Editorial
Editorial
1. No princípio dos anos 60 do século XX, perante a miríade de transformações
que se adivinhavam ou estavam em curso, Georges Gusdorf interrogava Pourquoi
des Professeurs?(1963).
Hoje, neste início do século XXI, perante o agudizar das dificuldades da
escola, os professores voltam a ser os grandes protagonistas dos debates sobre
essa instituição que todos desejam e todos criticam. Um protagonismo que
assenta numa relação simultânea de presença/ausência: (i) presença obsessiva na
responsabilização pelo status quo; (ii) ausência evidente na consideração do
seu papel de actores e autores de novas narrativas e soluções para a escola.
O discurso dos mediaora apresenta a educação e a formação como a salvaᆳção da
Pátriaora responsabiliza a escola e os professores de serem os principais
responsáveis pelo laxismonacional, os baixos índices de aprendizagem dos jovens
e a crise de valores e de saberes da sociedade. As Ciências da Educação são
responsabilizadas pelo fornecimento da base teórica que propiciou esse
descalabrodo sistema educativo português - nas palavras desses sábios
colunistas de opinião que sobre tudo opinam - e desqualificadas,
nomeadamente pela sua identificação com o termo eduquês, nos seus saberes
científicos próprios e contributos específicos para a compreensão e
transformação da escola.
Importa, nomeadamente no plano das revistas científicas, equacionar esta
ofensiva que traz para o plano nacional a postura e os ditames ideológicos do
discurso neoconservador que, tomando como exemplo os EUA, tão bem tem sido
analisado por um sociólogo como Michael Apple. Levantar a pedra, na bela
metáfora de Steve Stoer e Luiza Cortesão, ver para além do discurso mediático e
de um senso comum preguiçoso e comprometido, deve ser uma prioridade, não
apenas para aqueles que se filiam no campo das Ciências da Educação, mas para
todos quantos defendem que a escola continua a ser um espaço público
democrático fundamental para a construção de um mundo, no simbolismo da
expressão de Paulo Freire (esse educador maldito para os críticos do
eduquês),"mais redondo, menos arestoso, mais humano", onde se
materialize essa grande utopia da unidade na diversidadedo ser humano.
2.O número que agora se publica, mesmo sem possuir um dossierespecífico,
apresenta um tema dominante, que abre o conjunto dos artigos: a reforma do
ensino (ou, talvez, mais apropriadamente, da educação) superior, impulsionada
por esse mandato que une todos os países europeus designado por Processo de
Bolonha.
O primeiro artigo, A Identidade do Ensino Superior: a Educação Superior e a
uniᆳversidade,de António M. Magalhães, seguramente um dos nossos mais sólidos
inᆳvestigadores sobre as políticas de educação superior, começa por sublinhar
os principais traços da matriz moderna do ensino superior, para logo se centrar
na análise da questão da sua dissolução narrativa, apresentada como indício da
sua crise de identidade, ou de uma "identidade esquizóide",
presente nas designações de educação terciária, pós-secundária, educação
fundada na investigação, educação vocacional, entre outras. Mas o essencial da
posição do autor situa-se na defesa de que esta situação "requer um
esforço de reflexividade que, ao mesmo tempo que recusa a procura essencialista
de uma 'ideia' de ensino superior, enfatiza a necessidade de
promover uma perspectiva de educação que não soçobre ao pobre paradigma da
adaptabilidade, segundo o qual o critério de utilidade de uma dada instituição
é directamente proporcional à sua capacidade de sobreviver às mudanᆳças
operadas no seu ambiente organizacional".
O segundo artigo, Rede das Instituições de Ensino Superior da União Europeia,de
Vítor P. Crespo, constitui uma fundamentada análise comparada da rede de IES
nos países da União Europeia. Explicitando (e superando) o conjunto de
dificulᆳdades conceptuais que tal empresa implica, o autor conclui que, nos
países com uma dimensão demográfica do mesmo porte, o quociente do número de
estabeᆳlecimentos por milhão de habitantes é essencialmente idêntico,
exceptuando o caso português, onde os correspondentes valores são
significativamente maiores, especialmente no subsistema não universitário.
Vítor P. Crespo, aliando a análise efectuada à sua multifacetada e rica
experiência académica, administrativa e polítiᆳca, apresenta, no final, um
conjunto de cinco sugestões/propostas de acção política dirigidas a todos os
principais responsáveis do sistema de ensino superior (gover
ᆳno, universidades e institutos politécnicos, públicos e privados), visando
permitir que o Processo de Bolonha seja uma oportunidade de racionalização de
uma rede desequilibrada, tendo sempre "em mente a criação de um sistema
abrangente, difeᆳrenciado e de grande qualidade, assim como a criação de áreas
de excelência".
