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EuPTHUHu1645-37942011000200008

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National varietyEu
Year2011
SourceScielo

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Muros do Mediterrâneo: Notas sobre a construção de barreiras nas fronteiras de Ceuta e Melilla Muros do Mediterrâneo: Notas sobre a construção de barreiras nas fronteiras de Ceuta e Melilla Patrick Figueiredo* *Instituto de Ciências Sociais - Universidade de Lisboa patrick.figueiredo@ics.ul.pt

Abstract There are many material cases that shape the frontiers between E.U. and Africa thatdeserve attention. I will consider some theoretical approaches to the fences that are beingbuilt in the territorial boundaries between Ceuta and Melilla's enclaves, distancing theEuropean continent from the Moroccan territory, and thus, from Africa. This tendency toseparate nation-states with walls can be observed in every continent. Despite commercialliberalization and an increasing flow of political speeches that appeal to the freedom ofcirculation, developed countries are also engaged in this movement of barrier proliferationthat checks and controls the circulation of social agents. To better understand the conceptsunderlying these fences, I seek to insert them in the constellation of security apparatusthat shape our late modernity.

Keywords: boundaries, "walls", immigration, Europe, stigma

Entre Agosto e Outubro de 2005, cerca de meio milhar de migrantes subsarianos, que estavam acampados nas imediações dos enclaves espanhóis de Ceuta e Melilla, situados no norte do território marroquino, protagonizaram um intento massivo para escalar valas fronteiriças, e ultrapassar barreiras de alta segurança para entrar em solo europeu2. Mais de quinze pessoas morreram baleadas ou ao caírem de alturas de até seis metros. As autoridades espanholas e marroquinas responsabilizaram-se umas às outras pelos assassinatos. As pessoas que caíram do lado espanhol foram encaminhadas para os Centros de Estancia Temporal deInmigrantes (CETI) de Ceuta e Melilla, enquanto outras tiveram destinos variados de detenção e expulsão. Em Outubro do mesmo ano, uma equipa de técnicos da Comissão Europeia visitou os enclaves de Ceuta e Melilla com o objectivo de redigir um relatório sobre o controlo e a prevenção da imigração ilegal em direcção ao continente europeu (European Commission, 2005). Neste relatório, os redactores afirmam na primeira página que não tratariam dos "acontecimentos trágicos" de Ceuta e Melilla, nem interfeririam na gestão da fronteira por parte dos Estados marroquino e espanhol.

Historicamente disputadas, as Plazas de Soberanía3 vem passando por transformações significativas desde a entrada de Espanha na Comunidade Europeia (CEE), em 1986. A partir do momento em que se efectuou progressivamente a "europeização" administrativa das fronteiras espanholas, o problema da gestão de fluxos fronteiriços passou a ser não somente entre dois Estados-nação, mas também entre dois continentes, o europeu e o africano. Por europeização administrativa entende-se a sobreposição, além das políticas localmente e nacionalmente aplicadas, de imposições vindas da organização peculiar que é a União Europeia, em termos de segurança e gestão de fluxos migratórios no espaço Schengen.

Antes disto, os territórios de soberania espanhola representavam, de certa maneira, resquícios do antigo protectorado espanhol (1912-1956) e das antigas conquistas ultramarinas, cuja expansão começou nesta mesma região do Mediterrâneo. Ceuta fora anexada por Portugal em 1497, porém em 1668, com um primeiro Tratado de Lisboa, a cidade passou a fazer parte do domínio da Coroa espanhola, assim como Melilla, que fora conquistada por Castela em 14974.

Esta conquista obedeceu aos princípios de combate, criação de fronteira e de uma composição social de maioria cristã. Desde a ocupação da fortaleza em Melilla, até ao começo do protectorado, instituiu-se a noção épica de uma fronteira de vanguarda militar frente ao "infiel": Desde o estabelecimento da fortificação espanhola em Melilla, antigo porto fenício, cartaginense, romano e árabe, constitui-se uma larga relação de fronteira entre os habitantes do enclave e as populações rifenhas que o rodeiam. Esta população é conhecida desde fontes antigas como a confederação tribal de Qal'aya (de fala rifenha, uma variante da língua tamazight).

Concretamente, o pequeno enclave se situa no núcleo da tribo de Imazzujan; apesar disto, o mito fundador espanhol refere-se à instalação em 1497 das tropas do duque de Medina Sidonia, dirigidas por Pedro Estopiñan, num espaço abandonado [...] (Dieste, 2010, p. 78).

Se estas conquistas não determinaram o início da expansão transatlântica, elas vieram pelo menos acrescentar aos paradigmas políticos da era medieval uma nova componente: a fronteira5.

A história contemporânea destes dois territórios passou por uma reviravolta recente. Sob efeito da pressão migratória e por causa do aumento consequente da migração irregular, o governo espanhol decidiu, em 1993, cercar as duas cidades com barreiras que, durante os anos noventa e dois mil, não pararam de ser reforçadas e renovadas por novas tecnologias de controlo de fluxos, graças ao financiamento da União Europeia (simultaneamente à formação da Frontex6). Foi num contexto de cooperação económica crescente entre Marrocos e a União Europeia, desde os anos 19907, que começou-se a construção das cercas de Ceuta e Melilla. Enquanto as cercas deveriam servir para a contenção regulada da circulação de migrantes, os pactos de cooperação económica abririam espaços para possíveis implantações industriais e comerciais espanholas e europeias (Ferrer-Gallardo, 2008, p. 305). Em volta de Melilla, as barreiras, altas de três a seis metros, estendem-se por um perímetro de dez quilómetros e meio. Em torno de Ceuta, acerca dupla atinge quase oito quilómetros, ao longo dos quais se dispõem mais de trezentos agentes de polícia e seiscentos oficiais da Guarda Civil espanhola. Tanto em Ceuta como em Melilla, as barreiras são complementadas por lâminas e arames farpados, com vista a dissuadir qualquer tentativa clandestina de passar por cima. Sem contar o aparato de segurança multinacional que se desdobra na costa mediterrânica, a vigilância local é garantida por cento e seis câmaras de vídeo, e um sistema de escuta e de captação de movimentos por raios infra-vermelhos (Saddiki, 2009). O fenómeno merece um tratamento sistemático para tentar compreender em que medida, enquanto processo histórico, a construção destas barreiras faz parte de um movimento global, e a que contradições sociais específicas correspondem estas grades. Partindo de uma perspectiva global, é preciso considerar as várias dimensões destas fronteiras cujos impactos ultrapassam as suas materialidades localmente circunscritas, delimitando simbolicamente uma separação mais vasta entre dois continentes, o europeu e o africano.

