Interrupção Voluntária da Gravidez: Ajustamento Psicológico numa Amostra de
Jovens Portuguesas
O enquadramento legal da interrupção voluntária da gravidez por opção da mulher
até às 10 semanas de gestação (IVG) é uma realidade recente em Portugal (Lei
n.º 16/2007 de 17 de Abril). Os procedimentos utilizados na IVG, tal como a lei
portuguesa os define, são maioritariamente seguros e com impacto físico
reduzido (Rorbye, Nørgaard, & Nilas, 2005). No entanto, o impacto
psicológico desta decisão reprodutiva na mulher tem permanecido menos claro na
literatura, particularmente na população jovem (Evans, 2001; Lipp, 2009).
Do ponto de vista psicológico, a IVG pode ser considerada como uma experiência
com importantes significações e implicações emocionais (Stotland, 2000),
implicações estas que têm vindo a ser amplamente estudadas internacionalmente.
Contudo, os resultados destes estudos têm vindo a ser divergentes e
contraditórios, oscilando entre escassos ou nenhuns efeitos negativos na saúde
mental da mulher (Broen, Mourn, Bödtker, & Ekeberg, 2005a, 2006) e sequelas
negativas e significativas após a interrupção (Fergusson, Horwood, &
Ridder, 2006; Fergusson, Horwood, & Boden, 2008). Além disso, estes
resultados encontram-se, muitas vezes, contaminados por questões legais,
éticas, ideológicas, por divergências de conceptualizações teóricas e
limitações metodológicas diversas (e.g. amostras pequenas e de conveniência,
grupos de controlo inadequados, medidas com validade e fidedignidade
questionáveis, problemas de operacionalização de variáveis, ausência de
controlo de variáveis significativas) (Adler, David, Major, Roth, Russo, &
Wyatt, 1992; Coleman, 2005; Pires, Araújo Pedrosa, Pereira, & Canavarro, no
prelo).
No que se refere especificamente à população adolescente, os estudos realizados
têm vindo a verificar a ocorrência de reações breves e agudas aquando da
decisão reprodutiva e processo de interrupção (Greydanus & Railsback,
1985), embora, maioritariamente, apoiem a inexistência, a longo prazo, de
efeitos psicológicos negativos em consequência da IVG (Adler et al., 1992;
Cohen & Roth, 1984).
Recentemente, as investigações têm evidenciado a inexistência de diferenças
significativas entre adolescentes mais novas e mais velhas no que concerne ao
ajustamento psicológico após a IVG, verificando-se mesmo melhorias no
ajustamento de todas as jovens avaliadas (Perdersen, 2008; Poggenpoel &
Myburgh, 2002; Pope, Adler, & Tschann, 2001; Quinton, Major, &
Richards, 2001). Contudo, outras investigações têm vindo a considerar a idade
como um fator de risco, uma vez surgem maiores dificuldades de adaptação no
período subsequente à IVG em idades mais novas (Coleman, 2006; Cosme &
Leal, 1998; Fergusson, Horward, & Ridder, 2006). No estudo de Perez-Reyes e
Falk (1973), as adolescentes reportaram níveis significativos de distress
imediato após a IVG. No entanto, revisões destes dados verificaram que estes
efeitos são moderados e transitórios e salientam, ainda, a possível
contribuição de fatores de diversas naturezas (e.g. individuais, contextuais)
para as respostas emocionais negativas observadas (Dagg, 1991; Greydanus &
Railsback, 1985).
Em Portugal, o contexto legal recente da IVG é pautado pela escassez de estudos
que abordam o ajustamento psicológico subsequente à decisão reprodutiva.
Aqueles que existem são, maioritariamente, prévios à legalização, não
refletindo a atual realidade desta prática em Portugal (Cosme & Leal, 1998;
Noya & Leal, 1998; Ouró & Leal, 1998). Por sua vez, os dados mais
recentes são institucionalmente circunscritos, não permitindo obter uma visão
nacional deste fenómeno, e não consideram as especificidades desenvolvimentais
da população jovem (Guedes, 2008; Guedes, Gameiro, & Canavarro, 2010;
Sereno, Leal, & Maroco, 2012).
Neste sentido, o presente estudo procurou caraterizar o ajustamento psicológico
duas a quatro semanas após a IVG numa amostra de jovens provenientes de
diversas regiões de Portugal Continental, por comparação com um grupo de jovens
sexualmente iniciadas e sem história de gravidez, tendo em consideração dois
indicadores: 1) sintomatologia depressiva e 2) qualidade de vida (QdV).
MÉTODO
Participantes
A amostra foi constituída por 128 jovens que realizaram uma interrupção
voluntária da gravidez e um grupo de controlo, constituído por 248 jovens
sexualmente iniciadas e sem história de gravidez. No Quadro_1 constam as
principais características sociodemográficas da amostra. Os dois grupos
revelaram-se equivalentes na sua distribuição quanto à idade e religião.
