Versão portuguesa do questionário de bem-estar espiritual (SWBQ): análise
confirmatória da sua estrutura factorial
O estudo do contributo da espiritualidade para a saúde conduziu à emergência do
conceito de “Bem-estar Espiritual” (BEE) e espelha a importância crescente
atribuída à dimensão espiritual para o bem-estar.
A noção de BEE ou saúde espiritual tem sido descrita em múltiplos termos por
vários autores (Fisher, Francis e Johnson, 2000; Moberg, 2002, 2008; O’ Connell
& Skevington, 2007; Westgate, 1996). Apesar das diferentes perspectivas na
definição do conceito, a maioria aponta para a sua independência da dimensão
religiosa e por vezes até da componente implícita ou explicitamente centrada no
sagrado, presente nas mais actuais definições de espiritualidade (Chandler,
Holden, & Kolander, 1992). Todas as definições de BEE sugerem igualmente a
multi-dimensionalidade do construto. Já em 1975, numa das primeiras tentativas
para gerar consenso relativamente a uma definição abrangente de
espiritualidade, a National Interfaith Coalition on Aging(NICA; Moberg, 2002)
propôs como definição de trabalho que “spiritual wellbeing is the affirmation
of life in a relationship with God, self, community, and environment that
nurtures and celebrates wholeness”(p. 48). A noção que o BEE deve assumir uma
perspectiva relacional, evidente nesta definição, foi também assumida
subsequentemente por vários autores que propuseram definições envolvendo pelo
menos dimensões da relação com o próprio, com os outros e com o transcendente
(Goodloe & Arreola, 1992; Hawks, 1994; Hood-Morris, 1996;Young, 1984).
A quase totalidade destas definições, no entanto, não parte de um modelo
conceptual que tenha sido confirmado empiricamente. A maioria não chega sequer
a ser operacionalizada. Procurando ultrapassar estas limitações, Fisher (1999)
desenvolveu uma definição abrangente de BEE, que reúne os quatro sistemas de
relação propostos pela definição consensual da NICA, tendo-a confirmado
empiricamente através de um conjunto alargado de entrevistas com professores do
ensino secundário. Este estudo conduziu ao desenvolvimento de um modelo
conceptual de Bem-estar espiritual.
Como resultado desse trabalho empírico, Fisher (1999) conceptualiza o Bemestar
espiritual como uma forma de estar dinâmica que se reflecte na qualidade das
relações que o indivíduo estabelece em quatro domínios da existência humana,
isto é, consigo próprio, com os outros, com o ambiente e com algo ou Alguém que
transcende o domínio humano. O domínio pessoal (“personal”) diz respeito à
forma como uma pessoa se relaciona consigo própria no que respeita ao
significado, propósito e valores de vida. Pressupõe o desenvolvimento de auto-
conhecimento e consciência sobre si mesmo, relacionados com a identidade e a
auto-estima. O comunitário (“communal”), refere-se à qualidade e profundidade
das relações inter-pessoais no que diz respeito à moralidade, cultura e
religião. Inclui sentimentos de amor, justiça, esperança e fé na humanidade. O
domínio ambiental (“environment”), consiste nas relações com o mundo físico e
biológico (cuidar e proteger), expressando-se através da admiração e de
sentimentos de união com a natureza. Por fim, o domínio transcendental
(“transcendental other”), refere-se à relação do próprio com algo ou alguma
coisa para além do que é humano, nomeadamente uma força cósmica, uma realidade
transcendente, ou Deus, e expressa-se através do culto e adoração relativamente
à fonte de mistério do universo.
De acordo com o modelo conceptual de Fisher, a qualidade das relações que o
indivíduo estabelece em cada domínio, é indicador do seu BEE nessa dimensão.
Por outro lado, a saúde espiritual é dinâmica e o desenvolvimento de BEE em
cada um dos domínios -resultante do confronto com os desafios da existência
humana -expressa-se pelo aprofundar das relações nesse domínio e pelo
acrescentar de novas dimensões. Simultaneamente o desenvolvimento da qualidade
das relações num domínio de BEE contribui para o aprofundamento das relações
nos restantes. A interacção entre estas dimensões de relação permite o
crescimento e complexificação recíprocas. Fisher sugere, por exemplo, que os
valores, propósito e sentido para a vida desenvolvidos através do auto-
conhecimento são pré-condições, e simultaneamente são aprofundados pelos
valores morais, culturais ou espirituais construídos a partir do aprofundamento
das relações interpessoais (Fisher, 1999, p.31). Assim, o bem-estar espiritual
global de uma pessoa será resultante do efeito combinado do BEE em cada um dos
domínios adoptados pelo indivíduo.
