Testemunho nomear a aurora sem ela
Testemunho nomear a aurora sem ela
Marijke de Koning*
Fundação Cuidar o Futuro
Il faut être deux ' ou, du moins, hélas ! il faut avoir été deux '
pour comprendre un ciel bleu, pour nommer une aurore!1
Gaston Bachelard
Ela
Maria de Lourdes Pintasilgo é uma presença incontornável na minha vida, desde
que a conheci em 1969. No dia 10 de Julho de 2004, a sua presença enquanto Tu
constituinte, da minha relação Eu-Tu com ela, utilizando as palavras-princípio
de Buber (Buber,1969), transformou-se para sempre numa Ela, sem mais. Naquela
madrugada deixou de ser possível com Ela enquanto Tu, nomear a aurora. A Tu do
Eu-Tu passou a ser definitivamente um Tu transformado em Ela. Ela tornando-se
um Isso.
«Maria de Lourdes Pintasilgo foi uma pessoa de afecto inclusivo» (Koning, 2009:
3). Entre Ela e Eu existiu uma relação Eu-Tu, por definição, exclusiva. Uma das
muitas relações que pelo mundo fora fazia parte das redes polifónicas
abrangidas pelo afecto inclusivo dela.
Os textos em que escrevo sobre Ela permitem-me sair temporariamente do mundo em
que Ela está ausente enquanto Tu. Através do acto da minha escrita sobre Ela,
entro num ailleurs, em que existe de novo a tensão entre continuidade e
descontinuidade, tensão estruturante de todas as relações Eu-Tu.
Mas, escrever sobre Ela pode intensificar o seu estado de Isso, pelo facto de a
transformar num conteúdo. Como não a «conteúdizar»? Como não reforçar o seu
estado Isso, quando escrevo sobre alguém que foi Tu para Eu?
Quando Eu, Marijke, me dirijo no texto a Tu, Maria de Lourdes, que fora do
texto já só existe enquanto Ela na relação Eu-Isso, construo uma continuidade
do Eu-Tu. Assim, escrevendo, entro num novo devir com Ela enquanto Tu.
Já escrevi alguns textos em que Eu me dirijo à Tu, como o texto lido por mim no
sétimo dia após a sua morte:
Minha querida amiga Maria de Lourdes
Tento
Tento escrever sobre o papel branco
Papel vazio de palavras
Papel que esconde um mar de memórias
Fortes e dispersas
Dizer
Tento
Tento dizer Maria de Lourdes
Dizer o sentido da sua vida para mim
Sei que não vou conseguir já
mas prometo que não me calo
Dizer
Escrever
E o texto «Algures com Maria» no livro Maria de Lourdes Pintasilgo. Retratos
sem moldura de Helena Silva Costa:
Maria,
Vários dos seus livros de poesia encontram-se num armário com portas de vidro,
junto de outros que tinham um valor especial para si, como o livro Du domaine,
de Guillevic.
Des journées/A voir s'étirer le temps2 (Guillevic 1977:19). «Est-ce dicible ?»
escreve na margem do texto. A sua pergunta faz-me olhar pela janela enorme do
domaine que foi o seu apartamento em Lisboa. Janela a abrir sobre o domaine do
mundo que para si era do tamanho de uma aldeia. Lembra-se que às vezes me
telefonava à hora do pôr-do-sol quando o dia se preparava para se apagar noite
dentro? Para dizer a beleza da luz e o tempo que passava devagar. Falávamos de
muitas outras coisas. Agora, quatro anos mais tarde, ma chère Maria, a sua
presença luminosa intensifica-se à procura de luzes que possam cantar consigo
um cântico de profeta. Quand une lumière/Rencontre une autre lumière. /On
entend monter/ Un chant de prophète3 (27).
Com Ela nomear a aurora
Under the shadow
of the tall pine trees
there are no strangers4
Maria de Lourdes Pintasilgo
A presença de Ela na minha vida foi «Luminosa e profética», «desafiadora» mas
também «perturbadora» (Dacosta, cit. em Koning 2005: 78). Incómoda pela
exigência que colocava em cada iniciativa a realizar e pelo que esperava das
pessoas que trabalhavam com ela. No tempo disponível de uma relação Eu-Tu
estruturada por uma «missão comum» não nos podíamos «distrair», distracção no
sentido de falta de atenção para com o trabalho a fazer, trabalho que nos
(re)unia. A aurora que iluminava a nossa missão comum tinha Deus ou o Mistério
ou o Sagrado no seu horizonte.
