Introdução: Políticas de igualdade em Portugal - Assinalando o fim de um ciclo
Introdução: Políticas de igualdade em Portugal – Assinalando o fim de um ciclo
Virgínia Ferreira e Rosa Monteiro
De forma gradual e hoje generalizada os Estados têm vindo a intervir em prol da
igualdade de mulheres e homens, em maior ou menor diálogo com outros atores
quer supranacionais, como a ONU e a União Europeia, quer nacionais, como os
movimentos de mulheres. Depois das políticas anti discriminatórias e de ação
positiva, as de "mainstreaming de género" têm ampliado o leque de
atores envolvidos em consequência da assunção do desafio de incluir a igualdade
na governação.
Tanto o aumento da visibilidade como a constatação da relativa efetividade
destes desenvolvimentos políticos têm suscitado, especialmente desde meados dos
anos 1990, a atenção da comunidade científica. Com efeito, análises feministas
nos mais diversos domínios científicos têm questionado a ação do Estado na
promoção da igualdade de mulheres e homens, analisando o desenho e a
implementação das políticas públicas, escrutinando o alcance e efeitos desta
institucionalização, a definição das agendas, as articulações de atores e os
impactos. As abordagens têm sido diversas, diferenciando-se as sequenciais
(evolução das agendas), as estratégicas (atores) e as compreensivas (análise de
framings).
Para este dossier temático foram solicitados contributos sobre as Políticas de
Igualdade em Portugal e o resultado apresenta-se neste número da ex æquo.
Dentre os propostos, foram selecionados textos que se debruçam sobre agendas,
instrumentos e protagonistas das políticas de igualdade no nosso país e que,
cada um por si e no seu conjunto, contêm sistematizações oportunas e análises
heurísticas de algumas políticas sectoriais. Oportunas porque permitem fazer o
ponto da situação, num momento em que claramente se observa uma dinâmica de
descontinuidade relativamente à década passada e, diríamos mesmo, em que
estamos perante uma dinâmica de refluxo nas políticas de ‘igualdade de género’.
Heurísticas, porque quase todas as análises aqui propostas dão conta da
natureza profundamente contestada, e por isso tensa e conflitual, das políticas
de igualdade no nosso país. Nelas desvelam-se as contradições entre discursos e
práticas, entre lógicas institucionais e dos movimentos sociais, entre estados
nacionais e agências intergovernamentais, etc., mas também os constrangimentos
que rodeiam as políticas em vigor, identificados como altamente limitadores da
sua efetividade.
As políticas públicas de ‘igualdade de género’ enfrentam hoje ameaças graves e
desafios significativos, tanto a nível nacional como internacional. A crise da
dívida soberana, que afeta correntemente várias economias da zona euro, ameaça
suspender por completo o tímido investimento, claramente em decrescendo, que
vinha sendo feito na ‘igualdade de género’. O claro bloqueio em que se encontra
a estratégia de mainstreaming está bem patente não só na natureza dos
instrumentos de soft law a que se têm remetido a Comissão Europeia e o Conselho
Europeu, como também na inadequação e caráter tradicionalista dos conteúdos
programáticos (veja-se Rêgo, neste volume).
Face ao empobrecimento e às dificuldades económicas e sociais que Portugal
enfrenta, do lado dos movimentos sociais, até mesmo dos movimentos de mulheres,
assistimos também a uma paralisia relativamente à reivindicação de mais
‘igualdade de género’, vendo-se esta recuar lugares na hierarquia das suas
prioridades de luta, dada a crescente contestação da legitimidade da causa
(veja-se Santos e Amâncio).
A maior efetividade das políticas é assim urgente, mas os desafios a superar
também, não apenas da parte do Estado, mas igualmente da parte dos movimentos.
A condição presente dos movimentos de mulheres portugueses é a de redefinição e
acomodação a um novo perfil, sendo o seu grande desafio a reinvenção das suas
causas e a ressignificação da sua ação, num ambiente externo altamente
interpelante. Trata-se, portanto, de gerir um novo tipo de relação, entre um
passado de aliança com o Estado, e de alianças informais e cumplicidades na
"marginalização", e uma institucionalização num campo político que
retira premência ao combate da desigualdade de género, na medida em que a torna
uma entre outras, no quadro da nova estratégia de interseccionalidade.
Disso nos dão conta Rosa Monteiro e Virgínia Ferreira que, usando a abordagem
do feminismo de Estado, exploram as relações dos movimentos de mulheres
portugueses com as instituições, com os partidos políticos e com o principal
mecanismo oficial para a igualdade em Portugal (ex-CCF e atual CIG). No balanço
do feminismo de Estado em Portugal apontam os fatores exógenos que contribuíram
para a sua reduzida efetividade, fatores esses também responsáveis pelas
fragilidades/inconsistências das políticas de mainstreaming da "igualdade
de género" no país. Para além disso, mostram o caminho que conduziu as
associações de mulheres ao ponto em que hoje se encontram, em que se veem
compelidas a redefinir o seu papel na definição e execução de políticas, o seu
estatuto de organizações, de advocacy ou de prestação delegada de serviços, e
os seus espaços e reportórios de militância, através da integração em novas e
mais diversas redes autónomas.
