Mobilidades, Migrações e Orientações Sexuais: Percursos em torno das fronteiras
reais e imaginárias
1. Introdução: mobilidades e fronteiras investigatórias1
As mobilidades são um dos elementos fundamentais da compreensão do mundo
contemporâneo. Vivemos num mundo onde tudo se move fruto de uma liquidez
potenciadora desse mesmo processo de mobilidade (Bauman, 2000). Parece, por
isso, hoje central o conceito de mobilidade (Urry, 2007). Ainda que
historicamente relacionado com a geografia dos transportes, o conceito de
mobilidade é cada vez mais utilizado de um modo diverso, criando um palimpsesto
de sentidos que nos obrigam a (re)pensar a mobilidade como uma metáfora, para
além das materialidades que, efectivamente, o conceito contém.
Quando John Urry afirma em alguns dos seus textos que o «todo o mundo parece
estar em movimento» (Sheller e Urry, 2007: 207) parece teorizar alguns dos
princípios que contribuem para a importância de um entendimento da mobilidade,
como um dos elementos centrais da teoria social contemporânea. Este paradigma
de mobilidade reforça a centralidade dos conceitos de espaço, lugar e fronteira
ao referenciar que todos os espaços/territórios estão interligados com
poderosas conexões que vão além do significado de cada lugar, ou se quisermos,
como refere:
os lugares são realmente dinâmicos lugares de movimento de acordo
com Hetherington (1997) ( ). Os lugares são como navios, movendo-se e
não necessariamente numa localização. No novo paradigma das
mobilidades os lugares, eles mesmos, são como uma viagem, devagar e
depressa, em pequenas e grande distância, no seio de redes de agentes
humanos e não-humanos. Os lugares são acerca de relações, acerca de
localizar as pessoas, materiais, imagens, e os sistemas de diferença
que elas performam. Nós entendemos onde' estamos através de visões
em movimento, praticadas através do alinhamento de objectos
materiais, mapas, imagens e do olhar em movimento (Sheller e Urry,
2007: 214).
Um outro elemento do quadro teórico que John Urry propõe, salienta a
importância da incorporação material, simbólica, e de pertença, nos processos
de mobilidade. Como refere o sociólogo britânico, este paradigma de mobilidade
realça as «as geometrias de poder' ( ) entre movimentos de pessoas e produtos
materiais, bem como entre as dimensões simbólicas e físicas das culturas de
mobilidades» (Sheller e Urry, 2006: 211). Neste sentido, e como salienta Andrew
Gorman Murray, a intersecção entre os novos estudos da mobilidade e os estudos
de migração reforça a importância das políticas da diferença e da identidade
nos sistemas simbólicos, materiais e politizados dos processos migratórios
(Gorman-Murray, 2009).
Mas, esses processos de mobilidade são permeados com fronteiras simbólicas e
reais que delimitam os diferentes territórios onde essas mesmas mobilidades
acontecem. Assim, tal como reafirma Yves Lacoste «do ponto de vista geopolítico
uma fronteira corresponde à linha ou zona que constitui o limite do território
de um estado ou de um espaço político» (Lacoste, 1993: 122). No entanto, e
lendo as fronteiras nacionais como construções sociais, culturais e políticas
(Paasi, 2005), estas são elementos de análise com implícitas e importantes
dimensões económicas, sociais, simbólicas e identitárias que importa ter em
atenção. Neste sentido, a reafirmação das fronteiras como espaços de ruptura e
descontinuidade espacial é robustecer a sua instabilidade e a possibilidade de
ser ao mesmo tempo ponto de passagem e de criatividade. Tal como Van Houtum,
Kramsch e Zierhofer na introdução do livro «B/ordering Space» referem:
as fronteiras não devem ser tidas como garantidas, nem devem ser
apreendidas como uma essência universal, uma função ou uma
trajectória. Em vez disso, as fronteiras devem ser entendidos como
importantes elementos constitutivos das práticas e narrativas através
dos quais grupos sociais e suas identidades são construídas e
governadas. Neste contexto, (...) sublinha a importância de examinar
criticamente as práticas de desenho de fronteiras, seguindo os
significados intrinsecamente contestados das fronteiras como formas
ideológicas, símbolos e marcas de identidade (Van Houtum, Kramsch e
Zierhofer, 2005: 5).