Maria de Lourdes Pintasilgo foi junto de mim ' também ' testemunho do Mistério
de Deus. Após a sua morte encontrei no seu quarto uma pasta com um texto seu
que estava a retrabalhar. Texto manuscrito em francês de 14 páginas e datado de
2 de Dezembro 1983. Começa com duas perguntas: «Oú est Dieu aujourd'hui? Qui
l'a vu et pourrait en rendre compte ?' (Si, 43.31).» Na página 6 sublinha uma
outra sua pergunta:
«Et s'il y avait un humain si totalement, si universellement humain
qu'il briserait toutes les frontières et deviendrait le terme infini,
devenait Dieu?»
«S'en rendre compte», como tentam os autores do livro Deus no século XXI e o
futuro do cristianismo, coordenado por Anselmo Borges. Livro fascinante e
trabalhado por nós durante o inverno de 2008 no grupo do Graal do Porto. «S'en
rendre compte» no mundo de hoje e no contexto da tradição cristã, sabendo que
«nenhuma [religião] nem todas juntas ( ) possuem [o Sagrado], e de
que o que, antes de mais, une todos os homens e mulheres é a
humanidade, implicando, consequentemente, esse diálogo [inter-
religioso] uma praxis a favor do Humanum, critério decisivo da
verdade das religiões» (Borges, 2007: 8).
«Deste diálogo fazem parte também os ateus, pois são eles que permanentemente
advertem os crentes para o perigo da idolatria e da desumanidade ' e a
idolatria é pior do que o ateísmo» (ibidem: 14).
Ela desafiava-me a estar atenta, também a este horizonte do Sagrado no meu
nomear a aurora. Um exemplo da sua exigência às vezes perturbadora para comigo
é um episódio que vivemos em Amesterdão em Dezembro de 1994 após um encontro no
âmbito do Graal, da rede europeia Lien, sobre o tema Segurança: contextos
diferentes ' diferentes definições. Maria de Lourdes fez a introdução ao tema.
Durante a conversa de grupo falou-se entre outras coisas do papel das
religiões. Não me lembro do que terei (não) dito, só da sua pergunta e da minha
resposta, já na rua, após o encontro: «Tens assim tanta dificuldade em dizer
Deus?»
«Sim, tenho.» Acho que ficámos ambas perturbadas. Ela, que fez de Deus o centro
da sua vida. Eu, em Amesterdão, na Holanda, distante de Portugal, país em que,
em muitos contextos, ainda se podia falar em Deus num registo de uma certa
«evidência». Nas ruas da minha terra, longe das sombras dos pinheiros que, em
Portugal, protegiam as nossas conversas da luz demasiada do sol, era como se
Ela se tornasse estrangeira para mim.
Talvez tenhamos ficado perturbadas porque fazíamos parte deste «entre-lugar» ou
«trans-lugar», que é o Graal, movimento internacional de mulheres de inspiração
cristã. Devia eu, mulher enraizada na tradição cristã, com tempo partilhado com
Ela em iniciativas do Graal, ter sabido (ou ter querido) «dizer Deus»?
«À pessoa compete, se tem fé, tornar-se testemunha junto dos outros
da sagrada notícia. ( ) Mas muitos como eu, que não têm força nem fé,
podem ao menos reconhecer nestas pessoas a impressão digital, a
pegada de Deus. Desta forma também alguém que tem dificuldades em
acreditar no céu, se pode tornar testemunha indirecta. Ainda que não
tenha visto Jesus elevar-se no ar, pode dizer que viu a força da fé
descer sobre um seu semelhante. Pode dizer que viu num outro a
notícia» (Luca, 2009: 28-29).
É sobre este (não) saber ou (não) ser capaz de dizer «Deus» que gostava hoje de
falar com Ela. Ela, testemunha directa Dele, Eu talvez, às vezes, indirecta.
Da aurora
Se voar nas asas da aurora,
se habitar nos confins do oceano,
mesmo ali a vossa mão me guiará
a vossa mão direita me sustentará.