Fortificação da fronteira em Ceuta (Fotografia do autor)

Barreiras O Mediterrâneo não é apenas uma divisão política, demográfica e económica, mas também uma fronteira moral e ideológica que pode ser percebida como sendo a barreira entre, de um lado, democracia e secularismo, e de outro, fanatismo religioso e regimes totalitários. Esta percepção é culturalmente parcial, visto que a distinção ou separação entre "nós" liberais e "eles" fanáticos opera-se apenas de um dos lados de uma fronteira ideológica popularizada pela teoria do choque de civilizações (Roeder, 2003). Por outro lado, o Mediterrâneo também é mar que une socialmente, politicamente, culturalmente e economicamente uma série de processos históricos nas regiões circundantes8. As cercas de Ceuta e Melilla simbolizam uma separação. Por mais que não se limitem a esta única função, as grades de Ceuta e Melilla visam controlar fluxos de actores não estatais, nomeadamente o contrabando de mercadorias, e a imigração irregular de pessoas que querem chegar a território europeu. Esta é a característica essencial de todas as barreiras que ultimamente se têm erguido em muitas outras fronteiras pelo mundo: a ameaça, o movimento a ser contido, não é o de Estados estrangeiros, mas sobretudo o de pessoas que se movimentam por conta própria. A permissão de certos tipos de circulação em detrimento de outros é garantida pelos check points disseminados na fronteira.

A reconfiguração funcional das fronteiras terrestres entre Espanha e Marrocos caracteriza-se deste modo por uma permeabilidade selectiva. De um lado, a maior permeabilidade de fluxos de capitais, e de outro, um maior controlo de certo tipo de migração laboral, no contexto da implementação do System of IntegratedExternal Surveillance (SIVE), que vigia toda a costa do sul de Espanha, desde 2002, e as Ilhas Canárias desde 2005. Estes equipamentos são capazes de denunciar qualquer movimento por sensores que detectam batimentos cardíacos à distância. A implementação do sistema SIVE nas costas mediterrânicas não implicou uma diminuição da circulação de pateras9, mas pelo contrário, incentivou mudanças contínuas de trajectórias. Houve um aumento de rotas pelo Oceano Atlântico (MIGREUROP, 2004), principalmente em direcção às Ilhas Canárias em 2006, que desde então recrudesceu substancialmente até este ano de 2011.

Nunca existiu uma linha política europeia única quanto ao regime de fronteiras, que é melhor descrito enquanto negociação compósita entre instâncias políticas que operam em diferentes paradigmas, dando uma multiplicidade de percepções (Berg & Ehin, 2006, p. 54). Entre as características das fronteiras exteriores da União Europeia, podemos identificar modos de governo e graus de abertura. Nos "modos de governo", temos as seguintes instituições correspondentes: a "Política Regional Europeia", o "Espaço Schengen", e a "Política de Vizinhança Europeia"10. Estas três instituições se sobrepõem, revelando contradições internas na gestão das fronteiras. A Política Regional Europeia representa o paradigma político mais antigo, com implicações directas para o regime de fronteiras. Esta política tem origem no Tratado de Roma de 195711, porém seria posta em prática a partir de 1975 para controlar disparidades económicas e regular os mercados dos países periféricos. A política regional tem implicações nas fronteiras pois incentiva a promoção do desenvolvimento socioeconómico em regiões periféricas, através de iniciativas de contactos transfronteiriços. Nesta perspectiva da política regional, o regime de fronteiras emergente estaria alinhado com o objectivo estratégico de cooperação transnacional para reduzir desigualdades e exclusões. A política de "corte de fronteiras" seria assim substituída pela política de "costura de fronteiras", vendo a zona de fronteira como factor de integração. Um primeiro problema é o facto de que a política regional europeia para as fronteiras mais poder a actores regionais, fazendo com que aumentem os conflitos entre autoridades nacionais ' com as suas prioridades securitárias ' e demandas locais para um regime de fronteiras mais aberto.