O artigo de Maria do Céu da Cunha Rêgo propõe-nos um diálogo entre políticas
europeias e nacionais ao nível da promoção da igualdade de género,
especialmente a partir de 1998. Depois de analisar o contributo da "Lei
da Igualdade " de 1979, a autora reflete sobre o impacto da Estratégia
Europeia de Emprego na integração e legitimação da promoção da igualdade de
género no Plano Nacional de Emprego e salienta a influência da mudança de
paradigma nas políticas nacionais de maternidade e paternidade, de 1999, sobre
o próprio direito da União Europeia. Observados os progressos ocorridos, porém,
a autora denuncia as limitações e riscos de retrocessos observados nos mais
recentes instrumentos políticos europeus em termos de igualdade de género.
No texto de Maria Helena Santos e Lígia Amâncio, as autoras, partindo do
caráter controverso de medidas como as quotas, exploram com base em três
estudos, as resistências às políticas de ação positiva na promoção da igualdade
de género, destacando como principais obstáculos os de natureza ideológica e
contextual, relacionados com a organização político-partidária e com a
persistência de uma visão social que considera que a esfera privada é um mundo
feminino e que a política é um mundo masculino, tanto em termos das
competências que exige, como da sua organização interna.
O lugar do Direito nas políticas de combate à violência doméstica é interrogado
por Madalena Duarte a partir da perspetiva dos estudos feministas críticos do
Direito. A autora propõe-nos uma reflexão acerca da evolução e dos desafios que
se colocam a este tipo de políticas em Portugal, nomeadamente no que respeita à
instrumentalidade que para elas pode ter o Direito estatal, enquanto campo de
perpetuação, legitimação e reprodução das relações patriarcais na sociedade.
De Ana Prata chega-nos uma escalpelização do primeiro episódio de debate
parlamentar sobre a descriminalização do aborto em Portugal (em 1982), para
analisar a forma como ativistas dos movimentos de mulheres, mulheres de dupla
militância (nos movimentos de mulheres e em partidos políticos) e deputados e
deputadas no parlamento se articularam na discussão desta agenda.
Dois textos refletem acerca da promoção da igualdade entre mulheres e homens
nos e pelos meios de comunicação social. Maria João Silveirinha denuncia e
retrata a invisibilização das desigualdades e discriminações experienciadas
pelas mulheres nos meios de comunicação social. A autora aponta as dificuldades
quer do pensamento e investigação feminista, quer das políticas públicas em
alavancarem o potencial emancipatório dos meios de comunicação social. Já o
texto de Carla Cerqueira e Rosa Cabecinhas apresenta os principais dispositivos
político-legais a nível nacional e internacional, desenvolvidos nas últimas
três décadas, e questiona a sua efetividade na integração de uma perspetiva
feminista no campo mediático.
A fechar o dossier, entramos na territorialização das políticas de
mainstreaming de género em Portugal – os planos para a igualdade. Catarina
Sales Oliveira e Susana Villas-Boas refletem sobre uma experiência concreta de
plano organizacional para a igualdade, numa universidade pública, identificando
os principais obstáculos à legitimação e implementação deste tipo de
intervenção para a igualdade, como sejam a perceção do seu caráter supérfluo,
dado o não reconhecimento da discriminação, a presença de estereotipia de
género e a influência da ideologia meritocrática no contexto universitário. Por
fim, Margarida Queirós, depois de elencar os modos como a estrutura e as
infraestruturas das cidades geram problemas na vida quotidiana das mulheres e
dos homens, propõe a noção de território "ergonómico", isto é, que
interage, se adapta para dar resposta às necessidades dos grupos vulneráveis.
Este conceito estará na base do planeamento estratégico a efetuar ao nível dos
Planos Municipais para a Igualdade, promovidos atualmente em bastantes Câmaras
Municipais.
O quadro de tensões, ameaças e desafios identificados configura uma mudança de
paradigma e todos os indicadores apontam para o fim de um ciclo, quiçá o mais
rico ciclo de ‘políticas de igualdade de género’ até agora, em Portugal, se
descontarmos o período a seguir ao 25 de Abril de 1974. Um rápido sobrevoo
sobre os textos que compõem o dossier ajudou-nos a identificar melhor os
fundamentos para esta afirmação, quer porque nos ajudam a perceber que as
limitações à efetividade das políticas se inscreve na sua própria definição,
quer ainda porque evidenciam os riscos contidos na atual situação.
Esperemos que da leitura dos textos propostos resultem ideias para um novo
ciclo de políticas de igualdade, ainda mais necessárias em tempos de crise e
empobrecimento para evitar que as desigualdades e a injustiça social se
agravem.