Salmo 138
Maria de Lourdes,
Quando em Setembro de 2007 estava na Holanda, a minha mãe telefonou-me,
entusiasmada, manhã cedo, do nono andar onde vivia, dizendo: «Agora vi uma
coisa tão milagrosa. Levantei-me cedo e de repente havia aquela luz vermelha no
horizonte. Primeiro vi um tracinho pequeno, depois um bocado grande que se
transformou numa bola enorme encarnada. Foi lindo.» Quando a minha mãe morreu,
pouco tempo depois, li, na celebração de despedida que teve lugar na igreja
onde ela foi baptizada e onde se casou com o meu pai, as seguintes linhas de
Huub Oosterhuis:
«Pernoitamos na sombra uns dos outros/acordamos na primeira luz./
Como se alguém nos chamasse pelo nosso nome» (Oosterhuis, 2005: 105).
Tal como Tu, a minha mãe tinha uma confiança grande em Deus. A existência de
Deus era para ela mais inquestionável do que para mim. Lembro-me que uma das
primeiras conversas consigo, em Paris em 1969, foi exactamente sobre as minhas
muitas dúvidas.
«Que seria de mim, sem o entusiasmo?» escreve, Maria de Lourdes, lembrando que:
«entusiasmo significa etimologicamente a confiança em Deus. Não é uma
externalidade com que se possa ligar como se fosse apenas um acessório»
(Pintasilgo 2005: 173-174). Talvez fosse isso que a perturbou em Amesterdão: se
(a confiança em) Deus não fosse um acessório, seria impossível não saber dizê-
lo. Podemos pernoitar na sombra, mas é para acordar na luz. Talvez achasse,
Maria de Lourdes, naquela rua do meu país, que eu ainda não me tivesse
libertado «da exterioridade sufocante e opressora» (Pintasilgo, 2005: 124) do
deserto espiritual em que se arriscava transformar a vida. Parafraseando o
grande místico do século XVII Angelus Silesius, Maria de Lourdes fez de Deus o
centro da sua vida. Talvez estivesse a pensar:
«Je ne peux prétendre voir' Dieu si je ne peux pas en rendre
compte' dans n'importe quel coin de la terre. Ma foi est
contextuelle', non seulement ni principalement à un espace mais à un
temps, celui que je vis» (Pintasilgo, 1983: 12).
Perante o meu não nomear Deus a que assistiu naquele momento e naquele «coin»
em Amesterdão, quero tentar mobilizar algumas palavras, alguma «intensidade-de-
entusiasta», com o desejo de devir «pessoa inteira, tornada voz» (Pintasilgo
2005: 125). Sempre na tentativa de (re)construir a minha autenticidade à luz de
um horizonte de referências que me transcende, em que Tu foi para Eu «mãe
simbólica e filosófica» (Koning, 2006), não em detrimento da minha emancipada
autonomia, mas reconhecendo Tu-mãe-simbólico-filosófica como uma das múltiplas
condições estruturantes de que «dependia» para ir construindo a minha
autonomia. Embora também eu não tenha «grande apreço pelas metáforas
familiares», embora também ache que «no plano humano só pode haver relações
verdadeiras se forem horizontais» (Henriques 2007: 212), penso que a assimetria
que a metáfora mãe introduz na descrição da nossa relação, tenha a «função» de
explicitar, paradoxalmente, que a assimetria era constitutiva da
horizontalidade da nossa relação. Uma relação Eu-Tu, por definição horizontal,
mas atravessada por uma Ela tão além do Eu, que seria insensato pensar em
termos de simetria. Tu tão além do Eu em termos de conhecimentos, saberes e
experiência, mas tão próxima em termos de afecto.
Talvez pudesse formular a minha relação Eu-Tu com Ela desta forma: equilíbrio
instável e fascinante entre assimetria e horizontalidade.
Nomear a aurora?
