Os rostos da solidão
Os rostos da solidão
Manuel Tavares conversa com José Machado Pais
Manuel Tavares - Em primeiro lugar, gostava que salientasse os momentos que
considera mais significativos do seu Curriculum.
José Machado Pais - Suponho que se refere ao curriculum académico, não é? Como
a carreira académica é constituída por sucessivos rituais de passagem (provas
de mestrado, doutoramento, agregação) é natural que esses momentos assumam
algum significado. Mas trata-se de um significado circunscrito ao que, por
antecipação, se expectativa. É um significado com forte carga institucional. O
previsto faz com que o significativo, sem deixar de o ser, perca significado.
Eu valorizo, sobretudo, o que chega de imprevisto. Nesse sentido, o Prémio
Gulbenkian de Ciência que, em 2003, foi atribuído ao meu livro Ganchos, Tachos
e Biscates, teve um significado especial, até pela sua projecção pública.
Claro que mentiria se dissesse que foi completamente imprevisto. O encontro com
um prémio, mesmo quando é perseguido, é sempre inesperado quando se alcança.
Mas há momentos que, pelo seu completo imprevisto, assumem um significado
distinto. Tão distinto que o seu significado se empola ao ser ressignificado.
Como estímulo, por exemplo. É o que acontece quando recebo incentivos, por
carta ou e-mails, de leitores desconhecidos, alguns do Brasil. Ah! Houve um
momento que me causou uma emoção profunda. Foi quando, no lançamento do livro
Ganchos, Tachos e Biscates, na Livraria Ler Devagar, perdi o sentido da
realidade, ao sentir uma espécie de alucinação. Foi quando vi entrar, no espaço
em que decorria a sessão, um dos jovens que havia entrevistado no
Estabelecimento Prisional de Lisboa: o Blatte. Ele tinha uma pena de 11 anos.
Apenas tinha cumprido dois. Como era possível aquele personagem ter saltado do
livro e da prisão ' para ali? Era real aquela realidade? Faço-lhe um aceno,
Blatte, vem cá! - e ele veio, caindo-me nos braços. O seu processo de
condenação tinha sido revisto e nesse mesmo dia havia sido libertado. Fez
questão de assistir ao lançamento do livro.
MT- Tem-se dedicado, de uma forma brilhante, à construção de uma «Sociologia da
vida quotidiana», «tomando o quotidiano como alavanca metodológica do
conhecimento». Como é possível, meu caro Professor, a partir desse «mosaico
complexo de banalidades» e das múltiplas «encenações» estratégicas no meio dos
actores sociais, construir uma representação ou representações credíveis do
ponto de vista científico?
JMP - Tomo, efectivamente, o quotidiano como uma perspectiva metodológica. O
que me interessa é o social. Ora, o sentido do social pode ser apanhado,
observando as pequenas banalidades da vida, desde que estas sejam
sociologicamente problematizadas. Para o efeito, há que nos deixarmos
surpreender pelo que nos rodeia e que, por nos ser tão familiar, nos parece tão
desprovido de significado sociológico. O método? Para começar, pode ajudar uma
espécie de curiosidade ociosa, como dizia Veblen, ou de curiosidade
espontânea como também gostava de dizer Paulo Freire. Por exemplo, chegámos à
praia. Ao nos livrarmos da roupa, não nos despimos da capacidade de observação
sociológica. Aliás, devo confessar que, por norma, levo sempre um livro para
ler na praia, mas raramente o leio. Porquê? Porque não consigo ler
simultaneamente dois livros! Não é a praia um livro de comportamentos? A
entrada na água, por exemplo. Há modos comportamentais tipificáveis: o atleta,
o tímido, o ousado aquela velhota agachada, o que faz? Observando o modo de
aplicação dos cremes de bronzear, posso testar a qualidade das relações
conjugais: Ela pede:Chega aqui nas costas!. Ele responde Não vês que estou a
ler o jornal?. Outros besuntam a mulher, abruptamente, terminando com um
apressado já está!. Os apaixonados, quase esgotam a bisnaga do creme no corpo
da companheira. E esfregam, suavemente, e colocam mais creme, e intrusivamente
deixam escapar os dedos por regiões do corpo onde, supostamente, não faria
falta o protector solar. Aí, desvio o olhar e vejo brigas de miúdos pela posse
de uma pá de areia ou de uma bola: os pais pedem às crianças que tenham
