Trabalho Emocional e Trabalho Estético na Economia dos Serviços
Casaca, Sara Falcão (2012), Trabalho Emocional e Trabalho Estético na Economia
dos Serviços, Coimbra, Edições Almedina, II Série, n.º 20, 138 páginas.
Manuel Abrantes
SOCIUS ' ISEG, Universidade Técnica de Lisboa
Muito tem sido escrito, no domínio da sociologia, sobre a expansão da economia
dos serviços. Sara Falcão Casaca começa por destacar a ampla gama de serviços
em que a interação direta entre pessoa trabalhadora e cliente final constitui
uma parte nuclear do processo de trabalho. Na prestação destes serviços, a
competência técnica caminha frequentemente de braço dado com uma dimensão
performativa: atributos físicos, traços de personalidade e qualidades
relacionais são objetos de mercadorização e, por conseguinte, de disputas
materiais e simbólicas. Identificar e caracterizar as transações realizadas
através do desempenho de competências emocionais e estéticas, prestando
especial atenção ao seu entrelaçamento com dinâmicas de transformação e
persistência das relações de género, são as finalidades que norteiam o livro.
Tal tarefa não pode ser empreendida sem que se procure, antes de mais, uma
definição precisa dos principais conceitos teóricos a mobilizar no decurso da
pesquisa. A isto se dedica o primeiro dos três capítulos que compõem o livro. A
autora convoca uma diversidade assinalável de contributos teóricos, fazendo-as
gravitar em torno da questão do trabalho emocional ' conceito celebrizado pela
socióloga Arlie R. Hochschild para designar o esforço despendido por
trabalhadoras/ es na manipulação das suas emoções genuínas com o intuito de
exibir aquelas que se enquadram nas normas e nas expetativas das entidades
empregadoras. Conceito vizinho, de emergência mais recente, é o de trabalho
estético, proposto na pesquisa de uma equipa constituída por Chris Warhurst,
Dennis Nickson, Anne Witz e Anne Marie Cullen para designar a mobilização, o
desenvolvimento e a mercadorização de disposições corpóreas das/os
trabalhadoras/ /es associadas à satisfação dos objetivos de organizações ou
clientes. O capítulo inicial do livro tem o mérito particular de enquadrar
estes conceitos na transformação das estruturas socioprofissionais e das
relações laborais que caracterizou a segunda metade do século XX. São
discutidas elaborações teóricas de referência em redor da nova economia, da
sociedade pós-industrial e da divisão sexual do trabalho.
Com o segundo capítulo, mergulha-se na análise empírica. Os dados estatísticos
do Inquérito ao Emprego relativos ao período de 1998 a 2007 permitem uma
caracterização geral do segmento dos serviços interpessoais em Portugal. De
seguida, desenvolve-se uma análise qualitativa de entrevistas individuais em
profundidade abrangendo um total de 45 trabalhadoras/es, 7 pessoas com cargos
de gestão ou recrutamento e 3 delegados sindicais. Estes dados são
complementados pela análise documental de materiais relevantes tais como
manuais de orientação para o serviço de atendimento a clientes e websites de
empresas. A análise circuncreve-se a um conjunto específico de serviços
interpessoais: cuidados de estética e beleza, promoção do bem-estar físico,
apoio ou consultoria de imagem individual, tripulantes de cabine e assistentes
de eventos, entre outros (p. 52). Por sua vez, o terceiro capítulo do livro
dedica-se ao caso dos call centres. Os dados recolhidos no seio de quatro
empresas abarcam um inquérito a 63 trabalhadoras/ es e entrevistas individuais
com 10 operadoras/es, 4 responsáveis de empresas e 2 delegados sindicais, bem
como um leque de documentos institucionais. Em contraste com o carácter
frequentemente difuso e imprevisível de alguns serviços interpessoais, os
elementos de rotina e disciplina ' aos quais subjaz uma elevada regulação
emocional ' que permeiam o trabalho em contexto de call centre são examinados à
luz de testemunhos em primeira mão.
Ao longo da obra, Sara Falcão Casaca mostra como os requisitos associados ao
trabalho emocional e ao trabalho estético se configuram como elementos ' a um
só tempo persistentes e renovados ' da divisão sexual do trabalho, conduzindo à
reprodução de estereotipias de género e fatores de desigualdade. As assimetrias
entre homens e mulheres são evidentes. Nos call centres, é especialmente
reveladora a constatação de um predomínio de mulheres nos cargos de atendimento
direto ao cliente e um predomínio de homens nos cargos de atendimento técnico.
Também evidentes são as assimetrias entre quem se enquadra melhor e pior nos
quadros de valor que presidem à mercadorização dos atributos físicos e
relacionais, quadros estes que se situam numa interseção de papéis de género e
expetativas de subordinação. Ilustrativa é a afirmação de uma entrevistada a
propósito da relação que, enquanto cabeleireira, estabelece com as clientes (p.
60): "Eu tenho que mostrar que ela ali é uma senhora, ela ali é a minha
rainha, não é? E eu estou ali ao seu dispor". Como frisa esta
entrevistada, é fundamental mostrar às clientes que tem "classe".
São justamente os elementos de classe ' entendendo- se agora este termo no
sentido, também ele variado e controverso, que a pesquisa sociológica lhe tem
dado ' que ajudam a completar o nosso entendimento do quotidiano de trabalho
nos serviços interpessoais.
