O papel do consumo na construção do habitar imaginário feminino apresentado no
filme "Confessions of a Shopaholic"
"Mas casas, arquitectos, encantadas trocas de carne doce e
obsessiva - tudo isso está longe da canção que era preciso
escrever. - E de tudo os espelhos são a invenção mais
impura".
Herberto Hélder, 2004, OU O POEMA CONTÍNUO
1
Introdução
Intitulado no Brasil como "Delíros de Consumo de Rebeca Bloom"
(Confessions of a Shopaholic, EUA, 2009), o filme retrata a compulsividade pelo
consumo apresentada pela jovem Rebeca Bloom, apelidada pelos amigos de Becky.
Com o desejo de comprar sempre mais e estar na moda, como forma de constituição
de habitar imaginário e aceitação social, Becky acabou com uma grande dívida no
cartão de crédito. Derick, funcionário do cartão de crédito e responsável pela
cobrança, começa a segui-la até que a dívida seja quitada. Rebeca,
desempregada, sonha em trabalhar em uma revista de moda; contudo, o destino
oferece à moça emprego em um jornal do segmento de finanças. Este emprego é
conquistado devido à troca de correspondências entre as empresas contratantes,
cujo currículo de Becky é enviado equivocadamente. Desta forma, a moça atribui
seu poder de convencimento e seu emprego ao uso de uma echarpe verde adquirida
como vestimenta da ocasião e utilizada durante a entrevista.
Após algumas matérias realizadas no novo emprego e a forma irreverente e
simples de escrever, torna-se uma jornalista de sucesso e explica facilmente
técnicas de finanças conquistando o público leitor se destacando e tornando-se
um ícone feminino na área. Devido ao grande sucesso de suas matérias, Rebeca é
convidada a participar de um programa de entrevistas na televisão para falar
das dicas de economia e finanças que escreve diariamente no jornal. Até ao
momento da entrevista, o público de Becky a considerava dominante sobre suas
próprias finanças, segura, com personalidade e sucesso financeiro, uma vez que
dava dicas sobe o tema ao seu público leitor.
Durante a entrevista Derick, o cobrador das dívidas do cartão de crédito, expõe
a moça ao vivo comentando sobre seus problemas financeiros particulares e as
desculpas utilizadas pela moça, durante as ligações de cobrança; morte dos
avôs, queda de pára-quedas, resfriado, etc. A exposição de Rebeca é inevitável
fazendo com que a mídia auxiliasse no processo de mudança de imagem e
representatividade diante do público, amigos, família e namorado. O universo
constitutivo imaginário criado pela moça desmorona perdendo parte de sua
credibilidade conquistada pelos seus bens e atitudes. De conselheira de
assuntos financeiros, passa a caloteira de cartão de crédito.
O recorte desta análise são as cenas que antecedem a entrevista de Rebeca e que
durante o percurso até o local, encanta-se por uma echarpe verde. O desejo de
compra é tamanho que a personagem inicia uma conversa imaginária com um
manequim estimulador de sua compra da echarpe. Neste contexto o manequim
apresenta-se humanizado pela personagem, que interage com o manequim. A cena
ocorre entre 04:26 e 07:38 minutos. Como efeito comparativo da evolução da
personagem, será analisada a cena final do filme, que apresenta contexto
similar ao da conversa com o manequim; disponível entre 01:36:30 e 01:40:13
minutos.
A escolha do filme baseou-se no propósito do estudo das relações de consumo,
suas influências comportamentais e na personificação das marcas. O objetivo
deste trabalho é apontar a humanização atribuída aos manequins como personagens
fílmicos e sua relevância no contexto narrativo e no crescimento e construção
da personagem principal. Os principais pontos abordados na análise serão a
personificação dos manequins, a utilização das vitrines como analogia aos
espelhos do consumidor e o papel dos objetos de consumo como impulsionador da
criação de mundos reais ou imaginários.
1. Moda vs Publicidade e suas formas de comunicação
Moda é uma expressão de comunicação que acompanha os indivíduos nas diferentes
trajetórias cotidianas, seja no trabalho, em casa ou nos passeios; compondo a
criação de novos papéis assumidos na sociedade. Estar na moda significa a
aceitação dos indivíduos nos grupos sociais ou na exclusão de certos grupos
dependendo da intenção de cada pessoa. Maffesoli aponta os fatores que
aproximam indivíduos aos grupos sociais funcionando como uma peça de igualdade
entre seus membros e denomina esta postura como sendo o "divino
social" referindo-se a religiosidade de seus integrantes em relação ao
grupo inserido. "Entendo a palavra como tal é empregada, para designar
aquilo que nos une a uma comunidade" (Maffesoli, 1988: 56).