maneiras, empresta lá a pá ao menino O comportamento dos pais é muito mais
civilizado, no sentido em que Norbert Elias trabalhou o conceito. O
sentimento da posse é o mesmo, mas o seu exercício é muito mais subtil. Por
exemplo, observo a forma como ocupam a areia. Estrategicamente, espalham
toalhas, mochilas, geladeiras e ténis por uma ampla superfície de areia, como
estratégia de delimitação do seu espaço: de um espaço que não pretendem ocupado
por intrusos. Os mais felinos definem tacitamente a propriedade de areal
através da projecção da sombra do chapéu-de-sol na areia. Ninguém ousa estender
a toalha na sombra projectada por um chapéu-de-sol alheio. Há famílias que se
munem de dois chapéus para beneficiarem de uma projecção mais ampla de sombra,
aumentando, desse modo, o território de usufruto privado. Não é tudo isto
significativo? Outro exemplo. Em meu próximo livro, sobre a solidão, acompanhei
alguns sem-abrigo. Meti-me naturalmente entre eles. Acompanhei-os. Deveria
ter dormido com eles, ao relento. Lamento não o ter feito. Mas sempre reclamo,
como método de observação, um olhar intrometido. Olhar metido no que
normalmente se desolha, mas também comprometido, isto é, envolvendo um
compromisso, uma obrigação de denúncia, de desocultação, de desvendamento. Não
se trata de um olhar suporte de uma compreensão intuitiva ou simpática dos
modos de vida dos sem-abrigo, mas de uma compreensão sociológica que permita
desvendar os sentidos do vivido. Por olhar comprometido, também não pretendo
significar uma irreal supressão das distâncias sociais entre quem observa e é
observado, apenas um compromisso de respeito em relação a quem se nos dá, no
modo que se dá, como objecto de observação ' à vista aparentemente desarmada
mas, na realidade, armada de interrogações sociológicas. Este duplo olhar '
intrometido e comprometido ' é tanto mais objectivo quanto mais tocado por uma
subjectividade cúmplice do observador.A reflexividade,nos processos de
observação, produz um efeito de sensibilização que permite estabelecer rupturas
com as imagens estereotipadas e cristalizadas do que se vê sem olhar, do que
normalmente se concebe com preconceito ou se olha de lado. O olhar científico é
tanto mais credível quanto mais crítico em relação a essas representações
estereotipadas.
MT - Relacionada com a anterior: Claro que, actualmente e felizmente, se
questionam os critérios que definiam a ciência moderna com a afirmação, cada
vez maior, das Ciências Sociais e com o próprio desenvolvimento das Ciências
Experimentais. Está, pois, a emergir um novo paradigma científico, mais
englobante, mais inclusivo e que supõe uma nova racionalidade. Inserir-se-ão as
suas investigações no quadro de um novo paradigma científico?
JMP - Em certo sentido sim, salvaguardando toda a minha discordância em relação
a quem pensa que, em questões de método, tudo vale. De maneira nenhuma!
Agora, o que se debate, no domínio das ciências sociais, é um reequacionamento
das relações entre o que se investiga e quem investiga. Os novos paradigmas
científicos, nas ciências sociais, questionam cada vez mais a reflexividade nos
processos de investigação. Não apenas é necessário ganharmos consciência de que
somos parte do campo de observação que vulgarmente tomamos como objecto de
estudo, como, por outro lado, há uma tendência à incorporação em nossas acções
dos resultados de pesquisa. A reflexividade, como sustentam os etnometodólogos,
pressupõe que as descrições não sejam apenas descrições de algo mas que,
sobretudo, produzam algo. Elas não se limitam a representar a realidade, também
ajudam a criá-la. Quando, por exemplo, os etnometodólogos realçam a natureza
reflexiva do discurso, colocam em causa o dualismo que contrapõe a descrição à
realidade descrita. A reflexividade implica que qualquer descrição seja uma
referência a algo mas, ao mesmo tempo, faça parte desse algo. As descrições não
são apenas usadas por seu carácter descritivo. Elas são acções sociais. Como me
questionava um querido amigo, o poeta António Ramos Rosa, «pode dizer-se o que
acontece independentemente do que se diz»?