No terceiro artigo,"O Processo de Bolonha e o Sistema Checo de
Educação",Milan Pol apresenta-nos as rápidas e intensas transformações
que as universidades da República Checa vive(ra)m após o processo de
democratização iniciado em 1990 e, agora, da adequação ao Processo de Bolonha.
Os dados coligidos e as opiniões expendidas por este sociólogo da Universidade
de Masaryk, em Brno, constituem uma importante fonte de comparação com a
realidade portuguesa, tanto mais que este país do centro da Europa tem uma
dimensão populacional e um rendimento per capita(ainda) próximo do de Portugal.
O quarto artigo, "Ideias eTendências Educativas no Cenário Escolar.Onde
estamos, para onde Vamos?", de Ernesto Candeias Martins, constitui uma
interessante refleᆳxão sobre as tendências educativas no cenário escolar
actual, realizada a partir da seguinte pergunta: para onde caminha a educação/
formação?O autor responde a essa pergunta, centrando-se em três vectores: o
primeiro constitui a conexão dos professores dinâmicos e preocupados com as
necessidades e problemáticas das novas gerações, o que supõe a recuperação e o
debate dialógico das "velhas e novas ideias' e das propostas
educativas; o segundo, refere-se aos discursos e à sensibilidade em relação ao
educar, ao ensino, à formação ou aprendizagem, isto é, às mudanças, contributos
e investigações; e, o último, abrange a inovação e o desenvolvimento, a
renovação dos movimentos pedagógicos, com expressões organizativas que geram
debates à volta das alternativas democráticas no que diz respeito ao ensino, à
missão e função social da escola, à gestão curricular e aos conteúdos
pedagógicos, modos de ensinar e aprender nos novos públicos e novas profissões,
novos cenários de aprendizagem, novos saberes e culturas.
O quinto artigo, "Uma aproximação à Pedagogia-Educação Social",é de
Andrés Soriano Díaz. Partindo da definição de Pedagogia Social como "uma
ciência pedagógica de carácter teórico-prático, que se refere à socialização do
sujeito, tanto a partir de uma perspectiva normalizada como de situações
especiais (inadaptação social), assim como aos aspectos educativos do trabalho
social", o autor analisa diferentes conceitos e perspectivas desta
disciplina de intervenção social, defendendo, no final, que "só uma
estratégia criativa e inovadora de protecção e educação social poderá evitar o
risco de conviver com situações injustas e conducentes a atitudes violentas, já
que a violência social, em múltiplas ocasiões, é a expressão da insatisfação
sentida por um sector da população que se vê privado da possibilidade de fazer
parte dessa sociedade do bem-estar a que tem direito".
No sexto artigo, "Sociologia da Educação: Uma Análise de Suas Origens e
Desenvolvimento a partir de Um Enfoque da Sociologia do
Conhecimento",Rosilda Arruda Ferreira analisa os aspectos relacionados
com as origens e o desenvolvimento do campo científico da Sociologia da
Educação, tomando como enfoque a Sociologia do Conhecimento, sob uma dupla
perspectiva: como um processo intelectual e como um fenómeno histórico-social.
Tendo o Brasil como ponto de referência, a autora identifica as tendências
teórico-metodológicas de prestígio do campo da Sociologia da Educação para
concluir que, no interior do seu campo científico, convivem teorias voltadas
para a acção quotidiana, em que predominam, por um lado, temas relacionados com
a representação social, a acção do sujeito no quotidiano, e, por outro, teorias
voltadas para o sistema social mais amplo, em que predominam as abordagens dos
nexos entre a estrutura social e as interacções que formam os sujeitos
individuais e colectivos e as desigualdades existentes no sistema educacional.
O sétimo artigo, "Ensino Profissional de Jovens. Um Percurso Escolar
Diferente para a (Re)construção de Projectos de Vida",de Maria Helena
Madeira, constitui mais um contributo da linha de pesquisa "Estado,
Políticas Educativas e Mudança Social" do Observatório de Políticas de
Educação e de Contextos Educativos da Universidade Lusófona. Tendo como base
uma dissertação de mestrado, a autora analisa os motivos e os condicionalismos
presentes nas opções dos jovens por duas modaᆳlidades de ensino profissional: o
Sistema de Aprendizageme as Escolas Profissionais.No artigo são apontadas as
razões que os jovens apresentam como determinantes da sua opção pelo ensino
profissional, onde se destaca a preocupação em obter uma qualificação que
facilite a sua inserção no mercado de trabalho, aliando uma formação
qualificada a uma experiência concreta de trabalho através do estágio. A
satisfação demonstrada pelos jovens pareceu estar relacionada com o sucesso
obtido, com a aquisição de conhecimentos necessários para o desempenho da
proᆳfissão e com a experiência adquirida, permitindo a alguns alunos uma
reconciliação com a escola e a (re)construção de projectos de vida.
