Para um novo paradigma: um mundo assente no cuidado. Antologia de textos de
Maria de Lourdes Pintasilgo
Pintasilgo, Maria de Lourdes (2012), Para um novo paradigma: um mundo assente
no cuidado. Antologia de textos de Maria de Lourdes Pintasilgo (organização de
Antónia Coutinho, Fátima Grácio, Noémia de Oliveira Jorge, Paula Borges Santos
e Regina Tavares da Silva), Porto, Edições Afrontamento, 446 páginas.
Maria Isabel de Sousa Ramos
Mestre em Educação e Formação de Adultos e Intervenção Comunitária, pela
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra
A presente publicação surge como concretização, por um lado, da vontade da
Fundação Cuidar O Futuro, que tem à sua guarda o arquivo pessoal de Maria de
Lourdes Pintasilgo, de partilhar com o público em geral documentos vários
(comunicações, discursos e artigos apresentados ou publicados no nosso país e
um pouco por todo o mundo, sobre variadíssimas temáticas). Estes ilustram o
percurso de vida da sua fundadora, uma mulher brilhante, dotada de um
pensamento pioneiro, ousado e original para o seu tempo, o qual parece ter sido
escrito hoje, de tão atual que é. Por outro lado, trata-se da materialização de
um desejo manifestado, ainda em vida, pela própria, uma mulher de causas, que
apresentava o "cuidado" como o núcleo duro pelo qual a atitude
política se deveria pautar, desejo que em boa hora se vê concretizado.
Com prefácio de Marcelo Rebelo de Sousa e posfácio de Maria João Seixas,
encontramos nesta publicação, dada a inegável multiplicidade de textos
produzidos e temas abordados por Maria de Lourdes Pintasilgo, alguns remontando
já à década de 1950, um limite temporal ' a década de 1990. Apresentam-se
textos em várias línguas (português, francês e inglês), tendo em conta as
várias versões da autora, onde se salienta a sua diversidade linguística, bem
como o alcance internacional do seu pensamento. Quanto aos temas, embora uns se
reencontrem nos outros: Mulheres, Igualdade, Democracia Paritária; Democracia,
Cidadania, Direitos Humanos; Desenvolvimento, População e Qualidade de Vida;
Educação e Cultura, Valores, Religião, Ética ' quatro das "incontáveis
batalhas de Maria de Lourdes Pintasilgo [estão] presentes nesta obra (p.
19)." Sendo através da reflexão sobre estes temas que, para a autora, se
poderia operar uma mudança de paradigma, conduzindo a Um mundo assente no
cuidado, talvez (re)inventando-se a democracia.
No primeiro tema, Mulheres, Igualdade, Democracia Paritária, a única, até hoje,
Primeira-ministra do nosso país colocava em evidência a mais-valia da partilha
com as mulheres do poder e da tomada de decisão política. A autora encarava
como fundamental o envolvimento das mulheres na política de forma a mudá-la,
para que esta estivesse mais próxima dos reais problemas dos povos e das
pessoas, considerando a necessidade de uma nova cultura política, uma
democracia paritária. Aquele seria o momento, não só pela crise e descrédito
que a política atravessava, mas também pela urgência do acesso à igualdade
entre homens e mulheres. Aprofundando as mudanças em curso na perspetiva de uma
crescente interdependência em termos económicos e políticos, onde o meio-
ambiente surgia como um novo ator social a não menosprezar, alertando para o
fosso que economia de mercado alargaria, conduzindo a mais desigualdades, Maria
de Lourdes não deixaria de apelar à valorização da "cultura das
mulheres". Esta seria um contributo fundamental para a reorganização dos
laços sociais e de novos modos de gestão da vida na sociedade. No entanto, não
perderia também a oportunidade de chamar a atenção para algumas armadilhas a
que o acesso à igualdade, para as mulheres, poderia estar sujeito: "ce
qu'il faut éviter c'est que l'accès à l'égalité entre hommes et femmes crée une
harmonisation nivellatrice, uniformisante et réductrice" (p. 74).
Insistiria na necessidade de uma aprendizagem do acesso, bem como no facto de
que a participação das mulheres na tomada de decisão não se deveria limitar a
seguir modelos dominantes (masculinos). Ainda nesta primeira parte encontramos
a noção da autora de "cuidado" (influenciada pela leitura que fez
do filósofo Heidegger) e a forma como a trazia para a política. Também uma
reflexão sobre a liderança feminina tem aqui lugar, liderança que poderia
contribuir para uma outra forma de olhar a governabilidade e forjar uma nova
política.
