O Tempo das Criadas: A condição servil em Portugal (1940-1970)
Brasão, Inês (2012), O Tempo das Criadas. A condição servil em Portugal (1940-
1970), Lisboa, Tinta da China, 319 páginas.
Teresa Pinto
CEMRI/Universidade Aberta, Portugal
O Tempo das Criadas, de Inês Brasão, é o resultado de uma investigação situada
no interface da sociologia e da antropologia históricas, amadurecida a partir
de questionamentos anteriores sobre as representações oficiais em torno das
criadas, no período do Estado Novo, que a autora sistematizou em Dons e
Disciplinas do Corpo (1999).
Perante as representações oficiais, os retratos ficcionados da criação
literária e a quase ausência do tema na produção historiográfica, a autora
propôs-se usar os instrumentos teóricos e metodológicos da sociologia para
edificar uma interpretação estrutural sobre as criadas de servir entre as
décadas de 1930/40 e 1970. Num exercício de decomposição das representações
sociais que conformam o nosso olhar sobre esta realidade, a autora interpela,
simultaneamente, a investigação sobre as esferas do privado e do quotidiano
(que não têm elegido como objeto de estudo o serviço doméstico do passado
recente português) e os mecanismos de constituição e de funcionamento da
memória coletiva (que tem deslocado a realidade em questão, por um efeito de
sfumatto, para um passado intemporal e idealizado, sustentáculo de nostalgias
presentes).
O recurso à história oral e ao método biográfico, na sua articulação com
inúmeras fontes primárias e secundárias, permitiu desocultar as representações
de algumas criadas corresidenciais e, através delas, contribuir para
reinterpretar a sociedade contemporânea à luz dos "processos de
subalternidade" (p. 10), bem como, pela concretude das entrevistadas,
ressituar nas dinâmicas do passado recente o tempo das criadas. Inês Brasão
mostra como as famílias das classes médias, libertadas da acumulação de
trabalho físico no espaço doméstico, pelo recurso a uma mão-de-obra feminina
não qualificada, se reconfiguram pela integração dos tempos e práticas do lazer
e pela afirmação simbólica da sua posição de classe, gerando novas relações
sociais de género.
São dezoito as entrevistadas, nascidas entre 1923 e 1958, naturais de dezoito
locais diferentes do continente português, dezasseis dos quais a norte do Tejo,
e chegadas à cidade (Lisboa na quase totalidade dos casos) entre 1937 e 1965. A
autora enquadra estes testemunhos de êxodo rural feminino num contexto de
profunda alteração do equilíbrio demográfico e socioeconómico do país, que se
objetiva, no caso dos distritos mais atingidos, como Guarda, Bragança, Castelo
Branco e Viseu, numa perda global de cerca de 140.000 mulheres, com um peso de
28%, 21%, 18,6% e 15,3% em relação à respetiva população feminina de
referência, entre 1950 e 1970 (pp. 95-99). Este êxodo feminino coincide com a
massificação e consequente desvalorização do serviço doméstico (pp. 48 e 168),
quando franjas cada vez mais baixas das classes médias generalizam a utilização
de criadas para todo o serviço (p. 100).
A autora, a partir da análise das representações jurídicas, políticas e
culturais associadas ao estatuto do trabalho doméstico em Portugal nos séculos
XIX e XX, sublinha o facto de apenas no recenseamento de 1980 ter desaparecido
a categoria "criada de servir" (p. 42), embora, em termos
normativos, se tenha reduzido, a partir da década de 1940, o poder tutelar do
patrão sobre a criada. Desta alteração adviria, porém, uma representação social
negativa das serviçais domésticas, acentuada, na década seguinte, com o
processo de massificação.
Emigrantes, as criadas alteravam aparência e hábitos, tornando-se estranhas na
sua aldeia, mas, imigrantes nas cidades, permaneciam descabidas no meio urbano.
As cidades acolhem-nas por necessidade, mas recusam a sua integração. Este
grupo profissional passa a ser reputado de imoral, incompetente e desobediente,
convertendo-se num problema social crítico "incómodo a uma classe média
instalada" (p. 150). Será o estigma da desobediência, que se tornou,
naquele período, um fenómeno obsessivo para as classes dominantes, que a autora
manterá como fio condutor da sua análise crítica.
Nesta consonância, segundo a minha leitura, o contributo mais inovador deste
trabalho de Inês Brasão resulta da busca de momentos de construção e de
desagregação dos paradigmas do serviço doméstico em Portugal a partir da
interpretação das representações do grau de observância da obediência e
objetiva-se na configuração de uma dupla faceta deste problema social,
implicando o grupo profissional das criadas e o grupo das famílias
empregadoras.
À medida que as camadas menos abastadas das classes médias vão recorrendo aos
serviços das criadas, a procura incide, cada vez mais, em mão de obra mais
barata e desqualificada. Recrutam-se, nas aldeias, crianças e adolescentes
analfabetas e sem saberes práticos da vida doméstica e impõem-se-lhes tarefas
às quais elas não sabem responder, nem tão-pouco podem aprender com uma
criadagem mais experiente, pois esta não existe nas famílias urbanas de
situação remediada. Desastradas e desasadas, estas raparigas comportam-se, aos
olhos da população citadina, como seres bravios a domesticar, pois os seus
incumprimentos, gerando punições incompreendidas, geravam atos de insubmissão
tidos como ameaçadores da ordem social. A subversão, conotada com a
marginalidade, é explorada e caricaturada na ficção literária (p. 161 e seg.).