O que nos deverá levar a repensar o modo como o «cruzar de fronteira» nos
processos de mobilidade das populações lésbicas e gays adquire uma importância
crucial nas sociabilidades e quotidianos ' locais, nacionais e transnacionais '
desta população. Significa isto, então, que repensar os processos de mobilidade
de lésbicas e gays é repensar o modo como se redefinem hoje as fronteiras num
processo entrecruzado de perspectivas teóricas diferenciadas.
2. Mobilidades e Orientações Sexuais
Na segunda parte deste texto, faremos assim uma viagem metafórica por
diferentes escalas onde a mobilidade geográfica se cruza com as orientações
sexuais. Jon Binnie na obra «The Globalization of Sexuality» reforça a
importância das deslocações e das diferentes formas de mobilidade na construção
das subjectividades das sexualidades não (hetero)normativas (Binnie, 2004).
Propomos assim uma análise a partir de um conjunto de processos de mobilidades:
iniciando metaforicamente com a saída do armário como elemento constitutivo
central das subjectividades e discursividades gays e lésbicas; partindo depois
para a (re)visitação da importância do êxodo rural urbano nas subjectividades
lésbicas e gays e por fim repensar a importância das migrações internacionais
naquilo a que Anne-Marie Fortier classifica como diáspora queer, dando
particular atenção as questões relacionadas com os pedidos de asilo político
baseados na orientação sexual (Fortier, 2001 e 2002).
Efectivamente parece-nos importante reforçar a ideia de que a mobilidade ocupa
um lugar central nos processos de «coming out», devendo ser, por isso,
fundamental a sua presença na investigação sobre vivências lésbicas e gays,
expondo-se, por exemplo, como um elemento basilar na investigação sobre
lugares, espaços e sociabilidades lésbicas e gays (lazer nocturno, turismo,
etc) ou, como afirma Jon Binnie «pois representa um elemento chave no qual
espaço e lugar participam de um modo significante na formação das identidades,
culturas e comunidades sexuais» (Binnie, 2004: 91).
No entanto, a complexidade crescente do fenómeno de mobilidade e a
interseccionalidade entre políticas identitárias (género, sexualidade, raça/
etnia) e elementos de análise de classe social, conduzem autores como Sara
Ahmed e Anne- -Marie Fortier a questionar o estereótipo das migrações queer
(Fortier, 2001 e 2002, Ahmed 2006 e 2010) e robustecem, deste modo, o sentido
complexo destes processos de mobilidade. Andrew Gorman-Murray salienta que as
correlações entre migração, pertença e identidades levaram a uma investigação
crescentemente mais marcada por uma perspectiva qualitativa de raiz narrativa
onde a influência das epistemologias feminista e pós-colonial são elementos
estruturantes (Gorman-Murray, 2009) salientando que a investigação sobre esta
temática:
exige atenção às histórias de migração, e às articulações que ligam o
self', a tomada de decisão e a deslocação. Na verdade, em outro
texto seminal sobre identidade e migração Ahmed (1999:342) afirma que
«as narrativas de migração envolvem... uma reconfiguração espacial de
um self' incorporado». Eles são «actos complexos de narratividade »
sobre habitação própria e espaço que elucidam o entrelaçamento de
identidade com o movimento (Gorman-Murray, 2009: 442).
2.1. Mobilidades do/no armário
Na senda de Sedgwick (2004) acreditamos que, simbolicamente, o armário é o
centro das vivências lésbicas e gays nos tempos da modernidade sendo que o
processo de «saída do armário» configura-se assim como o centro e o vórtice, um
primeiro processo de mobilidade metafórica e simbólica, mas com uma expressão
especificamente espacializada.
O geógrafo norte-americano Michael Brown demonstrou a espacialidade seminal
deste conceito nas suas diferentes escalas na obra «Closet Space» (2000). Brown
promove um debate entre a teorização inicial de Eve Kosofsky Sedgwick que
preside à obra «epistemologia do armário» e a teorização de Henri Lefebvre
sobre «produção do espaço» e as suas inter-relações com a sexualidade. Ainda
que, como outros autores (Purcell, 2002), Brown realce o carácter
heteronormativo da proposta teórica de Lefebvre, salienta, no entanto, a
espacialidade das relações e dos processos sociais, que ele diferencia em
«espaço concebido», «espaço percebido» e «espaço vivido» (Brown, 2000: 58,
Purcell, 2002: 102). É pois em torno das práticas espaciais ' «as
significativas e as de prazer» (Chisholm, 2005: 68) que a saída do armário como
processo de mobilidade se espacializa ultrapassando fronteiras simbólicas e
reais, como referiremos adiante.