O contributo específico desta obra para o conhecimento científico pode aferir-
se a dois níveis. Um deles diz respeito à posição do tema no panorama
sociológico. As emoções não podem ser negligenciadas nos estudos das relações
sociais sob o risco de se tornarem, justamente, o seu calcanhar de Aquiles. Com
efeito, a produção neste campo tem vindo a ganhar fôlego. A título
demonstrativo, o VII Congresso Português de Sociologia, em junho de 2012 (o
mesmo mês em que se publicou o livro aqui comentado), acolheu um número total
de 22 comunicações na seção temática de Sociologia das Emoções, reunindo
pesquisas que, desenvolvidas em vários pontos de Portugal e do estrangeiro,
propõem interligações revelantes com fenómenos tão variados como o crime e a
violência, o consumo, a educação, os novos movimentos sociais, as culturas
juvenis, o amor, o sistema financeiro.
Mais do que uma descoberta recente, o trabalho emocional e estético constitui
aquilo a que poderá chamar-se uma "novidade antiga". Embora o livro
se concentre nas feições mais recentes do fenómeno, a componente emocional e
estética do trabalho na economia dos serviços foi sinalizada, noutros termos,
por autores de períodos anteriores. Um caso paradigmático é o de Siegfried
Kracauer (1998, The Salaried Masses: Duty and Distraction in Weimar Germany,
London, Verso) que, num livro publicado originalmente em 1930 a partir das suas
observações em Berlim, destaca o modo impreciso mas implacável como as
qualidades estéticas e relacionais podem ser avaliadas pelas empresas no
processo de recrutamento, fazendo da pessoa que trabalha em funções comerciais
algo "infinitely more complicated than a worker". Veja-se também o
célebre testemunho de George Orwell (2003, Down and Out in Paris and London,
London, Penguin), lançado em 1933, sobre a sua experiência de trabalho em
diversos serviços interpessoais em Paris e Londres nos tempos de uma (outra)
recessão económica à escala internacional. A novidade do trabalho académico
mais recente é que tem vindo a refinar de forma decisiva conceitos e
ferramentas metodológicas que permitem análises complexas e sistemáticas.
O segundo aspeto a destacar consiste na ambivalência que subsiste em torno do
trabalho emocional e estético: ora ferramenta de seleção e opressão manejada
com maior ou menor habilidade por entidades empregadoras, ora espaço de
emancipação e gratificação para elementos da classe trabalhadora, sobretudo em
comparação com contextos laborais mais isolados ou despersonalizados no setor
dos serviços. Face a este dilema, o presente livro propõe que a resposta seja
orientada pela análise empírica, em igual medida detalhada e crítica, colocando
no coração do debate a experiência e a perceção das pessoas cujo desempenho
emocional e estético é transacionado. Para lá daquilo que a autora designa como
interpretações deterministas, sejam elas negativas ou otimistas, importa aferir
a relevância de variáveis moderadoras tais como modelo organizacional, estatuto
socioprofissional, posição hierárquica ou grau de autonomia (pp. 36-44).
Documentar a ambivalência é, portanto, reconhecer a multiplicidade de
possibilidades e intervenientes, abrindo portas ao diálogo com trabalhadoras/
es, empregadoras/ /es e clientes.
Por outro lado, as práticas e os contextos de trabalho nos serviços
interpessoais constituem material estratégico para examinar a persistência e a
renovação de assimetrias de género na sociedade contemporânea. Estas
assimetrias refletem uma forte compartimentalização vertical e a escassez de
oportunidades e perspetivas de progressão na carreira para quem ocupa posições
no atendimento de primeira linha. Assim, as dinâmicas quotidianas de modelação,
regulação e monitorização das emoções e da estética são cruciais para se
entender o enquadramento deste segmento laboral não só nas estruturas
organizacionais, mas também, de um ponto de vista mais amplo, nas dinâmicas
socioeconómicas e de classe. A ambivalência é negociada a cada momento e não é
dissociável das questões de identidade, como se demonstra no caso da assistente
de eventos que, a respeito das frequentes ocasiões de assédio sexual por parte
de clientes, declara: "Não me afeta minimamente! Nem sequer fica
cá" (p. 65). O livro de Sara Falcão Casaca coloca-nos neste cá, onde as
emoções são sentidas, onde o trabalho é desempenhado, onde a dignidade e a
valorização profissional são disputadas. Pense-se em remuneração, autonomia e
perspetivas ' mas também em estratégias corporativas de subcontratação,
controlo e poder. Pense-se nas fronteiras ténues que separam o trabalho
estético e o trabalho erotizado. O debate é especialmente difícil pois os
próprios conceitos que a ele presidem mudam conforme a valoração que lhes é
dada. A esta intersubjetividade não se pode furtar o desenvolvimento continuado
da pesquisa.
Por último, este livro deixa um ponto de interrogação acerca da organização
coletiva aparentemente diminuta ' através da sindicalização, dos novos
movimentos sociais ou de outros canais de agência e representação ' entre a
população que trabalha nos serviços interpessoais. Uma abordagem sistemática a
esta questão, incluindo os seus aspetos diacrónicos e a comparação possível
entre diferentes regiões e ramos de atividade, permitirá expandir o debate.