Intervenção educativa na diabetes mellitus
Intervenção educativa na diabetes mellitus
Educational intervention in diabetes mellitus
A Diabetes Mellitus tipo 2 (DM2) é uma doença crónica em expansão em todo o
mundo, que provoca alterações ao nível do quotidiano e nas relações individuais
e interpessoais das pessoas que dela são portadoras, a qual pode acompanhar-se
de grande sofrimento psicológico e forte impacto familiar e social na vida de
muitos pacientes.
É caracterizada por níveis de insulina endógena normais, deprimidos ou
elevados, porém inadequados para superar a resistência à insulina, tendo como
resultado a hiperglicemia. O indivíduo com DM2, se não for adequadamente
tratado e controlado, com o passar dos tempos, pode desenvolver alterações
progressivas na retina, rins, nervos periféricos e desencadear lesões
ateroscleróticas do coração, membros periféricos e cérebro (Brasil, 2009).
A DM2 é considerada umas das principais causas de morte e a incidência e a
prevalência estão a aumentar em todo o mundo. Em Portugal, a prevalência autor
referida obtida pelo Inquérito Nacional de Saúde, realizado em 2006, é de 8,2%
(Portugal, 2008). No Brasil, em 2008, segundo dados da Vigilânciade Fatores de
Risco e Proteção para Doenças Crónicas, a prevalência autor referida foi de
5,2% (Brasil, 2009). Assim, esta patologia grave e em aumento crescente tem um
grande impacto na saúde pública destes países, implicando problemas sociais -
diminuição da qualidade de vida e sobrevida, contribuição para o surgimento de
outras doenças e dificuldades económicas - redução da produtividade e altos
custos de tratamento (Brasil, 2009; Portugal, 2008).
O tratamento inclui o auto cuidado, como terapia nutricional, medicações,
exercícios, monitoração da glicose sanguínea e educação em saúde (Ada, 2010).
O auto cuidado refere-se às ações e práticas realizadas pelas pessoas e
famílias em benefício da sua própria saúde, na prevenção de doenças e no
tratamento dos sintomas, sem supervisão médica formal. O autocuidado baseia-se
na crença de que cada pessoa é capaz de cuidar da sua saúde, de forma
individual, de proteger o seu bem-estar físico, mental e social, de compreender
as suas ações, de prevenir doenças, de satisfazer necessidades físicas e
psicológicas ou de se automedicar.
A educação em saúde, um dos pilares da promoção do autocuidado em DM2, deve ser
uma atividade planeada, objetivando criar condições para produzir mudanças de
comportamentos em relação à saúde. Caso seja pautada exclusivamente em
conhecimentos científicos, não resulta numa mudança de comportamentos,
considerando-se que esses comportamentos traduzem perceções, valores,
representações simbólicas, relações de poder, crenças e sentimentos
(Gazzinelli, Gazzinelli, Reis, & Penna, 2005).
Nessa direção, os aspectos bio-psico-sócio-culturais devem ser considerados,
assim como os factores emocionais e a sua influência na adesão ao tratamento e,
igualmente, a sensação de bem estar e os desejos pessoais, respeitando os
aspetos subjetivos, como as crenças e as atitudes. Com efeito, os indivíduos e
os grupos desenvolvem sentimentos, crenças, ideias e representações sobre a
saúde, a doença, sobre as formas de cuidar, que influenciam os comportamentos e
as práticas de cuidados (Ramos, 2007).
Uma das formas de se aprofundar a visão subjetiva da pessoa com DM2 é
identificar as suas representações sociais. Estas são entendidas como os
conhecimentos específicos, os saberes do senso comum que orientam a acção, a
comunicação e a compreensão do contexto social, material ou simbólico (Jodelet,
1993).
Grande parte dos comportamentos corresponde a representações, quer de forma
controlada ou automática, quer de forma consciente ou não consciente. Para
entender essa relação, é importante distinguir os comportamentos situacionais
dos representacionais. Nos comportamentos situacionais, as caraterísticas do
contexto e do momento são mais salientes e dirigem o comportamento; o papel das
mediações cognitivo-avaliativas é mínimo e o papel dos fatores situacionais
encontra-se maximizado. Já os comportamentos representacionais são
determinados, no mínimo, pela situação concreta na qual ocorrem e, no máximo,
por fatores pré-situacionais, que revelam o nível das atitudes e das
representações. Quando se fala da funcionalidade das representações enquanto
orientadoras dos comportamentos, estamos nos referindo aos comportamentos
representacionais (Vala, 2006).