É no ensaio Epistemologia do Armário ' um dos textos fundamentais da teoria
queer' ' que Eve Kosofsky Sedgwick propõe «que muitos dos nós' principais do
pensamento e da cultura ocidental do século XX estão estruturados ' de facto
fracturados ' por uma crise crónica, hoje endémica, de definição da homo/
heterossexualidade, sobretudo a masculina, e que está datada desde o final do
século XIX» (Segdwick, 2004: 11). A autora reforça o olhar bifocado sobre a
metáfora do armário afirmando que, ao mesmo tempo, «o armário responde às
necessidades representacionais mais íntimas» (2004: 9) e, por outro lado, «o
armário é a estrutura que melhor sintetiza a opressão gay deste século» (2004:
11).
Assim, para lésbicas e gays o armário e as suas múltiplas construções
societárias ' a invisibilidade desejada' da homossexualidade por muitos
homossexuais será disso um exemplo ' constituem uma forma de resistência, pois
como afirma Sedgwick «a epistemologia do armário conferiu à cultura e à
identidade gay uma maior consistência ao longo deste século» (Segdwick, 2004:
8) criando modelos específicos (invisíveis e codificados) de sociabilidade
urbana, como sejam as formas de engate' em espaço público urbano. Mas o
armário é também o símbolo da mentira e da opressão pois «a robustez do armário
é permanentemente confirmada» (2004: 12), estando sempre presente no modo como
as vivências sociais e espaciais se constroem. Como afirma Sedgwick «ele
continua a afirmar-se como um elemento fundamental do seu relacionamento
social; por mais corajosos e francos que sejam, por mais afortunados quanto ao
apoio das suas comunidades, serão poucos os gays em cujas vidas o armário deixa
de constituir uma presença central» (2004: 8) num jogo em que «estar dentro do
armário e sair do armário são imagens que interagem com regularidade» (2004:
11). É neste jogo de entrar e sair do armário, de assumir em ritmos, registos e
espaços diferenciados que se faz o quotidiano dos homossexuais, um quotidiano
de espaços públicos, semi-públicos e privados. Este jogo é ' continuando a
referenciar Sedgwick ' estranho, difícil e muitas vezes cheio de regras
desconhecidas e incoerências fortes, como seja o discurso «senso-comum» que
continuamente nos remete para a invisibilidade do espaço privado, uma
«incoerência (...), enfaticamente contida nos termos da distinção entre público
e privado» mas que «corrói o actual quadro que regula a existência gay»
(Segdwick, 2004: 10). Este é «um sistema excruciante de «double blinds» ' duplo
constrangimento ou duplo entrave ', oprimindo sistematicamente as pessoas,
identidades e comportamentos gay, minando os próprios alicerces da sua
existência através de restrições contraditórias impostas ao discurso» (2004:
11), ou seja, uma sociedade que coloca lésbicas e gays no «quarto» (dizendo que
esta questão é um aspecto estritamente privado) e oprimindo ' com as críticas
públicas a diferentes formas de visibilidade ' a expressão na esfera e no
espaço públicos das sexualidades não heterossexuais.
Assim, o espaço do armário constitui-se na realidade como metáfora de uma
construção social e cultural onde o conhecer e o conhecimento são elementos
fundamentais da sua cultura na história do Ocidente, constituindo-se como «a
maior controvérsia, na cultura de Novencentos, que é a ( ) especificidade
histórica da definição homo-social/homossexual» (Segdwick, 2004: 13). Desta
forma, a problemática da definição de identidades sexuais coloca a questão da
construção do conhecimento e, tal como a autora destaca, o modo como o
conhecimento e sexo se tornam conceptualmente inseparáveis. Neste sentido, os
processos de auto-conhecimento tornam- se, no século XX, histórias para
ultrapassar a ignorância ' também sexual ', num jogo em que «cognição,
sexualidade e transgressão foram inclusive termos que a cultura ocidental
associou entre si de forma obstinada, embora nem sempre coerente» (2004: 14),
reduzindo a questão do conhecimento e ignorância sexual à questão do
conhecimento e ignorância homossexual. Por outras palavras, as questões da
sexualidade foram contaminadas' pela «especificidade epistemológica da
identidade e da condição gay» (2004: 14) num processo ainda hoje inacabado e
tantas vezes problemático quando falamos de expressão pública desse amor que
não ousa dizer o nome' ' veja-se o caso das praças e ruas das nossas cidades.