MT - Efectivamente, a realidade é, em si mesma, muito mais rica do que os
discursos e narrativas que sobre ela existem. O que se diz sobre ela é muito
menos do que aquilo que ela é. As zonas de silêncio que procura conceptualizar
ou, apenas «dizer-dar voz», são, também, ausências de territorialidade (social,
entenda-se e não geográfica ou física ' aquele «sem-abrigo» que dorme debaixo
da ponte reclama para si aquele território, tal como a senhora que coloca dois
guarda-sóis na praia). De que modo um olhar intrometido-comprometido analisa e
interpreta estes paradoxos: uma realidade que está aí e que não se diz em toda
a sua riqueza; zonas de silêncio que gritam por territórios e que não têm
«direitos territoriais»; uma verdade que se diz e que oculta outras verdades? É
a isto que se chama EXCLUSÃO?
JMP - Penso existirem diferentes modalidades de exclusão, sendo que algumas
dessas modalidades poderão, efectivamente, associar-se à problemática dos
«direitos territoriais» ou, por exemplo, à dos «direitos de cidadania». Será
integrativa uma cidadania que faz uma apologia de direitos civis de propriedade
entre quem nada tem? Ou que pugna por direitos sociais como o de livre acesso à
educação que por sistema tem o condão de repelir os que a ela acedem com mais
dificuldade? Os paradoxos são eventualmente decifráveis quando olhamos o seu
avesso; quando, por exemplo, descobrimos que o avesso do inclusivo tende a
permanecer oclusivo. E porquê? Provavelmente porque o excluído é desconsiderado
ao ser tomado de exótico. O carácter estranho do exótico deriva do facto de
cair fora da óptica da normalidade. O ex-óptico é isso mesmo.
Frequentemente, os sem-abrigo são olhados de lado, isto é, olhados como
excluídos embora, na verdade, façam parte da sociedade que os produz e, desse
modo, encontram-se nela simultaneamente em condição de excluídose incluídos. O
que proponho é a recuperação de uma vista plena como suporte da observação
sociológica. Olhar de frente o que normalmente é olhado de lado. Só desse modo
compreenderemos de que modo as categorias do desvio, da exclusão ou da
margem são produções sociais, compreensíveis a dois níveis distintos: ao
nível do aqui e do ali e ao nível do dentro e do fora. Simmel analisou estes
níveis de separação através da metáfora da ponte e da porta. Enquanto que na
correlação da separação com a unificação a ponte faz recair o acento sobre
a última, ao vencerem-se distâncias que se tornam visíveis e mensuráveis, a
porta mostra-nos como o separar e o ligar são duas faces de uma mesma moeda.
MT - Como sociólogo, interessa-lhe o mundo habitado e vivido e, sobretudo, o
«avesso» desse mundo. Como professor, é sensível aos problemas da juventude, da
sua formação e da sua afirmação numa sociedade que, por ser tão patologicamente
competitiva, lhes é cada vez mais adversa. A democratização do ensino, no que
diz respeito ao acesso, não ao sucesso, levada a cabo após o 25 de Abril de
1974, criou condições para que as minorias, os mais excluídos pudessem, também
eles, ingressar no sistema educativo. Todavia, a realidade revela-nos que os
excluídos de outrora continuam a ser «incluídos na exclusão». Como interpreta
esta realidade sociológica que nos coloca na cauda da Europa? Será que o
sistema de ensino «olha de lado» o que deveria ser olhado de frente?
JMP - Um argumento que tem sido avançado é o do sistema de ensino não se
mostrar capaz de comunicar com culturas diferentes do seu padrão normal. Com
efeito, a integração escolar, de natureza assimilacionista, depende da
capacidade dos jovens se adaptarem ao desempenho de um padrão normalizado. Os
jovens chegam à escola diferentes ' porque têm origens sociais e memórias
culturais diferentes ' mas a escola pretende, à força, torná-los iguais, caindo
na falácia de identificar democratização com massificação e homogeneização.