Ao planear-se uma intervenção educativa em DM2, que tenha impacto sobre o
comportamento, as representações sociais devem ser levadas em consideração,
pois muitas vezes funcionam como obstáculos epistemológicos, bloqueando a
evolução da aprendizagem. Segundo Bachelard (1996), um novo conhecimento ocorre
quase sempre pela rejeição de conhecimentos anteriores e defronta-se com um
certo número de obstáculos, que não constituem falta de conhecimento, mas, pelo
contrário, são conhecimentos antigos, enraízados pelo tempo, que resistem à
instalação de novas conceções que ameaçam a estabilidade intelectual de quem
detém esse conhecimento.
A educação assim compreendida configura-se com uma mediação para uma
aprendizagem, que torne as pessoas capazes de viver a vida nas suas distintas
etapas e de lidar com as limitações impostas pela doença, considerando as
interações entre as dimensões políticas, económicas, sociais e culturais.
Essa abordagem garante a efetividade do cuidado, a adesão ao tratamento e a
autonomia da pessoa com ênfase no seu em poderamento, objetivos das
intervenções educativas em diabetes, propostas pelos Ministérios da Saúde de
Portugal e do Brasil (Brasil, 2009; Portugal, 2008). Em consonância com essas
propostas, em 2006, o ProgramaNacional de Prevenção e Controlo da Diabetes de
Portugal divulgou as estratégias de intervenção educativa pautadas na formação
contínua, na motivação, na aprendizagem com base na resolução de problemas e na
avaliação do ensino e da aprendizagem (Portugal, 2008). De modo similar, no
Brasil, em 2007, foram desenvolvidas as EstratégiasNacionais para a Educação em
Saúde para o Autocuidado em Diabetes, com ênfase em abordagens pró-ativas,
planeadas e baseadas na população (Brasil, 2009).
Para que o Brasil e Portugal implementem estas estratégias, os profissionais de
cuidados de saúde primários devem ser sensibilizados para a flexibilização dos
saberes e práticas de saúde, para que possam atuar com criatividade, senso
crítico e competência nas ações educativas referentes ao autocuidado em DM2.
As pessoas com DM2 que participam ativamente do tratamento, assistidas por uma
equipa capaz de fornecer os recursos, as orientações e o apoio necessários,
podem alcançar o melhor nível de glicemia. Proporcionar a essas pessoas as
ferramentas necessárias para o controlo glicémico é uma importante meta do
tratamento, com a finalidade de retardar ou interromper as complicações micro e
macrovasculares da enfermidade, ao mesmo tempo, minimizando a hiperglicemia e o
ganho excessivo de peso (Ada, 2010).
Os modelos de educação centrados na autogestão da DM2 ajudam as pessoas a tomar
decisões para autocontrolar os cuidados e otimizar o controlo metabólico,
prevenindo e administrando as complicações e maximizando a qualidade de vida
(Mulcahy et al., 2003). Assim, ao planear intervenções educativas em DM2, é
fundamental utilizar teorias de aprendizagem que tenham como foco a mudança de
comportamentos de autocuidado.
Teorias de aprendizagem com enfoque em comportamentos de saúde
As teorias de aprendizagem com enfoque na mudança comportamental, abordadas
neste estudo, classificam-se em cognitiva, comportamental e cognitivo-
comportamental.
Na teoria cognitiva, o ser humano é visto como um ser que constrói os seus
significados sobre os factos e, portanto, constrói a sua própria realidade
(Bahis & Navolar, 2004). A pessoa aprende a identificar, a analisar e a
modificar os seus pensamentos disfuncionais, os quais podem ocorrer tanto em
relação ao conteúdo cognitivo propriamente dito, como em relação ao processo
cognitivo, a fim de produzir alívio de sintomas (Bahis & Navolar, 2004;
Beck & Alford, 2000). Os pensamentos disfuncionais ' crenças de desamparo,
desamor e desvalor (Kaplan, Sadockk, & Grebb, 1992) influenciam o
desenvolvimento das crenças intermediárias ' atitudes, regras e suposições
(Beck & Alford, 2000), forma que o indivíduo encontrou para diminuir o
sofrimento causado pelas crenças centrais.
Na teoria comportamental, o objeto de estudo, a interação entre o
comportamento-ambiente e a unidade de análise é a relação resposta-
consequência. Em pesquisas experimentais, o comportamento é definido como uma
variável dependente e os fatores do ambiente como variáveis independentes. A
análise de um determinado comportamento individual é conduzida no sentido de se
observar o comportamento em questão, controlando as variáveis que afetam o
comportamento. Esta teoria envolve tecnologias comportamentais aplicadas, tais
como ensino programado, ensino individualizado, terapia comportamental, entre
outros métodos (Matos & Tomanari, 2002).