O acordo de Schengen, assinado em 1985, não era no início integralmente europeu, pois excluía alguns países da União Europeia. Progressivamente, foi amplamente adquirido como princípio da própria União. O acordo trouxe um segundo paradigma político com maiores implicações para as fronteiras. Assim como a Política Regional, o acordo de Schengen tem o objectivo de fortalecer o mercado único europeu. Porém, a ênfase não é a coesão, mas a segurança. Para reduzir os riscos associados à livre circulação de pessoas, a União Europeia aumentou o controlo nas fronteiras externas, harmonizou os vistos, as políticas de asilo e migração, criou o Sistema de Informação de Schengen (SIS), e implementou uma cooperação entre as polícias e autoridades jurídicas nacionais (Berg & Ehin, 2006, p. 59)12. O incentivo para uma política europeia de imigração pressupõe fechar firmemente as portas dos fundos, enquanto as da frente ficam parcialmente abertas para a migração legal que possa ser de interesse para a Europa, levando em consideração o grau de desenvolvimento do país de origem do imigrante, assim como o seu grau de especialização laboral.

portanto um movimento em direcção a uma regulação supranacional das fronteiras externas: a europeização da legislação sobre fronteiras ficou evidente com a incorporação do tratado de Schengen enquanto acquis communautaire indispensável para os Estados membros, com a proposta fundamental de estabelecer um "corpo comum de fronteira europeia", que não seria mais controlado pelas autoridades nacionais. Esta ideia de corpo comum encontrou oposição por parte de vários países membros. No entanto, as origens intergovernamentais do tratado deixam claros os compromissos nacionais para a implementação desta rede de segurança, e cada país é responsável pela protecção das suas fronteiras. Assim, a vigilância nas fronteiras tem uma sobreposição de políticas nacionais e supranacionais. Para garantir este factor comunitário, é pela Frontex que a União Europeia financia o treino e as operações de controlo migratório nas fronteiras de cada novo Estado membro.

O terceiro paradigma é a Política de Vizinhança implantada desde 2003 pela Comissão Europeia. Em contraste com Schengen, que pressupõe o reforço de fronteiras espacialmente delineadas, esta nova política que se vem adicionar às duas anteriores as fronteiras como sendo móveis e fluidas. Ela oferece aos Estados vizinhos financiamentos em infra-estruturas, pedindo em troca reformas tangíveis nas suas políticas internas. Os "condicionalismos" são noções centrais desta política de vizinhança, onde a abertura e a suavização das fronteiras seriam recompensas aos vizinhos que se mostrem tendencialmente cooperantes com a União Europeia: vizinhos bem comportados e politicamente docilizados ganham a recompensa de melhores oportunidades de mercado num ambiente político de estabilidade. portanto um alargamento dos limites legais da União, sem que isto implique uma abertura institucional significativa. A política de vizinhança fornece uma margem de manobra maior para o alcance dos objectivos geopolíticos da União Europeia, com esquemas de governabilidade externa. Por um lado, isto mostra um maior reconhecimento de uma interdependência política entre vizinhos. Por outro, esta iniciativa parece ser conduzida por um sentimento de insegurança: com o alargamento, novas zonas vizinhas que são consideradas como potencialmente perigosas, e a política de vizinhança é um esforço para controlar esta insegurança directamente nos países que não são membros da União Europeia13.

Para ilustrar aquilo que pode ser compreendido como graus de abertura ou uma permeabilidade controlada e/ou selectiva na fronteira, olhemos para um caso paralelo ao dos enclaves de Ceuta e Melilla, mas que representa, pelo contrário, uma extensão do império britânico no Mediterrâneo: Gibraltar. A soberania contraditória de Gibraltar deriva do mesmo facto de se tratar de um enclave no meio de um país estrangeiro. Nos discursos de mito nacional britânico, Gibraltar "tornou-se metáfora de solidez e permanência" (Stanton, 1994, p. 174). Em algum sentido, Gibraltar representou para os britânicos o começo das suas missões imperiais, assim como teria sido a conquista de Ceuta para os países ibéricos, e por extensão, para a Europa. A identidade de Gibraltar ainda se debate com este aspecto British de ser, pela formação de uma população de origem migratória complexa, que não se declara ferozmente atraída pela coroa inglesa. Entre muitas comunidades de trabalhadores, a marroquina é actualmente uma das mais activas. Se tivermos em conta o passado de Gibraltar, notamos as mesmas qualificações atribuídas aos espanhóis, que vindos das cidades andaluzas vizinhas, ofereciam grande parte da força de trabalho vendida em Gibraltar nos finais do século XIX: O trabalho convicto [de britânicos] que tem sido usado em Gibraltar chegava ao seu fim em 1875 por razões económicas. Trabalhadores livres espanhóis eram duas vezes mais produtivos que os convictos e os salários que eles recebiam somavam menos do que os custos para manter os convictos. Esta força de trabalho adicional espanhola, assim como os transportadores de carvão, vinham da cidade de La Línea, do outro lado da fronteira [...] La Línea era a classe trabalhadora do distrito rico de Gibraltar [...] os salários que esses homens recebiam eram cerca de um quinto dos níveis correspondentes na Bretanha, mas eram no entanto bons para o padrão da região, sendo três vezes maior do que a renda usual para o trabalho agrícola na Andaluzia (Stanton, 1994, p. 180).

É importante prestar atenção a este paralelo estrutural: esta função do trabalho de La Línea para Gibraltar nos finais do século XIX é a mesma do que a das cidades marroquinas vizinhas dos enclaves de Ceuta e Melilla actuais. Mais além, podemos identificar um paralelo idêntico que não envolve a venda da força de trabalho, mas de mercadorias contrabandeadas: No final do século até o governo britânico começou a se preocupar com a escala do problema [do contrabando]. Em 1876, soube-se que vinha de Gibraltar quatro vezes mais tabaco ilegalmente para Espanha do que aquele distribuído pelo próprio governo espanhol. Dizia-se na altura que a introdução de uma taxa no tabaco de Gibraltar seria um meio efectivo para combater o contrabando. Mas a indústria de tabaco gerava cerca de 1450 empregos em Gibraltar naquela altura, e qualquer medida directa contra os contrabandistas de tabaco arruinaria a própria indústria local (Stanton, 1994, p. 183).

Consideremos portanto estes pontos comuns como recuos esclarecedores que podem nos ajudar a compreender as funções estruturais desempenhadas pelas cercas de Ceuta e Melilla no quotidiano dos trabalhadores locais, comerciantes, e para os aparelhos de Estado nacionais ou supranacionais.