Aliás, não é por acaso que a crise da escola é frequentemente vista como
reflexo da sua massificação. O padrão-norma não respeita as individualidades,
fechando-se em relação à diversidade. Na lógica desta argumentação, os mesmos
jovens que são olhados de lado, (por exemplo, os jovens de minorias étnicas)
passam a ser avaliados como iguais.
Este absolutismo modal afectará, de modo muito significativo, todos aqueles que
se afastam da mediania: não apenas os herdeiros de capitais familiares (sociais
e culturais) que, antes da democratização do sistema de ensino beneficiavam da
natureza burguesa do sistema escolar, como os actuais deserdados. Nos anos 60 e
70, colocava-se em causa a capacidade do sistema escolar para reduzir as
diferenças sociais, ao converter-se num mecanismo que mantinha e aprofundava a
distância entre as classes sociais. Actualmente, discute-se a incapacidade do
sistema em respeitar as diferenças ' tanto a dos herdeiros quanto as dos
deserdados. Por exemplo, teme-se que as elites possam ser engolidas pela
medianização que a padronização promove. Por fugirem ao padrão normal, os
alunos fora da média são, por vezes, olhados como problemáticos e avaliados em
função de representações pré-construídas e estigmatizantes.Assim acontece com
os rotulados de super-dotados, por isso aconselhados a terem acompanhamento
psicológico, tal qual acontece com aqueles outros jovens que fogem ao padrão
normal pela negativa, isto é, os deserdados de capitais escolares,
frequentemente rotulados de inadaptados e que alimentam as estatísticas do
insucesso escolar. Em ambos os casos poderemos estar perante uma inclusão cujo
avesso é a exclusão, ou vice-versa.
MT - As grandes mutações sociais são, geralmente, silenciosas. Não acedem aos
telejornais, não surgem nas primeiras páginas dos jornais, mas, mesmo assim,
acontecem. Ao longo dos tempos, fruto de uma multiplicidade de acções, no seio
de muitas tensões e conflitos, resultado de milhões de microdecisões, envolvida
nas mais desencontradas retóricas, a paisagem social foi mudando. Para esta
mudança muito terá contribuído a educação, em Portugal, nos anos oitenta e
noventa. Como afirmava Hegel, as grandes revoluções são o resultado de
múltiplas revoluções silenciosas. Nós, professores, fazemos nas Escolas e nas
Universidades essas «revoluções silenciosas» que, aos poucos, vão gerando
mudanças. Será esta uma das funções do ensino e da educação fugindo e
contornando as tradicionais reprodução e legitimação sociais?
JMP -Múltiplas revoluções silenciosas podem, de facto, ocorrer na escola. Cada
aluno, desde que entra na escola, é um continente de descobertas. Mas ele
próprio é um agente descobridor ' de si mesmo e do que se passa à sua volta.