«Silêncio: tal é o lugar. Silêncio teológico; silêncio de toda a
linguagem sobre Deus; grande silêncio do ser humano sobre o aquém e o
além, sobre o conhecido e o desconhecido, pois nenhum saber conhece
de antemão, nenhuma prática assegura a certeza. Mas porque o ser
humano vive, esse silêncio não é outro senão a palavra inaugural:
aquela que, esgotados todos os recursos da linguagem, mergulha na paz
mais profunda, comunica a vida, dá à luz» (Bellet, 1980, citado em
Mudar a Vida 35, «Dizer Deus 2»: 3)
A nossa amiga Mimi Marechal, que no Centro do Graal Tiltenberg na Holanda
introduziu sessões de budismo zen, fala no conceito japonês wabi que significa
algo como «beleza através da sobriedade e da pobreza». Uma sobriedade escolhida
e cultivada: «o viver consciente de uma ausência e experimentar esta ausência
como algo de bom, como causa e alegria» (Marechal, 2005: 15). Na arte de
caligrafia ou de desenhos com tinta, escreve ela, wabi significa que «o branco
da página é mais importante que o desenho» (ibidem: 16). Maria de Lourdes, esta
ideia faz muito sentido para mim. Até me permitia acabar aqui este meu texto.
Deixo uma página em branco para simbolizar o meu silêncio consciente sobre
Deus. Deus não visto e de quem não posso «rendre compte».
Silêncio: tal é o lugar
Nomear a aurora com elas
Em 2005, um ano depois de Tu já não estar com Eu para nomear a aurora, foi
publicado na Holanda um livro intitulado Devoções Modernas. Mulheres falam da
sua fé. Livro escrito por mulheres «com um alto grau de emancipação, oriundas
de diferentes tradições religiosas». Catorze mulheres: quatro islamitas, duas
judias, sete cristãs e uma hindu. Dizem, no prefácio, as organizadoras (Kalsky,
Overdijk & Spek, 2005) que os/as migrantes na Holanda descrevem o país como
um «deserto espiritual», em que muita gente está à procura de sentido e de
aprofundamento espiritual e afirmam:
«Criar espaço para um desejo religioso não é igual a uma submissão
irracional a líderes autoritários e livros sagrados. Significa uma
procura ' muitas vezes individual e às vezes suportada por uma
comunidade ' procura de palavras, imagens e rituais para lidar com o
incompreensível. Vida e morte, finitude, amor, o mal, o cosmos, a
diferença indissolúvel entre eu e o outro» (ibidem:10).
Traduzi alguns excertos em que nove autoras tentam dizer algo das suas auroras.
Naïma Azough5 (de origem Islamita):
«Se fazer o bem, a solidariedade e o cuidado nas relações
interpessoais forem as minhas referências, então não há nenhuma
diferença essencial entre islamitas e não-islamitas. A separação
encontra-se noutro lado: entre quem cuida do seu próximo, da sua
comunidade, da natureza e quem é cego para o cosmos e apenas cultiva
crueldade e ódio» (ibidem: 26).
Tamarah Benima6 (de origem Judia):
«Tenho dificuldade em dizer ( ): embora não sinta Deus no meu
coração, não há nada senão Deus'» (ibidem: 35).
«(Temporariamente) não acreditar e ainda seguir um caminho de vida
inspirada pela religião ( ) como uma fase recorrente deste mesmo
caminho» (ibidem: 37).
«Vejo as religiões como línguas, ou antes: línguas musicais. ( )
gosto de falar diferentes línguas religiosas de modo que possa
comunicar com outros nas suas línguas religiosas» (ibidem: 38).
Désanne van Brederode7 (de origem Cristã):
«Não acredito que a religião satisfaça necessidades, que seja útil e
me dê coisas ' eu acredito para poder prometer a alguém', um
espírito que envolve todo o espírito, que continuarei a dar. ( ) Falo
de Alguém', mas no fundo experimento Deus como um espaço leve,
fluído, quente à nossa volta. (...) A Fé desaparece quando sei
categoricamente em quê. Não quero ocupar este espaço à minha volta,
porque assim nada poder fluir ou soprar. Perderia a respiração. Seria
a morte do espírito. Morte da fé» (ibidem: 47-48).
Rémi van der Elzen8 (de origem Cristã):
«Não é possível dividir a vida rigidamente em duas partes, entre as
causas espirituais e superiores da alma e os baixos prazeres
terrestres. Tenho de aprender a ver que a porta que dá acesso ao mais
alto', apenas se abre quando abraço o mais baixo'» (ibidem: 102).
Kathleen Ferrier9 (de origem Cristã):
«Não há linhas divisórias entre islamitas e cristãos, mas antes entre
pessoas de boa vontade e pessoas de má vontade. ( ) Talvez haja mais
linhas divisórias entre gente picuinha ' pessoas com uma fé fanática
ou que são fanaticamente contra a fé e a ridicularizam ' e pessoas
que têm algo' a ver com a religião. Estes algoistas' encontram-se
hoje em dia no meio de islamitas, hindus, judeus e cristãos e têm
muito em comum» (ibidem: 112-113).