Enquanto a política nacional espanhola reforça as barreiras europeias, ela não pode ignorar os apelos para uma abertura minimamente controlada para a interacção das populações locais que circulam nos dois lados nacionais das fronteiras de Ceuta e Melilla. A Espanha negociou a implementação de um visto excepcional para o fluxo fronteiriço nestes dois enclaves, dando a oportunidade aos habitantes das cidades marroquinas de Tetuán e Nador de obterem uma permissão de residência de um ano nos enclaves espanhóis, sem lhes conceder visto automático para entrar no continente europeu. Isto facilita o movimento diário de passagem na fronteira de vários trabalhadores que transportam mercadorias de um lado para o outro, e trazem a sua força de trabalho para estas cidades espanholas. Esta abertura não declarada não é produto de um acordo bilateral entre Espanha e Marrocos, mas sim de uma negociação entre o Estado espanhol e as autoridades europeias que controlam as fronteiras continentais. Como uma consequência deste "chapéu-de-chuva jurídico" que é a circulação entre Tetuán e Ceuta e entre Nador e Melilla, uma grande migração interna em Marrocos, de pessoas que pretendem instalar-se em Tetuán para poderem ter a oportunidade deste "passe-livre" (Ferrer-Gallardo, 2008, p. 307).

Os preços de passaportes marroquinos com morada em Tetuán ou Nador, no mercado negro, também aumentaram vertiginosamente.

Assim como na fronteira EUA-México, as fronteiras de Ceuta e Melilla têm o duplo objectivo de garantir os benefícios da globalização, e ao mesmo tempo de controlar os efeitos nefastos desta mesma globalização, que seriam os fluxos transnacionais indesejáveis. Não , nesta organização política de fronteiras, nenhuma incoerência ou contradição teórica de duplo objectivo: a garantia de uma estrutura capitalista e o controlo espacial de actores não estatais fazem parte de uma mesma lógica, onde as relações de poder se encontram, de maneira inerente e em escala internacional, no espaço da contradição entre trabalho e capital. Enquanto territórios únicos que providenciam fronteiras terrestres entre a União Europeia e a África, os enclaves de Ceuta e Melilla também são ímanes para candidatos à migração irregular vindos de todo o continente africano (é importante lembrar que a maior parte desta migração é oriunda de países subsarianos). Apesar da crescente militarização nestas fronteiras, as tentativas de passagem persistem e de inúmeras maneiras. Além do assalto colectivo, estratégias como esconder-se dentro de veículos que passam pelos postos fronteiriços, abrir buracos nas grades, e principalmente entrar a nado numa das baías, partindo de uma praia marroquina (MIGREUROP, 2009).

Mas a noção de permeabilidade evidencia-se também pela circulação de bens. O estatuto de porto livre de Ceuta e Melilla, e uma localização estratégica, dão vazão a uma "hipertrofia" do sector comercial. A economia informal garante uma circulação mais abrangente de bens entre os enclaves e as cidades marroquinas mais próximas. Em Ceuta, não regulamento estrito que regule a circulação de bens entre os dois países. O facto de o Estado marroquino perceber a fronteira deste enclave como sendo ilegítima não permitiu o estabelecimento de interacções comerciais inteiramente "normalizadas". Três tipos de práticas de contrabando existem portanto nestas fronteiras: um contrabando de tabaco, álcool e electrodomésticos passados esporadicamente por trabalhadores estrangeiros, estudantes, e principalmente espanhóis ou marroquinos que têm facilidades para entrar e sair dos enclaves; um "contrabando de subsistência", que consiste num atravessar ilícito de bens de consumo como chocolate, leite, perfumes ou baterias, por parte de marroquinos que habitam as cidades mais próximas dos enclaves, e atravessam a fronteira várias vezes por dia; e por último, um contrabando de larga escala de equipamentos electrónicos, feito por redes de profissionais (Hajjaji, 1986).

Se a implementação da zona de livre comércio não tem consequências económicas que vão muito além de impactos na própria localidade, o interesse europeu pela contenção da imigração irregular atinge grande parte dos países africanos.

Nesta longa duração de fronteiras que tiveram ao longo do tempo várias funções diferentes, criou-se, por políticas económicas sucessivas, a distinção entre dois mundos, que no entanto estão cada vez mais interdependentes no nível da troca e dos contactos culturais. No seio desta interdependência, porém, persistem conflitos na ordem do discurso histórico que impõem uma certa visão patrimonial mais agressiva nestas zonas de fronteira, para legitimar a presença espanhola em cidades que têm suas soberanias contestadas14. É por isso que a tensão comercial e as trocas subsequentes se desdobram numa paisagem de conflito político entre "dois mundos" vizinhos.

