Editorial
Editorial
1. Os professores vivem tempos difíceis. Ser professor tornou-se, ainda mais
acentuadamente nos tempos que correm, uma profissão de risco. Alguns destes
tempos difíceis decorrem de factores conjunturais. Outros, resultam de
processos estruturais, onde, aliás, alguns dos sinais conjunturais se inserem e
justificam.
Os factores conjunturais decorrem, prioritariamente, de processos de
racionalização encetados pelos Governos, que têm como centro o equilíbrio das
contas públicas, e que tendem a eleger os professores e as suas associações
sindicais como os principais responsáveis pela fraca competitividade dos
sistemas educativos, medida por estudos comparativos internacionais divulgados
em múltiplos relatórios apresentados por organizações internacionais como a
OCDE.
Estes processos inserem-se em processos mais longos e estruturais, que têm como
centro o que alguns sociólogos consideram uma “epidemia política”, a reforma da
educação (Ball, 2002). Impulsionadas por poderosos agentes globalizadores, de
que a OCDE constitui o mais significativo think tank mundial, as reformas da
educação tornaram-se uma obsessão dos governos nos mais distintos lugares do
sistema mundial, em países com histórias e problemáticas muitas vezes bem
diferentes, e com situações políticas e sociais bem distintas. Três palavras-
chave dominam este discurso reformador: competitividade, accountibility
(prestação de contas) e performatividade. A combinação e a ênfase dada a cada
uma destas palavras- chave pode variar com o contexto nacional ou local. Mas o
seu conjunto constitui uma tecnologia política que oferece uma alternativa
politicamente atraente à tradicional ligação da educação a um direito social e
ao bem estar público.
O que se entende aqui por tecnologias políticas de reforma? Conforme Ball
(2003), são desdobramentos calculados de técnicas e artefactos que organizam as
forças e capacidades humanas para funcionarem como redes de poder. Ainda
segundo Ball (2003), nos tempos que correm, para além da performatividade, as
tecnologias hegemónicas assentam na retórica do mercado e no managerialismo
(novos modos de gestão), substituindo as velhas tecnologias em que assentou a
identidade actual dos professores e que foram dominantes até aos anos 1980: o
profissionalismo e a relação com a Administração do Estado (burocracia, nos
termos weberianos).
Interessa ver como é que esta tecnologia, designada a partir do inglês
performativity, está a influir na (re)construção das identidades docentes.
Socorrendonos novamente do sociólogo britânico Stephen Ball, este define
performatividade “como uma tecnologia, uma cultura e um modo de regulação”, que
emprega “julgamentos, comparações e exposições, como meios de controlo, de
resistência e de mudança” (Ball, 2001, 2003). As performances dos indivíduos ou
das organizações, acrescenta, servem como medidas de produtividade, ou outputs,
de demonstrações de “qualidade”, ou de “momentos” para promoção ou inspecção.
Citando Lyotard (1987), uma equação entre riqueza, eficiência e verdade é então
estabelecida.
Neste contexto, o problema crucial situa-se ao nível de quem controla o campo
do julgamento. E aqui, o discurso hegemónico associa performance a
accountibility (“prestação de contas”) e competitividade, apresentadas e
medidas sobretudo pelos resultados escolares dos alunos nos exames nacionais e,
sobretudo, no acesso à universidade e aos seus cursos socialmente mais
prestigiados.
Estudos realizados em outros países, designadamente na Grã-Bretanha, têm
assinalado que a instalação desta nova cultura de uma performatividade
competitiva está a ter óbvias consequências nos professores, incrementando o
individualismo e destruindo solidariedades baseadas numa identidade
profissional comum e numa filiação sindical.
Novos contextos fazem emergir novas subjectividades – uma realidade para a qual
há muito a Sociologia nos alertou. E estes novos contextos assentam numa
intensificação e num incremento de actividades que são atribuídas aos
professores. Mas a maior contradição é que esse incremento de actividades não
se situa ao nível do trabalho concreto com os jovens estudantes, na busca de
melhores estratégias de aprendizagem, no trabalho colaborativo, mas antes em
inúmeros relatórios e justificações, em reuniões, em vigilância e correcção de
exames e provas nacionais, em recolha de dados estatísticos e resposta a
inquéritos de todos os tipos. O que se produz é um espectáculo, com uma grande
condescendência cínica, em que se mostra o que se sabe que as novas entidades
reguladoras querem ver. Por outras palavras, fabrica-se um véu e uma máscara
sob a qual se continua a agir (e a sobreviver), tendo, provavelmente como
consequência, como aponta Ball (2003, p. 153), que “a autenticidade é
substituída inteiramente pela plasticidade”.