Contudo, verificaram-se diferenças na escolaridade, estado civil,
características da freguesia de residência e NSE.
Do ponto de vista reprodutivo, apesar de uma pequena percentagem das jovens
referirem que seria uma gravidez desejada, a maioria não planeou a atual
gravidez para esta fase da vida, e uma pequena percentagem tem história de IVG
anterior (cf. Quadro_2).
Material
Foram construídos protocolos de avaliação específicos para os dois grupos,
constituídos por uma ficha de dados sociodemográficos e clínicos e por
questionários de autopreenchimento para avaliar a presença de sintomatologia
depressiva e QdV:
- Ficha de dados sociodemográficos e clínicos: Avalia a informação
sociodemográfica (idade, estado civil, habilitações literárias, profissão), e
clínica (idade gestacional aquando da IVG, complicações obstétricas pós-IVG,
procedimento de IVG).
- Escala de Depressão pós-parto de Edinburgh (EPDS; Cox, Holden, &
Sagovsky, 1987; versão portuguesa: Augusto, Kumar, Calheiros, Matos, &
Figueiredo, 1996; versão traduzida para investigação: Figueiredo, 1997): É um
questionário de autorresposta com 10 itens, numa escala de resposta tipo
Likert, de quatro pontos, de 0 (não, nunca) a 3 (sim, a maioria das vezes), que
avalia a intensidade de sintomas depressivos nos sete dias anteriores ao seu
preenchimento. Pontuações mais elevadas correspondem a maiores níveis de
sintomatologia. Dado que da EPDS não fazem parte itens específicos sobre
questões relacionadas com a maternidade ou com o bebé, esta tem vindo a ser
usada não só na triagem e avaliação de sintomatologia depressiva no período
pós-natal, como também noutras situações, razão pela qual foi integrada no
protocolo do presente estudo. Na presente amostra, o instrumento apresentou um
a de Cronbach de 0,85 para o GIVG e de 0,82 para o GC.
- EUROHIS-QOL-8 (Power, 2003; versão portuguesa: Pereira, Melo, Gameiro, &
Canavarro, 2011): É um instrumento destinado a avaliar a Qualidade de Vidae é
composta por oito itens. O resultado é um índice global, sendo que a um valor
mais elevado corresponde uma melhor perceção da qualidade de vida. Todas as
escalas de resposta têm um formato de cinco pontos, variando, por exemplo,
entre 1 (Nada) e 5 (Completamente). Na presente amostra, este instrumento
apresentou um coeficiente de a de Cronbach de 0,77 para o GIVG e de 0,79 para o
GC.
Procedimento
O presente estudo resulta da conjugação de dois projetos de investigação mais
abrangentes intitulados Gravidez na Adolescência em Portugal: Etiologia,
decisão reprodutiva e adaptação e Interrupção Voluntária da Gravidez em
Portugal: Influência de características desenvolvimentais e fatores
individuais, socioculturais e relacionais na decisão reprodutiva e na
adaptação, que se encontram em curso desde 2008 e 2013, respetivamente. A
recolha de amostra ocorreu entre Maio de 2008 e Abril de 2013, em 23 escolas e
23 serviços de saúde das várias regiões de Portugal Continental, mediante
aprovação das direções das escolas e das Comissões Éticas das instituições de
saúde envolvidas.
Relativamente à recolha de dados do Grupo de interrupção voluntária da
gravidez, a apresentação do estudo foi feita às adolescentes pelo médico, no
final da consulta de interrupção (2ª consulta protocolada ao abrigo da Portaria
nº 741-A/2007 da Lei nº 16/2007, de 17 de Abril). Caso aceitassem participar,
era-lhes pedido para assinarem um consentimento informado, igualmente assinado
pelos seus representantes legais sempre que estas tivessem menos de 16 anos. As
jovens eram instruídas para o autopreenchimento de um conjunto de instrumentos
de avaliação, no decorrer da semana para a qual ficasse marcada a consulta
seguinte (consulta de revisão), momento em que deveriam entregar o protocolo de
avaliação preenchido em envelope fechado.
No que concerne ao Grupo de controlo, a recolha de dados consistiu no
autopreenchimento coletivo de um conjunto de instrumentos de avaliação, em
ambiente de sala de aula, monitorizado pelo técnico responsável pela recolha.
Cumpriram critérios de inclusão para o grupo de controlo jovens: 1) com
compreensão da língua portuguesa adequada, 2) frequência de qualquer ano de
ensino ou utentes de centros de atendimento a jovens, 3) sem história prévia de
gravidez. Para o grupo de interrupção voluntária da gravidez, cumpriram
critérios de inclusão jovens: 1) com compressão da língua portuguesa adequada,
2) interrupção voluntária de uma gravidez ao abrigo da Lei nº 16/2007 de 17 de
Abril, 3) preenchimento do protocolo até à terceira consulta médica.