Na teoria cognitivo-comportamental é utilizado estratégias comportamentais e
processos cognitivos, com o objetivo de levar à mudança comportamental. Esta
teoria compartilha de três pressupostos fundamentais: a cognição afeta o
comportamento por meio da alteração de modos de pensamentos idiossincráticos e
disfuncionais; a atividade cognitiva pode ser monitorizada e alterada; a
mudança comportamental almejada pode ser efetuada por meio da mudança
cognitiva. Uma variedade de teorias cognitivo-comportamentais ' comportamental
racional-emotiva, treinamento de autoinstrução, reestruturação racional
sistemática, autocontrolo, resolução de problemas e acção racional - é
empregada em intervenções para mudança de comportamentos de saúde (Dobson &
Dozois, 2006).
Os comportamentos de saúde são relacionados com o estado de saúde do indivíduo
e têm por objetivo impedir o aparecimento da doença. Estima-se que 50% da
mortalidade das dez principais causas de morte se deve aos comportamentos dos
indivíduos (Ogden, 2004). Os fatores sociais, genéticos, emocionais, os
sintomas percebidos, as crenças dos doentes e dos profissionais da saúde
permitem predizer os comportamentos de saúde (Leventhal, Benyamin, Brownlee,
Leventhal, & Patrick-Miller, 1985). Grande parte das investigações que têm
como objetivo predizer comportamentos de saúde dão ênfase às crenças de saúde e
doença. Assim, diferentes aspetos das crenças sobre a doença, como
determinantes dos comportamentos de saúde, foram integrados em modelos
estruturados de crenças e comportamentos de saúde (Ogden, 2004; Ramos, 2004).
Os modelos apresentados aplicam a teoria cognitivo-comportamental, utilizando
tanto os processos cognitivos, alterando pensamentos, interpretações,
pressupostos, como as estratégias comportamentais, com fins de mudança
comportamental.
Modelos de crenças e comportamentos de saúde
O modelo de crenças na saúde baseia-se na premissa de que o comportamento de
saúde é determinado por crenças ou perceções pessoais sobre a doença e pelas
estratégias que devem estar disponíveis para diminuir a sua ocorrência. O
indivíduo necessita de acreditar que é suscetível à enfermidade e que a sua
ocorrência deverá ter pelo menos moderada implicação nalgum componente da sua
vida e também acreditar nos benefícios de tais mudanças (Peyrot & Rubin,
2007).
A auto eficácia foi incorporada neste modelo, juntamente com sugestões de
acção, fatores motivacionais ou modificáveis. Segundo Bandura (1977), a
autoeficácia refere-se à confiança na própria capacidade de realizar
determinados comportamentos de saúde, em detrimento de outros. Geralmente, as
pessoas não tentam fazer uma coisa nova porque elas pensam que não são capazes.
Além dessas crenças de saúde, devem-se considerar as crenças de atitudes que
também podem influenciar o comportamento, sendo essa uma das limitações desse
modelo.
O modelo da motivação para a proteção afirma que a gravidade, a vulnerabilidade
e o medo estão relacionados com a avaliação da ameaça e que a eficácia da
resposta e a autoeficácia estão relacionadas com a avaliação de coping, isto é,
com a avaliação das suas próprias capacidades para lidar com a doença (Rogers,
1985).
Outros modelos de cognição social, como o comportamento planeado e da abordagem
do processo de acção em saúde, colocam a pessoa com as suas representações
individuais no seu contexto social e cultural (Ogden, 2004). Segundo Deakin,
McShare, Cade, & Williams (2008) modelos de cognição social tendem a
produzir resultados mais positivos.
O modelo do comportamento planeado defende que as intenções deveriam ser
concetualizadas como planos de acção para atingir os objetivos comportamentais.
As intenções resultam das atitudes em relação aos comportamentos e das crenças
sobre o resultado desse comportamento, da norma subjetiva para se ter um dado
comportamento e da avaliação da motivação e do controlo comportamental
percecionado (Ajzen & Madden, 1986).
O modelo da abordagem do processo de acção em saúde sugere que a adoção, a
iniciação e a manutenção de comportamentos de saúde devem ser explicitamente
concebidas como um processo que consiste em duas fases: processos de motivação
pré-intencional que conduzem a uma intenção comportamental e processos de
volição pós-intencionais que levam a comportamentos de saúde real (Schwarzer,
2008).
Modelo proposto para intervenção educativa individual na DM2
O tratamento efetivo da DM2 depende quase que exclusivamente da pessoa que vive
com a enfermidade. Ela exerce o controlo glicémico quando conta com o
conhecimento, as habilidades, as atitudes e também a consciência necessária
para influenciar a sua conduta e consequentemente a melhoria na sua saúde
(Funnel et al., 1991). Para que as pessoas sejam capazes de realizar
comportamentos de autocuidado, os modelos de mudança comportamental oriundos
das ciências sociais são relevantes, pois utilizam uma ou mais teorias e
contemplam as categorias intenção (causa para a mudança comportamental), os
fatores motivacionais que predispõem para a acção (necessidades, benefícios
percebidos, expectativas dos resultados), o incentivo (evento que predispõe as
pessoas para a acção, a inibição (incluem a ausência de pré-requisitos para a
ação e a presença de obstáculos) e as crenças de saúde.
