Palavras sobre Mário Murteira III
Palavras sobre Mário Murteira III
Fernando Florêncio*
*Departamento de Ciências da Vida, Universidade de Coimbra, Portugal
Não tenho outra pretensão neste texto senão a de relembrar um professor que me
marcou e que me ajudou a desfazer preconceitos que eu tinha criado acerca da
economia, a sua ciência de eleição. Não foi o professor Mário Murteira quem me
introduziu nos estudos de economia, mas foi ele quem me ensinou a ler a
economia.
A economia, sobretudo a economia política, já tinham entrado na minha vida
desde cedo. No rescaldo do 25 de Abril de 1974, tinha eu então 15 anos, fazia
parte da cartilha da vida estudantil ler Marx e O Capital, assim como Lenine,
Trotsky, Mao, entre outros. No liceu, ninguém queria ser acusado de fascista
nas famosas RGA, nem de herético, coisa que acontecia a quem não sabia pelo
menos algumas noções mínimas das cartilhas marxistas, maoístas ou trotskistas.
Li muito disso, e fartei-me, descontentei-me, e desviei-me para a anarquia,
primeiro pela mão do Bakunin, e depois pela de Proust. Ler não é, obviamente,
compreender, e no meu caso o ter lido muito, em parte não significa mais do que
isso mesmo.
Mas o contacto com a economia, ciência, digamos assim, deu-se pela
obrigatoriedade de ter uma disciplina de Introdução à Economia, na licenciatura
de Antropologia Social, no então somente ISCTE, no ano de 1985. E o que me
afrontou nessa altura foi a econometria, penso eu, pois passámos o ano com
definições (PIB, PIN, e sei lá que mais) e o estudo do orçamento geral do
estado (se é que se chama assim), balança de pagamentos, e mais uma carrega de
noções e modelos que, a nós estudantes de antropologia, provocavam uma
estranheza ácida irritante. Pois aquilo não tinha pessoas e servia para todas
as sociedades. Modelos analíticos que pouco ou nada tinham a ver com a
realidade. Sobretudo essa condição analítica da etceterisparibus, coisa que
sempre me ficou na memória, e que só acentuava a minha dificuldade em entender
como é que se pode entender a mudança de uma única variável e que tudo o resto
se mantenha inalterável. Enfim, problema meu.
A economia com pessoas, a economia com conteúdo sociocultural, ou a economia
social, essa é que me chegou pela mão do professor Mário Murteira, em 1992 no
mestrado em estudos africanos, no ainda então somente ISCTE, numa disciplina
sobre economia africana, mormente dos PALOP. Uma economia sem números, sem
fórmulas modelares, mas com conteúdos e ideias (e ideais) sociais, e com
pessoas. Economia do desenvolvimento, penso que era assim que a designavam, e
que em grande medida respondia às minhas preocupações com as questões de
natureza mais antropológica das relações económicas.
Depois disso fui-me cruzando com ele amiúde, ora pelo ISCTE ou até mesmo em
Maputo, onde nos cruzámos ainda um par de vezes. Sempre interessado no nosso
percurso, o meu e de alguns outros colegas. Sempre disponível para partilhar
ideias e perscrutar opiniões.
Mas do professor Mário Murteira relembro, acima de tudo, uma finíssima ironia
mordaz e uma desconcertante capacidade de questionar certezas e preconceitos.
As minhas seguramente.