A "fortaleza europeia" A "fortaleza europeia" é um termo de denúncia política contra abusos policiais nas novas fronteiras europeias, que mais tarde seria aplicado nas ciências sociais como conceito. Sua validade epistemológica é no entanto discutível, por nunca ter sido totalmente aprovado e/ou benquisto em certos círculos académicos, que consideram que o termo não contempla os meios mais flexíveis de controlo migratório, ou a própria agência dos migrantes irregulares. O uso do termo neste artigo tem por objectivo lançar o debate sobre a sua validade científica, e logo, a legitimidade do seu uso em espaços que não são inteiramente políticos. Além das barreiras materiais, as fronteiras da "fortaleza europeia" são também invisíveis. Diluem-se através da complexidade dos aparelhos burocráticos, dos sistemas de vigilância, das reformas legislativas das identidades nacionais, na invisibilidade social do trabalhador "sem papéis", na ilegalização destes últimos, na racialização dos problemas sociais (Calavita, 2005), na tecnologia crescente dos modos de identificação biométrica (Frois, 2008), e na estigmatização activa, por parte de alguns sectores políticos, de certas pessoas como fazendo parte de uma "horda de invasores" que vieram corromper um corpo social que, supostamente, teria sido puro ou alguma vez intocado. Para pôr em perspectiva a construção das barreiras de Ceuta e Melilla com toda uma lógica continental, e global, contextualizo alguns aspectos securitários da política de controlo de fluxos por parte de organizações estatais e supranacionais. A maior parte destes controlos são efectuados nos "nós" críticos de trânsitos internacionais, como os portos, as estações ferroviárias, rodoviárias, e os aeroportos. Podemos relacionar esta situação com a disposição actual dos Centros de Estancia Temporal de Inmigrantes15 de Ceuta e Melilla, onde desdobram-se diversas actividades de intervenções militares e terapêuticas, sempre no exercício de confinamento de migrantes que, uma vez interceptados pelas autoridades espanholas, ficam à espera da obtenção de um estatuto de refugiado para não serem repatriados, vivendo num limbo jurídico: eles estão suspensos numa fase transitória de identidade (Mountz, Wright, Miyares and Bailey, 2002). Este não é um caso que se restringe aos enclaves de Ceuta e Melilla ou às Ilhas Canárias, mas que se encontra em diversos pontos de abrangência da chamada "fortaleza europeia":

Campos_de_refugiados_e_centros_de_detenção_de_imigrantes_irregulares_espalhados na_Europa_e_na_zona_do_Mediterrâneo.

Existe uma tendência comum, na Europa do sul e que é particular, de países que ao se alinharem nas políticas de integração europeia, passaram por uma mudança estrutural em termos de gestão de fluxos: esses países que eram origens de emigração, passaram rapidamente a ser acolhedores de imigrantes. Uma segunda constatação é que essas mesmas nações vêem-se a administrar um novo fluxo de migrantes oriundos de suas antigas colónias: trata-se da "presença em antigas metrópoles imperiais de populações diaspóricas das outras colônias e que, juntamente com seus filhos e os filhos de seus filhos, funcionam como incômodos "lembretes do império"" (Feldman-Bianco, 2002, p. 386).

Não se pode, contudo, confundir precedentes mais longínquos de qualquer política de fronteira como estando directamente relacionada com o que podemos chamar de "fortaleza europeia". Esta refere-se explicitamente ao fechamento das fronteiras exteriores do continente numa política de segurança supranacional.

Mais especificamente, duas características devem ser consideradas para a compreensão da "fortaleza europeia", e da função das barreiras de Ceuta e Melilla enquanto dispositivos materiais da sua fortificação. Primeiramente, desde a implantação do espaço Schengen, que é completamente adquirido pelos Estados membros a partir de 1999, os casos mais recorrentes de mortes por tentativa de chegada clandestina no continente europeu concentram-se sobretudo na região do Mediterrâneo16. Em segundo lugar, com a política de vizinhança mais recente, as implicações dos controlos de fluxos passaram geograficamente muito além das fronteiras imediatas do território europeu. Incapaz de controlar as suas fronteiras contra fluxos transnacionais indesejáveis, a União Europeia empreende a passagem da função de controlo de fluxos para países terceiros, de onde a maioria dos imigrantes são oriundos: uma externalização das fronteiras, que alcança países subsarianos. Ao assinarem acordos para o "co- desenvolvimento", esses países vêem-se forçados a controlar uma imigração que é tratada como ilegal antes mesmo de existir17. Nesta mesma lógica, o "estatuto avançado" oferecido ao Estado marroquino em 2008 faz parte de uma recompensa dada pelo empenho das suas forças policiais nacionais no combate contra a imigração ilegal18. Se o primeiro-ministro espanhol José Luis Zapatero felicitou-se em 2009 pela redução de mais da metade de chegadas de "ilegais" pelo mar em Espanha, isto não significa que haja menos mortes no deserto ou maus tratos dispensados por agentes de outros Estados. Com a remodelação constante das rotas de fluxos, que se adaptam a cada nova medida de segurança, é possível perguntar-nos em que medida os muros de Ceuta e Melilla não se tornam, no aspecto do controlo migratório, cada vez mais obsoletos. Mudando as rotas, envolvendo polícias multinacionais, intervenções militares e "preventivas", a externalização das fronteiras constitui uma fortificação europeia cujas barreiras são um elemento que se torna cada vez menos prático e mais simbólico. Uma outra dinâmica é encontrada no entanto numa série de campos de refugiados e de detenção de imigrantes irregulares, lugares estes onde a distinção entre refúgio e detenção apaga-se nas práticas de confinamentos, legais ou ilegais.

Fronteiras da soberania Para compreender as implicações da fronteira entre Marrocos e Espanha, não podemos ignorar as implicações históricas da presença colonial da Espanha em Marrocos (1912-1956). Na primeira década do século XX, o sultanato entrou em crise devido a dívidas externas e pressões estrangeiras. Muitos países europeus foram associados à partilha diplomática da tragédia marroquina, mas foram os Estados de França e Espanha que receberam partes de Marrocos sob formas de protectorados (Wesseling, 2009, p. 266). Neste período, os territórios de Ceuta e Melilla separavam os territórios norte-africanos sob soberania espanhola, do norte marroquino sob "protecção" espanhola. Esta distinção explica em parte por que estes enclaves permaneceram sob domínio espanhol depois do fim do protectorado franco-espanhol de Marrocos, em 1956. Porém, uma ambiguidade deriva do facto de as fronteiras terem sido "atenuadas" durante todo o período do protectorado, quando de facto as duas cidades não se distinguiam do resto do território da "África espanhola". Desde então, Ceuta e Melilla são vistos pelo Estado marroquino como sendo parte integral do território marroquino, e que estão por ser descolonizados.