As crenças, no modelo proposto serão substituídas pelas representações sociais,
pois esse conceito ultrapassa a noção das crenças, conhecimentos, opiniões,
atitudes, referindo-se à organização mental que inclui todas essas dimensões do
pensamento coletivo (Silva, 2004).
As representações sociais são fenómenos cognitivos, que além de uma perspetiva
construtivista, têm também o enfoque interacionista, pois o social tem o
estatuto de fenómeno estruturante da génese dessa teoria e são considerados ao
mesmo tempo, como produto de uma atividade de apropriação da realidade exterior
e como processo de elaboração psicológica e social da realidade (Jodelet,
1989). As representações sociais são teorias sociais práticas sobre objetos
relevantes na vida dos grupos que permitem a organização significante do real,
servem como guia de ação para entender os comportamentos, uma vez que modelam e
constituem os elementos do contexto no qual ocorrem (Vala, 2006).
Moscovici (2004), ao propor as representações sociais como objeto de estudo,
supera o paradigma positivista que elimina da realidade psicológica e social a
dimensão simbólica e, também, a teoria behaviorista de explicação do
comportamento humano por meio do estímulo-resposta, pois o estímulo e a
resposta resultam da atividade construtivista do homem.
Para a elaboração da intervenção educativa individual selecionou-se adotar a
abordagem do processo de acção em saúde, ilustrada na Figura_1.
Esse modelo articula com o enfoque construtivista-interacionista da teoria de
Moscovici, ao levar em consideração, na fase motivacional, as representações
sociais sobre as contingências de saúde que influenciarão no comportamento
desejado e as representações sociais referentes aos resultados esperados e à
perceção de risco.
Além disso, este modelo contempla, na fase de motivação, a intenção como um
processo decisório pelo qual um indivíduo poderá adotar uma ação preventiva ou
alterar comportamentos de risco em favor de outros. A fase volitiva abrange o
processo de implementação dos comportamentos que a pessoa realmente tem a
intenção de mudar, segmentada nas etapas da iniciativa, manutenção e
recuperação. Nessa fase, propõe-se a inclusão da resolução de problemas, treino
em habilidades de enfrentamento, projetado para auxiliar a pessoa a enfrentar
várias situações estressantes e problemáticas decorrentes do conviver com a
DM2. A autoeficácia percebida é imprescindível em todas as fases do processo de
mudança de comportamento distinguindo entre acção de eficácia, coping de
autoeficácia e recuperação da autoeficácia.
Nesse contexto, este estudo tem como objetivo apresentar as teorias e modelos
de aprendizagem, com enfoque nos comportamentos de saúde, e propor uma
intervenção educativa individual em DM2, pautada nas representações sociais
para os utentes de cuidados primários de saúde.
MÉTODO
Trata-se de um estudo qualitativo, desenvolvido numa Unidade Básica de Saúde
(UBS) de BeloHorizonte, Minas Gerais, Brasil, em 2010. Selecionou-se o modelo
da abordagem do processo de acção em saúde, pois este dialoga com as
representações sociais, para a implantação da intervenção educativa, após o
estudo das teorias de aprendizagem e de modelos de crenças e comportamentos de
saúde. A intervenção educativa foi proposta para os utentes com diagnóstico de
DM 2, levantados dos registos clínicos da UBS, excluindo-se aqueles com
complicações crónicas da doença. Os utentes que aceitaram participar da
pesquisa totalizam 34, sendo 23 do sexo feminino, idade variando de 53 a 80
anos, com idade média de 65 anos, e 11 do sexo masculino, de 40 a 76 anos, com
idade média de 66 anos.
Estes participantes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido,
aprovado pelos Comités de Ética e Pesquisa da Universidade Federal de Minas
Gerais e da Secretaria Municipal da Saúde da Prefeitura de Belo Horizonte,
pelos pareceres 061.0.410.203/09 e 0061.0410.203-09A, respetivamente.
Primeiramente, foram coletados os dados sócio-demográficos ' idade, ocupação,
renda familiar, escolaridade, estado civil e os dados clínicos ' tempo de
diagnóstico em DM 2, uso de medicamentos, prática de atividade física e outras
enfermidades referidas - e antropométricos ' peso, altura e circunferência
abdominal.