A moda também pode ser vista como forma de comunicação na medida em que
comunica um estilo de vida, uma tendência, pode também ser vista como religião,
pois parte de seus integrantes seguem-na como obrigação para continuar incluso
no sistema social. Usar indumentárias, não é apenas cobrir o corpo físico, mas
vestir um conjunto de significantes que permitem a leitura do grupo social
representado; é a leitura do pertencimento ao grupo, uma fantasia social.
Se nos vestimos como forma de aceitação social, com o propósito de sermos
inclusos, estamos nos comunicando através de nossas vestes, pois emitimos
umcódigo que permite leitura estabelecendo uma comunicação. Segundo Garcia e
Miranda (2007: 82), "O corpo procura divulgar aspectos e características
do que somos, do que podemos vir a ser, segundo o que é valorizado diante de
determinado grupo social".
Jean Baudrillard (2003) conceitualiza a moda e o processo de consumo
"fora do esquema da alienação e das pseudonecessidades" e a inclui
como "lógica social" que está presente no cotidiano e que não
pertence ao processo de manipulação. A idéia do autor refere-se à necessidade
de uma cadeia produtiva, cujo consumo é responsável pelo ciclo de produção x
consumo x empregos; fator necessário para que as sociedades sejam constituídas
e desenvolvidas.
Através do que vestimos, podem-se fazer interpretações sobre o papel que cada
indivíduo ocupa na sociedade, sua personalidade, história e valores. Alison
Lurie (1997: 129) diz que:
A roupa desenhada para mostrar que a posição social daquele que a
veste tem uma longa história. Assim como as línguas mais antigas
estão repletas de formas de tratamento e saudações elaboradas, por
milhares de anos determinados estilos de moda assinalaram uma classe
social alta ou nobre.
Por outro lado a moda pode ser mobilizadora impulsionando a compra sem a
existência real de uma necessidade. Pode ser estimulada como utilização
exclusiva na realização de um desejo, uma realização pessoal dispensável, que
segundo estudos da psicologia apresentado por Maslow, está situada no topo da
pirâmide das necessidades humanas; sendo que os itens de base considerados como
indispensáveis, ao exemplo do consumo da alimentação. O consumo dos bens
localizados no topo da pirâmide ocorre através do movimento causado por
direções tendenciosas, atendendo a objetivos específicos das empresas com
intuito comercial, impulsionado pelos meios de comunicação de massa. Consumimos
também pela aceitação, pelo pertencimento aos grupos sociais e por isso, a
pretensão do consumo é ocasionada pela vontade de estar na moda; ser
pertencente ao meio.
Bauman (2008: 29) acredita que ocorre um fetiche pela mercadoria, uma fantasia
associativa criada ao produto, e este é o fator que leva os indivíduos ao
consumo reforçando que: "o fetichismo da subjetividade que assombra a
sociedade de consumidores se baseia, em última instância, numa ilusão".
Esta ilusão citada por Bauman aparece contextualizada no filme, onde mesmo
sabendo que conversava imaginariamente com manequins, a personagem Rebeca
deixava-se ser iludida e persuadida pelas mercadorias. Percebe-se a existência
de uma pré-disposição intrínseca na personagem para o ato de consumo mostrado
em suas características pessoais e em seus traços impulsivos no decorrer da
trama.
Baudrillard (1999) propõe em uma de suas reflexões o mundo simulado através de
realidades construídas por homens e mulheres, ou seja: transformando algo
inexistente em uma possível composição do que acreditamos ser real.
Exemplificando esta passagem do autor pode-se citar a própria ambientação das
novelas televisivas, cujo cenário é composto para que o telespectador remeta
automaticamente ao tempo x espaço proposto. Recentemente a Rede Globo de
televisão apresentou a novela "Caminho das Índias", cujo cenário
era um simulacro remetendo à própria Índia, embora a novela tenha sido gravada
em estúdios brasileiros.