Nos últimos dez anos, o Estado marroquino tem erguido a voz contra a presença espanhola no território19. Para Espanha, não se trata de uma ocupação, visto a ancestralidade da presença castelhana desde os períodos da Reconquista. Em Abril de 2010, uma tensão diplomática ocorrera quando a aduana marroquina pôs, num edifício oficial na fronteira com Melilla, um cartaz a classificar a cidade como sendo ocupada: Redigido em árabe e em castelhano, o cartaz adverte aos melillenses da necessidade de se renovar a licença de importação dos seus veículos em Marrocos, sob pena de pagar uma multa. Mas a palavra "ocupada" para descrever a situação de Melilla provocou as iras do Governo da cidade e do Partido Popular20 (tradução do autor).

Em ambos os casos, parece haver pouco "diálogo" entre administradores estatais.

porém, através dos meios de comunicação social, discursos unilaterais em cada país, acusando o vizinho de estar equivocado quanto ao estatuto geopolítico das cidades. Estes discursos unilaterais ficam ainda mais patentes ao analisarmos duas versões jornalísticas de um mesmo "facto", também recente: a visita dos reis de Espanha aos enclaves em Novembro de 2007. Os administradores de Ceuta e Melilla muito tempo pediam uma visita do rei de Espanha aos enclaves, para reafirmar a soberania nacional num acto simbólico cujo protagonista é a coroa: [...] os presidentes das duas cidades autónomas manifestavam seu interesse pela visita dos monarcas em Ceuta e Melilla. Uma reclamação e um convite foram realizados cada vez que tiveram a oportunidade. Inclusive deixaram-no patente no encontro que tiveram com o Rei no palácio da Zarzuela, em Novembro de 2005, quando as avalanches de subsarianos sobre as duas cidades revelaram a entidade do problema migratório [...]21 (tradução do autor).

Neste mesmo artigo, o jornal lembra que a visita prevista do rei espanhol aos enclaves poderia eventualmente provocar descontentamento na sociedade marroquina. Mas lembra também que era por este motivo que a viagem se tinha mantido até então secreta. E assegura, citando o porta-voz da coroa, que esta visita não causaria problemas na "boa relação de Marrocos com Espanha". O tom não é o mesmo do lado de um jornal marroquino de grande circulação: Um "não" franco e maciço à visita controversa iniciada ontem a Sebta, pelo rei de Espanha Juan Carlos nos presídios marroquinos ocupados. Foi o que expressou, ontem, o Estado marroquino, governo, deputados, conselheiros e actores associativos inclusive. O tom foi dado, ontem, pelos eleitos do Parlamento, deputados e conselheiros, que, no âmbito de um "sit-in" em frente à embaixada de Espanha em Rabat [...], entregaram uma carta de protesto ao embaixador espanhol Luis Planas Puchades. "Enquanto parte do Estado marroquino, denunciamos esta visita provocadora do Rei de Espanha Juan Carlos às cidades marroquinas ocupadas de Sebta e Melilla", podemos ler nesta carta. "Esta visita ofende os sentimentos marroquinos, e afecta gravemente as relações de boa vizinhança entre as duas coroas", põem em guarda os deputados, que reafirmaram na mesma ocasião a ligação com todos os marroquinos das cidades ocupadas22 (tradução do autor).

Temos portanto duas versões, discordantes, que giram em torno do que podemos chamar de questão de soberania. Do lado marroquino, a oposição à presença espanhola nas cidades eleva o teor do problema de soberania, ao classificá-la de "incongruência colonial", invocando o anacronismo de uma África espanhola.

Esta não é a primeira vez que ocorreu um incidente diplomático tornado público a nível internacional, como no caso de Perejil em 2002. Como Melilla, Ceuta, e algumas ilhas em águas marroquinas, Perejil (situada no estreito de Gibraltar, a 200 metros da costa marroquina) é outra possessão espanhola que escapou da descolonização. Assim como na crise das ilhas Falklands e Malvinas23, mas em miniatura, o problema aconteceu quando tropas de elite espanholas desembarcaram na ilha desmilitarizada de Perejil e capturaram uma dúzia de soldados marroquinos que ali tinham estabelecido um posto de observação alguns dias antes (Hansen, 2004, p. 54). Com uma breve importância mediática, o caso de Perejil teve pouca importância diplomática. No entanto, é um caso significativo da persistência de desentendimentos clássicos em torno de territórios de fronteira.

Analisando o debate jornalístico de forma objectiva, é possível anotar alguns pontos para a compreensão da estrutura política na região. Podemos notar, do Mediterrâneo até ao Saara ocidental, uma sequência em cadeia de problemas de jurisdição territorial. Do Saara ocidental, que foi domínio espanhol (Marks, 1976)24, aos enclaves de Ceuta, Melilla e Gibraltar, uma série de conflitos diplomáticos que não são independentes uns dos outros. A hesitação por parte do governo espanhol em mediar uma solução para o exílio da activista sarauí Aminatu Haidar em 2010 deveu-se, por um lado, ao facto de Espanha possuir territórios contestados no espaço marroquino e, por outro, à dependência crescente, por parte de Espanha e da União Europeia, das acções das autoridades marroquinas para a contenção dos fluxos migratórios no seu território25. Daqui deriva a segunda grelha de análise dessas matérias mediáticas, tão diferentes em tratar de um mesmo acontecimento, que foi a visita do rei de Espanha a Ceuta e Melilla. Cada discurso nacional, espanhol e marroquino, aponta para problemas diferentes, como se não estivesse a tratar de uma mesma situação. Nos diversos textos temos como cenário um problema de soberania, legítimo ou contestado.