A partir desta definição e modelo conceptual e ainda com base numa revisão de
medidas pré-existentes do conceito e num conjunto de estudos qualitativos
prévios (Fisher, 1999; Fisher et al., 2000), Gomez e Fisher (2003)
desenvolveram recentemente o “Spiritual Well-being Questionnaire – SWBQ”. Esta
nova operacionalização para o construto, avalia as quatro dimensões referidas
(pessoal, comunitária, ambiental e transcendental) e permite obter uma medida
global de BEE resultante da adição dos diferentes domínios. Este instrumento
foi validado através de quatro estudos realizados junto de estudantes do ensino
secundário e universitário de países de língua inglesa (Gomez & Fisher,
2005a,b). Os resultados destes estudos de validação revelaram boas
características métricas e também a existência de relação entre algumas
dimensões do bem-estar espiritual (e.g., pessoal, comunal e ambiental) e
características como a extroversão, o neuroticismo, o psicoticismo e também com
a felicidade. Os dados suportam simultaneamente a independência do construto
face à personalidade.
Existem diversos instrumentos de mensuração de bem-estar espiritual ou de uma
dimensão espiritual da saúde (para uma revisão de medidas disposicionais e
funcionais de espiritualidade ver Hill, 2005 ou ainda O’ Connell &
Skevington, 2007, para instrumentos que medem espiritualidade enquanto
componente da qualidade de vida). No entanto, o SWBQ é a única ferramenta que
avalia discriminadamente as quatro dimensões identificadas no modelo de Fisher
(1999), modelo este que foi posteriormente reconfirmado em outros estudos
(Fisher 2006, 2007; Fisher, Francis, & Johnson, 2000, 2002). Uma adequada
diferenciação e mensuração destas diferentes componentes do bem-estar
espiritual parece relevante na medida em que estas dimensões poderão ter
repercussões distintas nas medidas de bem-estar físico e/ou psicológico (e.g.,
Fehring, Brennan, & Keller, 1987; Gomez & Fisher, 2003;2005a, b;
Gouveia, Ribeiro & Pinto, 2008).
O objectivo deste estudo é então apresentar os resultados psicométricos de uma
versão portuguesa deste questionário adaptado para a população geral,
referindo-se mais concretamente às propriedades estruturais do SWBQp (versão
portuguesa).
MÉTODO
Participantes
Participaram neste estudo 439 sujeitos, seleccionados por conveniência, com
idades compreendidas entre os 16 e os 71 anos (M=36,47, DP=10,77), de ambos os
sexos, ainda que ligeiramente enviesada para o feminino (F=61,6%, M=38,4%) e
com escolaridade entre os4eos23 anos (M=15,13, DP=3,52). Dos 439 sujeitos que
compõem esta amostra, 54,5% são casados, 15,7% são solteiros, 8,9% são
divorciados e apenas 0,7% são viúvos (as).
Instrumento
O SWBQ é um questionário de auto-preenchimento, constituído por 20 itens,
distribuídos de igual forma (5 itens) para avaliarem cada uma das quatro sub-
escalas de BEE: Pessoal (e.g., “meaning in life”), comunitária (e.g., “kindness
towards other people”), ambiental (e.g., “oneness with nature”) e
transcendental (e.g., “personal relationship with the Divine/God” ou “worship
of the Creator”). Aos respondentes é pedido que indiquem em que medida sentem
que cada afirmação reflecte a sua experiência pessoal actual. Os itens são
avaliados numa escala 5 pontos [variando de 1=muito pouco a 5=totalmente].
Todos os itens são formulados positivamente e o resultado é obtido pela média
das respostas atribuídas aos itens de cada sub-escala. É possível igualmente
obter uma medida global de BEE resultante da adição dos diferentes domínios.
Os autores originais apresentam bons resultados de fiabilidade e validade para
todas as sub-escalas, com valores de consistência interna para diferentes sub-
amostras variando entre α=0,76 e α=0,95 (Gomez & Fisher, 2003, 2005a,b).
Os resultados preliminares da versão portuguesa deste instrumento (Gouveia,
Pais-Ribeiro & Marques, 2008), apresentam também bons indicadores de
consistência interna global (α=0,89) oscilando os valores das diferentes
dimensões entre α= 0,72 (dimensão pessoal) e α= 0,88 (dimensão transcendental).
A análise factorial confirmatória realizada revelou igualmente valores de
ajustamento aceitáveis para um modelo de 4 factores correlacionados de acordo
com o proposto pelos autores originais (Qui2/df=1,96 p<0,00; CFI=0,91;
RMSEA=0,06 p=0,02).
Procedimento
O processo de adaptação baseou-se no método “Traduz-Retraduz” (Hill & Hill,
2002), que consiste em 3 etapas: 1ª) tradução por 3 pessoas com conhecimentos
sólidos da língua inglesa e com experiência na tradução de questionários; 2ª)
verificação da tradução através de retroversão e comparação com o original, bem
como análise final da validade de conteúdo dos itens por 2 especialistas em
psicologia; 3ª) estudo piloto com uma amostra de 30 sujeitos, para verificação
da clareza e compreensão dos itens. A recolha de dados foi realizada em
organizações empresariais e contextos de formação profissional e de lazer (ex.
jardins e esplanadas), no distrito de Lisboa. Os questionários foram
preenchidos no momento e na presença do experimentador. Dos 452 questionários
aplicados, 13 foram eliminados por não terem sido correctamente preenchidos. Os
dados foram recolhidos entre 2007 e 2008. A análise de dados foi realizada com
recurso aos softwares estatísticos SPSS v. 17 e AMOS v.17.