Além dos veículos de comunicação, as próprias marcas auxiliam nesta simulação
fazendo com que os consumidores sintam-se integrados no mundo mágico do
consumo,que não é real, mas parece ser. A última cena do filme
"Confessions of a Shopahollic", em que acontece o desapego da
personagem em relação à persuasão dos manequins, mostra a questão da fantasia
criada pelas grifes e faz uma analogia aos personagens infantis como
"Alice no País das Maravilhas", encantada defronte as vitrines. Seu
vestido é caracterizado pelo excesso visual e a estampa de sua roupa remete ao
figurino utilizado no filme "101 Dálmatas" da Disney, reforçando a
idéia da magia do consumo e da moda. Rebeca apresenta-se com um ar infantil,
ingênuo e terno ao desapegar-se do material.
A mídia, desta forma, complementa a simulação do mundo consumista. Mostra
desperta desejos, maquia o real, torna algo comum em artigo de luxo, mostra o
belo, o diferente. Tanto os manequins quanto a personagem abordam
constantemente a questão da importância das marcas em suas falas. Durante o
filme ocorre a participação de 14 marcas diferentes e o clímax da narrativa
acontece na frente da vitrine da "Yves Saint Laurent", conceituada
grife de moda mundial.
Ao falar de moda e consumo, torna-se necessário apontar o papel da publicidade,
sendo esta considerada por Lipovetsky (2008) como a "apoteose da sedução
" e responsável por levar o consumo e a moda para dentro de nossos lares,
despertando desejos adormecidos ou até então inexistentes. É através dela que
os desejos aparecem impulsionando novas formas de consumo.
A publicidade chega até o consumidor como uma maquiagem representando o
"cosmético da comunicação" (Lipovetsky, 2008), transforma o que é
comum em novidade e junto com o marketing, cria novas funcionalidades aos
produtos e serviços. Ao criar diferentes possibilidades a publicidade divulga o
que é novidade ou o que se pretende apresentar com uma roupagem diferente
transformando-a em objeto de desejo. "O novo aparece como o imperativo
categórico da produção e do marketing, nossa economia-moda caminha do forcing e
na sedução insubstituível da mudança, da velocidade, da diferença"
(Lipovetsky, 1987: 160).
Lipovetsky (2004) diferente de Baudrillard (1999) defende que a mídia pode
auxiliar no processo da liberdade de escolha, uma vez que oferece opções de
compra de produtos e serviços em seus intervalos comerciais. Estas mensagens
publicitárias instigam o individualismo com o discurso de que "este é a
sua cara e foi feito para você". Neste contexto, o consumidor compra o
que realmente precisa ou deseja tornando-se responsável por um consumo mais
consciente. Dificilmente uma propaganda vai seduzir a ponto de estimular uma
pessoa a comprar o que não deseja; se ocorrer é porque tal desejo estava apenas
adormecido e foi despertado pela comunicação da marca. "O consumidor
seduzido pela publicidade não é um enganado, mas um encantado".
(Lipovetsky, 2004: 135)
O processo de elaboração da marca é desenvolvido e caracterizado pela criação
da marca-personagem dando vida e uma roupagem à representação gráfica da
empresa. Este procedimento é realizado pensando no público em questão e como
ele se identificaria com o produto. É o que os especialistas do marketing
chamam de personificação da marca; se é jovem, mais velha, conceitual, mais
despojada, discreta, feminina, masculina e assim por diante. É necessário que o
consumidor identifique-se por completo com o que foi criado e é através desta
personificação que a publicidade e as marcas, apresentam signos cognitivos
mobilizantes e direcionam seus consumidores.
O corpo, desta forma, pode ser considerando como uma vitrine ambulante, usado
para a divulgação das marcas sem recebermos incentivo financeiro para tal. O
corpo funciona como cabide das roupas, de estilos e também como mídia para as
grifes. No recorte do filme podemos observar um exemplo onde a personagem para
mencionar a sua linda bolsa, não fala a palavra "bolsa"
substituindo-a por "Gucci"; famosa grife de moda.
O desejo é aspiracional e transgride o universo material transportando algo
imaginário compensado pela materialização em forma de consumo. O desejo de
compra é despertado através de estímulos diversos principalmente pela
publicidade que atinge a grande massa. As marcas e anunciantes sabendo disso
fortalecem suas campanhas em cima deste pilar, apropriando-se da moda como peça
chave e de fundamental papel nas transformações ocorridas nos indivíduos.