Este é o paradoxo da performatividade competitiva: os professores nunca
trabalharam tanto para ver tão poucos resultados do seu trabalho.
Se entendermos por fabricação algo que é construído para produzir práticas de
significação (Foucault, 1996), estamos, inquestionavelmente, a assistir à
construção de novos modos de ser professor. Embora a problemática dos
professores não esteja bem colocada na agenda política e mediática, pelo menos
em Portugal, impõese que seja colocada no topo da agenda da investigação que se
faz nas Universidades e Centros de Investigação. Esse será, muito
provavelmente, um dos melhores contributos que as Ciências da Educação podem
dar à sociedade, estupefacta perante um discurso redutor e marcado, que elege
os professores (e a escola) como bodes expiatórios de uma realidade social bem
mais complexa do que aquela que opinion makers e antigos responsáveis políticos
pretendem apresentar.
2. A Revista Lusófona de Educação prossegue o propósito manifestado desde o seu
primeiro número de se tornar um espaço de diálogo científico entre professores
e investigadores originários de diferentes procedências linguísticas e
culturais. Neste número, contamos com a participação de investigadores
pertencentes a algumas das mais prestigiadas instituições de ensino superior do
Brasil, de Espanha, de França e de Portugal. Como sempre escrevemos, a nossa
afirmação como revista lusófona, escrita em português e dando particular
atenção ao espaço dos países de língua portuguesa, não impede, antes exige, uma
especial atenção a um diálogo cosmopolita, que retenha o melhor do que se faz e
publica nas universidades e centros de investigação de outros espaços
linguísticos.
O primeiro artigo, Globalização e identidades educativas. Rupturas e
incertezas, de José Augusto Pacheco e Nancy Pereira, questiona o currículo
escolar a partir de dois conceitos-chave: globalização e identidade. Como
afirmam os autores, em tempos de globalização, a regulação da educação é cada
vez mais realizada em contextos supranacionais, impondo-se, por um lado, um
padrão comum de pensar a formação dos alunos e de organizar o currículo e, por
outro, práticas curriculares homogéneas e orientadas pela eficiência dos
resultados de aprendizagem. Tomando como base uma resenha dos estudos
realizados em Portugal sobre os projectos educativos de escolas básicas, José
A. Pacheco e Nancy Pereira afirmam que o modo como os professores reagem às
imposições normativas é o da resistência passiva, assumindo-as como uma
ritualização de procedimentos e uma ressignificação de novos termos e
conceitos, o que, parodoxalmente, conduz ao reforço do currículo nacional e
supranacional. Uma tal constatação permite-lhes argumentar que “a globalização
não só reduz o espaço escolar de construção de identidades curriculares, bem
como tende para a legitimação de práticas escolares uniformes, tornando o
currículo num facto, num episódio conducente à eficiência dos resultados de
aprendizagem dos alunos, desvalorizando aspectos que são fundamentais na sua
formação global”.
No segundo artigo, Ética Ambiental e Educação nos novos contextos da Ecologia
Humana, Marina Lencastre faz a apresentação crítica de correntes que animam,
nos dias de hoje, a ecologia enquanto pensamento social e educativo. Assumindo
que as questões que se levantam actualmente no cruzamento entre educação e
ambiente são de ordem díspar e muitas vezes contraditórias, a autora defende
que no coração da discussão estão concepções aparentemente renovadas sobre as
relações entre a natureza e a cultura. Não se identificando com certos
discursos parcelares, que designa de naturocentrismo e de sociocentrismo,
Marina Lencastre defende uma visão integradora que permita uma compreensão
suficientemente esclarecida tanto dos fenómenos ecológicos, como dos fenómenos
educativos próprios ao humano. O presente artigo percorre algumas destas
questões, mostrando como se interligam, sem se dispensarem, e como é da
compreensão dessa interligação que crescem mais amplas possibilidades de
conhecimento e de educação em ambiente, “desipotecados ambos tanto da ideia de
um estado ideal da natureza, como de um ideal natural do ser (humano, entre
outros) ou de um ideal do saber”.