Novos tipos de fronteira A função das cercas de Ceuta e Melilla é a de impedir qualquer circulação irregular, ou seja, a de controlar o tráfico em geral (de armas, de drogas e mercadorias contrabandeadas) e a entrada em certo território de pessoas indesejadas por conta da sua nacionalidade e consequentemente de uma suposta propensão ao crime e à vadiagem. Face a este discurso, Wendy Brown (2009) contrapõe duas vertentes: uma primeira vertente é a de que as barreiras construídas em diversas fronteiras, nesta mesma função de impedir a circulação de agentes indesejáveis, são ineficientes. Os poderes reguladores fazem com que as barreiras sirvam de filtro com maior ou menor abertura, consoante for a necessidade da economia flutuante, seja ela formal ou informal. Em segundo lugar, e mais importante, é que o aparecimento exponencial de barreiras no globo terrestre seria um sintoma de "desassociação" entre a "soberania" mais clássica e o modelo político de Estado-nação. Neste sentido, segundo Wendy Brown, as barreiras simbolizam uma viragem histórica nas relações políticas, em que o modelo cultural hegemónico, o Estado-nação, está a transformar-se: a soberania que antes lhe estava associada está lentamente a deslocar-se para se pôr na sujeição da economia política ou da religião. Estes fenómenos culturais e sociais não estatais posicionam-se acima de qualquer norma jurídica, pela qual têm desprezo. Encontramos várias barricadas, e passagens, que separam homens de negócios de grandes voos, viajantes ordinários, e aspirantes à entrada julgados suspeitos por causa da sua origem ou aparência. Esta "estratificação dos fluxos" de viajantes articula-se numa abertura de geometria variável das barreiras: enquanto uns têm o benefício de um alargamento de uma espécie de cidadania transnacional, para outros , pelo contrário, uma redução da sua condição de cidadão pelo mesmo processo conjunto de liberalização económica e incremento da segurança nacional (Sparke, 2006, p. 152).

Temos portanto três tipos de processo: abertura e bloqueio; universalização acompanhada de exclusão e estratificação; poder virtual em rede e barricadas físicas. Não entra em questão, como vimos, a defesa da soberania de um Estado frente a uma possível invasão de um Estado-nação vizinho ou inimigo. Essas barreiras têm como alvo actores não estatais e transnacionais, como indivíduos, grupos, organizações, movimentos e indústrias. Como estes muros formam-se muito depois das convenções do tratado de Westphalia (Balibar, 2004), que foram precursoras da futura formação do Estado-nação enquanto modelo global, Wendy Brown classifica-os de sinais de um mundo "pós-westphaliano". Devemos aqui considerar o prefixo "pós", que significa uma situação de posterioridade dentro da qual as condições do passado continuam a configurar o presente. Numa ordem pós-westphaliana não são os Estados soberanos que se encontram excluídos pelas barreiras, mas sim os seus actores não estatais. Neste sentido, seria o enfraquecimento da soberania estatal, e mais precisamente a "disjunção" entre a soberania e o Estado-nação, que forçaria os Estados-nação a construírem estas barreiras (Brown, 2009, p. 17). Num mundo contemporâneo em que aparecem cada vez mais reivindicações independentistas ou até em que se assiste à criação de novos Estados-nação (como por exemplo, o Kosovo), não podemos iludir-nos e considerar que existe uma crise ou queda dos Estados-nação. O argumento central deste artigo é o de que a construção de uma série de barreiras contradiz de forma pragmática a ideia de um declínio do modelo de Estado moderno.

Os fluxos transnacionais (de pessoas, mercadorias, capitais, bens, ideias), a violência e as redes políticas e religiosas minam a soberania, pois as suas características são as de atravessarem fronteiras, mas não . Uma vez atravessadas, essas forças tornam-se potências no interior do território novo: não desterritorialização sem uma reterritorialização posterior. A soberania do Estado-nação também é minada pelo neoliberalismo, que reconhece a soberania das decisões tomadas pelas empresas, substituindo critérios jurídicos e políticos por mercantis, e reduzindo o soberano político ou governante à função de gestor administrativo. Também o é, pelo aumento dos poderes de instituições internacionais como o Fundo Monetário Internacional ou a Organização Mundial da Saúde ou do Comércio. As barreiras específicas de Ceuta e Melilla envolvem constelações pós-nacionais, e separam as zonas ricas das zonas pobres do planeta: o direito e a política são incapazes por si de controlarem as múltiplas potencialidades liberadas pela globalização.

A separação de centros e periferias por barreiras dentro de cada conglomerado urbano é também um problema exponencial tratado por uma nova antropologia social das gated communities (Low, 2003, p. 387). As separações por barreiras materiais destes espaços são uma tendência global (Van Houtum & Pijpers, 2005), e o recurso ao controlo e à vigilância tende a querer remediar uma situação de "ingovernabilidade" (Foucault, 1976, p. 124). Considerando o incremento do aparato de vigilância das barreiras, o desmoronamento da distinção entre controlo interno e controlo externo, entre polícia e exército, entre sujeito e pátria, vigilantes voluntários e Estado, e confusão entre criminosos internos e inimigos externos: a barreira tem esta dimensão irónica de confundir a identidade local enquanto seu objectivo mais declarado seria o de maior delimitação entre o "nós" e o "eles", entre o que é de dentro e o que está fora da nação. Apesar da sua presença física massiva, as novas barreiras funcionam frequentemente na forma de espectáculo, projectando a imagem de um poder político soberano com a sua nação assegurada por estas mesmas fronteiras.

Esta encenação deve-se ao facto de a própria nação, cujo Estado erige a barreira na sua fronteira, depender em certa medida da manutenção destes fluxos que a ultrapassam, como por exemplo a mão-de-obra barata e o comércio informal.