Na secção "Diálogos", Manuel Tavares conversa com Júlio Machado
Vaz, conheᆳcido psiquiatra e sexólogo, autor de uma vasta bibliografia e
presença habitual nos grandes meios de comunicação social portugueses, co-
director do mestrado de Sexologia da Universidade Lusófona, sobre sexologia e
educação sexual. Seguᆳramente, uma problemática a desenvolver posteriormente na
Revista Lusófona de Educação.
A secção "Em Debate"retorna com um texto de José B. Duarte,
significativaᆳmente intitulado "A Crítica de Alguns Cientistas à
Pedagogia Actual e a Minha Contestaᆳção,Algo Compreensiva...".O cerne do
texto é a desconstrução da crítica que alguns paladinos do combate às Ciências
da Educação (Filomena Mónica, Carlos Fiolhais, António M. Baptista, entre
outros) fazem a Jean-Jacques Rousseau (e à interpretaᆳção que Boaventura de
Sousa Santos apresenta de alguns dos seus textos). Embora manifestando
"alguma compreensão para com as diatribes" desses autores, José B.
Duarte defende que, "em termos actuais, se o método de descoberta ou de
pesᆳquisa, no rasto de Rousseau, mas também de Dewey e Freinet, é hoje
apresentado como método interessante para desenvolver a autonomia do estudante,
a pedagoᆳgia não o julga exclusivo". Um texto que lembra a necessidade de
ampliar o debate sobre o papel da Pedagogia na escola de hoje.
Em "In Memoriam" é apresentada uma breve mas sentida homenagem a
Stephen R. Stoer, desaparecido do nosso convívio no último dia de 2005. Stephen
Ronald Stoer era professor catedrático da Faculdade de Psicologia e Ciências da
Educação da Universidade do Porto, onde desempenhava(ra) as mais marcantes
responsabiliᆳdades académicas e científicas:coordenador do Centro de
Investigação e Intervenᆳção Educativas, director da revista Educação Sociedade
& Culturas, coordenador do Gabinete de Pós-Graduações e coordenador de
Grupo de Ciências da Educação, que criou e expandiu de modo a torná-lo uma
referência nos planos nacional e internacional.Acompanhou e apoiou a criação e
desenvolvimento do Observatóᆳrio de Políticas de Educação e de Contextos
Educativos da Universidade Lusófona, tendo pertencido, entre 1998 e 2002, à sua
Comissão de Acompanhamento Cienᆳtífico. Era membro, desde o primeiro número, do
Conselho Editorial da RevistaLusófona de Educação. Os textos de António Teodoro
e de José Eustáquio Romão recordam esse companheiro, amigo e solidário.
Na secção "Testemunhos" publica-se uma interessante reflexão de
Leonardo Rocha sobre os caminhos possíveis da formação de professores no quadro
do processo de Bolonha. Escrito em 2005, o autor levanta um conjunto de
desafios que se colocam à formação de professores no contexto global de um
processo voltado para a melhoria das aprendizagens dos nossos jovens,
terminando por apelar a "quem nos governa" para que "não
sacuda outra vez a água do capote" e assuma, com convicção, coragem e
determinação, medidas que normalizem o funcionamento do sistema de ensino num
conjunto de aspecto que elenca no final.
Em "Recensão Temática", Maria José Remédios volta à questão dos
estudos sobre as mulheres, recenseando três livros recentemente publicados no
mercado editorial português: Dicionário no Feminino, séculos XIX-XX(Livros
Horizonte, 2005), Mutilação Genital Feminina(APF, 2005) e As Mulheres na União
Europeia. História, trabalho e emprego(Ela por Ela, 2005). Em "Recensão
Crítica", Filomena Lopes apresenta um dos mais estimulantes livros sobre
os professores e o ofício docente publicados nos últimos anos em Portugal (e no
Brasil): o livro de Luiza Cortesão, Ser Professor: um ofício em vias de
extinção?(Afrontamento, 2000; Cortez, 2001).
Por último, duas das já habituais secções da revista. Em
"Notícias"apresentam-se breves referências à participação de
investigadores do Observatório de Políticas de Educação e de Contextos
Educativos em projectos científicos e em congressos e seminários. Em
"Dissertações" apresentam-se os resumos das dissertações defendidas
entre Setembro e Dezembro de 2006 no âmbito do mestrado em Ciências da Educação
da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias.
Aroeira, Março de 2006
António Teodoro
Revista Lusófona de Educação
Centro de Estudos e Intervenção em Educação e Formação (CeiEF)
Avenida do Campo Grande, nº 376
1749-024 Lisboa
revista.lusofona@gmail.com