O terceiro artigo, Quais os contributos da Antropologia para a compreensão das
situações de deficiência?, de Charles Gardou, prossegue uma linha de abordagem
fundamental para se entender a inclusão educativa (ver os artigos publicados
nos nos 2 e 6). Neste artigo, o autor assume que a Antropologia, enquanto
“ciência social do observado”, na definição de Lévi-Strauss, que ambiciona
conjugar o uno e o plural, e pensar a constante tensão entre o ponto de vista
do próprio e do outro, pode dar um contributo central para a compreensão das
situações de deficiência. Para além das formas de estar e de agir no mundo,
aparentemente estranhas e estrangeiras, o outro é um homem como eu. A sua
alteridade não representa uma substância imutável, é relativa e contingente,
conclui Gardou.
O quarto artigo, Da integração à inclusão escolar: cruzando perspectivas e
conceitos, de Isabel Sanches (e António Teodoro) prossegue uma abordagem que
tem a inclusão educativa como o grande desígnio de uma educação humanista.
Neste artigo, procura-se precisar conceitos e cruzar perspectivas provenientes
de diferentes quadrantes, “para que as palavras/expressões não sejam usadas
aleatoriamente ou despidas do significado que esteve na origem da sua
utilização educativa”, como explicitam os autores. O ponto de partida para esse
trabalho é resumido na seguinte frase: Deixai-me viver e aprender, como sou e
com todos os meus amigos! Um ponto de partida que assume que a aprendizagem se
faz “com a ajuda do professor, mas também com o grupo e no grupo dos pares, no
contexto ao qual pertence cada um dos indivíduos a educar, valorizando saberes
e experiências de todos, com o seu nível de funcionalidade, numa perspectiva
ecológica de desenvolvimento”.
No quinto artigo, O dever de casa como política educacional e objeto de
pesquisa, Maria Eulina Pessoa de Carvalho procede a uma análise crítica de um
tema dos mais debatidos junto da grande imprensa, mas quase ausente da
investigação educacional. Nesse artigo, a autora, tomando como referência as
realidades educacionais brasileira e norte-americana, examina aspectos
implícitos das interações entre escola e família no atual contexto mundial de
reforma educacional neoliberal, que veicula a retórica de que escola pública
boa começa em casa. Defendendo que o dever de casa (trabalho para casa, TPC, na
terminologia utilizada em Portugal) é fundamentalmente uma questão política com
implicações para um projeto de equidade educacional, Maria Eulina de Carvalho
sublinha as contradições, o caráter totalitário de regulação da vida privada,
os potenciais conflitos e efeitos perversos da política de envolvimento dos
pais na escola pública, ao atribuir à família a responsabilidade pela qualidade
da aprendizagem e sucesso escolar dos estudantes, o que lhe permite sugerir, a
terminar, uma ampla agenda de pesquisa.
O sexto artigo, Os manuais escolares, a construção de saberes e a autonomia dos
alunos. Auscultação a alunos e professores, de Esmeralda Maria Santo, constitui
um contributo da linha de pesquisa sobre manuais escolares existente no seio do
Observatório de Políticas de Educação e de Contextos Educativos da Universidade
Lusófona, coordenada pelo Professor José B. Duarte. Tendo como base a sua
dissertação de mestrado, a autora, assumindo o manual como uma ferramenta
pedagógica ao serviço da construção de saberes pelos alunos, procede a um
estudo de caso instrumental de natureza qualitativa numa escola da periferia de
Lisboa, junto de alunos e professores, a partir da análise de dois manuais do
ensino secundário, um de Português e outro de Ciências da Terra e da Vida. O
objectivo do artigo de Esmeralda Santo é o de contribuir para uma melhor
compreensão dos mecanismos de construção do saber do aprendente através do
trabalho pedagógico que este desenvolve com o manual escolar e, sobretudo, que
este trabalho possa ser perspectivado como uma mais valia para a elevação da
qualidade da escola e no âmbito da formação de professores.