Por isso, admiro tanto os professores do ensino básico, os primeiros a dar
lastro a esse prazer do saber. Prazer que também passa por uma aprendizagem,
não isenta de sacrifícios. No entanto, há quem sustente que o mal-estar de
algumas escolas se deve a uma espécie de inércia institucionalizada feita de
rotinas e repetições. Não estão apenas em causa as repetências escolares ou
chumbos, como se diz na gíria dos estudantes. A questão que se coloca é a da
escola repetir, ano após ano, muitas das suas insuficiências: os mesmos modelos
pedagógicos desajustados; as mesmas aulas aborrecidas; as mesmas avaliações
controversas; a mesma impreparação de professores desmotivados e mal pagos; as
mesmas punições e concessões; o mesmo alheamento; o mesmo deixa andar Aliás,
também se poderia discutir se o relativo fracasso de sucessivas reformas
educativas não resulta da teima em ignorar o peso das tradições e rotinas
escolares. A escola também se encontra subordinada a uma gramática de regras
sedimentadas que resistem à mudança. A aparente resistência da escola às
sucessivas reformas de que é alvo, parece configurá-la como uma identidade
persistente no tempo. Como Nisbet nos ensinou, num livro intitulado Social
Change, não há a mínima possibilidade de compreender os mecanismos da mudança
social a menos que entendamos ou reconheçamos seriamente os mecanismos de
fixação dessa persistência. Esses mecanismos não têm sido suficientemente
estudados. Eles poderão ajudar a explicar por que razão o que no sistema
aparentemente muda, parece deixá-lo cada vez mais na mesma. A mudança
recorrente dos programas escolares pode ser um bom exemplo. Mudam os governos e
logo mudam os programas escolares. Mas não se sabe, por falta de avaliação, se
a mudança dos programas escolares tem tido uma efectiva interferência na
qualidade de ensino Mudam os programas, mas parece persistirem as rotinas que
subordinam a prática pedagógica à necessidade de dar o programa, de menosprezar
o que não vem no programa, de aconselhar apenas os livros adequados ao
programa, de contabilizar o tempo suficiente para dar o programa, e por aí
fora. Se assim é ' e este é um domínio que carece de investigação ' o que
prevalecerá no sistema do ensino será, sobretudo, uma capacidade notável de
reprodução de rotinas e de resistência à mudança. Do mesmo modo que uma massa
física em repouso tende a continuar em repouso também o sistema de ensino é
susceptível de criar imunidades à mudança. Em ambos os casos, estamos perante
uma força de inércia. Isto para concluir, no entanto, que não há mudança social
que não passe pela educação e pela cultura.
MT - Não resisto a colocar-lhe uma questão que ocupa uma parte importante do
seu último e magnífico livro, Nos rastos da solidão. Tem a ver com os afectos
ou a ausência deles e com a sua produção e evolução históricas. Será que a
comunicação no ciberespaço é mesmo uma manifestação de solidão, de ausência de
afecto ou, pelo contrário, é uma tentativa momentânea de desconstrução de uma
identidade social e construção de uma outra que, embora virtual, se desvela na
ocultação de um nickname e manifesta, como num mundo onírico, os pedaços mais
perversos existentes no «alçapão» de cada ser humano?
JMP - O ciberespaço é um palco de acontecimentos. Por ele viajam solitários em
busca de conexões virtuais. Foi deles que andei à procura. No entanto, o
ciberespaço também é palco de aprofundamento de sociabilidades existentes off-
line. Há estudantes que, acabadas as aulas, vão para casa, ligam o computador e
continuam em comunicação com os seus grupos de amigos. Mas a questão que me
levanta aponta para uma realidade de outros horizontes. É a realidade do
desencontro de cada um consigo próprio que leva ao questionamento da identidade
individual. Quem sou eu? Há, também, um conhecimento de si que passa pelo
reconhecimento por parte dos outros, não é? No mundo real ou no mundo virtual,
a afirmação do eu não significa apenas um conhecimento de si próprio mas
umreconhecimento de si por parte dos outros. São os outros que falam de mim sem
que eu o saiba, que me objectivam encerrando-me numa imagem que é mais real do
que a realidade de quem sou. Arbitrariedade insólita esta, a de ver-me
despojado de mim mesmo por efeito da imagem que os outros fazem de mim. E
porque, não apenas sou o que penso de mim, mas a imagem que os outros de mim
constroem, acabo por me disseminar na representação dos outros, na qual me olho
ao espelho para me reaprender. Essa aprendizagem de mim mesmo, quando me olho
na imagem espelhada das representações dos demais, permite recuperar essa coisa
estranha que sou para mim mesmo só pelo simples facto de o ser para os demais.
Mas há uma diferença significativa entre as identidades jogadas no mundo real e
aquelas que se jogam no chamado mundo virtual. Aqui, como me sugeriu na sua
pergunta, os pedaços mais perversos da identidade de cada um libertam-se por
efeito de uma diminuição dos constrangimentos sociais. Vejamos o que se passa
ao nível dos encontros amorosos. A experimentação que caracteriza muitos dos
actuais encontros (ou desencontros) amorosos revela, claramente, uma capacidade
de autonomia mas, paralelamente, arrasta temores sobre os desempenhos que
decorrem dessa autonomia. Deste modo se justifica o desenvolvimento de uma
rentável indústria de excitantes sexuais cujo marketing nos inunda as caixas de
correio electrónico. Podemos aplicar, sem problemas, o conceito de empowerment
que agora está tão de moda já que é de (im)potência social que estamos a falar.