2. A Construção dos personagens
Os personagens e suas características são componentes indispensáveis para o
desenvolvimento dos enredos fílmicos e televisivos. O personagem leva consigo
um conjunto de características que permite uma leitura de sua personalidade aos
espectadores. Estas características podem ser representadas pela sua bagagem de
vida, suas escolhas, hábitos sociais, culturais e seus desejos.
"Personalidade vem a ser algo assim como personalidade e aplica-se às
pessoas com um caráter definido que aparecem na narração". (Comparato,
2009: 111)
Neste tópico serão apresentadas as principais características dos personagens
que contracenam no recorte do filme e que também possuem papel representativo
na obra mudando o sentido dos acontecimentos. As características podem ser
psicológicas, físicas e simbólicas, que se completam na elaboração dos
personagens analisados representados por: Rebeca Bloom, denominada protagonista
"é a personagem básica do núcleo dramático principal; é o herói da
história", Manequim echarpe verde e Manequim bolsa vermelha, denominados
como antagonistas complementares. "Antagonista é o contrário do
protagonista, o seu oponente. Como o protagonista, não é necessariamente uma
pessoa; pode ser um grupo" (Comparato, 2009: 135). Independente de
existirem personagens manequins, estes são representados por elementos do
figurino feminino reforçando a idéia de envolvimento com o mundo imaginário
deste gênero. Optou-se pela definição da personalidade dominante de cada
personagem, principais objetivos na trama, grife associativa utilizada pelos
personagens, as cores dominantes nas cenas em que as personagens aparecem e a
imagem associativa remetida com a composição de suas características
principais.
2.1. Rebeca Bloom
Personalidade dominante: "Sonhadora"
Objetivo: Aceitação social
Grife Associada: Gucci - www.gucci.com
Cor predominante na marca: Dourado
Imagem associativa: Alice no País das Maravilhas
Rebeca Bloom é uma jornalista encantada com o consumo, adora moda e não
consegue ficar de fora de uma boa promoção. Busca incansavelmente um emprego na
área de moda que possibilite a aproximação com seu maior objeto de consumo:
roupas e acessórios. Caracterizada por vestes coloridas e de conceituadas
marcas famosas, mostra-se refém do que consome. Seu traço marcante é a
compulsividade pelas compras e a falta de limites para tal. Possui como
estereótipos belos cabelos compridos e loiros, corpo esbelto e sempre sua
composição de figurino apresenta-se impecável, embora com um pouco de excesso.
A personagem é rodeada por artigos coloridos, dificilmente percebe-se a
presença de cores clássicas e discretas. Sonhadora, deslumbrada e
inconseqüente, estas são os traços de personalidade apresentados por Rebeca.
Percebem-se tais características nas cenas em que a personagem admira vitrines,
idolatra produtos, compra compulsivamente em diversos cartões de crédito e na
quantidade de itens de vestuário que mostra em sua casa.
Figura 1 Apresentação da personagem com a bolsa Gucci
2.2. Manequim echarpe verde
Personalidade dominante: "Anjo"
Objetivo: Persuasão psicológica
Grife associada: Denny & George (Henri Bendel) -
www.henribendel.com
Cor predominante na marca: Púrpura
Imagem Associativa: "tentação, anjo do mal"
Animada e interativa, a manequim apresenta-se dentro de uma loja toda
envidraçada e intocável. É um vestido com pedrarias douradas e roupas de cetim
na cor ouro usando em sua cabeça um adereço remetendo as armaduras da época
medieval, óculos ou olhos. Assemelha-se a uma aviadora que faz com que o objeto
de consumo aspirado por Becky torne-se uma viagem de seu imaginário. O manequim
é branco, clássico e embora esteja revestido de ouro é a echarpe verde que se
torna o objeto de desejo, possuindo um valor agregado maior no contexto da
indumentária. O objetivo principal desta personagem é convencer Rebeca a
comprar a echarpe. Utiliza-se de atributos psicológicos de persuasão referindo-
se a autoconfiança e segurança de Rebeca para tal e em seu discurso inclui:
"ela se tornaria parte da definição de sua psique" referindo-se a
Beck, e a compra da echarpe, e que "entraria na entrevista confiante e
equilibrada". Esta manequim foi humanizada, pois representa a virada da
história na trama. Sem sua presença como personagem a protagonista não teria
sua conquista. Logo após a apresentação desta personagem aparece a frase
central do filme: "custo e valor são coisas bem diferentes",
mencionada por Luke, referindo-se ao valor agregado atribuídos aos produtos.
