferença neste contexto e nesta cultura genderizados.

Algumas das narrativas assumidas pelas participantes como de ilustração de experiências de discriminação negativa são melhor compreendidas quando as experiências são histórica e sociologicamente enquadradas. Possivelmente, por terem dado início a processos de abertura da profissão às mulheres, as narrativas recorrem a um passado longínquo para ilustrar essas experiências.

Contudo, este não é um tema unicamente do passado e, portanto, desactualizado, o que justifica um investimento na compreensão acerca dos processos mais ou menos subtis de construção da diferença e de acentuação das desigualdades de género, bem como a identificação de estratégias de intervenção que garantam a mudança e a emancipação.


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