RESULTADOS
Análise descritiva e consistência interna do SWBQp
No Quadro 1 apresentam-se os resultados obtidos relativos às médias, desvios
padrão, correlações dos itens com a escala a que pertencem, valores de
consistência interna dos itens e factores (Alpha de Cronbach) e ainda os pesos
de regressão obtidos na Análise Factorial Confirmatória (AFC) que testou a
adequação dos dados ao modelo proposto pelos autores da versão original.
Quadro 1
Características psicométricas do SWBQp
Os valores obtidos são globalmente favoráveis à consistência interna dos itens
e factores, apresentando a escala total (α=0,88) a escala ambiental 0,84, a
transcendental 0,89, a comunitária 0,74 e a pessoal 0,75.
No quadro 1, apresentam-se ainda os pesos de regressão obtidos na AFC que
testou a adequação dos dados ao modelo original do SWBQ (Figura 1). Todos os
itens se encontram moderada a fortemente saturados nas escalas, variando entre
0,40 e 0,90.
Salienta-se que os valores de correlação item-factor (0,33), o alfa da escala
sem o item (0,77) e o peso de regressão (0,40) do item 9 sugerem a necessidade
de reformulação do seu conteúdo.
Uma apreciação comparativa entre as dimensões, sugere que a dimensão
transcendental do BEE será a mais sólida e as escalas pessoal e comunitária as
menos consistentes.
Validade Factorial (AFC) do SWBQp
O modelo de 4 factores correlacionados, proposto pelos autores, foi testado
através de uma análise factorial confirmatória (Arbuckle, 2005). Verificando-se
a normalidade da distribuição, utilizou-se o método da Máxima Verosimilhança.
Para a análise da qualidade do modelo, utilizaram-se os índices de ajustamento
Comparative Fit Index (CFI) e Root Mean Square Error of Approximation (RMSEA).
O CFIavalia a adequação do modelo hipotético em comparação com o pior
(independente) modelo. Valores próximos de zero indicam que o modelo proposto
não significa uma melhoria em relação ao pior modelo (Byrne, 2001). Segundo
Bentler e Bonett (1980), índices de ajustamento CFI superiores a 0,90 indicam
que a solução extraída é boa e valores de RMSEA inferiores a 0,10 indicam uma
solução adequada. A solução encontrada apresenta qualidades de ajustamento
aceitáveis com Qui2/df=2,803 (< 5 ajustamento aceitável; Marsh & Hocevar,
1985), p<0.0001, CFI=0.92 e RMSEA=0.06 (p=0.001). Estes resultados permitem
confirmar globalmente o modelo sugerido por Gomez e Fisher (2003).
Inter-correlações entre as escalas do SWBQp
A análise das inter-correlações entre as escalas (Quadro 2) revelou que se
encontram todas significativamente correlacionadas (p<0.01), com valores de
correlação oscilando entre R=0,29 (comunitária e transcendental) e R=0,67
(pessoal e comunitário).
Quadro 2
Matriz de inter-correlações das dimensões do
SWBQp
DISCUSSÃO
Os objectivos deste trabalho consistiram no desenvolvimento de uma versão
portuguesa do Spiritual Well-being Questionnaire (SWBQ; Gomez & Fisher,
2003) e num primeiro estudo da sua validação.
No seu conjunto, os resultados obtidos permitiram verificar que esta versão
portuguesa do Questionário de Bem-estar Espiritual (SWBQp) apresenta
características psicométricas bastante satisfatórias, quer em termos da
confirmação da sua estrutura factorial, quer relativamente aos bons índices de
consistência interna das escalas e da grande maioria dos itens que as
constituem.
Os resultados das análises da consistência interna dos itens e dos pesos de
regressão na análise confirmatória sugerem, no entanto, a vantagem em se
realizarem alterações à formulação do item 9 “auto-consciência” (item 9-
pessoal). Outros dois itens, “admiração e respeito pela criação ou origem do
universo” (item 6–trans-cendental) e “confiar nos outros” (item 8-comunitária),
poderão ainda ganhar com a reformulação do seu conteúdo de forma a torná-los
melhores contributos para a solidez factorial da escala. Do ponto de vista
desta análise da qualidade dos itens, estes nossos resultados corroboram aliás
algumas das conclusões extraídas pelos próprios autores nos estudos originais
(Gomez & Fisher, 2005a). Tal facto reforça a nossa sugestão para a sua
alteração também na versão portuguesa, em posteriores estudos a desenvolver
para a melhoria das qualidades psicométricas deste questionário.
Uma apreciação comparativa entre os domínios, sugere que a dimensão
transcendentaldo BEE será a mais sólida e as escalas pessoale comunitáriaas
menos consistentes.