Figura 2 Apresentação da personagem com a echarpe verde
2.3. Manequim com a bolsa vermelha
Personalidade dominante: "Instigadora"
Objetivo: Convencer a Personagem
Grife associada: Yves Saint Laurent - www.ysl.com
Cor predominante na marca: Branco
Imagem Associativa: "tentação, anjo do mal"
A personagem aparece apenas no final e difere do manequim anterior por não
apresentar fala. Mostra-se apenas através de gestos comparando o produto que
esta vendendo, uma bolsa, com o que Rebeca esta usando simbolizando a
consciência da personagem. Com um papel extremamente significante, esta
personagem é a caracterização da mutação de Rebeca, como se o mal fosse o
consumo e se Rebeca mantivesse sua postura de não gastar perante as tentações
oferecidas, fazendo alusão entre o bem vs o mal. Importante ressaltar que a
manequim é representada pela cor preta, diferente da primeira cuja
representação é realizada na cor branca. A cor preta, segundo Farina (2000) em
sua associação afetiva remete-nos a melancolia e a renúncia e na sua associação
material a morte e coisas escondidas. A personagem posiciona-se como
instigadora do consumo.
Figura 3 Apresentação da personagem com a bolsa
3. A Narrativa
O filme apresenta a valorização do consumo através das indumentárias, ocorre
uma analogia entre o papel das marcas no processo do consumo e possível
interferência cotidiana no que se refere à influência nas escolhas da
personagem. As cenas selecionadas são justamente sobre estes itens mostrando a
interferência das vitrines na vida da personagem e na constituição de seu mundo
imaginativo.
A vitrine representa o universo constitutivo do nosso imaginário, onde expõe os
bens sonhados. Ao mesmo tempo em que ficam expostos, apresentam-se bloqueados
através de uma redoma de vidro que, separa o consumidor do objeto desejado; a
idéia não é apenas proteger, mas uma barreira à idolatria, do aspiracional, do
não pertencimento e da superioridade.
Segundo Maffesoli (2002: 75-76) "o imaginário seria uma ficção, algo sem
consistência ou realidade, algo diferente da realidade econômica, política ou
social, que seria, digamos, palpável, tangível". O autor complementa
dizendo que não é a imagem que produz o imaginário, mas o contrário. "A
existência de um imaginário determina a existência de conjuntos de imagens. A
imagem não é o suporte, mas o resultado". Juremir Machado (2001: 01) diz,
que "(…) todo imaginário é real. Todo real é imaginário. O homem só
existe na realidade imaginal. Não há vida simbólica fora do imaginário".
As vitrines são impulsionadas pelo imaginário, bem mais que caixas de vidro
guardam em seu interior objetos de desejo que podem mudar a vida das pessoas.
Rebeca ao comprar sua echarpe, não economizou esforços. A echarpe é um artigo
delicado identificado na maioria das vezes pela utilização feminina. O pano
cobre e descobre, envolve, é voluptuoso, chique e utilizado como referências da
feminilidade. Quando a personagem compra a echarpe, diz ter comprado
"segurança". Na luta por esta compra, o diálogo vai mais longe:
"Existe uma diferença entre valor e preço, para mim, esta echarpe tem
valor, e não preço". Esta frase expressa uma das principais
características atribuídas aos produtos, que muitas vezes não pagamos o custo
que a mercadoria é vendida, mas o valor que ela representa para nós seja por
aceitação, segurança ou auto-estima, demonstrada pela protagonista. A echarpe
verde simboliza para a personagem a segurança da conquista e por se tratar de
sua confecção ser de seda, remete a delicadeza do tecido, o bom gosto, o que é
chique, atributos do produto reforçados na sua personalidade. A cor verde
também pode ser analisada como representatividade da sua esperança com o
produto, segundo Farina (2000), a cor verde remete a imagem da segurança e da
proteção, além da liberdade, harmonia e equilíbrio, características buscada
pela personagem no momento da entrevista.