Senay Özdemir10 (de origem Islamita):
«Os meus pais eram gente boa. Porquê? Porque deixaram atrás de si um
mundo um pouco melhor do que quando cá chegaram. Segundo eu é esta a
mensagem de Alá: cada pessoa é colocada no mundo por uma razão
determinada. Leva algum tempo até uma pessoa perceber isto. Acho que
é uma mensagem bonita. Ensina-me que não vivo apenas para mim
própria. Que tenho responsabilidade» (ibidem: 137).
Annemiek Schrijver11 (de origem Cristã):
«Não era de Etty Hillesum o seguinte comentário: Eu ajudo-te Deus,
para que não morras dentro de mim? Era isto que ela queria dizer, que
Deus está simplesmente à nossa espera dentro de nós? Que o podemos
desocultar com cada gesto, com a nossa própria inspiração? Será que
somos co-criadores/as de Deus? ( ) O sentido da vida é viver. De
repente comecei a ver pessoas que estão sempre a adiar a vida»
(ibidem: 146). «Vamos desocultar Deus. Em cada encontro ( ). Olhar
nos olhos uns dos outros e dizer: Não estás sozinho/a'. Ter
compaixão. O que temos a perder? Só podemos ganhar: em vida, em
autenticidade, em humanidade. Jesus tornou-se homem. Agora é a nossa
vez» (ibidem: 150).
Rosita Steenbeek12 (de origem Cristã):
«Sou fiel à tradição em que fui educada, não por essa ser
forçosamente a verdade, mas por a minha vida estar entrelaçada com
ela. Se tivesse crescido num outro lugar do mundo, teria aprendido
outras formas e histórias para lidar com as coisas mais profundas»
(ibidem: 176).
Rosa van der Wieken-de Leeuw13 (de origem Judia):
«A fé num Deus omnipresente não é muito importante no Judaísmo. O que
conta são os actos ( ) Toda a minha identidade é atravessada por
valores judaicos ( ). Sou activista política e faço trabalho
voluntário, porque fui educada com as palavras: Se eu não for a
favor de mim própria, quem o é? E se for apenas a favor de mim
própria: o que sou? E se não for agora, então quando?' (Palavras de
sabedoria dos rabinos, cerca 200 anos depois de Cristo)» (ibidem:
187).
E em 2003, um ano antes de Tu já não estar com Eu para nomear a aurora, foi
publicado em Portugal o livro, Dizer Deus ' Imagens e Linguagens. Os textos da
fé na leitura das mulheres, coordenado por Manuela Silva. Trago aqui apenas
cinco das quinze vozes, todas (implicitamente) de origem cristã.
Manuela Silva (Economista):
«Não obstante as armadilhas que levanta esta perspectiva
teológica de dizer Deus no feminino, o certo é que
precisamos de continuar a aprofundar o conhecimento que
temos de Deus» (Silva, 2003: 57).
Teresa Martinho Toldy (Teóloga):
«( ) concebo a teologia como uma reflexão sobre a Palavra
de Deus, Palavra essa que, apesar de proferida em palavras
humanas, não tem origem em nós» (Toldy, 2003: 41).
Fernanda Henriques (Filósofa):
«( ) a procura de uma outra relação com o divino e de uma
outra forma de o imaginar ( ), que saia da fixidez que a
tradição da ortodoxia religiosa marcou através da metáfora
familiar e parental e se abra a uma dimensão, a um tempo
mais adulto e mais espiritual» (Henriques, 2003: 83-84).
Cláudia Kolletzki (Teóloga):
«Nenhuma interpretação pode reclamar para si ser a única
verdadeira, eterna e historicamente correcta. Os textos são
todos ilimitados, porque as possibilidades de os ler nunca
podem ser esgotadas» (Kolletzki, 2003: 271).
Clara Meneres (Escultora e Etnóloga):
«Caminhar para Deus significa despojarmo-nos de todas essas
especulações que gratificam a razão e o intelecto. ( ).
Quanto mais alto se sobe, mais simples é Deus, ao ponto de
não haver mais nada para dizer e o silêncio preencher toda
a realidade» (Meneres, 2003: 355).