A exibição de poder ' qualquer que seja a sua natureza ' é, no entanto, mais
facilmente manipulável em relações virtuais. Um baixo pode apresentar-se como
tendo elevada estatura, um careca pode ufanar-se de sua farta cabeleira, um
empregado de escritório pode apresentar-se como empresário Ou seja, as
identidades podem ser muito mais facilmente manipuladas. É certo que também nos
cenários mais banais da vida quotidiana se experimentam novas identidades,
jogando-se com a ambiguidade, alimentando-se dúvidas e cepticismos. Mas, em
cenários virtuais, tudo é mais fácil de lograr.
MT -Na mesma obra, faz percursos arrojados e inovadores. Construir um
conhecimento sociológico e também psicológico (é de sentimentos que se trata)
do inefável, do que se esquiva mas que, apesar de tudo, tem uma face: as suas
marcas sociais. É uma ruptura com a sociologia tradicional, sobretudo com a
herança de Durkheim? Sente-se um hermeneuta dos sentimentos a partir de uma
arqueologia social?
JMP - Ruptura com a sociologia de Durkheim? Sim e não. Ruptura com Durkheim, no
sentido em que não creio que a sociologia deva concentrar todos os seus
esforços apenas, ou exclusivamente, na descoberta dos factores da ordem, na
busca da coerência das representações colectivas, na acentuação das
regularidades que sustentam a coesão social. Com o crescente processo de
divisão social de trabalho, que Durkheim tão bem estudou, deu-se uma crescente
fluidez dos processos sociais. Quer dizer, as «representações colectivas»
segmentarizaram-se, por efeito da diversidade cultural, acentuaram-se os
processos de individualização. No entanto, não posso renegar a minha sólida
costela durkheimiana. Aliás, se não me assumisse um convicto durkheimiano não
me reveria nessa sugestiva imagem que me dá, a de um arqueólogo social, embora,
de facto, Durkheim não fosse propriamente um hermeneuta dos sentimentos Como
quer que seja, quando Durkheim decidiu fazer um estudo sociológico sobre o
suicídio não o fez por acaso. Ele procurava afirmar a sociologia como uma
ciência autónoma, demarcando-a, em particular, da Psicologia. E vai daí,
escolhe precisamente um fenómeno ' o suicídio ' que o senso comum imputa ao
temperamento do suicida, ao seu carácter, aos seus antecedentes biográficos,
aos acontecimentos da sua vida privada E que nos revelou Durkheim? Que, afinal,
o suicídio é, também, um fenómeno social. Ele mostrou-nos que os protestantes
se suicidavam mais do que os católicos; os casados menos do que os solteiros ou
viúvos; que havia mais suicídios depois do que antes de actos eleitorais, etc.
Nos Rastos da Solidão não fiz nada de muito diferente. Tomei um fenómeno ' a
solidão ' que normalmente se olha como um fenómeno centrado nos indivíduos que
dela padecem ou que nela vivem. E que descobri? Que a solidão tem profundas
marcas sociais. Como o suicídio é também um fenómeno social.
MT - Encontrar, nos rastos da solidão, os rostos da solidão: «a solidão de uma
vida pode ser entrevista nos rostos de quem a vive, embora eles também se
possam servir de máscaras para ocultarem os sentimentos.» Nessa metáfora da
moeda em que o sentimento de solidão flui nesse leito determinado pelas margens
do isolamento e do relacionamento, não é essa, afinal, a paisagem que
habitualmente se encontra, também, nos incluídos, nos instalados e herdados na
e da vida? Será a solidão um sentimento incontornável das sociedades
contemporâneas? Será um dos preços a pagar pelo desenvolvimento? Entre o avesso
e o direito, onde corre, afinal, a solidão?