Figura 4 Autocofiança para entrevista após comprar a echarpe verde
A personagem mostra-se apaixonada pelo consumo da moda e fala do amor
transcendental que tem pelas mercadorias de luxo. O inicio da narrativa
apresenta a idéia central da personagem, a troca da afetividade pelos bens
materiais. Mostra a existência de uma dependência das sensações propiciadas no
ato de consumo comparando-as com emoções similares ao sentimento da paixão. As
reações psicológicas da personagem vêm de encontro a tais atitudes,
referenciando emoções provenientes da compra através das associações com as
cores, cheiros, sons e tato, experiências que vão além da aquisição de compra
de um bem.
Sabe quando você vê alguém bonito e ele sorri e seu coração fica derretido como
a manteiga numa torrada quente? Eu fico assim, só que melhor quando vejo uma
vitrine. Veja bem, um homem nunca vai te amar tanto quanto uma loja, Se um
homem não servir, não se pode trocar após 7 dias por um lindo suéter de
cachemeire. Uma loja cheira bem, uma loja pode despertar a luxúria por coisas
que você nem sabia que precisava. E quando seus dedos agarram aqueles
reluzentes sacos novos, hum… (Filme: Confessions of a Shopahollic)
Figura 5 Importância das lojas e suas sensações
Em Delírios de Consumo de Rebeca Bloom, o autor introduz na narrativa, a
participação de personagens pouco comuns, "os manequins". Certas
vezes apresentados como moçinhos e outras como vilãs, contracenam com a
protagonista e participam das decisões da personagem, auxiliando nas escolhas
de consumo e até na valorização de atributos intrínsecos aos produtos a serem
adquiridos, fatores aspiracionais e psicológicos.
A vitrine e os personagens são elementos significantes na trama, por serem os
responsáveis pelo desenvolvimento da história e condução da personagem
principal. Na cena em que Rebeca entra na loja para comprar a echarpe, ocorre
um diálogo psicológico entre a personagem e a manequim e através desta
passagem, que a narrativa é conduzida.
Chevalier (1999: 587) no dicionário dos símbolos diz que o "manequim pode
ser um dos símbolos da identificação do homem com a matéria perecível, com uma
sociedade, com uma pessoa, com um desejo pervertido, com um erro. É assimilar
um ser a sua imagem". E no contexto fílmico, os manequins apresentam-se
desta forma, como a projeção da personagem principal ao mundo material buscando
identificação.
Figura 6 Conversa com a personagem manequim
Após o desapego material de Rebeca, com a venda de seus produtos para
regularizar sua situação financeira, a queda profissional, desilusão afetiva e
a possível libertação excessiva do consumo, novamente os personagens manequins
são apresentados na trama. Desta vez, Rebeca é convidada ao consumo, mas
resiste à compra da bolsa, apresentada pela manequim da vitrine da grife
"Yves Saint Laurent" mostrando ter superado sua compulsão às
compras.
Figura 7 Cena final onde Rebeca interage com a vitrine
Neste momento, as personagens manequins aplaudem a atitude da moça num ato de
valorização. Ao mesmo tempo em que instigam o consumo, as manequins repudiam o
excesso. Torna-se visível que o autor deu vida aos manequins e vitrines, aos
objetos e sonhos.
O desapego ao material é recompensado com o encontro amoroso. Em frente à
vitrine, Rebeca encontra seu namorado, que lhe entrega a echarpe verde, após
tê-la comprada no leilão de roupas. A echarpe mais uma vez, toma a cena sendo a
responsável pelo desfecho da narrativa. O autor faz a metáfora entre a renúncia
dos bens materiais e a recompensa com o lado afetivo.
Figura 8 Rebeca recebe aplausos das manequins
Figura 9 Renuncia do consumo e troca pelo afetivo
Considerações Finais
Na construção deste produto visual percebe-se a preocupação do autor com os
padrões comportamentais e possíveis fatores psicológicos que alteram as
necessidades do consumo da protagonista. No entanto, apresenta diversas
relações comunicacionais no conteúdo de sua narrativa. A reflexão observou a
humanização dos manequins, sua inclusão no elenco do filme e no desenvolvimento
da fábula tornando-se visível a dualidade entre o equilíbrio de se ter ou não
um produto e a forma saudável para que isso aconteça naturalmente.
O autor mostra que o ser humano é capaz de refletir sobre seus atos, tem o
poder da escolha e é capaz de controlar suas emoções. Defende também a relação
de custo e valor das mercadorias apresentando valores psicológicos como
impulsionadores das decisões de compra.