Todavia, a realidade escrutinada pela autora revela que, embora a emigração
nunca se fizesse "às escuras" (p. 53), como testemunham as
entrevistadas, dado que uma rede de contactos garantia as colocações, a chegada
à cidade convertia-se, sobretudo em situações de despedimento ou de fuga, num
passaporte para a prostituição. Respondia- se com discursos médico-sanitários,
regulamentações e instituições, como a Obra de Santa Zita (fundada em 1931 pela
Ação Católica Portuguesa). Esta acolhia, instruía e formava raparigas e
mulheres ao desamparo na cidade (p. 109 e seg.), tentando expurgar dos seus
corpos as marcas da aldeia, domesticando-os por higienização e cristianização.
A existência da criada devia ser invisibilizada através do silêncio do corpo e
da personalidade, favorecendo o "envasamento dos valores da família onde
era criada" (p. 144).
Do lado das classes dominantes regista-se uma consciência apreensiva com a
incapacidade de superintendência adequada dos contingentes de mão-de-obra
feminina servil por parte das camadas mais baixas das classes médias, que,
impreparadas para a sua nova condição de patronato, não sabiam fazer-se
obedecer. Multiplicam-se, assim, os manuais de civilidade (p. 214 e seg.) e os
artigos educativos nas revistas e outras publicações femininas (p. 146 e seg.)
destinados às novas ou futuras patroas das classes médias. Evocava-se um modelo
de criadagem que, todavia, já não podia existir face à nova conjuntura de
procura, de recrutamento e de inserção. Inês Brasão recolhe em Maria Lamas (As
mulheres do meu País, 1948) um "retrato desencantado sobre as
trabalhadoras domésticas" (p. 143), dando conta de uma degradação do
regime de obediência, o qual só persiste como "arquétipo de serviçal
pretendido pelas classes urbanas no contexto dos anos 50 e 60" (p. 145).
Este paradigma de serviçal das elites burguesas oitocentistas, modelo-cópia do
sistema de criadagem da aristocracia da sociedade pré-industrial, fora
interiorizado como símbolo de ascensão social pelas classes médias,
designadamente urbanas (caso da Inglaterra Vitoriana, cujas descrições
continuaram a alimentar o imaginário português), dando lugar a uma feminização
do trabalho doméstico que só tardiamente, a partir de finais da década de 1930,
se verifica em Portugal (p. 48). Compreende-se, assim, que os ritmos de
feminização dos serviços domésticos tenham sido muito mais lentos no interior
do país, como revela Inês Brasão ao comparar Lisboa e Guarda nas décadas de
1940 e 1950 (pp. 95-99). Nesta última cidade persiste uma composição do serviço
doméstico fortemente masculinizada, característica das sociedades pré-
industriais, associada a práticas muito vivas de um sistema de deferência e de
obediência que já não se observavam em cidades como Lisboa.
Inês Brasão mostra, exemplarmente, a desagregação de um modelo de serviço
doméstico que, associado às elites burguesas e aristocráticas, não se coadunava
ao universo numeroso das camadas mais baixas das classes médias. Fracas posses
determinaram a redução da criadagem à criada para todo o serviço, as casas
exíguas tornaram incomportável a segregação espacial e funcional das criadas e
a falta de orientação era substituída por uma sobre-exploração carregada de
punições. Os relatos das entrevistadas dão conta de situações de conformismo e
de sentimentos de fidelidade, mas também de contestações face a maus tratos e
humilhações (p. 184 e seg.). Os relatos de insubordinações remetem, sobretudo,
para contextos de reduzida diferença social entre as famílias de origem e as de
acolhimento das criadas (p. 249). O regime de criada corresidente, nestas
condições, entrará também em contradição com o princípio burguês da
privacidade, pois "a devassa da vida privada é ( ) um poder que pode ser
capitalizado pelas criadas de servir em desfavor dos patrões" (p. 180). A
empregada doméstica "a dias" será a resposta mais consentânea com
os novos contextos familiares beneficiados, também, com a aplicação da
tecnologia aos equipamentos domésticos.
Uma das virtudes desta obra advém da complexidade do processo analítico e
interpretativo assente no cotejamento rigoroso dos relatos com as fontes
consultadas. Inês Brasão vai entrosando permanentemente diversas variáveis,
evitando extrapolações anacrónicas e geográficas, distinguindo os quadros das
vivências quotidianas de acordo com o estatuto social, as categorias
profissionais e as condições económicas das famílias de acolhimento das
serviçais, problematizando as diferentes categorias de mulheres envolvidas no
serviço doméstico (esposas e criadas, senhoras donas de casa e simples donas de
casa, solteiras, casadas e viúvas). A escrita, rica e expressiva, de estilo
recapitulativo, transmite ao discurso uma ambiência de proximidade que nos
envolve e nos prende à leitura.