Em seguida, iniciaram-se as entrevistas, gravando-as no programa de computador
Free Audio Editor 2009®.Utilizou-se um roteiro semi-estruturado, contendo três
perguntas. As duas primeiras foram baseadas na associação livre de palavras,
pois essa técnica permite evidenciar o universo semântico do objeto estudado,
assim como a sua dimensão imagética, de forma mais rápida e dinâmica que outros
métodos com igual objetivo (Abric, 2001).
Com o objetivo de tentar captar pensamentos e sentimentos mais espontâneos
relacionados à identidade e à alimentação das pessoas com DM 2, solicitou-se
aos sujeitos que proferissem cinco palavras ou expressões, após serem
estimulados pelas duas questões indutoras: Quandovocê pensa eu sou diabético,
o que vem à sua mente?; Quando você pensa em alimentação do diabético, o que
vem à sua mente? Logo após, foi solicitado que apontassem a evocação
considerada mais importante, com a respetiva justificação. Com a finalidade de
complementar os dados das representações da alimentação associados à prática
alimentar, perguntou-se aos participantes: Comovocê se sente em relação à sua
alimentação?
As entrevistas foram transcritas na íntegra, constituindo o corpus da pesquisa.
A leitura flutuante do corpus permitiu a codificação dos dados brutos,
transformados de forma organizada e agregado sem unidades, identificados por
categorias. Os dados das entrevistas descritos por categorias foram analisados
utilizando a Análise do Conteúdo Categorial proposta por Bardin (2010), que
consiste na descrição, análise e interpretação do discurso, visando buscar o
que se esconde sob a aparente realidade da comunicação. Utilizaram-se a Teoria
da Representação Social (Moscovici, 2012) e a Teoria da Identidade Social
(Deschamps & Moliner, 2009) como fundamentos teóricos.
Para demonstrar o modelo, utilizou-se o estudo de caso, selecionando uma
participante do sexo feminino, com idade igual ou superior a 60 anos, sexo e
faixa de idade em que o DM2 é mais prevalente. Os discursos obtidos nas
entrevistas ilustraram as fases do modelo proposto. Outros dados sócio-
demográficos, clínicos, bioquímicos e antropométricos complementaram o
entendimento da dimensão da DM2 no contexto bio-psico-sócio-cultural em que se
vive. A participante é dona-de-casa, casada, renda familiar de 3 salários-
mínimos, cursou o ensino básico completo, foi diagnosticada com DM2 há 5 anos,
toma hipoglicemiante oral e medicamento para a hipertensão arterial. Os valores
da hemoglobina glicada (7%) e colesterol (164 mg/dL) são adequados e do
triglicerídeo (160 mg/dL) ligeiramente aumentado, índice de massa corporal
(34,61 kg/m²) e circunferência abdominal elevados (104 cm).
RESULTADOS
Ao aplicar o modelo proposto, da abordagem no processo de acção em saúde torna-
se necessário compreender as representações sociais das pessoas com DM2, nas
questões envolvidas com a identidade de ser uma pessoa com DM2, e com o
universo simbólico da alimentação, para que o processo da educação referente ao
autocuidado seja eficaz.
Entre os diversos tipos de autocuidado, a alimentação é uma questão reconhecida
como um dos principais problemas para as pessoas com DM2, quanto à adaptação às
recomendações dietéticas, dificuldade e limitações de nunca mais poder comer e
beber normalmente como todos os outros e ao controlo permanente de desejos,
sensações e ansiedades (Anderson, Goddard, Garcia, Guzman, & Vasquez
(1998).
As práticas alimentares das pessoas incluem o componente psicológico ' as
representações identitárias, o componente científico, o componente não
científico divulgado pelo senso comum ' as representações sociais da
alimentação (Motta & Boog, 1984).
As representações identitárias dos usuários com DM2 da atenção primária
estudadas constituíram-se pelas diferentes formas de ser, identificadas a
partir dos discursos pessoais. Assim, há aqueles que se julgam normais e,
portanto, em condições de realizar com equilíbrio as atividades de autocuidado
e autocontrolo requeridas, porque se adaptaram ao quotidiano de convivência com
a doença crónica. Há os que se representam por aceitar a doença, ao lidar com
a integração da condição crónica do DM2 no estilo de vida. Por outro lado, há
participantes que se representam inconformados, reagem ou reclamam da
submissão das normas, não se conformando aos comportamentos de autocuidado
requeridos. Há ainda aqueles que pensam ter uma vida carregada de
dificuldades, ao tentar colocar em prática os comportamentos desejados de
autocuidado.