Nas duas passagens com as manequins a personagem apresenta-se em enquadramento
de cena simulando sua visualização em um espelho ao enxerga-se através dos
vidros das vitrines e almeja refletir sua imagem da mesma forma com que percebe
os personagens manequins criando novos mundos. Os espelhos aparecem
subentendidos em várias cenas, sejam na forma com que Rebeca se olha, ou em
algum canto nos enquadramentos, focados em segundo plano. E o que seria um
espelho neste contexto? Chevalier (1999: 393) explica que o espelho originou-se
da palavra especulação. O espelho reflete "a verdade, a sinceridade, o
conteúdo do coração e da consciência". O reflexo no espelho, não remete a
realidade, mas a uma espécie de ilusão do que seja a realidade, do simulacro da
realidade (Baudrillard, 2003). Quando Becky sonhava e enxergava-se nas vitrines
espelhos, personificava a essência das mercadorias, os valores atribuídos as
marcas, ao glamour, luxo, auto-estima e inclusão social.
O espelho também é utilizado como elemento simbólico em vários contos infantis,
como em "Branca de Neve e os Sete Anões", onde o espelho mágico
conversava com a Branca de Neve sobre sua beleza. Geralmente o objeto
"espelho" é utilizado para refletir imagens reais ou reproduzidas
pelo imaginário humano, o que desejamos ver, pode estar intrínseco na imagem
projetada, dependerá do ponto de vista do observador em relação à própria
imagem. Uma pessoa pode não identificar a mesma imagem refletida num espelho
comparada a visão de outras pessoas. Existem várias metáforas que podem ser
atribuídas ao espelho, como o poder de duplicar, os sete anos de azar com sua
quebra, os reflexos de fantasmas, enfim, o espelho pertence ao mundo fantástico
do nosso imaginário.
Os filmes podem retratar fatores cotidianos ou apresentar a supervalorização de
algum elemento irreal. A opção do autor foi mostrar a realidade do consumo,
através da moda de forma performática, chegando ao ponto de se tornar cômico em
certas passagens ao exemplo da reunião dos consumistas anônimos ao tentar
reabilitação do consumo excessivo.
O fator psicológico de Rebeca foi bem trabalhado quando se observa a relação
que temos com os objetos de desejo, eles criam vida e de alguma forma interagem
com o consumidor. A elaboração de personagens subjetivos, como os manequins,
contextualiza os valores imaginativos que possuímos em relação aos bens de
consumo e os valores que atribuímos aos mesmos. Os figurinos utilizados pelos
três personagens utilizam elementos de marcas famosas levando o expectador à
identificação com os desejos da protagonista.
Os manequins são clássicos e de alguma forma não apresentam excessos visuais
demonstrando seus traços psicológicos no que diz respeito à beleza e bom gosto,
além de ar leve e clean. As cores das marcas, Preto (YSL) e Púrpura (HB), são
associadas ao nobre e ao inacessível. Ao contrário, a protagonista sempre
utiliza excesso visual com suas roupas e acessórios que da mesma forma remetem
a personalidade do consumismo e vício em compras. Dando vida aos personagens
manequins, o autor remeteu os fatores imaginativos impulsionadores das atitudes
humanas.
Em "Confessions of a Shopaholic" percebe-se a preocupação do autor
em relação aos figurinos apresentados. Suas características visuais compõem a
identidade das personagens auxiliando o público na construção dos elementos
físicos e psicológicos atribuídos aos integrantes da trama.
Este recorte faz com que o telespectador mergulhe em um universo mágico, cujo
fator principal é saber que o apresentado é irreal, criado, montado, mas de
alguma forma imerge dentro do contexto sem questionar sua veracidade.
Identifica-se com os fatos, desperta novas emoções, sensações, propicia
experiências estéticas dentro de um mundo imaginário. Mesmo que nunca tenhamos
presenciado um manequim falante, certamente em algum momento de nossas vidas,
eles pareciam se comunicar criando novas ilusões e atribuindo valores aos
produtos oferecidos, principalmente no que se refere aos desejos femininos.
Identificamo-nos com as vitrines, conversamos com nosso imaginário vislumbrando
enxergar algo novo a cada vez que nos deparamos com nosso reflexo no espelho.