Mas se sair do armário' significa antes de tudo a possibilidade de expressar
publicamente essa forma de amar, tal revelação pessoal, quando analisada a
partir de um jogo de escalas (outra bela metáfora geográfica) mostra-nos a quão
limitada é a influência que uma revelação individual pode exercer sobre
opressões de tipo social ou institucional. O reconhecimento desta diferença de
escalas não significa que as consequências do acto de sair do armário possam
ser circunscritas a fronteiras pré-determinadas, algures entre a esfera
pessoal' e a esfera política', nem nos devemos fazer esquecer que tais actos
podem ser extremamente poderosos e perturbadores (Segdwick, 2004) como seja o
modo como é percepcionado um gesto de carinho entre duas pessoas do mesmo sexo
em diferentes espaços públicos, diferenciados conforme contextos sociais e
culturais diversificados.
2.2. O êxodo rural continua?
É pois no espaço urbano que o armário se pode plasmar tal como Michael Brown
salienta ao afirmar que no «espaço do armário, sendo simultaneamente discursivo
e material, estas dimensões dependem e trabalham uma com a outra» (Brown, 2006:
317). Este autor reafirma ainda que «o armário como metáfora espacial prova a
recusa, confinamento e ocultação das vidas e experiências queer» (2006: 317).
Todavia, na sua duplicidade como «estrutura espacial da heteronormatividade, o
armário pode ser fixado como um local de opressão, mas pode ser também um local
de resistência e criatividade » (2006: 317).
Um dos elementos centrais da construção das subjectividades lésbicas e gays
está relacionado com a atractividade dos espaços urbanos centrais, em especial
as metrópoles, pois historicamente as cidades são elementos de atractividade
elevada para a população lésbica e gay (Bell e Binnie, 2004-a e 2004-b). Assim,
a mobilidade metafórica do armário corresponde muitas vezes a um outro tipo de
deslocação e mobilidade real. Entre essas formas de mobilidade está um modelo
com características particulares de êxodo rural/urbano. Kath Weston chamou-lhe
«grande migração gay» e temporaliza nos anos 70 e 80 este fenómeno e
espacializa- o, centrando o seu estudo na atractividade da cidade de São
Francisco, salientando, no entanto, a importância da atractividade de outras
grandes metrópoles do mundo ocidental (ainda que este fenómeno seja também
perceptível em metrópoles do Sul Global como São Paulo, Mumbai ou Cidade do
Cabo) que mais uma vez reforçam o carácter eminentemente urbano das
subjectividades lésbicas e gays (Weston, 1995). Tal como afirma Jon Binnie:
A base histórica urbana da homossexualidade moderna significa que a
identidade gay é antes de tudo uma identidade urbana. A
Industrialização permitiu a formação da identidade gay nas cidades da
Europa Ocidental e América do Norte no século XIX. A Industrialização
provocou a mobilidade e movimentos facilitados das áreas rurais e
pequenas cidades para as grandes cidades, mas mais uma vez a migração
teve várias razões ' económicas, mas também sexuais. Como Gayle Rubin
(1993) observa a mobilidade, e a migração têm sido fundamentais para
o estabelecimento de concentrações urbanas de lésbicas e homens gays
na Europa e na América do Norte (Binnie, 2004: 91).
Efectivamente, a deslocação para as cidades foi/é um elemento fundamental de
formação das sexualidades modernas, resultantes da industrialização e do
processo e urbanização e metropolitização destes espaços centrais, o que
possibilitou (e possibilita hoje ainda) a congregação de grupos ' em alguns
casos comunidades de pertença ' de pessoas atraídas sexualmente por pessoas do
mesmo sexo (Bell Binnie, 2000). Assim, neste processo da modernidade
conjugaram-se por um lado as razões diversificadas de ordem económica que
levaram à caracterização que hoje conhecemos como êxodo rural e, por outro, as
razões como a liberdade sexual característica dos grandes espaços urbanos que
se constituem como elementos fundamentais para a construção de identidades e
culturas sexuais que hoje reconhecemos em muitas cidades (Binnie, 2004). Apesar
de Kath Weston e Jon Binnie se referirem a este movimento como algo com um
cariz histórico parecem existir evidências da continuidade na contemporaneidade
deste processo de mobilidade, em particular entre cidades médias e metrópoles
(Gorman-Murray, 2009).