Da história: a imaginação que abre portas
Evoco a lembrança da tua fé sincera,
que também foi a da tua avó Lóide
e da tua mãe Eunice
e não duvido que é a tua também.
2Tm 1, 5
E Eu, Marijke de Koning14 (de origem Cristã), como digo Deus ou o
incompreensível? «Encontro» ou «vejo» Deus nos textos sagrados da Bíblia? Ou
através de experiências de beleza e de amor? Ou antes em lugares-silêncio?
E quando falo de Deus, sou eu que falo? Ou apenas oiço a «notícia» desta
presença através dos textos escritos e ditos por outros seres humanos? Apenas
digo as minhas breves experiências de aurora com palavras e textos que me
chegaram através deles/delas? Talvez seja sobretudo como já referi noutro lugar
(Koning 2006: 99), com as palavras de Edgar Morin:
«Há um primeiro princípio de incerteza que seria o seguinte: eu falo,
mas quando falo, quem fala? É apenas o eu que fala? É através do
meu eu, um nós que fala ( )» (Morin, 1995: 55).
Um «nós» que «traduz sobretudo uma ligação prévia à existência de todos os
humanos» (Pintasilgo, 2000: 18). Só posso existir quando me sei parte duma
unidade maior que me permita transcender o meu «eu». Assim, o meu «eu» que
(eventualmente pode dizer algumas palavras verdadeiramente minhas) quando fala,
sabe que emerge de uma composição de comunidades polifónicas de vozes. Vozes,
algumas mais de acordo com a tradição (cristã), outras dissonantes com ela,
outras «fora» dela, outras ainda contra ela. Vozes oriundas de uma diversidade
cada vez maior de culturas e formas de vida.
Para tentar situar o lugar a partir de onde posso nomear Deus ' para além do
meu lugar privilegiado de silêncio, lugar de O não nomear ' mobilizo mais uma
vez o conceito história, no sentido de uma narrativa com a qual determinados
colectivos «interpretam, desde as suas origens, a sua existência e encontram e
reforçam a sua identidade» (Nijk, 1978, citado em Koning, 1986: 832). É com a
Bíblia, livro milenar, composto por múltiplas histórias sobre a relação dos
homens (e das mulheres) com Deus, que os colectivos judaicos e cristãos
interpretam o sentido da sua existência e educam os seus filhos e as suas
filhas. Foi nesta tradição que nasci e cresci.
Aplicando sobre estas histórias os aspectos que Nijk distingue para a praxis
educativa, as histórias na Bíblia têm (i) um aspecto hermenêutico (contar para
apresentar e fazer reconhecer intenções e objectivos), (ii) um aspecto crítico-
analítico (denunciar formas erradas de pensar e problematizar formas menos boas
de vida) e (iii) um aspecto pragmático (agir de acordo com as leis bíblicas:
Amar Deus e o próximo).
Na tradição judaico-cristã em que fui educada, Deus não é uma força silenciosa,
mas é descrito como um Deus que «fala». Hoje em dia sabemos com a nossa «razão»
que Deus não terá falado primeiro e «ditado» a Bíblia, mas sim acreditamos que
os seus autores sentiram e imaginaram a presença de Deus que lhes falava e lhes
pedia resposta, responsabilidade, humanização.
Na Bíblia temos «acesso» ao divino através da imaginação com que foram
construídas as histórias contidas nela. «A imaginação é linguagem: dizemos o
que vemos e assim transmitimos o nosso olhar'» (Kuitert, 2005: 83). Imaginação
também com que as histórias foram transmitidas às sucessivas gerações. «Leio as
histórias sagradas, e aí recebo a imensidão de um sentido, ainda que permaneça
à superfície das palavras» (Luca, 2009: 9). «Também ao último leitor [das
escrituras sagradas] é concedido que acrescente a sua nota ao fim do infinito
comentário» (ibidem: 81). Smalbrugge (2009) faz a distinção entre as convicções
religiosas que consideram que a imaginação como forma de conhecimento, também
do divino, é um elemento constitutivo da realidade de vida e as que abjuram a
imaginação. Conhecer Deus ao nível da imaginação implica aceitar que tudo o que
se diz sobre Deus faz parte de «uma rede de imaginação que se estende sobre a
realidade, uma rede herdada dos nossos antepassados» (Kuitert, 2005: 79).