As representações da alimentação das pessoas com DM2, construídas nas
interações sociais, foram pautadas pelos princípios qualitativos e/ou
quantitativos da alimentação saudável, prescritos pelos profissionais da saúde
ou divulgadas pelos mediacom a finalidade de obter o controlo glicémico
adequado. Assim, há aqueles que julgam que a pessoa com DM2 deve comer
saudável. Outros, de forma fragmentada, pautam-se pelo comer verduras e
frutas, evitar doces e comer pouco. Outras categorias pautaram na negação
do que se pode comer, não comer de tudo, não comer muito e não seguir o
plano alimentar.
A participante estudada possui crenças de que é normal e julga comer
saudável. Sabe-se que essas representações dão conta do que pensa a pessoa e
que influenciam a construção cognitiva dos planos de ação (D'Azurilla &
Nezu, 2006).
Os comportamentos relacionados ao autocuidado alimentar da participante,
fortemente marcados por representações sociais, ilustram o modelo da abordagem
no processo de acção em saúde, descrito no Quadro_1. Nota-se pelos discursos
apresentados que a participante possui a intenção em emagrecer, porém falta-lhe
autoeficácia. Assim as representações sociais da percepção de risco e dos
resultados esperados devem ser avaliadas na fase motivacional, conforme o
modelo proposto.
Depois de firmada a intenção de adesão ao tratamento, na fase volitiva,
conforme descrita no Quadro_2, a acção de mudança deverá ser planeada com base
na identificação do real problema da participante, que é ficar muito tempo sem
comer. O emagrecimento desejado pela participante é uma meta a ser atingida em
longo prazo, para que possa diminuir as complicações metabólicas
características do DM2. Sabe-se que a obesidade poderá levar ao aumento da
resistência insulínica em indivíduos com grandes depósitos de gordura,
localizados na região central, avaliados pela circunferência abdominal
(Pereiraet al., 2003).
No planeamento da acção, nas etapas de iniciação, manutenção e recuperação,
sugere-se aplicar a resolução de problemas. Esta técnica possui caráter
educativo, através do qual o indivíduo tenta identificar ou descobrir soluções
efetivas ou adaptativas para determinados problemas encontrados na vida
quotidiana. Após a identificação das barreiras e da autoeficácia, formula-se as
estratégias para atingir o objetivo.
DISCUSSÃO
A participante relata que tentou várias vezes emagrecer e encontrou
dificuldades. Assim pode defender-se a tese a favor de uma provável interação,
entre os obstáculos para a auto gestão e a inadequada aplicação das habilidades
para o enfrentamento de problemas. Para enfrentar obstáculos, a auto eficácia,
definida por Bandura (1977) como a confiança na própria capacidade de realizar
determinados comportamentos de autocuidado, deverá estar presente. Para
desenvolver a autoeficácia, recomenda-se identificar, no discurso da
participante, os problemas referentes à DM2, que ela consegue resolver no seu
quotidiano, conforme relato:
Eu adoro arroz, feijão, verdura, comida simples bem feitinha. Eu faço a minha
comida. Eu gosto de fazer. Para mim tudo está bom. Eu acho que não tem nada que
eu não gosto. Eu sou boa de boca, tenho bom paladar. Eu como pão com margarina
light, tomo leite integral com café com adoçante. Eu faço todo tipo de verdura,
ontem fiz abóbora vermelha, anteontem eu fiz jiló. Se eu faço um legume eu não
faço uma folha. Eu como 2 bananas por dia, laranja e maçã.. Eu evito de fazer
doce.
Reforçar os comportamentos saudáveis, como preparar a sua refeição, comer
margarina light, comer verduras e frutas, substituir o doce pelo adoçante,
segundo Peyrot & Rubin (2007), aumenta a confiança da pessoa nas suas
próprias habilidades de mudança e também reforça a credibilidade do
profissional de saúde.
Verifica-se que a saúde tem significativa importância na vida da participante
e, preocupada em ser saudável, pauta-se pela ideia disseminada na sociedade de
comer coisas sadias (Quadro_1, representações sociais dos resultados
esperados).
Ao estabelecer novas normas de vida com o intuito de conseguir a normatividade,
ela depara-se com as dificuldades de comer somente coisas sadias, optando pelo
equilíbrio de comer de tudo, mas tudo dosado (Quadro_1, representações
sociais da perceção de risco). A alimentação da participante, para ser saudável
conforme é representado no seu discurso depende do equilíbrio entre os aspetos
qualitativos ' comer alimentos adequados que contenham todos os nutrientes
recomendados e os aspetos quantitativos ' comer alimentos na quantidade
recomendada, segundo as necessidades nutricionais e a adequação do organismo.
Segundo Helman (2009), o corpo acometido pelo DM2, para ser saudável, depende
também do equilíbrio harmonioso entre a dieta, o ambiente e as emoções.