2.3. Torcer as migrações internacionais
Será tempo de nos debruçarmos, agora, um pouco sobre a inter-relação entre as
orientações sexuais e as migrações internacionais. Existe uma forte correlação
entre o quebrar das redes familiares e sociais de controlo e a saída do armário
como processo de assumpção pessoal da sexualidade por parte dos sujeitos
(Luibhéid e Cantu Jr, 2005).
Há, por outro lado, uma necessidade de ir além do debate facilitista sobre as
razões que levam aos processos migratórios entre territórios tão diferenciados
como o êxodo rural/urbano, ou as migrações internacionais. Investigação recente
tem destacado um crescente corpo de estudos sobre transnacionalismo na
investigação queer dando particular destaque as problemáticas da mobilidade e
da cidadania. Este corpo tem destaque em inúmeras publicações em que realçamos
o número especial da Social Text (2005) «What's queer about queer studies
now?», ou em 2008, o número especial da Gay and Lesbian Quaterly «Queer/
Migration». Nestes dois casos são claras as inter-relações e a
interseccionalidade do género e da sexualidade com as identidades nacionais,
raciais, étnicas e diaspóricas, bem como os circuitos de viagem, migração e
deslocações, e com as subsequentes políticas de migração, asilo e de cidadania.
Essa investigação de um modo particular de transnacionalismo queer está
fortemente conectada nesta fase com formas de globalização hegemónica e contra-
hegemónica com movimentos de corpos, ideias e capitais, bem como com os
sistemas globais, nacionais, regionais e locais de inclusão/exclusão (Puar,
2007).
As dificuldades de deslocação de lésbicas e gays entre territórios, e no cruzar
de fronteiras, são ainda hoje limitadas existindo exemplos históricos diversos
onde é proibida a imigração com base na orientação sexual ou identidade de
género (Estados Unidos da América até ao anos 90), bem como as fortes
limitações ao reagrupamento familiar de casais de pessoas do mesmo sexo, ou o
caso particular do pedido de asilo de lésbicas e gays.
Por um lado o fascínio pela ideia de liberdade como elemento fundamental das
deslocações de lésbicas e gays parecer ter sido responsável por uma extensão
produção bibliográfica reificadora da mobilidade como espaço central da
pesquisa. Há, no entanto, que potenciar uma visão crítica deste e ir além no
sentido queer que como refere Jon Binnie:
John Urry argumentou em sua discussão sobre corpos móveis e cidadania
global que a mobilidade cada vez mais é percebida como um direito. É
também como imperativo reconhecer que muitas migrações não são
voluntárias, não são uma questão de escolha, mas antes questões de
necessidade e compulsão económica. Por exemplo, há o caso bem
documentado de mulheres que são «forçados» à migração como
profissionais do sexo (...) e os refugiados. Sinto-me ambivalente
sobre esses fluxos transnacionais genderizados e sexualizados. Pode-
se sentir repulsa sobre a exploração sexulidade do trabalho sexual,
mas também reconheceu o perigo em fazer declarações moralistas, em
cima do joelho, sobre estas questões (Binnie, 2004: 87).
Efectivamente, tal como nos anos 80, Saskia Sassen referenciou as múltiplas
razoes das migrações destacando que estão menos relacionadas com os factores
sócio-económicos e mais com factores sócio-culturais. As múltiplas razões de
imigração (Binnie, 2004) obrigam-nos a repensar criticamente a multiplicidades
dos processos migratórios indo além do fetishismo da liberdade ou do fetishismo
da economia, explicativos cada um deles, em parte, das migrações de lésbicas e
gays (Luibhéid, 2005).