No sétimo artigo, Conflito docente no Brasil e manifestações sindicais:
natureza e significados, Dalila A. Oliveira e Savana G. Melo discutem a
natureza e o significado dos conflitos docentes ocorridos no Brasil entre os
anos de 1998 e 2003, a partir de suas manifestações acolhidas ou preconizadas
pelos sindicatos. Tomando como objecto de trabalho empírico o Estado de Minas
Gerais, as autoras quantificam e qualificam os conflitos, identificam os
protagonistas e as suas principais motivações. A análise do desenvolvimento e
desdobramentos dessas lutas, nem sempre felizes para os trabalhadores, indicia
que algo precisa ser repensado, pois “podemos estar diante de um distanciamento
das direções sindicais dos locais de trabalho”, não no sentido do
distanciamento físico, “mas de seus discursos e protestos, expressos nas pautas
de reivindicações, panfletos e boletins, demonstrando pouca sensibilidade e
conhecimento com a realidade atual das escolas”.
No oitavo artigo, As Universidades Populares. Contexto e desenvolvimento de
programas de formação de pessoas adultas, Agustin Requejo Osório analisa os
aspectos fundamentais da educação popular a partir de uma sua característica
básica: “as suas actividades formativas são orientadas para a promoção e o
aprofundamento da democracia partindo da realidade mais imediata, do grupal e
do local, para descobrir os princípios mais gerais e globais que configuram a
dinâmica social com vista a actuar sobre ela”. Realizando um estudo especifico
na Galiza sobre uma das manifestações da educação popular, as Universidade
Populares, o autor salienta o amplo apreço que o programa desperta nas pessoas
idosas nele inscritas (82% propõe as notas máximas) e a grande estima que
outorgam aos educadores (professores e monitores), que em 89,3% das respostas
recebem as notas mais altas (4 e 5 pontos da escala de valoração proposta).
Na secção Diálogos, Manuel Tavares retorna às suas conversas com cientistas
sociais, desta vez com José Machado Pais. Titulada Os Rostos da Solidão, esta
conversa com um dos mais interessantes e criativos sociólogos portugueses
constitui um momento de leitura obrigatória para todos quantos desejam
compreender as práticas sociais quotidianas, em particular dos jovens. A partir
de alguns dos seus últimos trabalhos científicos, Machado Pais desvenda-nos a
riqueza do seu método: “este duplo olhar – intrometido e comprometido – é tanto
mais objectivo quanto mais tocado por uma subjectividade cúmplice do
observador. A reflexividade, nos processos de observação, produz um efeito de
sensibilização que permite estabelecer rupturas com as imagens estereotipadas e
cristalizadas do que se vê sem olhar, do que normalmente se concebe com
preconceito ou se olha de lado. O olhar científico é tanto mais credível quanto
mais crítico em relação a essas representações estereotipadas”.
Em Documentos inclui-se um texto premonitório de Calvet de Magalhães, publicado
em Fevereiro de 1974, sobre o Direito à Educação. Antecipando a apresentação no
próximo número da Revista Lusófona de Educação de um CDr com originais das
normas e regulamentos da Escola Preparatória Francisco de Arruda, em Lisboa,
que comemora o seu 50º aniversário, este documento pretende ser um testemunho
do pensamento pedagógico desse homem de acção que foi Calvet de Magalhães que,
em condições muito difíceis, construiu um projecto educativo marcante na
história da educação em Portugal no pós-segunda guerra mundial.
Em Recensão Crítica, José B. Duarte apresenta o livro Língua Portuguesa e
Cooperação para o Desenvolvimento, organizado por Helena Mira Mateus e Luísa
Teotónio Pereira, que se centra na problemática da diversidade linguística nos
Palop e em Timor e da cooperação de Portugal com esses países. Por seu turno,
Teresa Moura apresenta aos leitores da Revista The OECD, Globalisation and
Education Policy, um dos mais importantes livros sobre um dos agentes
globalizadores mais poderosos no campo das políticas de educação, que tem como
autores um grupo de investigadores australianos que, durante dois anos,
procederam a uma análise crítica dos principais documentos produzidos no seio
da OCDE.
Por último, duas das habituais secções da Revista. Em Noticias apresentam-se
breves referências às participações de investigadores da UID Observatório de
Políticas de Educação e de Contextos Educativos em seminários e congressos
internacionais, bem como a relação dos projectos de intervenção desenvolvidos
em 2004/2005 no Curso de Pós-Graduação e Formação Especializada de Educação
Especial. Em Dissertações apresentam-se os resumos das dissertações defendidas
entre Janeiro e Julho de 2006 no âmbito do Mestrado em Ciências da Educação da
Universidade Lusófona.
Lisboa, Novembro 2006
António Teodoro