Numa perspectiva de nomear a aurora e de (re)criar (para mim própria) um
possível lugar de fala sobre a realidade divina, preciso de sublinhar a
imaginação como forma (privilegiada) de conhecimento. Como é sabido, Spinoza
faz uma distinção entre três formas de conhecimento: a imaginação, a razão e a
intuição (Knol, 2009). A imaginação permite o acesso a uma representação da
realidade e portanto não à própria realidade. Apesar da imaginação ser uma
forma limitada e fragmentada de conhecimento, ela é indispensável por anteceder
as duas outras formas. Como alguma vez querer descobrir algo do sentido das
coisas se em criança não nos tivessem contado histórias?
No horizonte uma verdade metafórica
«Quando me sinto eu própria, não sou apenas eu própria»
(Jaspers, citado em Schüszler 2003: 84).
Maria de Lourdes, dizer Deus sim, às vezes, mas sempre com cuidado ao contexto.
(Não vá o meu dizer ser expressão de uma suposta e errada superioridade de quem
sabe nomear a aurora «em nome de Deus» no meio de quem não diz Deus. Na minha
memória é esta a razão de não O ter nomeado naquele encontro em Amesterdão).
Cuidado enquanto hesitante respeito pelo igual direito de cristãos, judeus,
islamitas, hindus, budistas, agnósticos, ateus, «algoistas» e outros/as ainda,
de estenderem as suas redes de imaginação sobre a realidade, na procura de
encontrarem pistas que permitam fazer face ao mistério da vida. E de se
inspirarem mutuamente.
Assim, é importante para mim, além do silêncio, além de estar parada num lugar
onde «um vento muito leve passa e vai-se sempre muito leve e eu não sei o que
penso, nem procuro sabê-lo»15:
' valorizar as redes de imaginação;
' recorrer às histórias, também da Bíblia, com as quais interpretamos
a nossa existência;
' olhar para uma obra de arte ou escutar uma peça musical;
' ler com atenção, também o que está escrito «debaixo» do texto
(«Veja, o que está escrito não é o que está escrito» dizia o poeta
neerlandês Martinus Nijhoff);
' não ficar presa aos factos, mas procurar a verdade escondida neles
(com a intuição), sabendo que «a verdade ela própria é de natureza
metafórica» (Berk 2007:9). Uma verdade em movimento, feita corrente,
sopro, meta fora, «força silenciosa de transcendência» (ibidem: 7);
' «contentar-me» apenas com as cifras ou sinais da transcendência.
Cifras, não como objectos cognoscíveis ou verificáveis, não como
«realidade da transcendência», mas como «a sua possível linguagem»
(Jaspers, citado em Schüszler, 2003: 90).
«A porta que dá acesso ao mais alto', apenas se abre quando abraço o mais
baixo'» dizia Rémi van der Elzen. Lembro-me, Maria de Lourdes, uma conversa
com o meu irmão Hans, quando soube que tinha um tumor incurável na cabeça. Ateu
convicto, perguntou às suas duas irmãs: «Vocês acreditam em Deus?» Contou-nos
como nas noites de tempestade costumava sair de casa e deixar «cair» o seu
corpo no vendaval, ficar pendurado no vento e pensar, eternidade ou instante,
numa força que tudo suportava.
«Quem viu Deus? Quem o pode descrever», leio na tradução da minha Bíblia
Neerlandesa em Sirach, 43, 31.
Vou terminar, Maria de Lourdes, tentando de novo uma resposta que não soube dar
em Amesterdão e parafraseando Edgar Morin: eu falo em Deus, mas quando falo,
quem fala? Não sou quase nunca Eu que fala. Talvez apenas através do meu Eu, um
Nós (também Tu) que fala há milénios:
Vivo minha vida em círculos em expansão
que sobre as coisas estão a passar.
Talvez não consiga ao último cumprimento dar,
mas vou tentar com determinação.
Ando à volta de Deus, da torre ancestral,
e ando há milénios sem repouso;
e ainda não sei: sou um falcão, um vendaval
ou um cântico grandioso.
Rainer Maria Rilke (2009: 29)
Penso muitas vezes
que a única coisa que se pode fazer
é deixarmos irradiar por toda a parte
o bocadinho de bondade que temos dentro de nós.
Tudo o resto é secundário
Etty Hillesum (2009:67)