A emergência do feminismo de Estado em Portugal: uma história da criação da
Comissão da Condição Feminina
Monteiro, Rosa (2010), A emergência do feminismo de Estado em Portugal: uma
história da criação da Comissão da Condição Feminina, CIG, Lisboa, 101 pp.
Margarida Chagas Lopes
ISEG – Universidade Técnica de Lisboa
Neste seu livro, Rosa Monteiro casa com mestria o rigor da investigação
histórica com uma deliciosa descrição, "em fresco", das
vicissitudes que marcaram o surgimento do feminismo de Estado em Portugal. A
contemporaneidade das instituições que no livro se descrevem, ou das que
diretamente lhes sucederam, a atualidade de algumas das dificuldades e
limitações que aí se espelham e, muito especialmente, a presença entre nós de
vultos incontornáveis da construção do feminismo de Estado – como Regina
Tavares da Silva ou, até há pouco, Maria de Lurdes Pintasilgo – conjugam-se
entre si para reforçar a oportunidade deste livro. Assim o terá também
considerado a CIG – Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género – ao
promover a sua edição.
Porque uma leitura, ou recensão, é também uma interpretação, ousamos
subentender três eixos estruturantes na história que Rosa Monteiro nos
apresenta: a ousadia e convicção feministas das e dos fautores desta história,
a par da sábia e empenhada utilização do poder de decisão de que episodicamente
iam dispondo; a intervenção, por vezes mínima, do Estado pela promoção da
igualdade de género; o exemplo e o respaldo das organizações internacionais
promotoras do direito à igualdade, como as Nações Unidas ou a Organização
Internacional do Trabalho.
Um primeiro momento de articulação daqueles eixos de referência, os anos 60 e a
transição para a década de 70, absorve parte significativa da atenção da
autora. Aquele tempo de crítica social, que viu conjugar-se a reflexão do
catolicismo progressista, de estudantes e operário/as num esforço coletivo de
denúncia da pobreza, da guerra, do atraso social, numa palavra, trouxe também
os ventos do progresso da ONU em prol da igualdade de género, consubstanciados
no Programa Women in Development. Em alguns dos Ministérios portugueses
começavam a surgir os gabinetes de estudos e planeamento, semente de uma camada
técnica e de enquadramento que, na Administração Pública, viria a desenvolver a
análise e o estudo sistemáticos de temas fundamentais para o progresso social.
Neste contexto de denúncia, ousadia e trabalho intelectual, Maria de Lurdes
Pintasilgo cimenta a conceção sistémica e a abordagem dialética do trabalho
feminino, salientando o carácter eminentemente político do seu processo de
regulamentação que já então a preocupava. Preocupação essa que haveria de
tornar-se recorrente face às vicissitudes do processo de institucionalização
dos organismos da igualdade de género.
A ousadia feminista, aliada à forte competência técnica e respaldada pelo
trabalho de quadros progressistas do Ministério das Corporações, consegue fazer
associar aos Planos de Fomento e à definição das regiões-plano as primeiras
tentativas de institucionalização do feminismo de Estado em Portugal, como
refere Rosa Monteiro. Trata-se, sem dúvida, de uma estratégia audaciosa e de
duplo objetivo: se, por um lado, se visa assim a consagração oficial dos
organismos embrionários que propugnam a igualdade de género, por outro procura
assegurar-se a estabilidade do cabimento orçamental para os mesmos, associando-
os ao quadro de referência das contas públicas de então. A Comissão para a
Política Social relativa à Mulher, de 1973, constitui a resultante mais
significativa desta tentativa de institucionalização e deve muito, por sua vez,
à crescente participação de mulheres portuguesas nas redes do feminismo
internacional.
Com a democracia surgem as condições de sustentabilidade das iniciativas em
prol da igualdade de género. Mau grado a diminuta expressão que as questões
relativas aos direitos das mulheres assumiam nos conteúdos programáticos que
sustentavam a revolução, a abertura aos ideais progressistas e às conquistas
entretanto realizadas pelos regimes democráticos mais amadurecidos abria o
campo para a progressiva endogeneização social do ideário feminista.