O segundo tema, Democracia, Cidadania, Direitos Humanos, começa pela reflexão
sobre novos direitos e a emergência da identidade, tema considerado por Maria
de Lourdes ambíguo. Para a autora, o que alguns especialistas consideravam de
novos direitos (tanto aqueles que ainda se estavam a fazer o seu caminho, como
o direito à saúde, à educação ou mesmo ao trabalho), não o seriam propriamente,
pois esses já se encontrariam consagrados na lei. Importaria era refletir sobre
a identidade, nomeadamente questionando se a identidade pela nascença seria
realmente pertença do passado na prática (nasceríamos de facto iguais?),
refletir sobre a identidade tutelada pela profissão devido à industrialização,
sobre os obstáculos que os direitos encontravam (p.e. a sua não-universalidade
de facto, o fosso entre a as leis e a prática). Os novos direitos, segundo a
autora, nasceriam da evolução da ciência e da tecnologia: o direito a um meio-
-ambiente são e equilibrado, a um ambiente social digno, a um verdadeiro
ambiente cultural. Mas não esqueceria que também necessitavam de reconhecimento
os direitos dos grupos: crianças, idosos e mulheres. Abordava ainda os
contornos dos poderes: o poder em relação às coisas e à natureza; nas relações
entre as estruturas sociais e políticas; nas dimensões culturais e religiosas.
A sua perspetiva sobre como a ética, cidadania e política deveriam interagir
também nos é apresentada. Para a autora a cidadania não se esgotava no
exercício de voto e a política era de todos e todos os dias, não se esquecendo
dos princípios éticos necessários para tal, uma ética que se queria global.
Nos dois últimos temas (Desenvolvimento, População e Qualidade de Vida;
Educação e Cultura, Valores, Religião, Ética) encontramos um discurso proferido
no ato de aceitação do Doutoramento Honoris Causa atribuído pela Universidade
Católica de Lovaina onde Maria de Lourdes se centrara sobre a palavra
solidariedade num sentido lato, a uma escala planetária e como valor moral.
Volta-se ao tema da grande mudança que se operou em relação à ciência e
tecnologia, refletindo sobre uma sociedade mediatizada pela técnica, sobre a
forma como o poder do "saber fazer" se sobreporia ao poder de
saber, sobre uma consequente necessidade de uma alfabetização científica e
tecnológica e sobre esta como elemento- -chave de estruturação da sociedade e
ponto-chave da sobrevivência do planeta, da espécie humana. Também encontramos
a sua preocupação com a problemática da população, em virtude do seu duplo
movimento de crescimento e de declínio, não deixando de lado, nesta reflexão, a
busca de um equilíbrio estável entre, por exemplo, homens e mulheres, jovens e
idosos, ativos e não ativos, entre outros. Quanto à qualidade de vida, para a
autora, se o ser humano fosse olhado apenas como número, ela sairia penalizada,
daí a importância da aposta em políticas sociais (além da saúde e da educação)
para a sua construção. Vivendo-se num mundo em transição, com um
desenvolvimento económico crescente, alertaria para o crescendo de
desigualdades sociais, já que ele não conseguira "absorver" a
pobreza. Face a tudo isto exigia-se, segundo a autora, uma ética da
"responsabilidade", pois esta é que seria a raiz da liberdade. A
autora refletiu também sobre a "revolta da natureza", a terceira
revolução industrial e a informação instantânea como dados evidentes de um
mundo globalizado, dados que requereriam uma nova aprendizagem da cidadania.
Retornar-se-ia novamente ao sagrado, segundo a autora, não para explicar
fenómenos da natureza inexplicáveis mas como recusa da complexidade, da
modernidade. Assistir-se-ia à sacralização das sociedades secularizadas, à
sacralização do chefe, de espaços, tempos, esmagando-se o cidadão por ficar
impedido de usar os seus direitos individuais. Recorrendo frequentemente à
tragédia de Antígona, a autora considera que se prende a política ao sagrado,
sendo que Creonte representaria a primeira (ordem política) e Antígona o
segundo (a consciência individual). Maria de Lourdes refletira ainda sobre a
espiritualidade das mulheres (cristãs ou não) e os caminhos a trilhar (busca
espiritual que terá de tocar no fundo do seu próprio ser), sobre as novas
questões que o mundo em mudança traria sobre a educação para os valores e sobre
os próprios valores da educação, bem como a importância de culturalizar a
sociedade e socializar a cultura. Maria de Lourdes, para tal, colocaria enfoque
na promoção de "políticas culturais": de preservação do património
de cada povo, de criação e difusão de formas tradicionais de expressão
cultural, relacionando-as com o quotidiano, de promoção do estatuto e formação
dos criadores, artistas, de forma a manifestarem livremente o seu talento,
entre outros, para que a cultura pudesse chegar a penetrar todos os setores da
vida em sociedade.
Da minha leitura, surgem-me algumas questões para reflexão pessoal: mulheres e
homens estarão à altura do legado deixado por Maria de Lourdes Pintasilgo, já
que ela acreditava na capacidade de todas e todos para mudarmos o mundo? É no
bom caminho que seguimos ou estaremos a defraudar a sua crença em nós? Talvez
devamos seguir o conselho que Maria João Seixas nos deixa no posfácio, termos à
mão esta Antologia, "para poder ser lida e relida como um Breviário, na
certeza de que nela encontraremos ensinamentos e inspiração suficientes para,
aqui e agora, nos sentirmos capazes de não nos perdermos " (p. 446).
Quanto a mim, procurarei fazê-lo.