É importante pensar que um dos elementos centrais destes processos de
mobilidade parece ser, muitas vezes, um processo de pertença diferenciado tendo
em conta o enumerar dos modos de construção identitária (e pós-identitária) da
população lésbica e gay. Efectivamente a crítica à globalização gay é feita
muitas vezes pela crítica à proliferação de prácticas de consumo global que
potenciam espaços essencialmente metropolitanos como Nova Iorque, Londres ou
Sidney (Manalansan, 2005)
Por outro lado, há que ter em consideração um conjunto de discussões teóricas e
de problematizações relacionadas com o facto dos dissidentes sexuais
reequacionarem os debates sobre identidade nacional, cidadania e pertença pois
como refere Jon Binnie «para os migrantes transnacionais as narrativas de
coming out' são enquadradas em termos de diferença nacional» (Binnie, 2004:
94).
2.4. Asilo e Orientações Sexuais ' algumas notas
É pois a partir dessa diferença nacional, e do cruzar das fronteiras nacionais,
que a construção de processo de identificação como lésbicas e gays é um
elemento fundamental na análise dos casos de asilo que tem pontuado em muito
territórios internacionais (Luibhéid, 2005).
No quadro da legislação internacional existem actualmente 19 países que
reconhecem oficialmente que a orientação sexual e a identidade de género podem
constituir um atributo particular para os pedidos de asilo: África do Sul,
Alemanha, Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Dinamarca, Espanha, Estados
Unidos da América, Finlândia, Grécia, Irlanda, Itália, Lituânia, Nova Zelândia,
Noruega, Países Baixos, Reino Unido e Tailândia. Em muitos outros países, como
seja o caso português, onde existem exemplos de pedido de asilo concedido com
base na orientação sexual não existe na nossa legislação nenhuma referência à
população LGBT (lésbica, gay, bissexual e transgénero) como um grupo social
particular que possa usufruir de protecção específica.
Efectivamente a homofobia insitucionalizada em muitos países (em 80 paises do
mundo a homossexualidade é um crime sendo possível ser punida com pena de morte
em 6 desses) potencia a mobilidade ' o cruzar de fronteiras internacionais ' de
muitas franjas desta população naquilo que Norma Mogrovejo caracterizou do
seguinte modo:
Exílio ou «sexilio» é apresentado como uma alternativa política para
os dissidentes sexuais, uma estratégia que preserve as garantias de
mudança social, o direito de escolha, a auto-determinação dos povos,
da liberdade individual, o direito à diferença e è dissidência , base
para a democracia (Morovejo, sd).
Na realidade, ao abrigo da legislação internacional de protecção aos refugiados
e de apoio ao asilo político, apenas leituras recentes, e baseadas num
crescente reconhecimento dos direitos LGBT como Direitos Humanos, potenciam os
requerimentos da população lésbica e gay, ao abrigo da Convenção para os
Refugiados (de 1951). Esta Convenção destaca a possibilidade de existência de
grupos que «pelas suas características comuns imutáveis» podem ser vítimas de
perseguição a que chamam de grupos sociais particulares. É neste sentido que a
orientação sexual (e em alguns casos a identidade de género) é considerada como
«marca identitária» que leva a uma crescente percepção política por parte de
inúmeros governos na análise de processo de asilo (Luibhéid, 2005).
Um exemplo disso é a afirmação, em 1996, do Auto Comissário das Nações Unidas
para os Refugiados de que «os homossexuais podem ser elegíveis para o estatuto
de refugiado com base na perseguição por causa da sua pertença a um grupo
social determinado» (Budd, 2009); ou ainda, em 2000, a Recomendação 1470 do
Conselho da Europa que reforça a importância do reconhecimento da população
LGBT como uma grupo social específico a ser considerado nos pedidos de asilo:
os homossexuais que têm um receio fundado de perseguição resultantes
da sua preferência sexual são refugiados (...) como membros de um
determinado grupo social, e, consequentemente, o estatuto de
refugiado deve ser concedido (Budd, 2009: 19).
Apesar de uma tendência generalizada de reconhecimento da população LGBT no
acesso facilitado à possibilidade de pedido de asilo existem resistências
institucionais fortes, bem como dificuldades diversas na persecução real dos
pedidos de asilo para esta população. Luibhéid problematiza claramente o modo
como a questão da orientação sexual tem sido colocada no debate sobre asilo
político salientando a construção de normatividades legais e processuais
criadoras de modelos de inclusão e exclusão aquando da resolução destes pedidos
(Luibhéid, 2005).