Trabalhava-se, então, na Convenção para a Eliminação de todas as formas de
Discriminação contra as Mulheres, o direito da família conhecia um progresso
assinalável e criavam-se as condições para o surgimento de legislação fundadora
dos direitos das mulheres e da criança, como a Licença de Maternidade de 90
dias. De novo, a função de enquadramento e de regulação internacional de
organizações como a OIT e a OCDE, cumpria aqui o seu papel estruturante.
O ano de 1975, outro marco de referência, foi sublinhado pelo desenvolvimento
dos trabalhos de preparação do Ano Internacional da Mulher. Mais uma vez, as
feministas portuguesas – de entre as quais, Regina Tavares da Silva – se
desdobravam em reuniões preparatórias e debate de ideias, em alinhamento e
interação estreitas com o que de mais atual se desenvolvia nas redes feministas
internacionais, como sublinha Rosa Monteiro. A preparação do Plano Mundial de
Ação para o Ano Internacional da Mulher conta então com a contribuição da
coragem, vontade e saber das feministas portuguesas. E espelha o resultado de
uma ação laboriosa e partilhada, que não se circunscrevia às embrionárias
instâncias oficiais mas, antes, auscultava e dava voz à expressão dos
diferentes setores interessados na construção da igualdade de género, de entre
os quais se distinguiam as organizações não governamentais (ONG). A
participação portuguesa na Conferência Mundial do México, cujas vicissitudes e
imprevistos nos são deliciosamente descritos por Rosa Monteiro, constitui uma
verdadeira epopeia, a culminar todo este domínio de intervenção.
Ao mesmo tempo, assistia-se ao surgimento da Comissão para a Condição Feminina,
que veria a sua consagração institucional em 1977. À distância de quase quatro
décadas, surpreende a capacidade para desenvolver trabalho inovador,
tecnicamente muito competente e diversificado, num contexto em que a
indefinição orgânica e a recorrente reorientação tutelar constituíam a norma de
funcionamento, como bem nos situa a autora. Tal só foi possível, sem dúvida,
devido ao empenho sabedor e multifacetado das técnicas e técnicos da Comissão,
que ora se desdobravam em atividades precursoras de documentação e
classificação, ora acorriam a participar e dinamizar importantes fora de debate
feminista, no País e no estrangeiro. A par das funções de representação,
desenvolvia-se um importante trabalho de intermediação e consulta, muito
marcado pela informação sobre os direitos das mulheres e da família, a
consulentes – quase sempre mulheres – que então ainda grandemente os ignoravam.
Mas foi essencialmente através do desenvolvimento de estudos tecnicamente bem
fundamentados, conduzidos com regularidade e visando sistematicamente o
aprofundamento de temáticas centrais na promoção da igualdade – como o trabalho
das mulheres, sua regulamentação e fundamentação jurídica – que o contributo da
Comissão se soube fazer impor e respeitar. A emergência na sociedade
recentemente democratizada de temas a que hoje chamaríamos fraturantes – como o
Planeamento Familiar e o Aborto – haveria igualmente de contar com o
enquadramento técnico e institucional proporcionado pela Comissão: não só
assumiu a dinamização da fundamentação jurídica dos novos direitos como
assegurou o necessário debate de ideias entre instâncias técnicas, a
representação social, como as ONG, a opinião pública.
A preocupação constante com o prestar de contas, com a demonstração dos
resultados do percurso, constitui outra tónica do trabalho da Comissão e das
técnicas e técnicos que então a integravam. São disso prova evidente os
Cadernos da Condição Feminina, importante repositório de estudos, debate e
reflexão a que os investigadores e as investigadoras em estudos de género
haveriam de vir a recorrer repetidamente para o desenvolvimento dos seus
trabalhos, então, como ainda hoje.
Disto tudo dá conta, notavelmente, esta "história" que Rosa
Monteiro nos oferece. Com a convicção, justíssima, de que "(…) destas
memórias institucionais [ ] se deverá também alimentar o presente (…)".