Tendo o equilíbrio como principio norteador das suas refeições, ela compartilha
com a família todos os alimentos e não percebe a alimentação como um risco à
sua saúde, fato que ilustra a representação social da percepção do risco. Esta
participante categoriza os alimentos conforme a quantidade de gordura presente
' dos gordurosos, ela come um pedaço menor e dos muito gordurosos, ela não os
come, e conforme também o grupo de alimentos para manter o controle glicêmico:
Ontem eu fiz carne gordurosa, meu marido adora, mas eu procurei comer um
pedaço menor e com menos gordura. O caldo é muito gorduroso e aí eu não comi.
A categorização feita pela participante tem por finalidade selecionar os
alimentos que se podem comer contribuindo para a construção da sua identidade
ser normal e comer coisas sadias. Ao categorizar um determinado objeto, a
pessoa sistematiza o contexto, estrutura de uma forma melhor o mundo em que
vive, simplificando-o, de tal maneira que os acontecimentos possam ser
explicáveis e controlados (Deschamps & Moliner, 2009).
O conhecimento da necessidade de comer menores porções, em não ingerir caldos
gordurosos, em não preparar doces, foi suficiente para essa participante manter
o controlo da DM2, mas não para perder peso. O provável obstáculo
epistemológico que dificulta colocar em prática o objetivo alvo poderá ser a
complexidade do conceito.
Compreender a alimentação adequada para a perda de peso é complexo, pois inclui
duas dimensões complementares e não excludentes. A qualitativa, comer alimentos
adequados que contenham todos os nutrientes recomendados, e a quantitativa,
comer alimentos na quantidade recomendada, segundo as necessidades nutricionais
e a adequação do organismo. Assim, a alimentação das pessoas que desejam perder
peso deverá conter a quantidade adequada de todos os nutrientes, levando em
consideração a necessidade nutricional diminuída (Escudero, 1988).
Devido à complexidade da alimentação, deve-se primeiramente avaliar a
ocorrência desses comportamentos, a frequência e as dificuldades encontradas,
retratadas no seu discurso, conforme primeiro passo, consciência e
identificação dos problemas descrito no Quadro_2.
As recomendações para perder peso envolvem muitos comportamentos, como comer
nas quantidades adequadas, comer nas horas certas, comer os alimentos
adequados, preparar os alimentos adequadamente e não comer alimentos em
excesso. Desta forma o profissional da saúde deve agir como um facilitador para
uma tomada de consciência da situação e ajudar a participante à identificação
do problema de uma forma bem específica, pois algumas pessoas podem estar
desconectados, ou seja, não têm consciência da base do seu problema.
O problema refere-se a qualquer situação ou tarefa que exija resposta para
haver funcionamento adaptativo, mas para a qual não haja resposta efetiva
imediatamente aparente ou disponível para a pessoa, devido à presença de
obstáculos, oriundos no ambiente ou dentro da pessoa (Peyrot & Rubin,
2007). Portanto, o comportamento alvo é comer com a frequência recomendada,
pois ela omite o lanche da manhã, ficando quatro horas sem se alimentar,
conforme relato. Sugere-se iniciar por comer uma fruta no intervalo entre o
desjejum e o almoço.
As pessoas ainda têm a ideia de que se deve comer quando se tem fome, hábito
muito antigo e arraigado, praticado desde a pré-história, em que as pessoas
comiam até ficarem saciadas e, depois, quando a fome aparecia novamente. Comer
nos intervalos entre as refeições, recomendação recente não veiculada pelo
senso comum, distancia-se do que se julga ser uma alimentação saudável.
Assim, recomenda-se que o comportamento seja orientado para o objetivo
acordado, dentro da realidade da participante, ao invés do resultado final, mas
que não seja tão difícil e desafiador que a pessoa fique desanimada ou, também,
que não seja tão fácil de executar (Peyrot & Rubin, 2007).
Evidências demonstram que programas de intervenção educativa pautados em
mudanças de estilo de vida produzem em longo prazo, perdas de peso de 5 a 7% em
relação ao peso inicial e manutenção do controlo metabólico adequado (Ada,
2010).
No segundo passo, após a identificação do problema, este deverá ser mensurável
em quantidade e frequência, baseado em acção concreta e estabelecido de forma
específica.
No terceiro passo, identificam-se as barreiras, os mais importantes
determinantes do atendimento dos objetivos e podem incluir-se as crenças de que
o tratamento não é efetivo, a perda da autoeficácia por fatores emocionais, a
perda das redes sociais de apoio, as perdas de facilidades referentes ao meio
ambiente e recursos de tempo e dinheiro (Peyrot & Rubin, 2007).