JMP - De facto, a solidão é democrática. Não escolhe idades, género, raça ou
classes sociais. Mesmo os mais endinheirados podem sentir-se sós com o seu
dinheiro pois o dinheiro não soluciona todos os problemas da vida. A solidão
espreita-nos a qualquer esquina do quotidiano. Como quer que seja, e embora
sempre tenham existido solitários encasacados em sua solidão, é de supor que a
sociedade contemporânea seja mais propensa ao fenómeno. Por razões sociais,
evidentemente. Nos tempos medievais, por exemplo, o âmbito privado confundia-se
com o domínio público. Já no Renascimento, quando se inicia um processo de
separação entre as duas esferas, o espaço público continua a ser um espaço de
grande vitalidade sociabilística. A rua, como cenário teatralizado da
burguesia, alcançou o seu sentido literal quando passou a ser palco de
representação, de cortejamento, de dominação selectiva da indiferença dos
demais. Balzac bem o demonstrou na Comédia Humana. E também Richard Senett, em
The Fall of Public Man Mas eis que, com os inícios do século XX, a cidade é
invadida por automóveis que a transformam num motu continuum:«bebedeira de rua
e de sentir, ver, ouvir tudo ao mesmo tempo», impressionava-se Fernando Pessoa,
através de Álvaro de Campos (Passagem das Horas). O passeio de automóvel fez
Pessoa sentir, na velocidade, o desaparecimento rápido das coisas: da rapariga
imaginada à janela de um casebre à perda de si mesmo. Com a descoberta do
fósforo, a finais do século passado, acendeu-se uma gestualidade brusca e
repentina que iria comandar a vida a partir de então. Os elevadores dos prédios
destruiram a lenta subida/baixada das escadas, e mesmo estas fizeram-se
rolantes. As notícias das televisões correm mais velozes que os acontecimentos,
algumas vezes antecipam-os. O zapping fabricou telespectadores ubícos que ,
avidamente, devoram em privado tudo o que se publicita. O telefone lento da
manivela cedeu ao levantar brusco do auscultador. Mas as redes fixas das
telecomunicações já não se ajustam à labilidade dos tempos que correm. Por
isso, surgiram os telemóveis. Enfim, as ruas são como tubos que aspiram,
velozmente, o tráfego humano.
A partir daqui, questiona-se o declínio da vida pública nos grandes espaços
urbanos. A fractura entre o público e o privado adquiriu bases jurídicas e
fundamentos ideológicos.As sociabilidades medievais deram lugar aos trânsitos
anónimos pelas cidades. A família transformou-se num lugar de refúgio e mesmo
aqui, cada um em seu quartinho, com a sua televisão. Indicador do movimeno de
privatização da vida social é a própria denominação modernamente atribuída à
casa: apartamento. E um efeito paroxístico desse movimento é esse lugar
eufemicamente designado por «casa de banho». Na realidade, a generalização do
uso da casa de banho aparece como um dispositivo técnico de isolamento e
separação da intimidade dos corpos ao constituir-se num asilo inviolável de
recolhimento ou isolamento. Talvez não seja por acaso que a nossa retrete
derive do termo francês retraite que expressa precisamente a ideia de retirada,
recolhimento, refúgio, isolamento, aposentação
MT - E chegámos à nº 10. O que perguntar? O que é perguntar e responder? O que
existe entre a pergunta e a resposta? (Não leve a sério, meu caro Professor. De
facto, apetece-me, como Victor Hugo -como a publicação dos Miseráveis tardava -
fazer a mesma pergunta: ? -E a esta pergunta obteve a seguinte resposta: ! O
que significam um e outro símbolos?)
JMP - Entre perguntas e respostas existeuma saudável inquietação, mas, também,
um jogo infindável de dominó para os dois lados, na exacta medida em que a
dadas respostas sucedem novas perguntas. Os questionamentos mais fascinantes,
como o que acabou de me colocar, são aqueles que sobrevivem às respostas,
apenas se deixando responder por metade, por meias respostas. Deixemos a outra
metade da resposta para os leitores que venham a ler esta entrevista.
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