Esta "desassociação" dos poderes soberanos em relação ao Estado-nação compromete não a segurança dos sujeitos, mas também um imaginário de identidade individual e nacional que se apoia nas noções de horizonte e limitação de um espaço cultural. O espaço delimitado pelas fronteiras deve ser um espaço de jurisdição independente: em relação ao exterior, a soberania é poder de autodeterminação, e em relação ao interior, um poder de decisão derivado do contrato social. Contrariamente à ideia aristotélica segundo a qual a vida política seria natural para o homem, e a polis a forma de vida "própria da humanidade", para a teoria do contrato social o "político" nasceria de uma condição ontológica não política, por meios artificias. O contrato social constituiria o fim temporal e o limite espacial da soberania da natureza ou de Deus, e inauguraria uma forma humana no domínio político. Para realizar a sua autonomia, a soberania deve, no plano interno, sujeitar os poderes susceptíveis de rivalizar com ela, ou aniquilá-los. A autonomia do político, expressa na soberania, implica uma pretensão à dominação política ou à contenção de outros poderes, principalmente económicos ou religiosos (Elias, 1978).

A soberania política não é o equivalente do Estado. Ao contrário, é uma formação teológica ou "ficção material", sempre uma "aspiração", mesmo se for irrealizável: "todos os conceitos geradores da teoria moderna de Estado são conceitos teológicos secularizados" (Schmitt, 2008, pp. 46-48). Com um declínio da soberania política, uma "descontracção" de outras forças sociais que enfraquecem a soberania do Estado-nação, que para se defender assume e afirma o seu carácter vigilante de maneira aberta e agressiva, como é o caso das barreiras nas fronteiras.

Uma dessas forças sociais, o capital, aparece como soberano global (Comaroff & Comaroff, 2000): é fonte primordial da organização social; é autónomo, pois não presta contas a ninguém; adapta-se a qualquer forma política ou cultural (Sahlins, 1999); desconhece fronteiras ou territórios. uma ascendência do capital como soberano universal, contra qualquer outra forma de poder. Porém, a sua acção não toma uma forma "decisionista". O aspecto decisionista pode emanar de alguma pessoa ou organização que encarna a soberania política. Neste contexto, os Estados encarnam esta função administrativa da força de contenção, e de coerção. Os Estados não estão enfraquecidos, pelo contrário, reemergem enquanto forma pós-soberana de poder.

Por estes mesmos dispositivos, assistimos a uma "renacionalização" da vida política. Entre todos os aspectos, não nada que incite mais o nacionalismo do que a imagem fantasmagórica de "hordas" de imigrantes a violar as fronteiras nacionais. Se as populações exigem a construção de barreiras nas fronteiras, é porque têm medo: medo de perder a segurança física, material ou identitária. Um sujeito ameaçado é um sujeito reactivo: a barreira encontra-se nesta intersecção entre o Estado e o sujeito.

É neste contexto que, como resposta às ameaças dos fluxos indesejáveis, mas em demanda26, as novas barreiras estatais, entre as quais as de Ceuta e Melilla, militarizam os conflitos contra os quais querem responder. No caso de Ceuta e Melilla, a construção das barreiras mostra como os "conflitos" de segurança normalizados passam para as margens de um território soberano. uma espécie de reconfiguração destas mesmas margens, como nos casos dos muros de Caxemira, nas terras avançadas da Cisjordânia ou na apropriação do Saara ocidental por Marrocos. Esta reconfiguração territorial é também uma performance política, que consiste em teatralizar a solução de problemas mais complexos. Incompetente nos seus objectivos, faz com que os fluxos se adaptem em novas rotas, mais perigosas.

Conclusão As várias dimensões das fronteiras de Ceuta e Melilla, ou seja, nacionais, continentais e culturais, não são fruto da construção recente das suas barreiras, mas têm uma longa história que se inicia com o período da reconquista e da expansão de poderes a partir da península ibérica. No entanto, a construção material de barreiras nestes enclaves participa do contexto de criação de uma Europa face ao continente africano. A união política desta Europa se constrói a conjugar atitudes de abertura e de fechamento das suas fronteiras que podem parecer contraditórias. É dentro desta dinâmica entre encerramento e abertura que uma fortaleza burocrática e cultural foi rapidamente construída com o uso de discursos ancestrais, e métodos modernos de vigilância. Sobrepõem-se, e direccionam-se por outros caminhos, argumentos nacionalistas tanto em Espanha como em Marrocos sobre a disputa destes enclaves, e a gestão burocrática de fronteiras supranacionais cuja tecnologia de vigilância tem o respaldo de interesses europeus. Longe das metrópoles, os corpos são disciplinados, e conjuntos de pessoas são seleccionados através de uma rede montada por aparelhos de Estado com sobressaltos ideológicos conjunturais. Eis que as barreiras construídas nas fronteiras de Ceuta e Melilla não constituem uma situação idêntica às outras, mas numa política de coerção dos movimentos por uma multiplicidade de métodos podemos encontrar uma série de semelhanças estruturais. A existência dessas barreiras em Ceuta e Melilla não contradiz a economia política contemporânea, no sentido em que não está essencialmente contra uma certa lógica de circulação controlada, onde certos fluxos têm privilégio de passagem e permanência por fronteiras, em detrimento de outros.

A afirmação de que imperativos de segurança incitam a fortificação, também é duvidosa. Hoje, a segurança não exige a restrição, mas pelo contrário, a circulação: o alarme e a vigilância são mais importantes do que muros blindados. Eis o sentido das "barreiras" de Ceuta e Melilla, que afinal são grades para se poder ver o que se passa do outro lado.


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