A perceção do problema refere-se à tendência geral para reconhecer as
dificuldades quando ocorrem no quotidiano, ao invés de ignorá-las. A atribuição
do problema refere-se às crenças causais da pessoa, em relação aos problemas
que encontra na vida (D'Azurilla & Nezu, 2006). Muitas vezes, as pessoas
não se sentem preparadas para enfrentar as adversidades de uma doença, para se
adaptarem à situação e refugiam-se no problema. Falando de uma maneira prática,
se uma pessoa cumpre a meta de manter o controlo glicémico, mas os outros
problemas pessoais e psicológicos não desaparecem, ela pode voltar a comer em
excesso, fugindo ao confronto com os seus problemas e a realidade (Ferreira
& Meir, 2004).
Para a participante, as crenças iniciais levantadas influenciam a construção
cognitiva dos planos de acção, constituindo um obstáculo para as fases
posteriores. Assim, as representações sociais desta participante, referentes à
percepção de risco e dos resultados esperados ao serem identificadas (Quadro
1), auxiliam no levantamento dos problemas não conscientes. Ao dizer eu tenho
que aceitar o metabolismo do meu organismo para ele ficar mais no nível
normal, ela adaptou-se a uma realidade adversa, caraterizada por um conviver
conturbado em prol de manter o controlo glicémico normal. Como essa enfermidade
não tem cura, o organismo não retorna ao estado anterior de normalidade, mas
ela consegue encontrar o equilíbrio dinâmico entre a saúde e a doença, ao
conviver de forma harmoniosa, com as normas da alimentação que julga ser sadia.
Essa crença poderá ser um obstáculo à colocação do comportamento desejado em
prática ' a perda de peso.
A modificação comportamental referente às práticas dietéticas é uma exigência
imposta pela doença, devendo ser revistos a seleção dos alimentos e o
fracionamento das refeições, o consumo de energia com o fim de diminuir ou
evitar o aumento de peso, o consumo de gorduras trans e saturadas, colesterol e
sódio. Essas modificações melhoram a resistência à insulina, diminuem os níveis
da glicose plasmática, circunferência abdominal e gordura visceral com
adequação dos níveis dos triglicerídeos e colesterol (Ada, 2010).
No quarto passo, formulam-se estratégias para atingir o objetivo de comer
frutas nos intervalos, respeitando as crenças e descobrindo como e porquê elas
representam obstáculos para o sucesso do tratamento. Cada crença envolve uma
estratégia específica.
As normas a serem seguidas pela participante devem ser adaptadas para lidar com
as restrições, proibições e dificuldades que funcionam como uma contingência,
ao colocar em prática o comportamento alvo.
A fase de manutenção da autoeficácia representa as crenças otimistas sobre a
própria capacidade de lidar com os obstáculos que surgem durante o período
dessa fase (Schwarzer, 2008). Segundo D'Azurilla & Nezu (2006), algumas
pessoas podem ter pouca habilidade de resolução de problemas, mas muita
habilidade de implementação de soluções.
Na fase de recuperação, avaliam-se os resultados obtidos, dando o suporte
contínuo. Ao avaliar os resultados na situação problemática, poderá ocorrer que
a solução escolhida não seja efetiva, exigindo que o indivíduo retome os
estágios anteriores na tentativa de encontrar uma melhor solução (D'Azurilla
& Nezu, 2001).
No modelo da abordagem no processo de acção em saúde, a pessoa deve acreditar
na sua própria capacidade de realizar uma acção desejada, caso contrário o
processo de ação não ocorrerá. A intenção deve ser transformada em instruções
detalhadas sobre como executar a ação desejada. A autoeficácia e as
representações sociais influenciam os processos de planeamento, acção,
manutenção e recuperação da mudança de comportamento.
A educação é parte fundamental do tratamento da pessoa com DM2, associado ao
controlo metabólico adequado, a uma dieta alimentar equilibrada e à prática
regular de exercício físico, assim como, a estreita cooperação entre pacientes,
família e profissionais de saúde e à tomada em conta dos factores emocionais
que desempenham grande influência na adesão ao tratamento.
Dessa maneira, as atividades educativas de auto cuidado dos indivíduos que
utilizam os serviços oferecidos pelo sistema único de saúde devem ser adequadas
às caraterísticas da população atendida, contemplando as representações sociais
e aspetos da formação e educação de adultos, na medida em que podem contribuir
para a elaboração de novos entendimentos acerca da realidade da pessoa e para
um melhor enfrentamento da DM2.
Essa patologia exige uma visão holística do processo saúde-doença pelo
profissional de saúde, com a apreensão do sujeito na sua dimensão
biopsicossocial, integrando ações preventivas, promocionais e assistenciais
coordenadas, para uma compreensão mais abrangente da doença e para favorecer
intervenções mais efetivas e a adesão. Revela-se fundamental uma intervenção
estruturada em equipas multidisciplinares para o desenvolvimento eficaz de
programas de educação e promoção da saúde destes pacientes e familiares.