Numa primeira fase, para a caracterização da amostra, foram calculadas
estatísticas descritivas (frequências, médias e desvios-padrão). Para outras
análises, recorreu-se à estatística inferencial, considerando como variáveis
estatisticamente significativas todas as diferenças com um nível de
significância inferior a 0,05. Foram calculados testes t de Student para a
comparação dos valores médios das variáveis avaliadas entre os dois grupos, e
testes de Qui-Quadrado para comparação de dados categoriais.
Com vista à comparação dos índices de ajustamento entre os grupos, procedeu-se
a análises univariadas da covariância (ANCOVAs), nas quais introduzimos como
co-variáveis as variáveis sociodemográficas que distinguiam os grupos, de forma
a remover dos resultados a variabilidade imputável às mesmas. Todas as análises
foram realizadas no software SPSS, v.17.
RESULTADOS
Sintomatologia depressiva
Verificaram-se diferenças estatisticamente significativas entre os grupos (t
(214,988) = -2,266, p= 0,024), com as jovens que realizaram uma IVG a
apresentarem maiores níveis de sintomatologia depressiva comparativamente ao
grupo de controlo.
Uma vez controlados os efeitos dos indicadores sociodemográficos (NSE, estado
civil e características das freguesias de residência), as diferenças em relação
à sintomatologia depressiva permaneceram significativas (cf. Quadro_3).
Qualidade de Vida
No que se refere à QdV, as jovens que realizaram uma IVG evidenciaram uma menor
QdV, comparativamente ao grupo controlo (t(246,781)= 3,292, p= 0,001).
Quando controlados os efeitos dos indicadores sociodemográficos, continuaram a
verificar-se diferenças estatisticamente significativas em relação à QdV (cf.
Quadro_4).
DISCUSSÃO
O presente estudo teve como principal objetivo avaliar a presença de
sintomatologia depressiva e os níveis de QdV de uma amostra de jovens
portuguesas após a realização de uma IVG, por comparação com jovens sexualmente
iniciadas e sem história de gravidez. Os resultados revelaram maiores níveis de
sintomatologia depressiva e menor qualidade de vida nas jovens que realizaram
uma IVG, por comparação com as jovens do grupo de controlo. Estes dados têm
importantes contribuições para a investigação e práticas futuras no âmbito da
prevenção e da promoção de linhas de ação desenvolvimentalmente adaptadas.
Os resultados obtidos corroboraram conclusões prévias acerca da existência de
dificuldades de adaptação no período pós-aborto em jovens (Bracken, Klermen,
& Grossman, 1974; Coleman, 2006; Cosme & Leal, 1998; Denny, 2001;
Fergusson, Horward, & Ridder, 2006; Franz & Reardon, 1992; Speckhard
& Rue, 1992), dado que as jovens que realizaram uma IVG apresentaram
maiores níveis de sintomatologia depressiva e menor QdV duas a quatro semanas
após a IVG, quando comparadas com jovens sexualmente iniciadas e sem história
de gravidez. Estes resultados mantiveram-se estáveis mesmo após o controlo de
variáveis de cariz sociodemográficas. Em futuras investigações, seria
importante averiguar quais os fatores protetores e/ou de risco que podem
influenciar este ajustamento psicológico subsequente à IVG. Seria igualmente
importante estudar as especificidades desenvolvimentais deste impacto, através
da comparação com adultas que realizaram IVG, no sentido de perceber se a idade
poderá ser também considerada como um fator de risco para este ajustamento
psicológico.
Algumas limitações devem ser consideradas, nomeadamente a natureza transversal
deste estudo, que deve ser considerada na generalização dos resultados. Uma
abordagem longitudinal permitir-nos-ia o esclarecimento da estabilidade
temporal ao nível de ajustamento psicológico destas jovens, no sentido de
averiguar a permanência de efeitos psicológicos negativos a longo prazo ou a
atenuação dos mesmos. Contudo, as condições de recolha de amostra, restritas
pelos requisitos de anonimato e confidencialidade associadas às contingências
legais em vigor, não nos possibilitaram aceder diretamente às participantes e
estabelecer novo contacto após algum tempo da realização da IVG.
Apesar das limitações referidas, os resultados do presente estudo têm
relevantes implicações clínicas, nomeadamente na necessidade de adaptação e
especialização dos serviços que acompanham jovens durante o processo de tomada
de decisão, no sentido de promover uma melhor qualidade ao nível do processo e
adaptação posterior. Assim, surge a necessidade de sensibilizar as equipas
médicas para a monitorização do impacto da IVG nas trajetórias
desenvolvimentais destas jovens e prevenção de consequências negativas, através
da identificação de possíveis indicadores de perturbação emocional. Esta
prevenção pode assentar na construção e implementação de protocolos de triagem
que permitam identificar as jovens com níveis significativos de sintomatologia
depressiva e menor QdV percebida e, posteriormente, na disponibilização de
apoio especializado, promovendo, assim, intervenções multidisciplinares por
parte dos profissionais de saúde.