Exemplificando com o caso do Reino Unido, que reconhece a orientação sexual
como uma razão plausível para o pedido de asilo, aconteceu no final de 2009 um
debate sobre o tema surgido da publicação de um relatório pela organização LGBT
Stonewall intitulado «No Going Back ' Lesbian and Gay People and the Asylum
System» da autoria de Nathanael Miles. Na origem do referido relatório estão as
resistências institucionais aos pedidos de asilo com base na orientação sexual,
pois como refere:
Pessoas que enfrentam a ameaça deste tipo de perseguição pode buscar refúgio no
Reino Unido, mas muitos não recebem protecção por causa de erros fundamentais
de julgamento e presunções feitas pela UK Border Agency (UKBA) por funcionários
e juízes sobre orientação sexual. Consequentemente, pessoas, lésbicas e gays,
que procuram asilo experienciam desvantagens significativas e específicas como
consequência directa de sua orientação sexual (Miles, 2009: 3).
Efectivamente este relatório expressa bem as dificuldades sentidas pelos
requerentes de pedido de asilo, bem como, as dificuldades reais e simbólicas de
cruzar a fronteira internacional para entrar no Reino Unido e de ter a sua
condição de exilado político reconhecida. Efectivamente o documento analisa as
práticas dos técnicos da United Kingdom Border Agency, bem como a sua estrutura
organizacional que, como refere ao caracterizar o centro de apoio ao asilo,
«this is a busy and hectic public environment that some applicants find
intimidating and lacking in privacy» (Miles. 2009: 10), o que se torna
particularmente importante se tivermos em consideração a dificuldade que para
muitos dos requerentes é falar da sua orientação sexual, pois é sentida por
muitos como um «segredo bem aguardado » que terá sido a origem de muitas
discriminação e violência. Efectivamente, o tempo e o modo no qual o requerente
refere a sua orientação sexual é um dos elementos de análise no processo que
provoca dificuldades no processo, tal como é referido neste relatório numa das
citações de requerentes que demonstram o modo como os serviços não têm
procedimentos adequadas ao tratamento deste tipo de situações.
Este lugar não tem privacidade. Fui chamado para uma janela. A pessoa
na porta ao lado podia ouvir o que eu estava a dizer, bem como as
pessoas atrás de mim. (...). A coisa que eu achei foi tão difícil,
como um homem gay proveniente de um país onde não se fala sobre sexo,
o primeiro contacto que eu tive, a entrevistadora era uma senhora
asiática idosa, alguém que eu consideraria como a minha mãe. Ela
perguntou por que você está procurando asilo? Foi a coisa mais
difícil de dizer a ela. Eu dizia porque eu gosto de homens. O que
quer dizer? Foi muito difícil de explicar que eu sou gay. ( ) Foi tão
desconfortável. (Johnson, Uganda requerente de asilo) (Miles, 2009:
11).
Este relatório reforça ainda a dificuldade de um entendimento intercultural das
sexualidades contemporâneas, fruto de um processo de globalização das
identidades lésbicas e gays que tem sido alvo de uma crítica apurada por alguns
dos investigadores e que complexifica estes processos de pedido de asilo.
3. Globalização Gay e Crítica Queer
Mas nestes tempos de crítica e perspectiva pós-colonial será interessante
pensar os modos do pós-colonialismo queer ou que teoria queer pós-colonial
poderemos nós avançar? Uma das questões essenciais da crítica pós-colonial
sobre os estudos queer, e em especial sobre os estudos gays e lésbicos, é serem
uma forma específica de etnocentrismo. Jon Binnie, em The Globalization of
Sexuality, realça as formas como esse etnocentrismo funciona. Por um lado, o
facto de muita dessa investigação encarar a população lésbica e gay como uma
forma de etnicidade tende a apagar as diferenças étnicas internas. Tal como
refere:
O perigo de conceber lésbicas e homens gay como um grupo étnico ( ) é
o risco de reproduzir o universalismo da identidade gay e de
marginalizar gays e lésbicas de minorias étnicas. Isto também
solidifica as categorias e não questiona as relações de poder que em
primeira instância levaram à sua população (Binnie, 2004: 69).
Jon Binnie destaca que este processo de etnicização das identidades lésbicas e
gays é particularmente significante no processo de globalização da identidade
gay. Neste sentido, este autor faz uma forte crítica às leituras pós-coloniais
que centram a sua análise no carácter supostamente híbrido das comunidades
lésbicas e gays.
Dennis Altman, por outro lado, salienta a importância dos estudos pós-coloniais
num novo olhar sobre a sexualidade e género, pois como afirma:
uma das realizações dos estudos pós-coloniais é contestar o focus
convencional nos estudos de sexo e género ( ). Apesar de sexo e
género serem princípios organizativos centrais de todas as
sociedades, eles têm sido o domínio de psicólogos no caso das
sociedades modernas' e de antropólogos em outros espaços.
Precisamente porque a teoria pós-colonial explode a divisão entre o
´moderno' e o outro', abrindo o campo, e o reconhecimento para o
facto de que haverão poucas estruturas de sexo/género que não tenham
sido afectadas pela interacção de diferentes regimes políticos,
culturais e religiosos (Altman, 2000: 171).
Na sua análise crítica, Altman salienta pois os modos como o sujeito gay tem
sido construído como algo supostamente universal mas que ele questiona como
sendo uma construção (Altman, 2000) ao referir nomeadamente o colonialismo
epistemológico: «mas que alternativa existe num mundo crescentemente dependente
das epistemologias científicas ocidentais? Hoad argumenta que o universalismo
que promete a libertação acaba por ser opressivo» (Altman, 2000: 174), ou ainda
como afirma em outro texto a necessidade de defender «a ideia de categoria
universal de homossexual é ela mesma um produto da globalização» (Altman,
2004a: 416).
Como faz denotar, a moderna construção científica da homossexualidade no século
XIX está fortemente correlacionada com o desenvolvimento do capitalismo
industrial e com os avanços do sistema colonial do século XX (Altman, 2004-a).
O autor avança, assim, com uma forte crítica aos modelos de política
identitária desenvolvida por organismos de produção dos direitos sexuais
(Altman, 2004-b). No momento pós-colonial em que vivemos, por outro lado, a
globalização universalizante dessa identidade gay nasce de um conjunto de
factores sociais, económicos e políticos em que «a sexualidade se tornou numa
importante arena de produção de modernidade', como as identidades gay e
lésbica a actuarem como marcas dessa modernidade» (Altman, 2004a: 419).
Neste sentido a questão que se nos colocamos é exactamente a de saber qual o
papel destas construções não hegemónicas e ocidentalizadas das práticas sexuais
entre pessoas do mesmo sexo como potenciadoras da crítica aos modelos
universalizantes do gay ocidental. Apesar disto, Altman assinala o perigo de
romantizarmos os modelos pré-coloniais de sexualidade entre pessoas do mesmo
sexo (Altman, 2004-a) obrigando-nos a uma vigilância epistémica e política que
está ainda muito por desenvolver.
4. Conclusão
A mobilidade é, pois, uma das fortes metáforas e alegorias imbricadas no debate
introduzido pela teoria queer, sendo um elemento fundamental da análise
contemporânea das sexualidades. Este texto pretendeu viajar em torno deste
debate, potenciando o modo como sexualidade e mobilidades se entrecruzam
fortemente e são elementos constitutivos de práticas de investigação e de
políticas públicas que estão ainda imbricadas de forte heternormatividade.
Assim, elementos como a investigação em torno dos processos de migração
internacional de e para Portugal relacionados com a orientação sexual estão
ainda por realizar. Tentamos problematizar esta questão ao longo do texto
abrindo a partir de um enfoque teórico as possibilidades de desenvolvimento de
investigações futuras.
Por outro lado, tentámos potenciar a importância simbólica, cultural e política
destas formas de mobilidade pois produzem um palimpsesto social e territorial
muitas vezes não tido em conta e politicas e modelos de planeamento e
desenvolvimento territorial. Tal como refere Martin Manalansan IV ao criticar
leituras simplistas deste fenómeno de mobilidade: «na sombra de Stonewall
escondem- se múltiplas negociações e possibilidades. As discussões em torno da
tendência globalizadora da identidade, política e cultural gay são
interrompidas pelos diálogos locais de pessoas que falam das margens. Estas
interrupções têm de ser ouvidas» (Manalansan apud Binnie, 2004: 71).